Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4841/21.7T9LSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento:
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. As necessidades de prevenção geral são cada vez mais exigentes neste tipo de crimes, - abuso sexual de pessoa incapaz de resistência -, tendo em conta o bem jurídico violado (a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa incapaz de resistência) e impostas pela frequência dos casos de abusos sexuais em geral e em especial dos abusos sexuais de pessoas incapazes de resistência. Geradora do elevado alarme social que este tipo de atuações criminosas suscita na comunidade, justificando resposta punitiva firme, no caso vertente ainda mais premente devido á repercussão que o caso teve na medida em que foi levado a cabo em local de culto religioso onde se espera a máxima segurança e respeito dos outros e por um funcionário de uma igreja que é suposto estar para auxiliar e não para atentar.

II. Está em causa a prática de três crimes. A cada um dos imputados crimes corresponde, em abstrato, a pena de prisão de dois a dez anos (art. 165º, nºs 1 e 2 do CP).

III. Aqui, em termos de conjunto, não pode deixar de se relevar que o mesmo tipo de crime foi praticado por três vezes, aproveitando-se da incapacidade da vitima, e abusando da sua situação incapacitante, o que era do seu conhecimento, em local de culto religioso onde era suposto a pessoa se encontrar segura e mesmo apoiada e prevalecendo-se da confiança de quem, como o arguido, estava no local para ajudar e apoiar, traindo a confiança que devia inspirar. Com dolo reiterado e intenso. Em padrão comportamental de tendência.

IV. Não se mostra excessiva a pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos crimes e não se mostra excessiva a pena única de 6 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção, Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça,


I. RELATÓRIO

I.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Central Criminal de... - J... .., por acórdão de 11/05/2023, o Tribunal Colectivo, julgando a acusação pública procedente por provada, decidiu, condenar o arguido AA , pela prática, de três crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos no artigo 165.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal, por referência aos artigos 14.º, n.º 1 e 26.º do mesmo diploma legal, além do mais, na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos crimes e ao abrigo do disposto no art.º 77º do Código Penal condená-lo na pena única de 6 anos de prisão;

I.2. Achando que “a apreciação feita no acórdão ora recorrido não é a mais acertada quanto: i) à medida pena da prisão (alíneas a) e b) do dispositivo do acórdão ora recorrida);” (penas parcelares e pena única) e “ii) quanto à (não) suspensão da pena de prisão como de seguida procuraremos evidenciar”, interpôs o presente recurso.

Terminou as suas alegações apontando os seguintes remates conclusivos:

“I. O ora Recorrente foi condenado, pela prática, de três crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos no artigo 165.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal, por referência aos artigos 14.º, n.º 1 e 26.º do mesmo diploma legal na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos crimes e ao abrigo do disposto no art.º 77º do Código Penal condenar o Arguido AA na pena única de 6 anos de prisão, bem como no pagamento à ofendida da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a titulo de danos não patrimoniais

II. Salvo o devido respeito, a apreciação feita no acórdão ora recorrido não é a mais acertada quanto: i) à medida pena da prisão (alíneas a) e b) do dispositivo do acórdão ora recorrida); ii) quanto à suspensão da pena de prisão.

III. O ora Recorrente coloca em equação no presente recurso é a medida da pena e a possibilidade de suspensão da pena, dado que considera que a mesma é desproporcional e desajustada no caso vertente, dado que factores atenuantes especiais do Recorrente não foram devidamente valorados em termos positivos e que deveriam ter levado à redução da medida da pena de prisão e à suspensão da sua execução.

IV. Quanto às condições pessoais do Recorrente cumpre desde logo destacar os factos dados como provados nos pontos 29 a 31, destacando-se, desde logo, o facto de ter 62 anos e não ter antecedentes criminais e as características pessoais que as testemunhas arroladas pelo Recorrente atestaram, as quais se relevam plenamente consentâneas com uma vida conforme as regras sociais de boa convivência e conformes ao direito.

V. Relativamente ao facto dado como provado no ponto 31 o mesmo resulta das conclusões do relatório social, o qual ganha particular acuidade nos presentes autos quanto à medida da pena e ponderação de suspensão da execução da pena, do qual, em síntese, destacamos as seguintes conclusões:

“a. AA de 62 anos de idade, reside desde há quarenta anos na morada que forneceu nos autos, quando, após o matrimónio, passou a integrar o agregado dos sogros; actualmente, após o falecimento destes e também do cônjuge, há sensivelmente um ano, o arguido reside sozinho, embora tutelado por ambos os filhos, com quem mantém uma relação de grande proximidade.

(…)

b. O arguido iniciou frequência escolar na aldeia do distrito de ... de que é natural, revelando dificuldades, na sequência das quais registou sucessivas reprovações. Negando problemas de aprendizagem, AA atribui às tarefas agrícolas de que era encarregado pelos pais, a falta de espaço para estudar. Contudo, e já na zona de Lisboa, manteve o aproveitamento baixo e um absentismo elevado, acabando por não concluir mais que a então 4ª classe, abandonando a escola aos quinze anos.

d. A situação económica do arguido e seu agregado foi sempre modesta, e só a ajuda dos sogros, com quem viveram até aos seus falecimentos, permitiu um quotidiano estável. Actualmente, e desde que foi obrigado as funções que desempenhava na igreja na sequência do presente processo judicial, AA sobrevive do subsídio de desemprego no valor de 550 €, a que acresce a pensão de viuvez, de 193 €. Estes valores, atendendo a que as suas despesas são reduzidas, restringindo-se às de alimentação, fornecimento de gás e electricidade e condomínio, permitem ao arguido um quotidiano confortável.

e. O quotidiano do arguido encontra-se actualmente centrado na doença oncológica que lhe foi diagnosticada em 2022, na sequência da qual foi submetido a diversas cirurgias ao intestino, encontrando-se ostomizado; face à incerteza do prognóstico, e aguardando início de novos tratamentos, AA apresenta-se visivelmente debilitado.

(…)

g. O arguido mantém preservadas as funções cognitivas e executivas podendo, assim, assimilar e processar a informação necessária à tomada de decisão.

h. Repercussões da situação jurídico-penal do arguido: AA percepciona-se como um cidadão que sempre orientou o seu percurso pela submissão à lei e às normas sociais e, de acordo com a informação prestada pelo OPC, nunca, de facto, esteve anteriormente associado a qualquer NPP/NUIPC.” – negritos e sublinhados nossos.

VI. Ou seja, o Recorrente é manifestamente uma pessoa que revela um percurso de vida conforme o direito (é primário) e continua plenamente integrado na sociedade em termos sociais e económicos, nomeadamente com o apoio dos seus filhos e com a sua independência económica.

VII. Ademais, e sem querer de forma alguma escamotear a gravidade dos factos nos presentes autos, importa também atentar na baixa escolaridade e instrução do Recorrente, o que pode ajudar a explicar uma menor autocrítica aquando a prática dos factos.

VIII. É igualmente crucial no caso em apreço atentar na grave doença oncológica que o Recorrente padece e que de acordo com os relatórios médicos e o relatório social fá-lo estar “visivelmente debilitado”, o que é perfeitamente natural dada a gravidade da doença que padece e pela especial circunstância de se encontrar ostomizado.

IX. Com efeito, o Recorrente encontra-se num estado de saúde de tal forma grave e incapacitante que o impossibilita física e objectivamente de praticar crimes de semelhante natureza pelos quais foi condenado nos presentes autos ou qualquer outra natureza, circunstância actual que também devia ter sido ponderada pelo tribunal a quo como circunstância atenuante na perspectiva da prevenção especial do Recorrente.

X. Embora não conste das conclusões do relatório social carreadas para o facto 31 dado como provado, o relatório social do arguido conclui in fine que: “Atenta a situação, na sua generalidade, e particularmente a de saúde, considera-se que, em caso de condenação, estão reunidas condições para a aplicação ao arguido de uma medida de execução na comunidade de conteúdo probatório, com supervisão por parte desta DGRSP” – negrito e sublinhados nossos.

XI. Destarte, considera o relatório social, a nosso ver muito acertadamente, que o Recorrente, no seu global e atentas as suas particulares débeis condições de saúde, tem todas as condições para cumprir a execução de pena inserido na comunidade.

XII. O ora Recorrente nada tem a opor a qualquer regime probatório que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa considere adequado, nomeadamente tudo o que seja proibição de contactos com a vítima, com pessoas vulneráveis, menores de idade e que lhe seja imposto a frequência de cursos para dissuadir comportamentos sexuais abusivos.

XIII. Face a todo este circunstancialismo concreto, nomeadamente a primariedade do arguido, a sua plena inserção social e o seu estado débil de saúde que seguramente o impede de voltar a cometer qualquer tipo de crime, crê-se que para satisfazer adequada e proporcionalmente as necessidades de prevenção geral e especial neste caso específico a medida da pena a aplicar a cada um dos três crimes deve ser o limite mínimo ou próximo disso e nunca superior a 3 anos de prisão e, consequentemente, em cúmulo jurídico um pena de prisão não superior a 5 anos;

XIV. A pena de 4 anos para cada crime de uma pena única em cúmulo jurídico de 6 anos aplicada pelo tribunal a quo que é excessiva, desproporcional e desadequada ao caso e que, por isso, viola o artigo 71.º do Código Penal.

XV. Quanto à suspensão da execução da pena, importa atentar que o ora recorrente tem 62 anos, é primário, pelo que, por maioria de razão, é primário no que se refere à aplicação de uma pena privativa da liberdade o que naturalmente é da maior relevância para que no caso concreto seja objectivamente possível fazer um juízo de prognose de favorável que a ameaça da pena de prisão se converter em efectiva é suficiente, adequada e proporcional para previsivelmente dissuadir o recorrente de voltar a praticar factos da mesma natureza contra a ofendida ou qualquer outra pessoa, até porque como acima já se referiu o seu estado débil de saúde retira qualquer veleidade ao Recorrente de praticar factos criminosos no futuro, e, por conseguinte, a pena de prisão em que foi condenado deve ser suspensa na sua execução.

XVI. A escolha da pena deve de ser perspectivada em função da adequação, proporção e potencialidade para atingir os objectivos estipulados no artigo 40º do Código Penal (CP).

XVII. Embora a pena privativa de liberdade possa corresponder a uma expectativa geral da sociedade, como meio de retribuir o mal causado à comunidade, o sistema legal não pode esquecer que a este anseio colectivo, tem sempre de sobrepor a necessidade de ressocializar o infractor.

XVIII. Por outro lado e talvez até mais importante, importa sublinhar o recorrente tem uma vida profissional, familiar e social perfeitamente consolidada (cfr. factos dados como provados no ponto 31).

XIX. O arguido é uma pessoa muito considerada no meio social onde reside e bem relacionada em termos sociais com os seus colegas de trabalho, amigos e familiares (cfr. factos dados como provados no ponto 30).

XX. É sobejamente conhecido que a efectiva pena de prisão, em especial as de curta duração, como a dos presentes autos, não cumpre as exigências de prevenção especial e de resocialização.

XXI. A suspensão da execução da pena de prisão constitui um meio de expiação do ilícito praticado pelo agente, alivia a comunidade dos encargos económicos inerentes à pena de prisão e não cria um factor decisivo de dessocialização para o recorrente que atendendo à idade e ao seu estado de saúde.

XXII. A pena de prisão só deve ser aplicada aqueles casos em que a sua substituição por outra "coloque em causa, de modo irremediável, a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”, o que, in casu, no modesto entender do Recorrente, não se verifica de todo.

XXIII. O cumprimento da pena de prisão a que foi condenado irá prejudicar significativamente o relacionamento com familiares e pessoas próximas, bem como irá prejudicá-lo muito ou até irreversivelmente a nível de saúde.

XXIV. Assim sendo, a suspensão da pena de prisão afigura-se como sendo a adequada às exigências de prevenção geral, especial e ressocialização, penalizando e consciencializando o recorrente da necessidade de conformar a sua actuação às regras legais vigentes.

XXV. A pena de prisão efectiva aplicada ao recorrente, neste momento, é excessiva e não serve as finalidades de prevenção.

XXVI. O cumprimento da pena de prisão transporta consigo o risco sério de dessocializar forte e irremediavelmente o recorrente, para alem de prejudicar seriamente a sua integração social (maxime, ao nível familiar, social e de saúde).

XXVII. Atendendo à idade, ao enquadramento familiar, social e estado débil de saúde do recorrente e às finalidades exclusivamente preventivas subjacentes às penas de substituição, considera-se que suspensão da pena de prisão ainda realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, penalizando e consciencializando o recorrente da necessidade de conformar a sua actuação às regras legais vigentes.

XXVIII. Com efeito, atendendo às condições de vida e de saúde do arguido, à sua conduta posterior aos crimes, conjugado com o facto do recorrente nunca ter sido condenado em pena de prisão anteriormente e que, por esse motivo, a simples censura do facto e da ameaça de prisão são adequadas e suficientes para a prevenção geral e especial patentes no caso, o Tribunal a quo podia e devia ter considerado as razões e as circunstâncias atenuantes supra aduzidas e, consequentemente suspender a execução da pena de prisão.

XXIX. Neste senda, sublinhe-se o que relatório social do ora recorrente refere na sua página 7 que “Atenta a situação, na sua generalidade, e particularmente a de saúde, considera-se que, em caso de condenação, estão reunidas condições para a aplicação ao arguido de uma medida de execução na comunidade de conteúdo probatório, com supervisão por parte desta DGRSP”, o que é perfeita condizente com a suspensão execução da pena ora propugnada pelo Recorrente.

XXX. Com efeito, é manifestamente excessivo, desproporcional e desadequado às finalidades das penas que a in casu pena a de prisão não seja suspensa na sua execução.

XXXI. Assim sendo, a suspensão da pena privativa de liberdade in casu realiza ainda de forma adequada e suficiente as finalidades de punição em obediência ao disposto nos artigos 40.°, 50.º a 54.º e 70° do CP.”

Acaba a pedir a revogação do acórdão recorrido e, reduzindo a pena de prisão de cada um dos 3 crimes em que foi condenado para o limite mínimo de 2 anos ou a pena não superior a 3 anos de prisão e, consequentemente, em termos de cúmulo jurídico, aplicar uma pena de prisão não superior a 5 anos suspensa na sua execução, ao abrigos dos arts 40.°, 50.° a 54.º e 70.°, do CP.

I.2. Respondeu o Ministério Público, rejeitando desde logo a pretensão de redução da pena e, com isso, necessariamente a respetiva suspensão.

Porque “(…) qualquer reação criminal de cariz mais benevolente cremos que não satisfaria já, suficientemente, nem as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização – influência concreta sobre o agente – nem de prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico – influência sobre a comunidade, no sentido de “reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida”.

E, apesar da impossibilidade legal da suspensão da execução da pena, ainda acrescentou:

“Ora no caso em apreço, e independentemente de quaisquer considerações sobre o maior

ou menor relevo das circunstâncias que depõem a favor do ora recorrente ou contra ele (todas elas equacionadas, aliás, na determinação concreta da pena e na fundamentação da não suspensão da pena de prisão aplicada), o certo é que uma tal pena substitutiva poderia pôr gravemente em causa a credibilidade que ainda gozam as normas penais.”

I.4. O Sr PGA emitiu parecer em que, depois de concordar com a competência desde STJ para conhecimento, atento o disposto no artº 432º, nº 1, al. c), do CPP, disse o seguinte:

“Na verdade, evitando repetições desnecessárias, a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público no Tribunal recorrido mostra-se completa, bem fundamentada, indo direta à questão e concluindo no sentido de que não se vislumbram motivos que justifiquem qualquer alteração da decisão proferida, nem quanto às penas parcelares, nem quanto à resultante do cúmulo. E tudo o que ali é referido é relevante em termos de afastar a argumentação expendida pelo recorrente, sendo evidenciadas as fortíssimas necessidades de prevenção geral que se fazem sentir perante a prática deste tipo de crimes de natureza sexual praticados em pessoas que, mercê de condições especiais, não conseguem –como o próprio nome do crime refere –opor resistência à atividade de arguidos que, precisamente aproveitando-se daquela circunstância, praticam os atos.

(Quanto à prevenção especial, há a notar que a circunstância de o arguido se ter remetido ao silêncio importa que não se mostre provado estar arrependido pela prática dos factos: note-se que, embora não podendo ser prejudicado por via daquele silêncio, certo é que igualmente não pode ser beneficiado.)

No caso, atente-se ainda ao facto de, como provado ficou, não obstante a situação particular da ofendida, esta ter ficado com sequelas resultantes da atividade do arguido, ou seja, não se está perante ofendida que não tenha interiorizado o desvalor da conduta de que foi vítima, antes lhe tendo resultado consequências negativas das condutas do recorrente(ficou provado que quando se aborda o tema, manifesta desconforto, ansiedade, vergonha e evitamento, sugestivos dessa vivência e do respetivo impacto emocional).

Assim–acompanhando-se a posição expressa pela Senhora magistrada do Ministério Público na 1ª instância (bem como a chamada de atenção que o MºPº no Tribunal da Relação efetuou no sentido de que a situação de saúde do arguido poderá/deverá ser considerada pelo TEP aquando da execução da pena de prisão, nos moldes referidos no artº118º do Código de Execução de Penas, não podendo tal situação –até porque nem completamente esclarecida neste processo –ser razão para alterar a decisão recorrida), é nosso parecer que não se justifica qualquer necessidade de correção em sede de recurso das penas concretas aplicadas ao arguido/recorrente AA, nem da pena única, sendo que esta atividade apenas tem justificação quando se verifica «o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis (…), [se] tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 197).

Nenhuma de tais situações se verifica no caso, pelo que o Ministério Público entende dever ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

I.4. Foi cumprido o contraditório. O recorrente respondeu a manter a posição plasmada em sede recursória.

I.5. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

I.6. Admissibilidade e objeto do recurso

I.6.1. Uma vez que o arguido tem legitimidade, interesse em agir, está em tempo e recorre unicamente de matéria de direito, mais concretamente, da dosimetria de cada uma das três penas parcelares fixadas, bem assim, e consequentemente, da pena única de 6 (seis) anos, o presente recurso per saltum é admissível, nos termos dos artigos 432º, nº 1, al. c) e 434º do CPP.

Por isso, bem andou a decisão sumária de 19/03/2023 da Exma Desembargadora da Relação de Lisboa ao declarar esse Tribunal da Relação materialmente incompetente para conhecer do recurso, e determinar a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.

I.6.2. Aduz o Recorrente que “a apreciação feita no acórdão ora recorrido não é a mais acertada quanto: i) à medida pena da prisão (alíneas a) e b) do dispositivo do acórdão ora recorrida); ii) quanto à suspensão da pena de prisão.”

E Conclui que “DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA O ACÓRDÃO RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA, FACE ÀS CIRCUNSTÂNCIAS CONCRETAS DO CASO VERTENTE REVOGAR A MEDIDA PENA, REDUZINDO A PENA DE PRISÃO DE CADA UM DOS 3 CRIMES EM QUE FOI CONDENADO PARA O LIMITE MÍNIMO DE 2 ANOS DE PRISÃO OU A PENA NÃO SUPERIOR A 3 ANOS DE PRISÃO E, CONSEQUENTEMENTE, EM CÚMULO JURÍDICO APLICAR UMA PENA DE PRISÃO NÃO SUPERIOR A 5 ANOS, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO AO ABRIGO DOS ARTIGOS 40.°, 50.° a 54.º e 70.°, TODOS DO CÓDIGO PENAL, E, CONSEQUENTEMENTE, ORDENAR A SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO PORQUANTO É A MEDIDA E MODO DE EXECUÇÃO ADEQUADO E PROPORCIONAL A TODAS AS ESPECIFICIDADES DO CASO CONCRETO”.

Assim as questões suscitadas pelo Recorrente e a resolver são as de saber se cada uma das penas parcelares se mostra corretamente aplicada e se a pena única se mostra também corretamente aplicada.

O AUJ nº 5/2017 do STJ permite o conhecimento da impugnação das medidas das penas concretas parcelares aplicadas: «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

E, no caso, o Recorrente impugna a decisão no que toca às penas parcelares aplicadas quando remete expressamente também para a alínea b), do seu dispositivo.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. O acórdão recorrido deu como provada a seguinte factualidade:

“1. BB, doravante identificada como BB, nasceu em .../.../1972, é filha de CC e de DD e reside na habitação dos seus progenitores, na Avenida da ... andar em ....

2. BB padece de Perturbação Global de Desenvolvimento, que lhe confere uma incapacidade e dependência parciais e moderadas, sendo incapaz de se gerir autonomamente e, nessa decorrência, apresenta um comportamento infantil, limitações importantes na inserção social (com dificuldade na compreensão de sinais sociais, de se expressar ou fazer valer os seu direitos), na comunicação (com linguagem em vocabulário limitado), e na capacidade cognitiva (fornecer detalhes das suas vivências).

3. Tendo em vista a sua inserção social, desde pelo menos o ano de 2015 que BB começou a frequentar a Paróquia de N.... ....... .. ....... .. ......, sita na Avenida..., s/n, em ..., área desta comarca, aí se deslocando duas vezes por mês, às primeiras e terceiras quintas-feiras, para auxiliar as voluntárias da acção social que a supervisionavam no acondicionamento e distribuição de alimentos aos cidadãos mais desfavorecidos.

4. Após tal colaboração, a ofendida BB, deslocava-se à loja de vestuário, denominada “M....”, sita no ..., em ..., onde permanecia junto a EE e FF, funcionárias de tal loja e da confiança da família daquela.

5. O arguido AA desde 16 de Setembro de 2004 exercia funções de … da referida igreja, ajudando pontualmente as voluntárias da acção social, no transporte das caixas e embalagens de produtos alimentares vazias aos contentores de resíduos situados, nas traseiras de tal instituição religiosa.

6. Em virtude das funções que desempenhava, o arguido conheceu a ofendida BB e, apercebendo-se que esta padecia de uma patologia que a impedia de se opor ao seu comportamento, decidiu abordá-la e começar a manter com a mesma actos de natureza sexual.

7. Em datas não concretamente apuradas anteriores ao mês de Dezembro de 2020, o arguido, pelo menos por duas vezes, dirigiu-se à ofendida BB e chamando-a, fazendo gestos com a sua mão, nesse sentido, dizia-lhe “… Anda cá… vem para aqui…depois anda aqui ter comigo…”.

8. A Ofendida BB, aproximava-se do arguido e este encaminhava-a, levando-a para o interior das capelas mortuárias situadas nas traseiras da Igreja.

9. O arguido, acompanhado pela ofendida, usualmente dirigia-se às Capelas Mortuárias n.º 4 ou n.º 1, no interior das quais se encontravam sofás que serviam para acolher os familiares e amigos na última despedida aos seus entes queridos.

10. Uma vez no seu interior o Arguido fechava a porta exterior da capela mortuária, beijava-a na face e colocava as mãos nos seios de BB por cima da roupa, apalpando-os;

11. Em seguida, o arguido ordenava a BB para se sentar nos sofás que aí se encontravam e dizia-lhe para retirar as calças que envergava, ordem à qual a ofendida obedecia, tirando apenas as calças e mantendo as cuecas vestidas.

12. Acto contínuo, o arguido retirava as calças e cuecas que envergava e sentava-se dizendo à ofendida para se sentar sobre as suas pernas

13. Depois, o arguido introduzia o pénis erecto no interior da vagina da ofendida, aí o friccionando, fazendo movimentos vai-vem, até ejacular.

14. A ofendida BB sentindo que o arguido a estava a magoar e querendo ausentar-se daquele local dizia ao arguido “ já chega….já chega…pára … pára.. não quero fazer mais… quero ir embora….”, súplicas às quais este não acedia continuando a manter com aquela os actos supra descritos, até à ejaculação.

15. O arguido deixava que BB se vestisse, saísse e voltava a fechar a porta da capela mortuária, daí se ausentando.

16. Com a situação pandémica a ofendida BB deixou de frequentar a igreja e de ter contacto com o Arguido.

17. No dia … de Julho de 2021, BB foi à Igreja onde colaborava como voluntária do serviço social.

18. Uma vez aí chegada, GG, solicitou à ofendida que fosse ajudar o arguido com as caixas dos produtos alimentares, ordem que esta acatou.

19. Então, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe “… vais ter comigo….”.

20. Nesse dia, a ofendida foi levada pelo Arguido para uma das casas mortuárias que aí praticou com a mesma os actos descritos nos [Factos provados nº 9-15]

21. Nesse mesmo dia, a ofendida dirigiu-se à loja e apresentava as roupas desalinhadas, designadamente com o fecho das calças aberto e com o soutien colocado fora dos seios, e num estado de nervosismo, desorientação, tristeza e choro compulsivo e relatou a EE supra identificada o ocorrido, a qual, de imediato, se deslocou à Igreja e confrontou o arguido com o sucedido.

22. Na sequência da denúncia de tais actos, em 20 de Julho de 2021, a Igreja Paroquial da Freguesia de N.... ....... .. ....... .. ...... instaurou ao arguido um processo disciplinar, tendo-lhe sido aplicada a sanção de despedimento imediato sem qualquer indemnização ou compensação.

23. A ofendida BB demonstrava vulnerabilidades e limitações cognitivas notórias, sendo que, à data, a sua capacidade de autodeterminação sexual e de opor resistência e compreender os factos era limitada, equiparável a um menor, em idade inferior à da adolescência, não apresentando, atenta a doença da qual padece, capacidades cognitivas e de personalidade para compreender os actos sexuais e capaz cognitiva e volitivamente para se opor aos actos praticados pelo arguido.

24. Contudo, o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, tendo perfeito conhecimento da incapacidade psíquica provocada pela sua doença, bem sabendo que, em face da sua anomalia psíquica esta não era capaz de lhe opor resistência, facto que aproveitou para praticar os actos descritos.

25. O arguido agiu movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais e libidinosos e com o intuito de se excitar sexualmente, tirando partido da inferioridade física, vulnerabilidade, inexperiência e incapacidade psíquica de BB e da sua total imaturidade sexual, sabia que o seu comportamento ofendia os mais elementares princípios da moral sexual e que atentavam contra a liberdade a autodeterminação sexual daquela.

26. Mais sabia o arguido que, que em razão dos seus limitados recursos cognitivos e psíquicos, BB não tinha a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne a um relacionamento sexual e mesmo assim não se absteve de tais comportamentos.

27. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.

Mais se provou que:

28. Do relatório pericial psiquiátrico da ofendida junto aos autos a fls. 138 e seguintes cujo teor se dá por reproduzido, consta designadamente que:

Quando se aborda a examinanda (leia-se ofendida nos autos) na sala de espera ou se inicia a entrevista por temas gerais, não manifesta sinais que difiram do seu estado prévio, incluindo sinais que pudessem ser sugestivos de ter sido vítima de actos sexuais contra a sua vontade. Contudo, quando se aborda o tema, manifesta desconforto, ansiedade, vergonha e evitamento, sugestivos dessa vivência e do respectivo impacto emocional;

A examinanda relata os factos de forma compreensível, organizada e coerente. É importante, contudo, salientar que as suas capacidades cognitivas interferem na precisão do relato fornecido, nomeadamente no que diz respeito a datas exactas ou detalhes informativos.

( A examinanda) padece de Perturbação Global de Desenvolvimento, que lhe confere uma incapacidade e dependência parciais e moderadas, sendo incapaz de se gerir autonomamente. Tem autonomia para higiene, vestuário, alimentação, bem como para tarefas simples, para se deslocar em percursos conhecidos e, provavelmente, para pequenos gastos, mas não para programar uma vida autónoma, gestão de património ou outras actividades mais complexas.

Quanto aos efeitos de tal patologia na personalidade e no comportamento da ofendida:

Em virtude da sua patologia, a ofendida apresenta um comportamento infantil, apresenta limitações importantes na interacção social (com dificuldade na compreensão de sinais sociais, de se expressar ou fazer valer os seus direitos), comunicação (com linguagem em vocabulário limitado) e capacidade cognitiva (fornecer detalhes das suas vivências).

Em virtude da sua patologia, a capacidade de autodeterminação sexual e de opor resistência (e compreender os factos) é limitada, equiparável a um menor, em idade inferior à da adolescência. A essa vulnerabilidade, acrescem os deficits sociais e de comunicação específicos da sua patologia, que determinam a sua especial vulnerabilidade.

29. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

30. É visto como pessoa disponível, prestável, respeitadora e educada, humilde e trabalhador, amigo do seu amigo, pelas pessoas o conhecem;

31. Do relatório social junto aos autos consta designadamente que:

a. AA de 62 anos de idade, reside desde há quarenta anos na morada que forneceu nos autos, quando, após o matrimónio, passou a integrar o agregado dos sogros; actualmente, após o falecimento destes e também do cônjuge, há sensivelmente um ano, o arguido reside sozinho, embora tutelado por ambos os filhos, com quem mantém uma relação de grande proximidade.

b. O arguido iniciou frequência escolar na aldeia do distrito de ... de que é natural, revelando dificuldades, na sequência das quais registou sucessivas reprovações. Negando problemas de aprendizagem, AA atribui às tarefas agrícolas de que era encarregado pelos pais, a falta de espaço para estudar. Contudo, e já na zona de Lisboa, manteve o aproveitamento baixo e um absentismo elevado, acabando por não concluir mais que a então 4ª classe, abandonando a escola aos quinze anos.

c. Verificada a desmotivação escolar, o arguido foi instado pelos pais a iniciar percurso laboral, tendo desempenhado funções em restauração, numa serralharia, num armazém, numa torrefação de cafés, e de forma mais expressiva na construção civil, onde se manteve até 2004, altura em que uma doença óssea impediu esta actividade. Com várias pessoas da família ligadas, de uma forma ou de outra, a igrejas da área de Lisboa, AA foi, em 2004, admitido como na igreja de N.... ....... .. ....... .. .......

d. A situação económica do arguido e seu agregado foi sempre modesta, e só a ajuda dos sogros, com quem viveram até aos seus falecimentos, permitiu um quotidiano estável. Actualmente, e desde que foi obrigado as funções que desempenhava na igreja, na sequência do presente processo judicial, AA sobrevive do subsídio de desemprego no valor de 550 €, a que acresce a pensão de viuvez, de 193 €. Estes valores, atendendo a que as suas despesas são reduzidas, restringindo-se às de alimentação, fornecimento de gás e electricidade e condomínio, permitem ao arguido um quotidiano confortável.

e. O quotidiano do arguido encontra-se actualmente centrado na doença oncológica que lhe foi diagnosticada em 2022, na sequência da qual foi submetido a diversas cirurgias ao intestino, encontrando-se ostomizado; face à incerteza do prognóstico, e aguardando início de novos tratamentos, AA apresenta-se visivelmente debilitado.

f. O arguido refere uma vida afectivo-sexual linear, tendo o seu primeiro contacto sexual ocorrido aos dezoito anos, com uma prostituta, sentindo-o na altura, dada a sua impreparação, como pouco agradável. Tendo contraído matrimónio aos vinte e três anos, o arguido nega o envolvimento sexual com qualquer outra parceira desde então, descrevendo a relação conjugal como gratificante, marcada pela cumplicidade do casal e isenta de conflitos, o que é confirmado pelo filho, que diz nunca se ter apercebido de problemas desta natureza entre os pais.

g. O arguido mantém preservadas as funções cognitivas e executivas podendo, assim, assimilar e processar a informação necessária à tomada de decisão.

h. Repercussões da situação jurídico-penal do arguido: AA percepciona-se como um cidadão que sempre orientou o seu percurso pela submissão à lei e às normas sociais e, de acordo com a informação prestada pelo OPC, nunca, de facto, esteve anteriormente associado a qualquer NPP/NUIPC.”

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

“A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum.

A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados. Tal circunstância, que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado das declarações e dos depoimentos produzidos. Todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos de que o Tribunal se serviu para fundar a sua convicção.

As testemunhas prestaram depoimento de forma objectiva, espontânea e coerente, tendo os seus depoimentos merecido a credibilidade do tribunal com as ressalvas assinaladas no local próprio.

Teve-se em conta:

i. Prova por declarações do Arguido;

ii. Prova testemunhal:

1. Da acusação: BB, ofendida; DD, mãe da ofendida; GG, voluntária do Banco Alimentar da Igreja d. ..... ... .. ......; EE, colaboradora da Loja M....; FF, colaboradora da Loja M....; HH; II, Inspetora da PJ;

2. Da Defesa: JJ, KK; LL; MM¸ NN;

iii. Prova documental:

- Queixa-crime constante de fls. 4 a 16;

- E-mail constante de fls. 12 a 14;

- Processo Disciplinar constante de fls.25 a 51;

- Reportagem fotográfica de fls. 75 e 76;

- Informação constante de fls. 117 a 121;

- Relatório Final constante de fls. 168/187.

- Avaliação Psicológica de BB, constante de fls. 56 a 60; relatório de acompanhamento em audiência de julgamento de fls. 235-239;

- Inspecção judiciaria constante de fls. 100 a 108;

- Certificado de registo criminal Referência Citius ......08; relatório social Referência Citius ......16.

iv. Prova pericial: Exames periciais psiquiátricos, constantes de fls.130/132 e 137 a 147.


*


O arguido não prestou declarações sobre os factos ao abrigo da prerrogativa legal que lhe assiste.

O [Facto provado nº 1] decorre de fls. 68 e o [Facto provado nº 2] do relatório pericial de fls. 130/132 e 137 a 147 e ainda do relatório de acompanhamento da ofendida em audiência de julgamento de fls. 236-239.

Os [Factos provados nº 3-4] foram confirmados pela ofendida, pela sua mãe e pelas testemunhas que a acompanhavam nessas actividades, GG, voluntária do Banco Alimentar da Igreja d. ..... ... .. ...... e pelas testemunhas que acompanhavam a ofendida na Loja de Roupa e que ali trabalhavam, EE e FF e que descreveram as tarefas que a mesma ali desempenhava que consistiam em fazer recados simples e ajudar a arrumar roupa.

O [Facto provado nº 5] resulta do processo disciplinar junto aos autos a fls. 26 e seguintes e do depoimento de GG que descreveu as tarefas que o Arguido também desempenhava.

Os [Factos provados nº 6-9] foram corroborados pelo relato da ofendida conjugado com o depoimento de GG. A ofendida declarou, logo no início do seu depoimento que o indivíduo - que depois identificou como AA que estava na Igreja - a chamava, referindo ainda que o mesmo o fazia do lado de fora da igreja, junto à carrinha que possuía. Disse ainda que o referido indivíduo a levava para as capelas mortuárias e da reportagem fotográfica de fls. 75 consta uma fotografia onde a ofendida aponta o local onde ficava com o Arguido e ocorriam os actos sexuais. Esta diligência foi descrita pela Inspetora da PJ II, que a realizou. Nas referidas fotografias estão ainda identificados os locais onde eram guardados os cartões e onde a ofendida se deslocava, altura em que era interpelada ou chamada pelo Arguido.

O [Facto provado nº 10-15] no que toca aos atos praticados e à incapacidade de a mesma se opor à conduta do Arguido, resultam da análise psicológica vertida nos relatórios periciais e do relato das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento. Como se lê no relatório pericial a fls. 142, no domínio comportamental, a ofendida apresenta dificuldade em evidenciar o seu ponto de vista ou discordar de terceiros. Deve por isso trabalhar a sua assertividade. A ofendida desenvolveu desde idade precoce uma relação de grande proximidade e simbiose com a mãe, não conseguindo prever antecipadamente o perigo associado a algumas situações. (…) é uma adulta afável, muito dócil, pouco assertiva e disponível para desenvolver relações de apego familiar. A fácil apreensão da condição da ofendida por terceiros foi não só verificada pelo Tribunal como pelas testemunhas que depuseram em julgamento, em concreto, GG, HH, EE e FF, que deram conta a evolução da ofendida ao longo do tempo, designadamente quanto à capacidade de se exprimir, que era muito reduzida e que foi melhorando ao longo do tempo, pelo que deram conta. Acresce que o Arguido, trabalhando na Igreja e observando o comportamento da ofendida, sabia que a mesma estava a ser apoiada por outras voluntárias e que desempenhava sempre as mesmas tarefas, por ter dificuldades cognitivas, e não podia deixar de saber que a mesma não se lhe opunha por não ter essa capacidade e também por isso a escolheu como vítima.

Apesar da sua patologia e incapacidade, a ofendida BB prestou um depoimento claro que não foi perturbado pelas suas características/dificuldade cognitivas e de comunicação descritas no relatório psicológico de fls. 56-60, aliás corroborado pelo relatório de acompanhamento da ofendida em audiência de julgamento. Como aí se refere, e o Tribunal pôde comprovar em audiência de julgamento, a ofendida apresentou uma postura colaborante e disponível ainda que revelando timidez e sintomas de ansiedade no relato dos factos. No entanto, foi capaz de fazer o relato do que vivenciou de forma espontânea e credível, não merecendo dúvidas de que não estava a efabular ou a fazer relatos de factos que não tivessem ocorrido. Acresce que, como a seguir se demonstra, o seu relato tem ainda respaldo nas demais provas produzidas, designadamente testemunhal que reforça a verosimilhança do relato da ofendida.

Assim a ofendida descreveu o seu dia-a-dia, declarando que colabora diariamente numa loja de roupa, onde faz recados e ajuda noutras tarefas. Disse ainda que frequenta a Igreja ajudando a fazer refeições para pessoas necessitadas e vai à missa ao domingo de manhã, sozinha e ajuda na Igreja, às quintas feiras.

Reportando-se aos factos dos autos referiu que havia um homem na Igreja que lhe estava sempre a fazer sinal e a levava para as capelas onde se velam os homens, fechava-a lá dentro e ficava lá dentro com ela, apalpava-a no pipi mantendo-se a ofendida com cuecas e calças. A ofendida também relatou que o indivíduo lhe apalpava as maminhas, por cima da roupa dela, com uma mão. Tudo isto acontecia enquanto estavam sentados no sofá da capela mortuária, primeiro sentava-se ele, e também dizia para a ofendida se sentar em cima dele, o que esta fazia. De seguida ele desviava as cuecas da ofendida, metia a pilinha dele dentro do pipi da ofendida e as cuecas ficava sujas. A ofendida dizia que queria ir embora e ele não deixava sair. Mais disse que a pilinha dele ficava dura quando estava dentro do pipi e cá fora estava mole. E que saía uma espuma branca e a ofendida ficava suja. Enquanto isto acontecia dizia-lhe para ele parar e ele continuava. Depois a ofendida saía dali sozinha e o homem fechava a capela. Dizia ainda que se sentia suja depois destes factos ocorrerem.

Quanto às datas, referiu que foi antes do Covid que isto aconteceu, duas vezes e ninguém soube. E relatou que depois aconteceu outra vez a mesma coisa no dia em que saiu da Igreja, foi para a loja, não se sentia bem, começou a chorar, as amigas da loja souberam e disseram que tinham de ir à Igreja falar com ele, o que a amiga EE fez e depois desse dia não se passou mais nada. A ofendida foi clara ao dizer que nesse dia em que chegou à loja e contou a EE e FF, também tinha acontecido a mesma coisa, ou seja, tinham sido praticados os atos sexuais supra descritos.

Descreveu o indivíduo como sendo alto, magro, careca e com cabelo branco de lado. De reaçar que a ofendida tem 1,58m e o Arguido 1,66m (fls. 68 e 98).

Quanto à identificação do indivíduo a ofendida disse que ele se chamava AA.

É sabido que a maior parte dos abusos sexuais são praticados em recato, sem testemunhas e até (quantas vezes) sem deixar vestígios físicos ou biológicos. A sua prova – ou seja, a demonstração da sua existência – resume-se, por isso, na maior parte dos casos, ao depoimento da vítima.

Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.07.2010, «a prova nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Assim quem quer que seja que pratique estes factos, pelo melindre que envolvem e a conotação que lhes está associada, que vai muito para além do próprio processo-crime, rodeia-se de cautelas, no sentido de não ser observado por ninguém, sendo os mesmos apenas presenciados pela ofendida e pelo agente do crime.

Deste modo, foi sobretudo com fundamento no depoimento da ofendida, que se formou a convicção do Tribunal. Como se disse, não obstante a debilidade de que padece, a ofendida conseguiu descrever o sucedido, apresentando uma narrativa factualmente coerente, com enquadramento contextual, e verosímil nos detalhes, ainda que estes sejam parcos. Aliás, o extenso e pormenorizado relatório de avaliação psicológica que constitui fls. 236-239, confirma a impressão de credibilidade deixada pelo teor do seu depoimento.

Com efeito, o depoimento da ofendida foi prestado no essencial de forma idêntica ao que vem relatado no relatório da perícia psicológica e as conclusões aí expostas relativas à sua veracidade valem aqui integralmente. E tal depoimento, na sua vertente intrínseca (coerência), mostra-se estruturado na consistência e segurança com que foi prestado e na descrição dos pormenores secundários que acompanham os factos nucleares (por exemplo, a forma como era abordada pelo Arguido que a chamava insistentemente, algo que incomodava a ofendida, que disse várias vezes que ele estava sempre a espreitá-la, a descrição da capela mortuária).

Acresce que a forma como os factos ocorreram no dia … .7.2021, revelam um iter ininterrupto de acontecimentos que sem dúvida liga o Arguido aos factos dos autos, sendo que foram atestadas pelas diversas testemunhas que estiveram com a ofendida e contactaram com o Arguido (GG e EE) o que reforça a credibilidade do seu depoimento, posto que, conforme decorre das máximas da experiência comum, a existir fábula/mentira por parte daquela, verificar-se-iam certamente disparidades de relevo entre os mesmos, o que não sucedeu. Ou seja, é credível que os factos tenham ocorrido no dia … .7.2021, como já tinham ocorrido noutras duas ocasiões, porque não só a ofendida relatou os factos, como a testemunha GG se apercebeu da sua alteração de comportamento nesse dia, a ofendida foi diretamente para a loja onde estava diariamente a colaborar, sendo que as testemunhas EE e FF constataram também a alteração do estado de comportamento da ofendida, compatível com os atos de abuso pela mesma relatados porquanto a mesma tinha a braguilha das calças aberta, o soutien deslocado do peito e estava muito nervosa e chorosa. Logo depois este comportamento foi constatado pela testemunha GG que ali se deslocou e de imediato a testemunha EE se deslocou à igreja e confrontou o Arguido.

Assim, atenta a simplicidade da linguagem, a ingenuidade manifestada nas respostas e no confronto com os factos, pareceu-nos, sem dúvida, que a ofendida relatou os factos tal qual como ocorreram, sem astúcia, sem construções, sem falácias, sem exageros, pois é, para nós, evidente que a mesma não possui capacidade para engendrar, com a consistência que apresentou nos diversos relatos que fez, factos desta natureza e construir uma história desta natureza para prejudicar o arguido. Outrossim, a ofendida revela capacidades mínimas para produzir um testemunho credível acerca das suas experiências, sendo as narrativas apresentadas compatíveis com as suas caraterísticas desenvolvimentais e nível cognitivo, o que aliás se retira do diálogo entabulado pelo Tribunal com a mesma, que para além dos factos dos autos, soube falar da sua vida diária, das suas rotinas e hobbys e até das suas preocupações com a saúde.

Conclui-se também na perícia que, por força das limitações decorrentes da sua patologia, a ofendida tem a sua capacidade de se autodeterminar sexualmente limitada, bem como a de opor resistência e compreender os factos de que foi vítima, por ser essa capacidade equiparável a um menor em idade inferior à da adolescência. A essa vulnerabilidade acrescem os deficits sociais e de comunicação específicos da sua patologia que determinam a sua especial vulnerabilidade.

Naturalmente que, não escamoteamos a existência de algumas incoerências ao nível da persistência dos relatos feitos, em diferentes momentos, pela ofendida, no entanto, como bem se assinala no relatório de avaliação psicológica, as narrativas feitas pela ofendida a respeito dos factos em discussão são compatíveis com as suas caraterísticas desenvolvimentais e nível cognitivo. Diga-se por exemplo que em audiência de julgamento a ofendida declarou que não tirava as calças antes de o Arguido a penetrar mas tendo em conta a posição em os dois se encontravam e que foi descrita pela ofendida, tal teria que ocorrer. Quando perguntada também disse que o Arguido não se mexia depois de a penetrar, o que não é compatível com as regras da experiência porquanto como a ofendida disse, havia ejaculação (saía uma espuma branca e ela sentia-se suja). Assim, atribui-se essas discrepâncias a uma hesitação ou pudor do momento e/ou a uma dificuldade de compreensão ou expressão relacionada com as suas dificuldades cognitivas e de linguagem/comunicação que não abalam a credibilidade nem a coerência do seu depoimento (e são corroboradas pelo teor do relatório psiquiátrico transcrito no [Facto provado nº 28]). Ou seja, o Tribunal não tem dúvidas que os factos ocorreram como estão provados e foram narrados pela ofendida em audiência de julgamento.

A mãe da ofendida, DD, corroborou as características de personalidade da filha, a sua incapacidade e referiu que a mesma apesar disso, é autónoma para as actividades da vida diária, tendo decidido ocupá-la com diversas actividades e por isso a ofendida dedicava-se ao voluntariado na Igreja uma vez por semana, o que coincide com o relato da ofendida e mais disse que a mesma se deslocava para a Igreja sozinha e voltava da igreja também sozinha, por ser perto da residência. Não assistiu aos factos.

Tendo como assente que apenas a ofendida e o Arguido presenciaram os factos, não tendo este prestado declarações, a verosimilhança do depoimento da ofendida decorre da forma como o mesmo foi prestado mas também é corroborado pelos depoimentos das demais testemunhas, em particular com referência ao que ocorreu no dia em que foi apresentada a queixa, e ainda tendo em conta os relatos das testemunhas no que toca ao comportamento da ofendida em momentos anteriores mas que não foi valorizado como sendo o comportamento de uma vítima de abuso sexual.

Assim, a data em que foi apresentada queixa resulta de a ofendida ter aparecido na loja M.... descomposta e alterada no seu comportamento, muito nervosa, a chorar, como a própria relatou, tendo contado a EE (conforme depoimento desta), dentro das suas possibilidades o que tinha ocorrido. EE disse que a ofendida se sentou a chorar, agarrou-se a si e disse ele agarrou-me, ele agarrou-me, não digas à minha mãe; tentou acalmá-la, disse para ela respirar e abrir os braços e a ofendida persistiu no relato de que ele a tinha aleijado e agarrado, que lhe tinha tocado no peito e na vagina, por baixo da roupa e ele obrigou-me por trás da igreja. Ela disse onde aconteceu. Não se recorda de a ofendida falar de beijos. A testemunha foi clara ao referir que a ofendida entrou de braguilha aberta e com o soutien retirado do peito.

A verosimilhança deste relato é ainda corroborada pelo depoimento de GG - que tinha a responsabilidade de orientar a ofendida nas tarefas do Banco Alimentar na Igreja de N.... ....... .. ...... - que disse que nesse dia notou uma alteração de comportamento na ofendida porque mandou-a levar os cartões ao lixo e a ofendida mostrou-se relutante e escondeu-se numas escadas o que não era habitual nela, tendo que insistir para que a mesma fosse com outra voluntária fazer essa tarefa. Depois só voltou a ver a ofendida nesse dia já na loja M.... e ela relatou o que o Arguido lhe tinha feito, relato a que assistiu, no qual a ofendida se referiu a toques na zona do peito e na zona vaginal (compatíveis com o facto de ter chegado à loja com a braguilha aberta e o soutien desalinhado) e não a penetração. No entanto, a ofendida confirmou em audiência de julgamento que praticou atos de cópula vaginal com o Arguido. Disse GG que nunca tinha visto a ofendida tão nervosa como nesse dia e também nunca como esse dia a ofendida se tinha recusado a cumprir qualquer tarefa que lhe tivesse pedido. Da conjugação deste depoimento com o relato da ofendida e da testemunha EE resulta também claro que os abusos ocorriam quando a ofendida se ausentava da igreja e que a abordagem do Arguido era feita antes, enquanto a ofendida estava no Banco Alimentar, aproveitando as deslocações da mesma cá fora para colocar os cartões no lixo. Assim se apuraram os [Factos provados nº 17-20].

A corroborar ainda a verosimilhança do relato da ofendida, o depoimento da testemunha HH que declarou que lhe foi solicitado que a ofendida fosse para a paróquia e depois passaram a responsabilidade para a GG) cuidar dela. Por ser voluntária na igreja há 15 anos. Confirmou que a ofendida no início, frequentava a igreja, ia um ou dois dias por semana, mas depois passou a ir quinzenalmente com a GG. Disse que o arguido era porteiro na igreja e tinha as chaves da igreja e das capelas mortuárias. Apesar de não ter presenciado quaisquer abusos, no dia … .07.21, quando a GG lhe telefonou, a testemunha encontrou-se com ela na loja onde estava a ofendida e assistiu ao relato desta, no qual a ofendida disse que tinha ido às capelas mortuárias com o arguido, que ele a chamava e a acariciava nas partes íntimas. No entanto, a testemunha não se recorda das palavras exatas que a ofendida utilizou, mas sabe que ela mencionou a vagina e os seios e que não mencionou penetração. A testemunha não sabe quando isso teria ocorrido. Disse ainda, quanto à evolução na saúde da ofendida que atualmente, o discurso desta está mais fluído, mas naquela época ela quase não falava. Viu-a perturbada e sabe que ela não tinha autonomia para realizar as tarefas. Apenas fazia o que lhe mandavam fazer. Também disse que na igreja não havia mais ninguém chamado Zé e a testemunha acreditou no seu relato.

Quanto ao horário, a testemunha não sabe se ela ia e vinha sozinha. Ela mencionou que havia frescos à tarde, e a carrinha chegava por volta das 13h30min, e ela ficava lá até às 15h30min. A testemunha não tem conhecimento se ela ia sozinha. A ofendida mencionou que os incidentes ocorriam nas capelas mortuárias.

O [Facto provado nº 21] resulta do relato de EE e FF. Ambas disseram em suma que já no passado a ofendida tinha aparecido na loja alterada, com o cabelo despenteado e o fecho das calças aberto. E na segunda vez, aconteceu exatamente a mesma coisa. De acordo com o relato da ofendida o AA apalpava-a, percebendo as testemunhas que ela estava desarrumada e essas situações ocorreram três vezes. Nas duas primeiras vezes, a ofendida não disse o que era, só soube depois. Nessas situações, ela sempre vinha da igreja, pois ia quase todas as semanas. Na terceira vez, ela disse que foi o Zé que a apalpou na vagina e no peito, mas não mencionou beijos ou penetração. Ela vinha desarranjada e nervosa, com o soutien fora do lugar, visível por baixo da roupa. A testemunha FF não estava presente na loja no dia … de Julho de 2021 porque nesse dia estava de férias. Mas recebeu o telefonema da EE pedindo-lhe ajuda.

Quanto ao comportamento da ofendida perante terceiros a testemunha FF corroborou que a ofendida faz tudo o que lhe dizem, nunca se recusa a fazer nada. Se lhe pedem para desarrumar, ela desarruma, sem um sentido crítico ou capacidade de oposição. Não acredita que ela tenha inventado tudo, pois a forma a viu nervosa nas outras situações não parecia forçada.

O [Facto provado nº 22] decorre dos documentos de fls. 25-55.

O [Facto provado nº 23] consta da resposta aos quesitos no relatório da perícia médico-legal de fls. 138-147.

Os [Factos provados nº 24-27] atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido atuou, bem como relativos à sua consciência quanto à ilicitude da sua conduta foram extraídos dos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso.

Inexiste, dúvidas de que foi o Arguido que praticou os factos assentes porquanto foi identificado pela ofendida pelo nome e pessoalmente e foi também corroborada a sua identificação pelas pessoas que colaboravam na igreja, tendo sido referido que não havia mais nenhuma outra pessoa de nome AA. O Arguido tinha acesso às capelas mortuárias porque era a única pessoa que tinha a chave.

De facto, os comportamentos desencadeados pelo arguido, cabalmente retratados na factualidade objetivamente apurada, denunciam a sua vontade em satisfazer os seus impulsos sexuais e instintos libidinosos, quando era conhecedor que a ofendida, padecia de deficiência mental e por conseguinte, não tinha capacidade e discernimento para compreender os atos sexuais a que a sujeitou, prejudicando gravemente a sua liberdade e autodeterminação sexual.

São os demais factos assentes, alicerçados em prova direta, que denunciam indubitavelmente a sua vontade em satisfazer os seus desejos sexuais, o que representou e quis, representação e aceitação ambas indissociáveis seguindo um raciocínio indutivo/dedutivo à luz das regras da experiência comum e tendo em conta os padrões de entendimento e comportamento do homem médio.

No que respeita à voluntariedade dessas condutas e à sua consciência da ilicitude, além do que resulta do depoimento das testemunhas acima identificadas, concluímos que o arguido tem capacidade de distinguir entre o bem e o mal e de se determinar de acordo com essa avaliação. Com efeito, quem pratica os atos descritos demonstra agir contra a vontade expressa da ofendida, sabendo que a mesma não se lhe podia opor como era manifesto e foi corroborado por todas as pessoas que com ela conviviam, o que o Arguido sabia e ainda assim não se inibiu de satisfazer os seus instintos libidinosos ofendendo a liberdade e autodeterminação sexual da ofendida que com o mesmo não pretendia praticar quaisquer atos sexuais, o que é patente pelo sofrimento e aflição que manifestou na sequência dos atos praticados pelo Arguido.

O [Facto provado nº 28] tem respaldo no relatório pericial psiquiátrico da ofendida de fls. 138-147.

Com base neste conjunto de meios de prova resultou o convencimento do Tribunal sobre a existência dos abusos sexuais imputados ao arguido, nos termos descritos nos factos provados, atendendo ao depoimento da ofendida conjugado com os depoimentos das testemunhas que nos mereceram inteira credibilidade, ainda secundados com o teor relatório de avaliação psicológica junto ao processo, cujas conclusões são claras, no que respeita desde logo à existência de um relato credível sobre as experiências vivenciadas pela ofendida, e que ainda sublinha que a mesma é incapaz de formar a sua vontade no sentido de opor-se ao ato sexual, pois o seu juízo crítico e capacidade de autocrítica estão diminuídos. A dar consistência e credibilidade à versão da ofendida, e reforçando aconvicção que formamos, temos ainda a registar as alterações comportamentais que esta apresentou nos dias em os abusos ocorreram, alterações essas que foram percecionadas e presenciadas diretamente pelas testemunhas EE e FF e que, por estas, foram, cabal e convergentemente, relatadas.

O [Facto provado nº 29] decorre do CRC Referência Citius ......63;

O [Facto provado nº 30] atinente às características de personalidade do Arguido resulta do depoimento das testemunhas de defesa supra identificadas.

O [Facto provado nº 31] decorre do relatório social Referência Citius ......39;”

II.2. Direito

II.2.1. O Tribunal a quo justificou as medidas das penas parcelares do seguinte modo:

“Considerando os critérios mencionados, é importante destacar as necessidades de prevenção geral positiva, devido à disseminação generalizada desse tipo de crime na sociedade atual e aos danos causados às vítimas e à sociedade como um todo. O crime de abuso sexual é altamente condenável e causa repulsa e indignação na comunidade, especialmente devido à vulnerabilidade das vítimas, que são objeto de proteção especial. Portanto, é crucial reforçar perante a sociedade a validade das leis que punem essas condutas.

Além disso, é necessário considerar o grau de ilicitude dos atos, que é bastante acentuado no caso em questão. Os atos foram praticados de forma traiçoeira, aproveitando as deslocações à igreja, planeando o Arguido a sua acção, chamando-a insistentemente. Esse aspecto é relevante não apenas para avaliar o grau de censura, mas também para fins de ressocialização.

A natureza dos atos praticados também não pode ser ignorada, uma vez que envolveram relações sexuais completas com ejaculação, em três ocasiões diferentes num período de cerca de dois anos, demonstrando intensidade no dolo. O dolo do agente foi por isso intenso e persistente, revelando sua determinação em satisfazer seus desejos.

Embora as consequências físicas não tenham sido especialmente evidentes, sendo certo que a ofendida se queixou que o Arguido a magoava durante a prática do ato sexual, as repercussões psicológicas foram significativas, deixando a vítima com medo, repulsa, nervosismo desorientação, tristeza e choro compulsivo. A motivação do agente foi satisfazer seus instintos libidinosos.

As condições pessoais do agente, embora positivas em termos sociais, familiares e profissionais, não mitigam seu comportamento. O facto de ter conhecimento das limitações da vítima e se aproveitar dessas limitações revela uma falta de consideração pelos limites da sexualidade de terceiros e pela ilicitude dos atos cometidos.

Levando em consideração todas essas circunstâncias e os fatos estabelecidos, bem como o limite máximo imposto pelo grau de culpa do agente, as exigências de prevenção geral positiva e sua necessidade de ressocialização, levando em conta também os princípios político-criminais da necessidade e proporcionalidade, considera-se apropriado impor ao Arguido uma pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual contra pessoa incapaz de resistência cometidos.

II.2.2. E fundamentou a medida da pena única assim:

“Para determinar a pena única, devemos levar em consideração que os crimes em questão têm a mesma natureza: crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual; foram cometidos num período de dois anos revelando persistência da vontade criminosa; a gravidade objetiva dos fatos, considerando a forma concreta de atuação e o tipo de bem jurídico violado; os crimes visam motivos egoístas do arguido, relacionados aos seus impulsos e desejos sexuais; as consequências dos fatos são gravemente prejudiciais, especialmente os danos psicológicos causados à ofendida; existem fortes razões de prevenção geral; considera-se as atuais condições pessoais, familiares e sociais do arguido, que está integrado social e familiarmente e não tem antecedentes criminais registados, possuindo uma imagem social positiva.

Levando em conta todos esses fatores e visando uma pena adequada e proporcional à gravidade dos crimes cometidos, bem como às necessidades de prevenção geral para reafirmar a validade das leis violadas, é fixada uma pena única de 6 (seis) anos de prisão.”

II.3. Vejamos:

Não vem posta em causa a qualificação jurídica dos factos.

A cada um dos imputados crimes corresponde, em abstrato, a pena de prisão de dois a dez anos (art. 165º, nºs 1 e 2 do CP).

O grau de ilicitude de cada uma das ações é muito elevado. Com gravidade e desvalor de ação assente no facto de se ter aproveitado da inexperiência de quem sofria de uma deficiência mental que não lhe permitia perceber o alcance de atos de natureza sexual, sofrendo também de incapacidade de se autodeterminar sexualmente e de exprimir a sua vontade no sentido de resistência àquele tipo de atos, circunstância que era conhecida do arguido, e de que este se prevaleceu para satisfazer os seus desejos e instintos sexuais.

Quanto ao modo de execução, o arguido procurava as ocasiões para actuar e aproveitava-se da “inocência” da ofendida, que tinha consigo uma relação de grande proximidade e de confiança, tendo-se aproveitado dessa relação e da confiança que a mesma depositava nele.

O dolo é directo e intenso. Mostrando insensibilidade aos valores que fundamentam as regras de vivência em sociedade; e nem as bem conhecidas, por ele, limitações da ofendida obstaculizaram a prática dos atos.

O arguido não prestou declarações sobre os factos. E se é verdade que tal omissão não o pode prejudicar certo é que também não o pode beneficiar; nomeadamente, fica sem assento eventual ato de arrependimento ou de contrição pela prática dos atos.

A seu favor apenas milita a circunstância de não apresentar antecedentes criminais.

E de mostrar-se inserido familiar, social e profissionalmente. Só que, lembre-se, neste tipo de crimes sexuais é exatamente a sua boa inserção familiar, profissional e social que permite a aproximação às vítimas, sendo que é de tal boa inserção que os predadores sexuais se prevalecem e instrumentalizam para abusar.

O desvalor de resultado está bem evidenciado nas repercussões psicológicas advenientes. Repita-se que a ofendida “quando se aborda o tema, manifesta desconforto, ansiedade, vergonha e evitamento, sugestivos dessa vivência e do respetivo impacto emocional;”

Estamos perante crimes geradores de enorme repulsa e alarme social. Em que se tutela a liberdade e autodeterminação sexual de outra pessoa.

As necessidades de prevenção geral são cada vez mais exigentes neste tipo de crimes, tendo em conta o bem jurídico violado (a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa incapaz de resistência) e impostas pela frequência dos casos de abusos sexuais em geral e em especial dos abusos sexuais de pessoas incapazes de resistência. Geradora do elevado alarme social que este tipo de atuações criminosas suscita na comunidade, justificando resposta punitiva firme, no caso vertente ainda mais premente devido á repercussão que o caso teve na medida em que foi levado a cabo em local de culto religioso onde se espera a máxima segurança e respeito dos outros e por um funcionário de uma igreja que é suposto estar para auxiliar e não para atentar.

Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções de Direito Penal”, Rei dos livros, 8ª ed., 187, escrevem: “(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

Com as necessidades de prevenção geral convergem aqui as necessidades de prevenção especial,

Assim, cada uma das penas parcelares não se mostra excessiva.

No que concerne à medida da pena única em primeiro lugar deve considerar-se que a moldura penal abstrata vai de 4 anos de prisão, a máxima das parcelares, a 12 anos de prisão, o somatório de todas as parcelares, ut art. 77, nº 2, do CP.

A pena foi fixada no primeiro quarto do intervalo, em metade do limite máximo.

E, diga-se, e também a pena única não se mostra excessiva. Sem dupla valoração, ocioso se torna repetir as considerações relativas às finalidades das penas, às necessidades de prevenção geral e especial, o limite da culpa à medida da pena, e à proporcionalidade nos seus três segmentos de necessidade, adequação e justa medida.

Estamos perante um conjunto de crimes, em fenomenologia sexual de enorme gravidade, em que aplicando um factor de compressão de 1/3 a pena se quedaria em seis anos e oito meses. O tribunal a quo entendeu, porém, fixá-la em seis anos, certamente relevando a idade do arguido e a sua ausência de antecedentes criminais.

A pena única encontra-se através da aplicação do critério especial fixado no artigo 77, nº 1, do CP. Trata-se agora de encontrar uma pena de síntese, por via de uma apreciação, em conjunto, do facto global e da personalidade do arguido.

“I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente - exigências de prevenção especial de socialização” (in ac. do STJ de de 08-07-2020, proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1, Conceição Gomes)

De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo”. (in ac. do STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1, Nuno Gonçalves)

A fixação da pena conjunta pretende, pois, sancionar o agente pelo conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. Atende-se, por via do critério especial ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido (facto global) e ao fio condutor e conexão presentes na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, (personalidade unitária) tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se apenas revela uma tendência ou propensão ou ainda se a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais (pluriocasionalidade).

Aqui, em termos de conjunto, não pode deixar de se relevar que o mesmo tipo de crime foi praticado por três vezes, aproveitando-se da incapacidade da vitima, e abusando da sua situação incapacitante, o que era do seu conhecimento, em local de culto religioso onde era suposto a pessoa se encontrar segura e mesmo apoiada e prevalecendo-se da confiança de quem, como o arguido, estava no local para ajudar e apoiar, traindo a confiança que devia inspirar. Com dolo reiterado e intenso. Em padrão comportamental de tendência.

Quanto à actual eventual situação de doença do arguido, como bem disse o MºPº, poderá/deverá a mesma ser considerada pelo TEP aquando da execução da pena de prisão, nos moldes referidos no Código de Execução de Penas.

III - DECISÃO

Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando inteiramente o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC´s – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

STJ, 08 de novembro de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira Adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)