Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
197/19.6PFPRT-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
NOVOS MEIOS DE PROVA
IDENTIDADE DO ARGUIDO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INJUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
É de autorizar a revisão de sentença quando, condenado o arguido pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, em pena de multa, aliás já extinta pelo cumprimento, posteriormente e num outro processo, foi proferida sentença condenando outro arguido, irmão daquele, pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, cometido com o mesmo veículo, no mesmo lugar, no mesmo dia e à mesma hora, tendo sido fiscalizado pelos mesmos agentes policiais, tendo ainda este último sido condenado pela prática de um crime de falsas declarações por, na ocasião, se ter identificado com o nome daquele seu irmão.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I. 1. No Proc. sumário nº 197/19.6PFPRT do Juízo local de pequena criminalidade do ..., o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 5,50 euros. A sentença foi proferida em 25 de Julho de 2019 e transitou em julgado no dia 6 de Janeiro de 2020. A pena mostra-se extinta pelo cumprimento.

2. A Digna Magistrada do Ministério Público vem, agora, interpor recurso de revisão dessa sentença, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1 – No processo n.º 197/19.6PFPRT, do J... ., do Juízo Local de Pequena Criminalidade do ... foi o arguido AA julgado na ausência e condenado pela prática no dia 11 de julho de 2019, pelas 19h15m 1, na Rua ..., no ..., ao conduzir o veículo automóvel de matrícula n.º ..-..-AC 2, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de sessenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos.

2 – A sentença transitou em julgado no dia 6 de janeiro de 2020.

3 – O arguido foi julgado na ausência.

4 – Por sentença proferida nos autos de processo comum n.º 15876/19.0... que correram termos no J... ., do Juízo Local Criminal do... o arguido BB foi condenado no dia 20 de junho de 2022, pela prática pela prática no dia 11 de julho de 2019, pelas 19h15m, na Rua..., no ..., de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de seis meses de prisão e pela prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348.º-A, n.º 1, do Código Penal na pena de três meses de prisão, sendo condenado em cúmulo jurídico pelas aludidas penas na pena única de oito meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, com regime de prova, tendo a aludida sentença transitado em julgado no dia 6 de setembro de 2022.

5 – Existe a sentença proferida nos autos de processo comum 15876/19.0... que correram termos no J... ., do Juízo Local Criminal do... onde o arguido BB foi condenado pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal noticiado nestes autos e onde o arguido AA também foi condenado, mostrando-se preenchido o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

6 – O BB admitiu a prática de tais factos, conforme resulta do teor da sentença proferida nos autos de processo comum 15876/19.0... que correram termos no .... ., do Juízo Local Criminal do ....

7 – Temos assim como fundamento de revisão a circunstância de a pessoa que praticou os factos delituosos e que foi acusada, julgada e condenada neste processo 197/19.6PFPRT do Juiz 3, do Juízo Local de Pequena Criminalidade do ... ser outra daquela que foi condenada nestes autos, conforme decorre do teor da sentença proferida nos autos de processo comum 15876/19.0... que correram termos no J... ., do Juízo Local Criminal do ..., onde foi dado como provado que o autor do crime de condução de veículo sem habilitação legal aqui noticiado é o BB.

8 – Suscitando o exposto graves dúvidas sobre a justiça da condenação aqui proferida.

9 – No presente caso o recurso extraordinário de revisão apresenta-se como o meio processual adequado.

10 – Pelo exposto, requer-se a V. Exas. que seja autorizada a revisão peticionada, nos legais termos».

3. A tal requerimento, não foi oferecida qualquer resposta.

4. A Exmª Juíza titular dos autos produziu a informação a que alude o artº 454º do CPP, nos seguintes termos:

«(…)

Elementos a considerar:

- No dia 11/07/2019, um Agente da Polícia de Segurança Pública fez constar que, nesse dia, interpelou um indivíduo que conduzia um veículo automóvel na via pública, sem título que o habilitasse, indivíduo que se identificou como sendo AA, nascido no dia .../.../1996, e que, nesse dia, procedeu à detenção do mesmo, com libertação do mesmo nesse mesmo dia– fls. 2 a 3 dos autos principais;

- esse indivíduo prestou termo de identidade e residência como sendo AA, nascido no dia .../.../1996 – fls. 5 dos autos principais;

- esse indivíduo foi notificado para comparecer no dia 12/07/2019, às 14H00M, no Tribunal de Pequena Instância Criminal do ... e “nesse local será submetido: a audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência que esta se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor, à data e hora acima designadas…”- fls. 8 dos autos principais;

- foi efectuada uma pesquisa na base de dados do IMT, IP em nome de AA nascido no dia .../.../1996 – fls. 9 dos autos principais;

- foi junto aos autos um print do cartão do cidadão do AA nascido no dia .../.../1996 – fls. 12 dos autos principais;

- foi requisitado e junto aos autos o certificado do registo criminal do AA nascido no dia .../.../1996 – fls. 13 dos autos principais;

- foi efectuada pesquisa e junto aos autos os prints do resultados na base de dados da suspensão provisória de processos crime em nome de AA – fls. 14 e 15 dos autos principais;

-em processo sumário, foi deduzida acusação, imputando-se ao AA, nascido no dia .../.../1996, a prática, no dia 11/07/2019, de factos susceptíveis de integrar um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, nºs 1 e 2, do DL nº2/98, de 3 de Janeiro – fls. 25 a 26 dos autos principais;

- designou-se o dia 25/07/2019, pelas 14H40M, para a realização da audiência de discussão e julgamento, sendo AA notificado, na qualidade de arguido, por carta simples com prova de depósito enviada para a morada constante do termo de identidade e residência que prestou – fls. 5, 24, 34 e 41 dos autos principais;

- não tendo comparecido nessa data, realizou-se a audiência de discussão e julgamento na sua ausência – fls. 42 e 43 dos autos principais;

- nesse mesmo dia, foi proferida sentença a condenar o arguido AA, nascido no dia .../.../1996, pela prática no dia 11/07/2019, em autoria material, de um crime de condução de veículo a motor, sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º2/98, de 3 de Janeiro, na pena de sessenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos – fls. 43 dos autos principais.

Para tanto, considerou-se “transcrição:

“Do julgamento são os seguintes os factos dados como provados:

No dia 11 de julho de 2019, pelas 18H, o arguido conduziu o veículo automóvel com matrícula ..-..-SF, na Rua ..., no ..., quando foi fiscalizado por Agentes da PSP.

O arguido conduzia este veículo sem ser possuidor da respectiva carta de condução ou qualquer outro documento que a tal o habilitasse.

Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que não lhe era conduzir veículos em via pública, como o fez, sem ser possuidor da respectiva carta de condução.

Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que do certificado do registo criminal do arguido nada consta.

O arguido terá uma vida ligada ao consumo de estupefacientes, inclusivamente faria intenção de pernoitar no veículo automóvel em causa.

Factos não provados não há.

A convicção do Tribunal assenta nas declarações dos Agentes da PSP, CC e DD, que fiscalizaram o arguido nas circunstâncias de tempo e lugar dadas como provadas. O arguido não compareceu, desconhece-se, pois, a sua versão dos factos. De todo o modo, pelas declarações dos Agentes de Autoridade que conhecem o arguido por circular na zona da Sé nomeadamente conotando-o com o consumo de estupefacientes e o mesmo terá dito até aos Agentes de Autoridade que seria sua intenção pernoitar no veículo automóvel em causa.

Atendeu-se, ainda, à informação do IMT de fls. 9 da qual resulta que o arguido não é titular de carta de condução e do seu certificado do registo criminal de fls 13 do qual nada consta.

Os factos dados como provados integram, sem qualquer dúvida, a prática do crime de condução sem habilitação legal.

(…).

Tendo em consideração que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, o Tribunal opta por lhe aplicar uma pena de multa, que fixa em sessenta dias, à razão diária de cinco euros e cinquenta cêntimos, ou seja, muito pouco acima do limite mínimo que é de cinco euros, vista a modesta condição socioeconómica do arguido que se poderá aproximar muito, pelo menos, nesta fase da sua vida, de alguma indigência.”

- a sentença foi notificada ao AA, nascido no dia .../.../1996, por contacto pessoal, no dia 21/11/2019, não tendo sido interposto recurso;

- não foi interposto recurso - a sentença transitou em julgado no dia 06/01/2020.

Por sentença proferida no processo nº197/19.6PFPRT que correu termos no Juízo Local Criminal do ..., J... ., transitada em julgado no dia 06/09/2022, o arguido BB foi condenado pela prática, no dia .../.../2019, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º2/98, de 3 de Janeiro, na pena de seis meses de prisão, pela prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º1, do CP, na pena de três meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de oito meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova.

Para o efeito, deu-se como provado:

“No dia 11/7/19, na Rua ..., nesta cidade, o arguido conduziu na via pública, em plena faixa de rodagem, o veículo automóvel de matrícula ..-..-SF, sem que fosse possuidor ou titular de carta de condução ou documento que o habilitasse a conduzir o referido veículo.

O arguido sabia que não podia conduzir qualquer veículo automóvel na via pública, sem que, previamente, fosse titular de carta de condução ou documento que lhe permitisse tal conduta.

Nesse mesmo dia e local, no decurso de uma acção de fiscalização da Polícia de Segurança Pública, o arguido foi detectado a conduzir aquele veículo automóvel, tendo sido abordado por agente da PSP que o indagou se era titular de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.

O arguido disse ao referido agente da PSP que se chamava AA, nome do seu irmão, quando, na realidade, se chama BB.

Nesta sequência, aquele agente da PSP, constatando através do correspondente terminal informático que BB não era titular de carta de condução, procedeu à detenção do arguido convencido que ficou que realmente tinha este nome; tendo sido subsequentemente libertado.

O arguido, apesar de saber que estava perante um agente da autoridade policial em pleno exercício das suas funções no decurso daquela acção de fiscalização e que tinha a obrigação de lhe reproduzir os seus verdadeiros e correctos elementos de identificação, perante ele identificou-se com o nome daquele seu irmão.

O arguido agiu do modo descrito com o desígnio, que logrou alcançar, de perante aquele agente da autoridade policial, dissimular a sua verdadeira identidade e inveridicamente reproduzir elementos identificativos que não lhe correspondiam; com o intuito de se subtrair à sua responsabilidade criminal por prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação porquanto não possui carta de condução ou documento que o habilite à condução de veículos automóveis.

Agiu livre, consciente e deliberadamente. Sabia que a sua conduta era proibida por lei.” (…)

O Ministério Público apresentou requerimento a pedir a revisão da sentença com base no que foi decidido naquele processo n.º15876/19.0..., aludindo que a pessoa que praticou os factos delituosos e que foi acusada, julgada e condenada nestes autos é distinta da que foi condenada no processo n.º15876/19.0..., que o autor do ilícito noticiado nestes autos é o BB, suscitando-se graves dúvidas quanto à justiça da condenação aqui proferida.

Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2012, processo n.º117/95.1TBPNF-A.S1, Relator Dr. Oliveira Mendes, disponível para consulta em www.dgsi.pt, entendimento com o qual concordamos, “certo é que a assunção pelo condenado de identidade de terceiro, ou seja, a usurpação de identidade, não tem sido uniformemente tratada enquanto fundamento do recurso extraordinário de revisão por este Supremo Tribunal.

São conhecidas três orientações jurisprudenciais distintas.

(…)

Tomando posição no dissídio dir-se-á que o recurso ao instituto de correcção da sentença só deverá ser admitido nos casos de mero erro na identificação do condenado, ou seja, quando a anomia da identificação resulta de erro de escrita ou de mero lapso na apresentação da identificação por parte do condenado ou decorre de outro lapso equivalente, cuja rectificação não importe modificação essencial da sentença, conforme estabelece a alínea b) do n.º1 do artigo 380.º do Código de Processo Penal.

Em todos os outros casos, concretamente em situações em que se verifica uma usurpação de identidade, isto é, quando o condenado assume a identidade de uma terceira pessoa, cremos que é indispensável o recurso à revisão de sentença.

Desde logo porque nestas situações a correcção implica uma modificação essencial. Com efeito, é elemento essencial da sentença a pessoa (certa e determinada) do condenado. Depois, esgotado que está o poder jurisdicional, não pode o juiz, mediante mero despacho rectificativo, absolver a pessoa (certa e determinada) que condenou e, concomitantemente, condenar pessoa distinta, ademais tendo a respectiva decisão condenatória transitado em julgado.

Por outro lado, há que ter presente a pessoa que foi nominalmente condenada e que como tal foi considerada pela comunidade, sem quem, sequer, tenha estado presente na audiência, ou desta haja tido conhecimento.

Há que repor a verdade e a situação anterior à condenação, de modo a reabilitar a imagem daquele que injusta e ilegalmente foi condenado.

Por fim, há que indemnizar aquele pelos danos sofridos, sendo certo que é através dos mecanismos previstos nos artigos 461.º e 462.º do Código de Processo Penal, aplicáveis no processo de revisão de sentença, que isso terá de ser concretizado (afixação de certidão da sentença absolutória proferida pelo tribunal da revisão à porta do tribunal da comarca da última residência do arguido e à porta do tribunal que tiver proferido a condenação e publicação daquela certidão em três números consecutivos de jornal da sede daquele tribunal ou da localidade mais próxima, se naquela não houver jornais, e fixação da indemnização devida (a pagar pelo Estado) ou sua relegação para execução de sentença).”

(…)

Pois bem.

Nos termos do disposto art. 389.º do Código de Processo Penal, a acusação foi deduzida contra o AA, nascido no dia .../.../1996. O julgamento decorreu na ausência de qualquer arguido, mas tendo como pressupostos que o arguido seria a pessoa física identificada como AA, nascido no dia .../.../1996, tendo em conta, nomeadamente, a pesquisa efectuada no IMT, I.P em seu nome (para concluir que o mesmo não era titular de carta de condução – não foi efectuada qualquer pesquisa em nome do Hélder) e o seu certificado do registo criminal (e não o do BB). Foi essa pessoa que foi condenada, por decisão transitada e julgado.

Na sentença proferida no processo comum com intervenção do Tribunal Singular nº197/19.6PFPRT que correu termos no Juízo Local Criminal do ..., J... ., transitada em julgado no dia 06/09/2022 –provou-se que o arguido BB

“No dia 11/7/19, na Rua ..., nesta cidade, (…) conduziu na via pública, em plena faixa de rodagem, o veículo automóvel de matrícula ..-..-SF, sem que fosse possuidor ou titular de carta de condução ou documento que o habilitasse a conduzir o referido veículo.

O arguido sabia que não podia conduzir qualquer veículo automóvel na via pública, sem que, previamente, fosse titular de carta de condução ou documento que lhe permitisse tal conduta.

Nesse mesmo dia e local, no decurso de uma acção de fiscalização da Polícia de Segurança Pública, o arguido foi detectado a conduzir aquele veículo automóvel, tendo sido abordado por agente da PSP que o indagou se era titular de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.

O arguido disse ao referido agente da PSP que se chamava AA, nome do seu irmão, quando, na realidade, se chama BB.

Nesta sequência, aquele agente da PSP, constatando através do correspondente terminal informático que BB não era titular de carta de condução, procedeu à detenção do arguido convencido que ficou que realmente tinha este nome; tendo sido subsequentemente libertado.

O arguido, apesar de saber que estava perante um agente da autoridade policial em pleno exercício das suas funções no decurso daquela acção de fiscalização e que tinha a obrigação de lhe reproduzir os seus verdadeiros e correctos elementos de identificação, perante ele identificou-se com o nome daquele seu irmão.”

Face ao dado como provado nestes autos, por sentença, transitada em julgado no dia 06/01/2020, (deu-se como provado que foi o AA que conduzia na via pública, o veículo e, como tal, foi o mesmo que foi condenado), ao dado como provado na sentença proferida no processo n.º15876/19.0..., transitada em julgado no dia 06/09/2022, (que, no dia 11/07/2019, na fiscalização, o BB disse ao Agente Policial que se chamava AA – usurpação de identidade, o BB assumiu a identidade do AA), por se entender que não está em causa algum erro material ou confusão de nomes, que o vício invocado não é da sentença, é da prova/de conteúdo de julgamento, que posteriormente à condenação sofrida nestes autos pelo AA, em momento em que já não podia ser considerado (através da interposição de recurso ordinário), deu-se como provado naqueles autos – 15876/19.0... -, que outrem, o BB, disse ao Agente da PSP que se chamava AA, que o crime de condução sem habilitação legal foi praticado por outrem que não o AA, pelo BB, importando repor a verdade e a situação anterior à condenação, deve proceder o pedido do Ministério Público, deve ser autorizada a revisão».

II. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmº Procurador-Geral Adjuto emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso:

«(…)

IV. - Nos termos do art. 29.º, n.º 6, da Constituição, os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Em execução do comando constitucional, o art. 450.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal concede legitimidade ao MP para requerer a revisão e o art. 449.º, n.º 1, do mesmo compêndio legal estabelece que a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

No caso sub examine importa apenas considerar as hipóteses contempladas nas als. c) e d) do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal.

E ambas estão preenchidas.

Por um lado, as duas sentenças dão como provado, em termos insuperavelmente antagónicos, que o veículo ..-..-SF foi conduzido no mesmo dia, hora 3 e local por dois indivíduos diferentes: no processo sumário 197/19.6PFPRT por AA (nascido a ... de ... de 1996), no processo comum 15876/19.0... por BB (nascido a ... de ... de 1990).

Por outro lado, no processo 15876/19.0..., cujo julgamento teve lugar em 20 de junho de 2022, ou seja, mais de dois anos após o trânsito da sentença do processo sumário 197/19.6PFPRT, o arguido BB confessou de forma livre e sem reservas – e por isso assim foi dado como provado – que ao ser abordado pela PSP «disse que se chamava AA, nome do seu irmão».

Na ponderação do exposto são, assim, manifestas e intensas as dúvidas que se suscitam sobre a justiça da condenação do arguido AA no processo sumário 197/19.6PFPRT.

Donde que se emita parecer no sentido da autorização da revisão ao abrigo do disposto no art. 449.º, n.º 1, als. c) e d), do Código de Processo Penal.

Determina o art. 458.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que se a revisão for autorizada com fundamento na al. c) do n.º 1 do art. 449.º, por haver sentenças penais inconciliáveis que tenham condenado arguidos diversos pelos mesmos factos, o Supremo Tribunal de Justiça anula as sentenças e determina que se proceda a julgamento conjunto de todos os arguidos, indicando o tribunal que, segundo a lei, é competente, acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que os processos são apensos.

Como já decorreram os prazos máximos para realização da audiência de julgamento em processo sumário (art. 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal) e a competência dos Juízos de Pequena Criminalidade, no que ora importa considerar, restringe-se às causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo (art. 130.º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), entendemos que a competência para o julgamento conjunto deve ser atribuída ao Juízo Local Criminal do Porto (processo comum 15876/19.0...PRT), importando, no entanto, assinalar que «o reenvio é parcial, dizendo apenas respeito aos arguidos e aos factos em relação aos quais se verifique a oposição que é requisito da revisão. No mais, os julgamentos permanecem intocados, valendo o caso julgado quanto aos arguidos e aos factos em relação aos quais se não verifique a oposição» 4.

III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência:

O recorrente estriba a sua pretensão na al. c) do nº 1 do artº 449º do CPP, que admite a revisão de sentença transitada em julgado quando “os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

A revisão de sentença, com consagração constitucional (artº 29º, nº 6 da CRP), tem natureza excepcional, na pura e exacta medida em que constitui uma restrição evidente ao princípio da segurança jurídica. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do CPP”, 1206, «só circunstâncias “substantivas e imperiosas” (…) devem permitir a quebra do caso julgado, de modo a que este recurso extraordinário se não transforme em uma “apelação disfarçada”».

Entre essas excepções, a lei consagrou a inconciliabilidade dos factos que serviram de fundamento à condenação na sentença revidenda, com os dados como provados noutra sentença, posto que de tal oposição resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

São, pois, dois os requisitos da revisão de sentença enunciados no artº 449º, nº 1, al. c) do CPP:

a) de um lado, a inconciliabilidade dos factos dados como provados em dois processos distintos;

b) de outro, que essa oposição suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

No que concerne ao primeiro requisito:

Não é necessário, como nos parece evidente, um grande esforço argumentativo para demonstrar que os factos dados como provados no Proc. 197/19.6PFPRT são inconciliáveis com os dados como provados no Proc. 15876/19.0...

Com efeito,

a) Neste Proc. (Sumário) 197/19.6PFPRT, em que é arguido AA, por sentença proferida em 25/7/2019, transitada em julgado no dia 6/1/2020, foi dado como provado, entre o mais, que:

“No dia 11 de julho de 2019, pelas 18H, o arguido conduziu o veículo automóvel com matrícula ..-..-SF, na Rua ..., no ..., quando foi fiscalizado por Agentes da PSP.

O arguido conduzia este veículo sem ser possuidor da respectiva carta de condução ou qualquer outro documento que a tal o habilitasse.

Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que não lhe era conduzir veículos em via pública, como o fez, sem ser possuidor da respectiva carta de condução.

Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

b) No Proc. Comum Singular nº 15876/19.0..., do Juízo local criminal do ..., J., o cidadão BB, foi julgado e condenado, por sentença proferida em 20/6/2022 e transitada em julgado no dia 6/9/2022, pela prática dos seguintes factos:

“No dia 11/7/19, na Rua..., nesta cidade, o arguido conduziu na via pública, em plena faixa de rodagem, o veículo automóvel de matrícula ..-..-SF, sem que fosse possuidor ou titular de carta de condução ou documento que o habilitasse a conduzir o referido veículo.

O arguido sabia que não podia conduzir qualquer veículo automóvel na via pública, sem que, previamente, fosse titular de carta de condução ou documento que lhe permitisse tal conduta.

Nesse mesmo dia e local, no decurso de uma acção de fiscalização da Polícia de Segurança Pública, o arguido foi detectado a conduzir aquele veículo automóvel, tendo sido abordado por agente da PSP que o indagou se era titular de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.

O arguido disse ao referido agente da PSP que se chamava AA, nome do seu irmão, quando, na realidade, se chama BB.

Nesta sequência, aquele agente da PSP, constatando através do correspondente terminal informático que BB não era titular de carta de condução, procedeu à detenção do arguido convencido que ficou que realmente tinha este nome; tendo sido subsequentemente libertado.

O arguido, apesar de saber que estava perante um agente da autoridade policial em pleno exercício das suas funções no decurso daquela acção de fiscalização e que tinha a obrigação de lhe reproduzir os seus verdadeiros e correctos elementos de identificação, perante ele identificou-se com o nome daquele seu irmão.

O arguido agiu do modo descrito com o desígnio, que logrou alcançar, de perante aquele agente da autoridade policial, dissimular a sua verdadeira identidade e inveridicamente reproduzir elementos identificativos que não lhe correspondiam; com o intuito de se subtrair à sua responsabilidade criminal por prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação porquanto não possui carta de condução ou documento que o habilite à condução de veículos automóveis.

Agiu livre, consciente e deliberadamente.

Sabia que a sua conduta era proibida por lei”.

Perante os factos dados como provados nos dois processos, surge como manifesta a inconciliabilidade entre uns e outros: nestes autos mostra-se dado como provado que em determinado dia e hora, o arguido conduzia um determinado veículo automóvel, numa determinada artéria da cidade do ..., quando foi fiscalizado por dois agentes da PSP; no Proc. 15876/19.0... foi dado como provado que, quem conduzia esse veículo, no mesmo dia, na mesma artéria, sendo fiscalizado pelos mesmos agentes da PSP foi o aí arguido BB que, perante os dois agentes da PSP, se identificou com o nome do seu irmão, arguido nos autos em que foi proferida a sentença revidenda, AA.

No que concerne ao segundo requisito:

Como é evidente e dispensa grandes considerações, a manifesta oposição que se verifica entre os factos provados nas duas sentenças é geradora de graves dúvidas sobre a justiça da condenação: demonstrado, no Proc. 15876/19.0..., que era o irmão do arguido AA quem conduzia o veículo de matrícula ..-..-SF, no dia, hora e local referidos na sentença revidenda, e que o mesmo se identificou com o nome do aqui arguido “com o intuito de se subtrair à sua responsabilidade criminal por prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação” porquanto não possuía carta de condução ou documento que o habilitasse à condução de veículos automóveis, as dúvidas sobre a justiça da condenação do arguido nestes autos surgem como evidentes e graves, razão pela qual também se encontra verificado este requisito da revisão.

Resta, pois, concluir que, no caso, é de autorizar a revisão.

IV. Dispõe-se no nº 1 do artº 458º do CPP:

“Se a revisão for autorizada com fundamento na alínea c) do nº 1 do artº 449º, por haver sentenças penais inconciliáveis que tenham condenado arguidos diversos pelos mesmos factos, o Supremo Tribunal de Justiça anula as sentenças e determina que se proceda a julgamento conjunto de todos os arguidos, indicando o tribunal que, segundo a lei, é competente”.

Como bem refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, dado que “já decorreram os prazos máximos para realização da audiência de julgamento em processo sumário (art. 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal) e a competência dos Juízos de Pequena Criminalidade, no que ora importa considerar, restringe-se às causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo (art. 130.º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto)”, há que concluir que a competência para o julgamento conjunto deve ser atribuída ao Juízo Local Criminal do ... (processo comum 15876/19.0...).

No mais, importa lembrar – como o faz o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer – que o reenvio é parcial, dizendo apenas respeito aos arguidos e aos factos em relação aos quais se verifique a oposição que é requisito da revisão 5.

V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Autorizar a revisão da sentença proferida no Proc. sumário nº 197/19.6PFPRT do Juízo local de pequena criminalidade do ..., requerida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, com fundamento no disposto no artº 449º, nº 1, al. c) do CPP;

b) Anular as sentenças proferidas nos Procs. sumário 197/19.6PFPRT do Juízo local de pequena criminalidade do ... e comum singular nº 15876/19.0... do Juízo local criminal do..., .., proferidas, respectivamente, em 25/7/2019 e 20/6/2022, e transitadas em julgado em 6/1/2020 e 6/9/2022, também respectivamente;

c) Determinar que se proceda ao julgamento conjunto dos dois arguidos, identificados nos dois processos, limitado aos factos relativamente aos quais se verifica a oposição de fcatos que constituiu fundamento da revisão;

d) Indicar o Juízo local criminal do ..., J., como o competente para proceder a esse julgamento conjunto.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Alves (relator)

Lopes da Mota (1º adjunto)

M. Carmo Silva Dias (2ª adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da 3ª Secção)

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1. Trata-se de lapso, como decorre da leitura da sentença: os factos tiveram lugar às 18h00.

2. Trata-se, mais uma vez, de lapso manifesto, constatável através da leitura da sentença: o veículo em causa tinha a matrícula ...

3. Pese a sentença do processo comum 15876/19.0... seja omissa neste particular, essa conclusão extrai-se facilmente da sua leitura integral e do facto de as testemunhas da PSP serem as mesmas em ambos os processos.

4. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 1230-1231.

5. Paulo Pinto de Albuquerque (org), “Comentário do Código de Processo Penal”, vol. II, 5ª ed. atualizada, 779.