Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
360/18.7T8PVZ.P2.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REVISTA EXCECIONAL
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
PRESSUPOSTOS
Apenso:
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: - MUDANÇA DE RELATOR;
- INDEFERIDA
Sumário :
Os recursos não são admissíveis tanto por o acórdão recorrido não integrar o âmbito do art. 671.º, n.º 1, do CPC, como, no que se refere ao recurso dos réus, por manifesta falta de verificação dos pressupostos dos invocados fundamentos especiais de admissibilidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. AA instaurou a presente acção, sob a forma de processo comum, contra: BB (1.º R.); CC (2.ª R.); DD (3.º R.) e mulher, EE (4.ª R.), e FF (5.º R.), pedindo que, por serem simulados, sejam declarados nulos os contratos celebrados pelas escrituras públicas que identifica e cancelados os registos prediais efectuados com base nesses títulos.

Para o efeito, alegou, em suma, que através das referidas escrituras, a primeira das quais de compra e venda de um prédio e a segunda de dação em cumprimento de um outro prédio, celebradas entre o 1.º R., enquanto alienante, e a 2.ª R., enquanto adquirente, e uma terceira de doação dos mesmos prédios celebrada entre 2.ª R., enquanto doadora, e os 3.º e 4.ª RR., enquanto donatários, os referidos RR. pretenderam unicamente desprover o primeiro de património e, assim, impedir que a A., entretanto reconhecida sua filha, à sua morte, não sucedesse nos seus bens.

Mais alega que, através de uma quarta escritura, o 1.º R., durante a pendência da acção de investigação da paternidade que o reconheceu como pai da A., alienou ao 5.º R. um outro prédio, pelo que entende que também este negócio enferma do mesmo vício dos restantes e deve, por isso, ser declarado nulo.

Citados, os RR. contestaram, além de impugnarem que os negócios celebrados não correspondessem à sua vontade, alegando que a A. actua em abuso de direito, ofendendo os bons costumes e sem legitimidade para o efeito, porque, à data dos referidos negócios, não tinha qualquer reconhecimento de paternidade tutelado.

A A. respondeu às excepções invocadas.

2. Tendo vindo aos autos informação sobre o falecimento, em ... .01.2019, do 1.º R. BB, foi proferido despacho, com data de 14.02.2019, no qual se declarou «suspensa a instância até que seja notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida».

Tendo a A. apelado desta decisão, por acórdão da Relação do Porto de 03.06.2019, foi o recurso julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a sua substituição por decisão «por outra nos termos supra referidos», a saber: «não deveria o Tribunal a quo ter suspendido a instância, aguardando a habilitação de herdeiros do falecido, já que a única sucessora do mesmo é a própria autora mas sim extinguido a instância quanto ao réu falecido, por impossibilidade superveniente da lide (artº 277º, al. e) do CPCivil) e, ordenado o prosseguimento da acção contra os restantes réus.».

3. Dando cumprimento ao acórdão da Relação, em 03.09.2019 o Tribunal da 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:

«Nos presentes autos de processo comum que AA move, além do mais, contra BB, entretanto falecido, e de quem aquela é a única sucessora, declaro extinta a instância na parte correspondente por impossibilidade superveniente da lide, e, quanto aos demais RR., ordeno o prosseguimento da acção.».

4. Realizado o julgamento, por sentença de 07.06.2021, foi proferida a seguinte decisão:

«Julgo a acção parcialmente procedente, e, em consequência declaro nulo, por serem simulados, o contrato de compra de venda e o contrato de dação e pagamento supra ids. em 5), 6) e 8) a 11) dos Factos Provados e válido o contrato real de doação dos mesmos imóveis pelo 1.ª R. ao 3.º R. e aos 3.º R. e 4.ª R. nos termos que constam de 14) a 16) dos Factos Provados, e, absolvo os RR. do restante peticionado.».

5. Desta decisão interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação, pedindo o aditamento de um facto à factualidade dada como provada e a reapreciação da decisão de direito, invocando, em síntese, que, «se o Tribunal a quo declara nulos, por simulação, o contrato de compra e venda e o contrato de dação em pagamento, identificados nos itens 5), 6), e 8) a 11), sempre teria que declarar nulo o contrato de doação dos mesmos imóveis» por estar em causa doação de bens alheios.

Também os RR. interpuseram recurso de apelação, no qual, para além da arguição de nulidades da sentença, impugnaram a decisão relativa à matéria de facto e pediram a reapreciação da decisão de direito, pugnando, a final, pela improcedência da acção.

6. Por acórdão de 10.03.2022, e com fundamento na falta de prova e alegação de factos consubstanciadores dos requisitos da simulação, foi proferida a seguinte decisão: «na procedência da apelação dos réus, ainda que com outros fundamentos, e em consequência revoga- se a decisão recorrida e determina-se a absolvição dos réus dos pedidos que contra si foram formulados.».

7. Inconformada com esta decisão, interpôs a A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação da decisão recorrida.

Por acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2022 foi proferida a seguinte decisão: «Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, anulando-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, ser apreciada a impugnação da matéria de facto e se conhecer as questões de Direito consideradas prejudicadas em função da decisão agora objecto de anulação.».

8. Dando cumprimento ao determinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Tribunal da Relação, em 09.03.2023, acórdão pelo qual, após apreciar das invocadas nulidades da sentença (de 07.06.2021), decidiu o seguinte: «Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se a final, na procedência parcial da apelação dos réus, e em consequência: a) Nos termos do disposto no citado nº2, al. c) do art. 662º do n.C.P.Civil, decide-se anular a totalidade da sentença proferida pela 1ª instância para ampliação da matéria de facto, e nessa medida decide-se devolver os autos à 1º instância, devendo-se apreciar a totalidade da matéria de facto controvertida acima referida e podendo-se apreciar outros pontos da matéria de facto para além da acima enunciada, com a finalidade de evitar contradições. b) Declarar prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas nos recursos de ambas as partes em termos de julgamento de facto e de direito.».

9. Deste acórdão da Relação interpôs a A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«I - O presente recurso versa sobre matéria de direito vertida nas duas decisões expostas no acórdão recorrido (ref. ......46 | p. 57 - 58) proferido a 09/03/2023, o qual logrou improceder as questões prévias suscitadas pela Autora/Apelante nas suas contraalegações (ref. ......33) submetidas a .../.../2021 (ref. ......47);

II - No acórdão ora objeto de censura, o Tribunal da Relação do Porto fundamentou o dito indeferimento tecendo os fundamentos que transcrevemos: “Verifica-se todavia que apesar da extensão das conclusões de recurso dos réus serem extensas, todavia, as mesmas sintetizam as alegacões visto que o corpo das alegacões tem cerca de 70 páginas (fls. 254 a 321) e as conclusões têm 19 páginas (fls., 321 a 340), e não reproduzem o seu teor. Assim, indefere-se a suscitada questão prévia “Ambas as partes invocaram respectivamente como questão prévia a inadmissibilidade do recurso interposto pela autora e pelos réus, respectivamente, alegando as partes que tanto a autora como os réus, não cumpriram com o ónus previsto no artigo 640 no1 do CPCivil. Verifica-se que se considera esta questão prévia improcedente porque a questão do cumprimento do artigo 640 nº 1 do CPC não contende com a inadmissibilidade do recurso, mas com a sua apreciação de mérito”.

III – Sucede que, nos termos estatuídos no art. 639.º n.º 1 do CPC, “[o] recorrente deve apresentar a sua alegacão, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.”

IV - Sobre o dever de sintetização inerente ao ato de concluir, já se pronunciara este mais alto Tribunal, sufragando: “[e]ssas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar.” (vide, por pertinentes, outros arestos decisórios identificados no corpo destas alegações).

V - O douto Tribunal recorrido olvidou os efeitos nefastos provocados no exercício do contraditório que inquestionavelmente resultam de umas conclusões com 177 itens, e das quais não se consegue retirar com facilidade as questões e os fundamentos invocados.

VI - Com efeito, o direito ao contraditório que assiste à Autora – o qual está na base do direito a responder às alegações de recurso (art. 638.º n.º 5 do CPC) – sai brutal e injustificadamente beliscado.

VII – Outrossim, os réus/recorrentes (ref. ......19) não respeitaram os ónus impostos pelo art. 640.º n.º1 al. b) e c) do CPC, o que, claro, também prejudicou o direito de resposta da recorrida.

VIII - Ora, parece-nos evidente que, com as conclusões recursivas dos réus (ref. ......19) (as quais manifestamente não são sintéticas), os recorrentes não lograram concretizar e cabalmente identificar, por referência a cada um dos mencionados factos que almejavam impugnar, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, pelo que não só causaram enormes dificuldades ao Tribunal de recurso na apreciação da respetiva matéria, como também geraram desmesuradas dificuldades no exercício do contraditório da autora/recorrida.

IX - Posto isto, o Tribunal a quo ao improceder as questões prévias suscitadas pela autora/recorrente não só não secundou a melhor jurisprudência que entre nós é proferida, como violou o disposto nos arts. 639.º n.º 1 e 640.º n.º 1 al. b) e c) do CPC, razões pelas quais a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que rejeite a impugnação da matéria de facto almejada pelos réus/recorrentes.».

10. Também os RR. interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por via normal, e, subsidiariamente, por via excepcional, formulando extensas e prolixas conclusões nas quais invocam, entre outras questões, que o acórdão recorrido incorre em:

Ofensa de caso julgado na resolução da questão da invocada ilegitimidade passiva dos RR. por preterição de litisconsórcio passivo necessário;

Contradição de julgados na resolução da mesma questão com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2021, proferido no Processo n.º 1193/07.1TBBNV.E1.S1, de que junta certidão.

11. Por despacho do relator de 21.09.2023 foi exarado, no que ora importa, o seguinte:

«Entendeu a Relação, no uso dos poderes que lhe são conferidos, nos termos do artº 662º nº 2 c) do CPC e com os fundamentos que acima repristinámos, anular o julgamento.

Acontece que essa decisão da Relação, compreensivelmente (por se tratar de matéria de facto), “não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” artº 662º nº 4 do CPC.

Acresce que as restantes decisões proferidas pela mesma Relação não são de mérito, nem põem termo ao processo, como exige o artº 671º nº 1 do CPC para que haja lugar a recurso de revista.

Consigna-se ainda que tais decisões também não podem ser consideradas interlocutórias para os efeitos do nº2 do mencionado artº 671º, sendo que o acórdão final a proferir pela Relação, em abstracto, poderá ser objecto de recurso para este STJ.

Pelo que fica dito, as revistas não são admissíveis e consequentemente entende-se não se poder conhecer dos recursos interpostos por ambas as partes.

Nos termos do artº 655º do CPC, ouçam se as partes para se pronunciarem, querendo, no prazo de 10 dias.


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Nada dizendo, baixem os autos à Relação.».

12. Veio a A. pronunciar-se nos seguintes termos:

«1º Tem necessariamente a Autora que discordar da decisão proferida no V/ douto despacho, porquanto o recurso de revista interposto versa sobre matéria de direito vertida nas duas decisões expostas no acórdão recorrido (ref. ......46) proferido a 09/03/2023, o qual logrou improceder as questões prévias suscitadas pela Autora nas suas contra-alegações (ref. ......33) submetidas a 07/10/2021 (ref. ......47).

2º Em bom rigor o fundamento usado foi uma violação ou errada interpretação da lei do processo (art. 674, al. b do CPC) no que concerne aos atos praticados pelos Réus no seu articulado de recurso, concretamente dos ónus impostos pelos arts. 639.º n.º 1 e 640.º n.º 1 als. a) e b) do CPC.

3º Concretamente, a aqui recorrente alegou que os réus/apelantes não cumpriram com o dever de concluir de forma sintética os fundamentos por que pedem a alteração da decisão da primeira instância, bem como não indicaram os concretos meios probatórios que justificavam a alteração dos respetivos pontos da matéria de facto; e, ainda, pela inobservância do dever de deixar expressa a decisão alternativa que deveria ser proferida pelo Tribunal da Relação.

4º Salvo o devido respeito, que é muito, não se trata tal matéria de matéria de facto, mas sim, matéria de direito.

5º Parafraseando o Acórdão do STJ de 07-05-2009, Processo nº 08S3441: “I - A norma do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil (CPC), segundo a qual devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito, tem subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito. II - Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

6º Não atender à revista relegando as motivações e conclusões invocadas trata-se de uma omissão com a qual não nos podemos conformar, porquanto compromete um direito concebido legalmente à Recorrente.

7º Assim sendo, entende a Recorrente que apreciação do seu recurso é oportuno e processualmente adequado à luz dos princípios constitucionais como são da adequação, economia processual, legalidade, segurança jurídica e devido processo legal.

8º Não podendo pura e simplesmente ignorar-se tais fundamentos.

9º Uma nova apreciação do recurso, bem da presente exposição, levará certamente V. Exas a proferir decisão de admissão do recurso de revista da Autora, por efetivamente estarem preenchidos os requisitos legais aplicáveis, melhor descritos e enquadrados nas alegações oportunamente apresentadas.».

13. Os RR., por sua vez, vieram alegar o seguinte:

«1.º Discorda-se, desde logo, da posição do douto Tribunal quanto à proposta de não admissão do recurso de revista apresentado pela aqui Recorrente.

2.º Ora, salvo melhor opinião e, ao contrário do referido, as decisões alvo de recurso não contendem com a matéria de facto para a qual a repetição do julgamento se mostra necessária, possuindo já os autos todos os elementos necessários para as respetivas decisões, tratando-se, quanto às mesmas, de decisões de mérito.

3.º Cujo conhecimento pelo STJ até pode obstar, por serem questões prévias/prejudiciais, à necessidade de repetição do julgamento, caso venham a proceder e a entender-se que ocorre causa e absolvição dos Recorrentes da presente acção judicial, daí que a sua apreciação é oportuna e processualmente adequada à luz até dos princípios da adequação, colaboração e celeridade processuais.

4.º Mais, caso se entendesse não estarem preenchidos os requisitos do n.º 1 do artigo 671.º, n.º 1, sempre se teria de considerar que as mesmas constituem decisões interlocutórias, nos termos do n.º 2 do mesmo diploma, cuja recorribilidade não pode ser relegada para aquando do proferimento de uma (nova) decisão final em sede de primeira instância.

5.º Nos termos melhor desenvolvidos nas Alegações apresentadas, em rúbrica própria, que deverão ser reconsiderados pelo presente Tribunal Superior e impor decisão em sentido diversa da proposta.

6.º Mais: é a proposta de não admissão omissa quanto ao facto de o recurso também ter sido, adicionalmente, fundamento à luz do disposto nos artigos 629.º, n.º 2, al. a) e 671.º, n.º 2, alínea a) do CPC.

7.º Omissão essa que aqui vai invocada e é suscetível de gerar nulidade da decisão que vier a ser proferida, requerendo-se em consonância a apreciação da viabilidade do presente recurso por via destes normativos, nos termos previamente melhor desenvolvidos nas alegações de recurso.

8.º O mesmo se invocando/referindo, quanto ao pedido subsidiário deduzido, mormente o pedido formulado de que não sendo admitida a revista “normal”, como parece ser a intenção de V. Exias, que sempre deverá o recurso ser convolado em revista excecional, estando para isso, igualmente, verificados os respetivos pressupostos, que cumpre apreciar.

9.º Sendo certo que se atenderem aos mesmos – e/ou ordenarem a requerida convolação - certamente efetivamente proferirão decisão de admissão do recurso, por estarem preenchidos os requisitos, melhor descritos e enquadrados nas alegações de direito, da excecional admissibilidade do recurso de revista, designadamente, as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, nos termos que infra se consignam.

10.º Por fim, e caso assim não se entenda, o que apenas se admite em ultima ratio, a verdade é que conforme também alegaram os Réus nas suas alegações “Acórdão em crise é manifestamente nulo por omissão de pronúncia, uma vez que não apreciou várias questões que lhe foram oportunamente suscitadas (e que não se confundem com meros argumentos), nomeadamente a invocada nulidade por excesso de pronúncia da sentença proferida em primeira instância, a invocada causa de extinção da lide por impossibilidade superveniente (face ao falecimento posterior do 1.º Réu) e, por fim, mas não menos importante, a invocada falta de interesse processual. Nulidade essa – que caso o recurso não venha a ser conhecido – terá de ser apreciada pelo Tribunal que proferiu o Acórdão em causa, o que aqui vai à cautela invocado e sempre importará, em ultima ratio, a devolução dos autos ao mesmo para esse fim.”

11.º Pedido esse que vai aqui renovado e impõe igualmente decisão favorável aos aqui Recorrentes.».

II – Reapreciação da questão da admissibilidade dos recursos de ambas as partes

1. Estando em causa acórdão da Relação que decidiu «anular a totalidade da sentença proferida pela 1ª instância para ampliação da matéria de facto, e nessa medida decide-se devolver os autos à 1º instância, devendo-se apreciar a totalidade da matéria de facto controvertida acima referida e podendo-se apreciar outros pontos da matéria de facto para além da acima enunciada, com a finalidade de evitar contradições», é manifesto que a decisão recorrida não cabe no âmbito geral de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça tal como definido pelo n.º 1 do art. 671.º do CPC.

Desde já se esclarece que, não sendo o acórdão recorrível, por via normal, nos termos gerais do art. 671.º, n.º 1, do CPC, tampouco o será por via excepcional. Com efeito, de acordo com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso de revista unitário, a sua admissibilidade por via excepcional (art. 672.º do CPC) está condicionada pela verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade da revista, excepto no que se refere ao obstáculo da dupla conforme.

Ora, no caso dos autos, o acórdão recorrido não integra, como se viu, o âmbito do art. 671.º, n.º 1, do CPC, nem se verifica dupla conformidade entre a decisão da 1.ª instância (a sentença referida supra, no ponto 4 do relatório) e o dito acórdão.

2. De qualquer forma, e independentemente da qualificação ou não do acórdão recorrido como decisão interlocutória (cfr. art. 671.º, n.º 2, do CPC), nos termos do art. 629.º, n.º 2, do CPC, o recurso é sempre admissível:

«a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;

b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;

c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».

Importa, pois, apreciar a questão da admissibilidade dos recursos de ambas as partes à luz deste regime normativo.

3. No recurso de revista da A. não é invocado qualquer dos referidos fundamentos especiais de admissibilidade pelo que o recurso não é admissível.

4. Quanto ao recurso dos RR. e nos termos acima expostos, não sendo admissível por via normal (ao abrigo do art. 671.º, n.º 1, do CPC), tampouco o será por via excepcional.

Contudo, reportando-se ao âmbito do art. 671.º, n.º 2, do CPC, invocam os RR., como fundamento de admissibilidade, tanto a ofensa de caso julgado prevista no art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi art. 671.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código, como a contradição de julgados com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2021, proferido no Processo n.º 1193/07.1TBBNV.E1.S1, de que juntam certidão.

Há que considerar separadamente estes dois fundamentos.

4.1. Quanto ao primeiro fundamento – incorre o acórdão recorrido em ofensa de caso julgado na resolução da questão da invocada ilegitimidade passiva dos RR. por preterição de litisconsórcio passivo necessário –, analisada a fundamentação do acórdão, verifica-se que a questão em causa foi assim apreciada e decidida:

«C- No que concerne à invocada nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615 nº1 d) do Cpcivil quanto á ilegitimidade passiva dos réus por preterição do litisconsórcio necessário natural face á extinção da instância quanto ao 1º réu falecido na pendencia da acção, resulta que não existe nenhuma nulidade dado que o tribunal em sede de despacho saneador declarou que as partes são legítimas e após o falecimento do 1º réu determinou o prosseguimento dos autos tal como determinado no Acórdão da Relação relativamente à habilitação.

Invocam os réus que o predito Acórdão não teria abrangido a questão da legitimidade, mas apenas o aspecto da habilitação, sendo que, todavia, verifica-se que o Acórdão se pronunciou expressamente sobre a questão objecto destes autos («anulação das escrituras»).

Esse Acórdão relativo à habilitação e que determina o prosseguimento dos autos quanto aos réus e extinção quanto ao 1 réu, tem força de caso julgado formal nestes autos, decidindo dessa forma a questão atinente ao litisconsórcio necessário ao declarar de forma expressa que os autos prosseguem contra os réus.

Assim, improcede a invocada nulidade e ilegitimidade e preterição de litisconsórcio necessário.». [negritos nossos]

Verifica-se, pois, que o acórdão recorrido apreciou e decidiu a invocada questão com base na força de caso julgado formado com o acórdão da Relação de 03.06.2019 (cfr. supra, ponto 2 do relatório do presente acórdão).

Ora, de acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, a previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC (o recurso é sempre admissível, «[c]om fundamento (...) na ofensa de caso julgado»), apenas se refere à situação de alegada ofensa de caso julgado e não, como é o caso dos autos, à situação inversa em que decisão foi proferida com fundamento na força de caso julgado. Orientação que bem se compreende e acompanha porque só naquela primeira hipótese pode ocorrer ofensa de caso julgado.

O recurso dos RR. não é, pois, admissível com este fundamento.

4.2. Quanto ao segundo fundamento de admissibilidade invocado pelos RR. – incorre o acórdão recorrido em contradição de julgados na resolução da mesma questão (a invocada ilegitimidade passiva dos RR. por preterição de litisconsórcio passivo necessário) com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2021, proferido no Processo n.º 1193/07.1TBBNV.E1.S1, de que junta certidão – esclareça-se que, nas palavras de Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 58), «considerando que por via especial se concede à parte a possibilidade de aceder ao Supremo para resolver uma contradição jurisprudencial entre acórdãos da Relação, por motivos acrescentados se deve admitir o recurso de revista, ao abrigo da aludida previsão legal, quando esteja subjacente uma contradição entre o acórdão da Relação recorrido e um acórdão do Supremo que tenha apreciado a mesma questão essencial». Neste sentido, ver os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019 (proc. n.º 2822/18.7T8VNF.G1.S1) e de 21-06-2022 (proc. n.º 10217/20.6T8LSB.L2.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

A contradição invocada assenta no facto de, neste último acórdão, ter sido decidido (na síntese do ponto III do respectivo sumário), que, «[n]uma ação em que se pede que seja declarado nulo, por simulação, um determinado negócio e que seja ordenado o cancelamento do registo de hipotecas constituídas pelo adquirente simulador sobre esse imóvel, verifica-se uma situação de litisconsórcio necessário natural entre os contraentes do negócio simulado e os terceiros subadquirentes».

Mostra-se evidente a não verificação do invocado fundamento de admissibilidade, uma vez que, tendo o acórdão recorrido considerado que a referida questão da invocada ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo necessário fora decidida, com força de caso julgado, pelo acórdão da Relação de 03.06.2019 (cfr. supra, ponto 2 do relatório do presente acórdão), a contradição de julgados, a existir, seria entre este último acórdão da Relação e o invocado acórdão-fundamento e não entre o acórdão da Relação de 09.03.2023, ora recorrido, e o mesmo acórdão-fundamento.

Sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o recurso dos RR. também não é admissível por este fundamento.

5. Pelo exposto, decide-se:

a. Indeferir a impugnação da Autora, confirmando, com o mesmo fundamento, a decisão impugnada;

b. Indeferir a impugnação dos Réus, confirmando, com diferente fundamento, a decisão impugnada;

c. Nos termos previstos no art. 617.º, n.º 5, segunda parte, do Código de Processo Civil, determinar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para conhecimento das nulidades do acórdão recorrido arguidas pelos Réus.

Custas da impugnação da Autora pela impugnante, sem prejuízo do apoio judicial de que beneficie.

Custas da impugnação dos Réus pelos impugnantes.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023

Maria da Graça Trigo (Relatora por vencimento)

Catarina Serra

Afonso Henrique, com a declaração de voto que se segue.


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DECLARAÇÃO DE VOTO

Como decorre do projecto de acórdão por mim apresentado, na qualidade de primeiro relator, também concluímos pela inadmissibilidade dos recursos, de ambas as partes, mas por diversos fundamentos que aqui reproduzimos:

“(…)

Ao STJ não compete sindicar a matéria de facto, antes julga de revista, aplicando definitivamente o regime jurídico que julgue adequado – artº 682º nº 1 do CPC.

A excepção reside, unicamente, nos casos de violação do direito probatório material – artº 674º nº3 do CPC.

Se o STJ achar que a prova deve ser ampliada, nos termos do nº 3 do citado artº 682º do CPC, determina que o processo volte ao processo recorrido.

E foi o que se verificou, tendo este STJ decidido o seguinte (que aqui se acrescenta por constar do relatório do projecto inicial): «Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, anulando-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, ser apreciada a impugnação da matéria de facto e se conhecer as questões de Direito consideradas prejudicadas em função da decisão agora objecto de anulação.»

Como sabemos, e reforçando o que já dito sobre as recentes reformas do processo civil – cfr. a fundamentação do pretérito acórdão deste STJ / ponto II. -, o registo da prova veio permitir que, em regra, as Relações possam corrigir possíveis deficientes ou erradas valorações da prova carreada para os autos.

Significa isso que a anulação dos julgamentos deve constituir sempre um último recurso.

Como lembra o Conselheiro Abrantes Geraldes, “importa ainda notar que sempre que a Relação anule a sentença ou determine a ampliação da decisão da matéria de facto, o recurso que eventualmente venha a ser interposto da sentença que for de novo proferido será apresentado ao mesmo relator do anterior acórdão (artº 218º CPC)– in, Recursos em Processo Civil – 7ª edição actualizada, pags. 357 e 358.

Entendeu a Relação, no uso dos poderes que lhe são conferidos, nos termos do artº 662º nº 2 c) do CPC e com os fundamentos que acima repristinámos, anular o julgamento.

Acontece que essa decisão da Relação, compreensivelmente (por se tratar de matéria de facto), “não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” - artº 662º nº 4 do CPC.

Acresce que as restantes decisões proferidas pela mesma Relação não são de mérito, nem põem termo ao processo, como exige o artº 671º nº 1 do CPC para que haja lugar a recurso de revista, nem ainda podem ser consideradas interlocutórias para os efeitos do nº2 do mencionado artº 671º, sendo que o acórdão final a proferir pela Relação, em abstracto, poderá ser objecto de recurso para este STJ.

(…)”

Reputamos ser ainda de considerar que a solução adoptada, tem subjacente um pronunciamento do STJ, antes do integral cumprimento do previamente do ordenado pelo este STJ, e do próprio julgamento da causa estar realizado, uma vez que foi ordenada pela Relação a sua repetição, decisão esta, como dissemos, irrecorrível.

Afonso Henrique Cabral Ferreira