Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1558/22.9T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE AGÊNCIA
DOMICÍLIO
AGENTE
LEI ESTRANGEIRA
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
VALIDADE
EFICÁCIA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A noção de pacto atributivo de jurisdição previsto no art. 25º do Regulamento 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (que regula os requisitos de validade, formal e substancial, dos pactos de jurisdição celebrados entre as partes) é autónoma face aos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros (conforme interpretação desse normativo que o TJUE tem vindo a reiterar – sendo que a jurisprudência que se terá debruçado sobre os primitivos art. 17.º da Convenção de Bruxelas e art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001 se estende necessariamente ao actual art. 25.º do Regulamento 1215/2012).

II. A questão da interpretação, validade e eficácia de um pacto atributivo de jurisdição a tribunais de outros Estados-Membros da União Europeia não pode ser equacionada em função dos conceitos normativos das ordens jurídicas internas (designadamente (no caso) a espanhola), devendo ser apreciada à luz do art. 25.º do citado Regulamento.

III. De acordo com a legislação espanhola aplicável ao contrato de agência – Disposição Adicional segunda da Ley 12/1992, de 27 de mayo – a competência para o conhecimento das ações respeitantes a contratos de agência corresponde ao juiz do domicílio do agente, sendo nulo qualquer pacto em contrário.

IV. Porém, nada há, na referida Ley que permita concluir que o âmbito de aplicação de tal diploma legal abrange também matéria de atribuição de competência internacional, ou seja, que pretenda estabelecer um critério legal de atribuição de competência internacional à jurisdição espanhola.

V. A forma de compatibilizar a Disposição Adicional segunda da Ley 12/1992, de 27 de mayo com o art. 25.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 é considerar que o normativo previso na Ley espanhola, com aptidão para produzir efeitos na ordem jurídica interna espanhola, não é susceptível de ser transposto para as situações jurídicas plurilocalizadas ou transnacionais, situações a que deverá ser aplicado apenas o regime estatuído no Regulamento comunitário.

VI. O conceito de “invalidade substancial” contido no art. 25.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 deve interpretar-se em termos de não abranger a invalidade por violação das regras processuais do direito interno, designadamente por violação de regras de competência previstas na legislação interna dos Estados membros.

VII. Sendo a Disposição Adicional da Ley 12/1992 uma norma de cariz processual (e não de direito substantivo), a nulidade nela estatuída não assume, assim, aptidão para afastar a validade do pacto de jurisdição celebrado pelas partes à luz do citado art. 25.º do Regulamento.

VIII. Também na jurisprudência espanhola há convergência no sentido de que a Disposição Adicional da Ley 12/1992 não se assume como norma reguladora de competência internacional e de que, ademais, a mesma não se pode ter como vigente em face da aprovação posterior do Regulamento comunitário n.º 1215/2012.

IX. Esta é, de resto, a posição que mais se coaduna com as exigências de aplicação uniforme do direito da União Europeia que exige que o sentido e alcance dos normativos comunitários devem ser, por princípio, interpretados de modo autónomo face ao direito interno dos Estados membros e à luz do objectivo prosseguido pela regulamentação em causa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO

Recopel - Representação e Comércio de Peles, Lda., e AA, intentaram ação declarativa com processo comum contra Union For Leather SL, pedindo a sua condenação a:

A. “Ser a resolução do contrato de agência declarada ilícita, por não se ter verificado nenhuma das situações previstas na lei que permitam a resolução do contrato por tempo determinado antes do cumprimento do prazo estipulado;

B. Ser a Ré condenada ao pagamento de 53 738,33€ a título de comissões devidas aos Autores pelas vendas ocorridas durante a vigência do contrato,

C. Ser a Ré condenada ao pagamento de 7 981,68€ a título de comissões devidas aos Autores por contratos concluídos após a resolução do contrato de agência, mas que tiveram a intervenção dos Autores,

D. Ser a Ré condenada ao pagamento de 307 262,67€ a título de lucros que os Autores deixaram de obter face à resolução do contrato de forma antecipada, sem prejuízo de montante superior que se venha a apurar,

E. Ser a Ré condenada ao pagamento de 161 334,48€ a título de indemnização de clientela,

F. Ser a Ré condenada a pagar juros de mora calculados à taxa legal para as obrigações comerciais, vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento.”

Os AA. Alegaram, em suma que a R. tem estabelecimento/domicílio em Espanha e celebraram com ela um contrato de agência, que reduziram a escrito, pondo em causa a resolução do contrato e peticionando montantes que em seu entender estão em dívida, mais alegando que os tribunais portugueses são os competentes, conforme consta da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

A R. veio invocar a incompetência internacional do Tribunal para conhecer da matéria dos autos, invocando, em suma, que:

- As partes, de acordo com o princípio da autonomia da vontade que lhes assiste, em matéria de competência internacional, elegeram mediante pacto reduzido a escrito, os tribunais espanhóis para dirimir qualquer conflito resultante da relação contratual do respetivo contrato de agência.

- Foi na verdade estabelecido por acordo entre as partes – cláusula 18 do Contrato de Agência junto aos autos – como foro de jurisdição judicial em caso de interpretação, cumprimento e incumprimento do respetivo Contrato de Agência objecto dos autos, os tribunais em Espanha, mormente os Julgados de ....

- Tal acordo é válido à luz do art. 25º do Regulamento Europeu 1215/2012, pelo que o Tribunal da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de ... J ... - onde foi apresentada a presente ação - é incompetente para conhecer dos pedidos, impondo-se a sua absolvição da instância.

Os AA. responderam à excepção da incompetência internacional, alegando, em suma, que o art. 25.º do citado Regulamento ressalva que não será competente o tribunal escolhido pelas partes se, nos termos da lei desse Estado-Membro, tal pacto for nulo, situação em que o pacto atributivo de jurisdição não pode ser considerado.

Assim, sustentam os AA. que, analisada a lei espanhola, nomeadamente a disposição adicional segunda da Lei n.º 12/1992, de 27 de Maio, norma de carácter imperativo, as ações sobre contratos de agência têm de ser julgadas pelo tribunal do domicílio do agente e, qualquer pacto contrário é nulo. Concluem pela nulidade do pacto atributivo de jurisdição e pela competência dos tribunais portugueses.

Foi proferido o seguinte despacho:

“Pelo exposto, nos termos conjugados dos arts. 96°, ai. A); 99°, n.° 1; 278°, n.º 1, al. a); 576º, n.ºs 1 e 2; 577º, al. a); e 578º, todos do CPC e do Regulamento n.º 1215/2012, de 12/12/2012, julgo este Juízo Central Cível internacionalmente incompetente para conhecer da matéria em causa e, consequentemente, absolvo a R. da instância.”.


*


Inconformados, os Autores RECOPEL -REPRESENTEÇÃO E COMÉRCIO DE PELES, LDA e AA, vieram interpor recurso de Apelação, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a “julgar procedente o recurso e em revogar a sentença recorrida, julgando-se improcedente a exceção da incompetência internacional.”.

**


Vem, agora, a Ré/Recorrida interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

I. O presente recurso vem interposto do, aliás douto, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porro, que revogou o saneador/sentença proferido pela Mma. Juíza, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de ..., Juiz ... que determinou “os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento da matéria dos autos”.(douta sentença de instância)

II. Por considerar que o “ pacto atributivo de jurisdição por força do disposto no art. 25º 1 do Regulamento1215/2012 do Parlamento e do Conselho, por ser substancialmente inválido em face da legislação espanhola aplicável, por aplicação das regras gerais do mesmo Regulamento europeu por aplicação das regras gerais do mesmo Regulamento europeu, nomeadamente do artigo 1 al b), é de concluir que os tribunais portugueses têm competência para conhecer do presente litígio são os tribunais do Estado Português, por serem os tribunais do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.” (douto Acórdão)

III. Porquanto, entendeu o douto Tribunal da Relação do Porto que o pacto atributivo de jurisdição celebrado pelas partes e constante da cláusula 18ª do respetivo contrato de agência,

IV. Apesar de formalmente válido – matéria que se considera assim assente para todos os efeitos legais – é substantivamente inválido por violação da lei interna espanhola, Ley 12/1992, de 27 de mayo que estatui na sua Disposicion Adicional “La competencia para el conocimiento de las acciones derivadas del contrato de agencia corresponderá al Juez del domicilio del agente, siendo nulo cualquier pacto en contrario.”

V. Desde logo não se pode pois concordar com o respetivo aresto,

VI. Já que a aplicação da respetiva Disposicion Adicional da Ley 12/1992, de 27 de mayo é meramente interna no ordenamento jurídico espanhol e não de cariz internacional, mormente comunitário,

VII. Sendo contraditório inclusive na sua fundamentação o próprio Acórdão pois ora reconhece que Considerando que a Diretiva Comunitária 86/653/C.E.E. do Conselho de 18 de Dezembro de 1986 não contem qualquer norma que imponha a eleição de foro competente, o do domicilio do agente, temos de concluir que se trata de uma norma interna (de Direito interno espanhol),

VIII. Para posteriormente afirmar que se trata de uma norma reguladora da competência (interna e internacional) de origem nacional, a qual visando conferir uma maior proteção ao agente…”.(sublinhado nosso)

IX. Com efeito, a respetiva Ley 12/1992 é apenas uma norma de reguladora de competência interna do próprio direito espanhol, reitere-se, aplicável apenas no ordenamento jurídico espanhol e consequentemente a agentes espanhóis que e não quando intervêm outros agentes com domicilio noutros Estados Membros.

X. Não se pode, pois, atribuir eficácia internacional e mormente comunitária à referida lei espanhola Ley 12/1992 tanto mais que a mesma e apesar de transpor a respetiva Diretiva Comunitária nº 86/653/C.E.E. do Conselho de 18 de Dezembro de 1986, foi mais além do que a própria Diretiva impunha, nomeadamente na questão do foro do domicilio do agente.

XI. E só o foi, pois na transposição das respetivas diretivas comunitárias os Estados Membros gozam de alguma liberdade na sua transposição,

XII. O que já não acontece com os Regulamentos Comunitários que são de aplicação direta e sem necessidade de nenhuma transposição nos respetivos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Membros, uniformizando assim a respetiva legislação europeia como acontece com Regulamento Comunitário 1215/2012 de 12/12.

XIII. No caso sub judice a Disposicion Adicicional da Ley 12/1992 viola o estabelecido no próprio Regulamento Comunitário 1215/2012 de 12/12, não sendo de aplicar a mesma,

XIV. Atendendo inclusive ao próprio primado do direito comunitário face ao direito interno dos Estados Membros, tanto português como espanhol,

XV. Não sendo assim uma norma de competência judicial internacional de origem europeia, mas apenas uma mera norma de competência territorial interna.

XVI. Aliás conforme a própria jurisprudência espanhola - e já anteriormente referida e citada - tem sufragado, nomeadamente o Auto de La Audiencia Provincial de Barcelona.

XVII. Que de acordo com o principio lex posterior derogat priorem, derogación tácita de la ley anterior considera revogada a respetiva Disposicion Adicicional da Ley 12/1992.

XVIII. Destarte, o Tribunal da Relação do Porto ao reconhecer que a Ley 12/1992 é meramente uma norma interna (de Direito interno espanhol),

XIX. Não lhe pode pois atribuir posteriormente eficácia reguladora da competência internacional.

XX. A referida Ley 12/1992 apenas tem eficácia reguladora de competência interna.

XXI. Assim e em virtude da celebração do respetivo pacto de jurisdição – reitere-se

formalmente válido – os tribunais espanhóis, nomeadamente Julgados de ..., Espanha, são os tribunais com competência exclusiva para dirimir todas as questões relacionadas com o respetivo contrato de agência celebrado entre as Partes em estrito cumprimento do art 25º do do Regulamento Comunitário 1215/2012 de 12/12.

XXII. Quanto ao requisito substancial, reportado ao objeto ou conteúdo da cláusula atributiva de jurisdição, exige o citado art. 25.º que a mesma incida, com suficiente precisão, sobre uma relação jurídica específica, o que acontece nos presentes autos.

XXIII. Com efeito, o conceito de “invalidade substancial” contido no art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 não abrange a invalidade por violação da Ley 12/1992.

XXIV. A questão da interpretação, validade e eficácia de um pacto atributivo de jurisdição a tribunais de outros Estados-Membros da União Europeia não pode ser equacionada em função dos conceitos normativos da ordem jurídica interna, nomeadamente espanhola.

XXV. As disposições do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12-12-2012, incluindo o disposto no art. 25.º, têm prioridade sobre as normas de direito interno tanto português como espanhol.

XXVI. Sendo que na interpretação das normas sobre competência internacional, vale o princípio da interpretação autónoma relativamente aos ordenamentos jurídicos dos Estados Membros, tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa, e o da interpretação uniforme em toda a União Europeia, como forma de assegurar a aplicação uniforme do direito da União em todos os Estados-Membros e o princípio da igualdade entre todos os cidadãos da União.

XXVII. Assim e a aplicar-se a Disposicion Adiciional da Ley 12/1992, está-se, precisamente a violar o espírito europeu, reiterando-se que essa disposição tão pouco encontra qualquer enquadramento comunitário,

XXVIII. Uma vez que a Diretiva que esteve na base da Ley 12/1992 nada impunha quanto à limitação do foro de competência do agente,

XXIX. Sendo que a invocada e hipotética nulidade do pacto de jurisdição voluntária consta da Disposicion Adiciional e não do escopro da Ley 12/1992.

XXX. E mesmo se assim não se considerasse – ainda que por hipótese meramente académica – sempre seriam os tribunais espanhóis – Juizos de ... – a decidir a aplicação ou não a respetiva Ley 12/1992, inclusive nos termos do considerando 20º do respetivo Regulamento Comunitário 1215/2012 de 12/12,que estabelece: A questão de saber se o pacto atributivo de jurisdição a favor de um tribunal ou dos tribunais de um Estado-Membro é nulo quanto à sua validade substantiva deverá ser decidida segundo a lei do Estado-Membro do tribunal ou tribunais designados no pacto, incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado-Membro. (sublinhado nosso)

XXXI. A jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) é clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição (art. 23º do Regulamento 44/2001; art. 25º do Regulamento1215/2012) é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro

XXXII. Pelo supra exposto, resulta que o douto Tribunal da Relação do Porto não fez uma correta aplicação do art 25º do Regulamento Comunitário 1215/2012 de 12/12,

XXXIII. Sendo inclusive contraditória a sua fundamentação.

XXXIV. O que determina que decisão ora recorrida é assim nula nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, alínea c), do C.P.C., por contradição entre a fundamentação e a decisão ali proferida.

XXXV. Com efeito, julgando-se validamente o respetivo pacto de jurisdição celebrado pelas partes em cumprimento do art 25º do Regulamento 1215/2012, o mesmo afasta desde logo o respetivo artigo 7º n.º 1 do mesmo diploma.

XXXVI. O que se conclui assim – como em primeira instância - que o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de ..., Juiz ... é internacionalmente incompetente para conhecer os presentes autos.

XXXVII. Deverá assim ser o presente recurso julgado procedente por provado, revogando-se o aresto recorrido por violação de lei substantiva e errada aplicação de lei processual, particularmente por violação do artigo 25º do Regulamento 1215/2012, artigos 651º e 94º do Código de Processo Civil e 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

XXXVIII. Subsidiariamente e sem conceder, para a eventualidade de entenderem Vossas Excelências, Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça que existe dúvida sobre a possibilidade de invocação de direito nacional para aferir da formação da vontade negocial ao abrigo do artigo 25º do Regulamento (CE) Comunitário 1215/2012 de 12/12., entende a Recorrente que a pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso sub judice, nos termos do artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, será indispensável para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objeto da presente ação.

XXXIX. Por essa razão, requer-se seja suspensa a presente instância até que o TJUE se pronuncie, a título prejudicial, expressa e especificamente, sobre a seguinte questão:

I. O Regulamento (CE) 1215/2012 de 12/12 obsta à aplicação de normas de direito interno para efeito de controlo da validade do acordo de vontades que determinou a inserção de pacto de jurisdição num contrato de agência? Mais concretamente:

II. O Regulamento (CE) 1215/2012 de 12/12 obsta à aplicação de normas de direito interno cuja previsão estatui a nulidade de qualquer pacto de jurisdição que não seja o domicílio do agente?

Termos em que se requer a V. Ex.as Ex.mos Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal de Justiça,

a) Se dignem dar provimento ao presente recurso de Revista e, em consequência revogar-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, mantendo o saneador/sentença proferido pelo Tribunal de Primeira Instância que julgou procedente a exceção da incompetência internacional,

b) Subsidiariamente e subsistindo dúvidas acerca da aplicação do regime contido no Regulamento (CE) nº 44/2001, deverá o douto Tribunal recorrer ao mecanismo do reenvio prejudicial para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objeto da presente ação.

Assim se fazendo Justiça!


**


Responderam os Autores, concluindo que o recurso deve improceder, com a manutenção do acórdão recorrido.

*


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

**


II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

A ré Union For Leather SL assenta o recurso de revista nos arts. 671.º, n.º 1 e 629.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, prescrevendo esta alínea a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso com fundamento em violação das regras de competência internacional.

Como anota ABRANTES GERALDES, “independentemente do valor do processo ou da sucumbência, é sempre admissível recurso, nos diversos graus de jurisdição, quando tenha por objeto a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada a violação das regras de competência absoluta, revelando o interesse público inerente ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição (competência internacional)1, não relevando o sentido da decisão que tenha sido proferida.

Assim, considerando que o âmbito de cognoscibilidade do presente recurso se circunscreve à apreciação da matéria relacionada com a invocada violação das regras de competência internacional, à luz do disposto no aludido art. 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC, é admissível o presente recurso de revista.


**


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão decidenda consiste em saber se o tribunal português é (ou não) internacionalmente competente para conhecer da matéria dos autos.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

Com relevância para a decisão da questão suscitada nos autos, foi dada como assente nas instâncias a seguinte factualidade:

- A R. tem domicílio em Espanha;

- As partes celebraram um contrato escrito (cfr. doc. 2 da PI e tradução de 03/11/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), que designaram de agência, e no qual estabeleceram na cláusula 18ª que:

“18. JURISDIÇÃO

18.1 Para todas as questões que se suscitem entre as partes por causa do estipulado neste contrato, cumprimento ou incumprimento das obrigações contraídas no mesmo, serão competentes os tribunais de ..., aos quais as partes se submetem expressamente.

18.2 E em prova de conformidade, as partes assinam o presente documento em duplicado, para os devidos efeitos, em ... a 22 de dezembro de 2020, ficando sem efeito qualquer acordo assinado anteriormente que é cancelado e substituído pelo presente.”.


**


III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

No presente caso, em que se discute a licitude da resolução do contrato de agência celebrado entre as partes, estas acordaram (como consta da factualidade assente), na cláusula 18.ª do referido contrato, que:

Todas as questões que se suscitem entre as partes por causa do estipulado neste contrato cumprimento ou incumprimento das obrigações contraídas no mesmo, serão competentes os tribunais de ..., aos quais as partes se submetem expressamente.”.

Tal convenção consubstancia um verdadeiro pacto privativo de jurisdição inserto no contrato de agência celebrado entre as partes, na medida em que as partes, ao atribuírem competência exclusiva aos tribunais espanhóis, privaram os tribunais portugueses da competência legal que eventualmente lhes fosse concedida.

A este propósito, esclarece Paula Costa e Silva, que “a distinção dos pactos de jurisdição em privativos e atributivos é geograficamente situada, porque caberá a cada Estado determinar as competências próprias, quer sejam legais, quer sejam convencionais. Assim, é da perspectiva do Estado português que o pacto se qualifica como privativo (quando retira jurisdição aos tribunais portugueses) ou atributivo (quando atribui jurisdição aos tribunais portugueses).”2

Invocada que foi a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da causa, entendeu o tribunal da primeira instância estarmos perante uma situação jurídica plurilocalizada, de natureza transnacional, susceptível de ser objecto de um pacto de jurisdição, nos termos do art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (doravante, designado apenas por Regulamento n.º 1215/2012). Concluiu, a esse propósito, que em termos de cláusula quanto ao foro, o Tribunal apenas tem de apreciar a sua parte formal, não cabendo apreciar a matéria substantiva ou a eventual aplicação da lei espanhola. Invocando jurisprudência nacional, concluiu que a noção de pacto de jurisdição é autónoma relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros e que a apreciação da validade de tal pacto se deverá fazer exclusivamente à luz do disposto no art. 25.º daquele Regulamento n.º 1215/2012.

Afirmou o tribunal de primeira instância, por fim, que a cláusula de foro estabelecida observou as exigências de forma previstas em tal norma e que respeitou a uma relação jurídica específica, concluindo pela sua validade.

o Acórdão recorrido, aqui sob revista, teve outro entendimento, cuja fundamentação sumariou desta forma:

I - Os tribunais portugueses estão vinculados a regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que, no seu campo específico de aplicação, gozam de prevalência aplicativa sobre as normais processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.

II - Uma situação jurídica plurilocalizada e transnacional pode ser objeto de pacto atributivo de competência nos termos do art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012».

III - O Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 faculta a derrogação dos critérios gerais aí enunciados em matéria de competência internacional, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes, concedendo a estas o primado na escolha da jurisdição em função da celebração entre elas de um pacto, autonomizando-o e reforçando a sua proteção jurídica, exigindo apenas para tanto a existência de um acordo de vontades, formalmente válido e substancialmente válido (sendo esta validade substancial apreciada á luz da legislação do Estado membro a quem é atribuída a competência internacional).

IV - Tendo as partes, convencionado um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais do Estado Espanhol, integrado no contrato de agência, tal pacto, apesar de formalmente válido, é substancialmente inválido, em face da lei espanhola aplicável– lei do tribunal convocado – pelo que, nos termos do art. 25º do Regulamento 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 tal pacto não é suscetível de produzir efeitos jurídicos.

V - Face à invalidade do pacto, há que recorrer aos critérios gerais do (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 de atribuição de competência internacional, sendo competentes os tribunais portugueses, por ser o tribunal onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, nos termos do art. 7.º do aludido Regulamento.”.

O Tribunal da Relação do Porto, defendendo que o art. 25.º do Regulamento 1215/2012 passou a exigir um requisito de natureza substancial quando aí se escreve “a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-membro, substancialmente nulo concluiu que a Disposição Adicional segunda da Ley 12/1992, de 27 de mayo, sobre Contrato de Agência, comina de nulidade os pactos de jurisdição que afastem a regra de que as ações sobre contratos de agência têm de ser julgadas no tribunal do domicílio do agente. Nesta medida, como no caso concreto Espanha não é o país do domicílio do agente, o tribunal recorrido concluiu pela nulidade substantiva do pacto de jurisdição em causa nos autos por ser contrário à norma imperativa de competência (que entendeu ser interna e internacional) prevista na lei espanhola. Assim, por aplicação das regras gerais do Regulamento 1215/2012, nomeadamente do art. 7.º, n.º 1, al. b), concluiu o Acórdão do Tribunal da Relação que os tribunais portugueses têm competência para conhecer do presente litígio.

Vejamos se assim é.


*


O caso em apreciação move-se no âmbito da responsabilidade contratual, estando em causa a apreciação da licitude da resolução do contrato de agência celebrado entre as partes.

Resulta do referido contrato que a autora (o agente) tem sede em Portugal e a Ré tem sede em Espanha, sendo que o contrato foi celebrado em ..., Espanha e o agente se obrigou a desenvolver a sua actividade em Portugal (cfr. cláusula 2.ª).

Um tribunal será internacionalmente competente quando pode exercer a função jurisdicional relativamente a uma situação que apresenta contactos juridicamente relevantes com mais de um Estado.

No caso concreto, como vimos, as partes estipularam, na cláusula 18.ª do contrato, que “Todas as questões que se suscitem entre as partes por causa do estipulado neste contrato cumprimento ou incumprimento das obrigações contraídas no mesmo, serão competentes os tribunais de ..., aos quais as partes se submetem expressamente.”.

A este propósito, dispõe o art. 59.º do CPC que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.”

O preceito acabado de citar reconhece o primado do direito internacional sobre as normas internas reguladoras da competência internacional, pelo que, atenta a natureza plurilocalizada e transnacional da relação jurídica que opõe as partes em litígio, à luz do que dispõe o citado art. 59.º do CPC, importa, antes de mais, identificar os instrumentos de direito internacional aplicáveis ao caso concreto, a fim de se aferir da validade do pacto de jurisdição convencionado e, consequentemente, da competência internacional dos tribunais portugueses.

Ora, atento o objecto da presente ação e o âmbito temporal e espacial a que se reporta, é aplicável o regime estatuído no Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

Quanto à problemática em discussão, reza o art. 25.º do referenciado Regulamento, sob a epígrafe “extensão de competência”:

1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou

c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.”3.

2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».

3. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.

4. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.o, 19.o ou 23.o, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.º.

5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.

A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.”.

Escreve SOFIA HENRIQUES4 que este preceito legal “é a disposição fundamental para a compreensão do papel da autonomia privada na individualização da jurisdição competente para resolver o litígio. Esta norma permite às partes designarem o tribunal competente para julgar um determinado litígio que as opõe ou que eventualmente as virá a opor.”.

O TJUE tem vindo a reiterar a interpretação de que a noção de pacto atributivo de jurisdição previsto neste preceito legal (a jurisprudência que se terá debruçado sobre os primitivos art. 17.º da Convenção de Bruxelas e art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001 estende-se necessariamente ao actual art. 25.º do Regulamento 1215/2012) é autónoma face aos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros.5

Nestes termos, o disposto no art. 25.º do Regulamento prevalece sobre regras de direito interno que possam fixar requisitos mais exigentes de forma dos pactos de jurisdição, o que já foi afirmado pelo TJUE, a propósito do artigo correspondente na Convenção de Bruxelas, no Acórdão Soc. Elefanten Schuh mbH c. Jacmain de 24-06-1981, Proc. n.º 150/806.

Idêntica posição é salientada por LIMA PINHEIRO, quando escreve que a jurisprudência do TJUE é inequívoca “quanto à inaplicabilidade aos pactos de jurisdição regidos pelas disposições em causa da Convenção de Bruxelas e dos Regulamentos de quaisquer limitações aos pactos de jurisdição estabelecidos pelo Direito interno dos Estados Membros e que os Estados Membros não podem exigir outras exigências de forma além das previstas nessas disposições”.7.

Tal entendimento encontra ainda apoio em MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA que também defende que “os requisitos de validade da convenção de competência só podem ser aqueles que constam do art. 17.º CBrux (agora do art. 23.º Reg. 44/2001 e, a partir de 10/01/2015, do art. 25.º do Reg. 1215/2012, pelo que o direito dos Estados membros não pode acrescentar outros requisitos de validade a essa convenção8.

Este entendimento surge, ainda, plasmado, de forma clara, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-07-20209, em cujo sumário se escreve:

“I. A questão da interpretação, validade e eficácia de um pacto atributivo de jurisdição a tribunais de outros Estados-Membros da União Europeia não pode ser equacionada em função dos conceitos normativos da ordem jurídica portuguesa, devendo, nas ações instauradas a partir de 10 de janeiro de 2015, ser apreciada à luz do art. 25.º do Regulamento ( EU) n° 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

I. No que concerne à validade de um pacto atributivo de jurisdição, o artigo 25° do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 estabelece, essencialmente, dois requisitos de forma e um requisito substancial.

I. Entre os requisitos formais, conta-se, por um lado, a exigência de celebração por escrito ou por forma equivalente à «forma escrita» [n.º 1 als. a), b) e c) e n.º 2, do citado artigo 25.º], ditada pela necessidade de proteção da parte contratante mais fraca, evitando-se que cláusulas atributivas de jurisdição, introduzidas num contrato por uma única das partes, passem despercebidas.

IV. Quanto ao requisito substancial, reportado ao objeto ou conteúdo da cláusula atributiva de jurisdição, exige o citado artigo 25.º que a mesma incida, com suficiente precisão, sobre uma relação jurídica específica.

V. O conceito de “invalidade substancial” contido no artigo 25.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 não abrange a invalidade por violação das regras processuais do direito interno português relativas ao litisconsórcio necessário natural e estabelecidas nos artigos 30°, n° 3 e 33°, n°s 2 e 3, do Código de Processo Civil.

VI. O artigo 25° do Regulamento (UE) n° 1215/2012, prevalece sobre as normas atinentes ao litisconsórcio necessário natural, previstas nos artigos 30°, n° 3 e 33°, n°s 2 e 3, do Código de Processo Civil Português.

VII. As normas relativas ao litisconsórcio necessário, estabelecidas nos artigos 30°, n° 3 e 33°, n°s 2 e 3, do Código de Processo Civil, não afastam a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição que cumpra os requisitos formais e substancial estabelecidos no artigo 25° do Regulamento (EU) n° 1215/2012, não se permitindo, por isso, que a parte que deveria ser demandada no tribunal de um outro Estado-Membro da União Europeia, de acordo com o que foi convencionado, possa ser demandada em Portugal em virtude da autora ter configurado a ação em termos que exigem a demanda de um terceiro estranho ao pacto de jurisdição.” (destaque nosso).

No sentido de que as disposições do Regulamento n.º 1215/2012 têm prioridade sobre as normas internas de natureza processual, e de que não exigem a existência de uma conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, veja-se, ainda, com relevo para a análise da questão sub judice, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-05-201910, em cujo sumário se escreve:

I. — As disposições do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, incluindo a disposição do art. 25.º, têm prioridade sobre as disposições do Código de Processo Civil.

II. — As situações jurídicas plurilocalizadas, desde que transnacionais, podem ser objecto de pactos atributivos de jurisdição, nos termos do art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

III. — A validade dos pactos atributivos de jurisdição concluídos ao abrigo do art. 25.º do Regulamento é independente de qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, “não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado a que o direito interno confira relevo”.

IV. — Entre os requisitos essenciais para que um pacto de jurisdição concluído ao abrigo do art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 seja substantivamente válido está o de que designe, com suficiente determinação, duas coisas — a relação jurídica e o tribunal em que as questões emergentes da relação jurídica designada hão-de ser apreciadas e decididas.

V. — Entre os requisitos essenciais para que um pacto de jurisdição seja substantivamente válido não está, em todo o caso o de que o tribunal designado tenha alguma conexão objectiva com a relação jurídica designada, com os seus sujeitos ou com o seu objecto.

VI. O conceito de invalidade substancial do art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 deve interpretar-se em termos de não abranger a invalidade por violação das regras de competência interna e, designadamente, das regras de competência interna dos arts. 94.º, 95.º e 104.º do Código de Processo Civil.” (destaque nosso)11.

E com idêntica linha argumentativa e concluindo no sentido de afastar o regime legal interno – normas de direito material e já não meramente processual – para aferir da validade de um pacto de jurisdição, veja-se também o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-05-202312, em cujo sumário se escreveu, na parte para aqui relevante:

“(….) V. E dentro prevalência e autonomia do direito comunitário em relação ao direito interno nacional, numa emanação do respeito do princípio da autonomia da vontade das partes na estipulação da competência internacional, encontram-se os pactos atributivos de jurisdição, cuja noção e disciplina se encontra atualmente, e a partir de 10-01-2015, consagrada no art. 25.º Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, e cujo âmbito de aplicação se estende a situações jurídicas plurilocalizadas e transnacionais, que envolvam pelos menos um dos Estados-Membros da União Europeia.

VI - A validade da convenção das partes atributiva dessa competência a um dos tribunais dos Estados Membros da EU não depende de uma conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado ou do motivo da escolha, devendo ser tão somente, em regra, ser aferida à luz dos requisitos específicos formais e materiais plasmados no citado art. 25.º daquele Regulamento.

VII - A essa luz, e sob pena de violação do princípio do primado do direito da União Europeia sobre o direito interno nacional, é inaplicável a tais pactos atributivos de jurisdição o RCCG, e particularmente quando neles não intervenham ou estejam em causa interesses de consumidores, sendo ainda, assim, e nessa medida, de desconsiderar, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, advenientes da localização do foro convencionado.

VIII - Dessa decorrência, é válida a cláusula convencional inserida num contrato escrito, que tinha como objeto o fornecimento de material software, celebrado, em 2019, entre duas sociedades comerciais, uma com sede em Portugal e outra com sede em ..., através da qual estabeleceram como competentes, para conhecer de qualquer litígio emergente desse contrato, os tribunais do Reino Unido, e mais concretamente os tribunais da cidade ..., mesmo que porventura não tivesse sido objeto de prévia de negociação ou dela advenha eventual inconveniente para uma das partes adveniente da localização do foro escolhido.

IX - Pacto atributivo de jurisdição esse que se rege pela disciplina do citado art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

X - À luz desse pacto de jurisdição, e de tal Regulamento, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar a ação instaurada, em 01-07-2020, pela sociedade sedeada em Portugal contra a outra sociedade sedeada em ..., com vista a obter tutela judicial para pretensão nela formulada com base no alegado incumprimento pela segunda do aludido contrato, encontrando-se essa competência deferida aos tribunais do Reino Unido, e particularmente de ..., ainda que essa ação fosse intentada já no período de transição acordado para saída de tal país da União Europeia.

XI - A interpretação feita não afronta os princípios constitucionais do direito à igualdade e de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva consagrados, respetivamente, nos arts. 13.º e 20.º, n.º 1, da CRP.”.


*


É esta a posição que tem vindo a ser predominante na jurisprudência do TJUE e do STJ, nelas parecendo claro o entendimento de que o art. 25.º do Regulamento regula os requisitos de validade, formal e substancial, dos pactos de jurisdição celebrados entre as partes, não havendo que convocar, em regra, para efeitos de apreciação dessa validade, normas de direito interno.

É nesta asserção que se concretizará, de forma plena, o primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional dos Estados membros (previsto no art. 8.º, n.º 4 da CRP).

Acrescenta, ainda, LIMA PINHEIRO13, que “parece claro quanto à admissibilidade, forma e aspetos da formação do consentimento regulados diretamente, que não há lugar para a atuação do Direito de Competência Internacional de fonte interna e do Direito de Conflitos dos Estados-Membros”.


**


Regressemos ao caso concreto.

No caso sob apreciação, não está em causa – nem as partes o discutem – a validade formal do pacto de jurisdição, não havendo, assim, necessidade de discorrer sobre o preenchimento (que se tem, de resto, por demonstrado) dos requisitos de ordem formal previstos nas três alíneas do n.º 1 do art. 25.º do Regulamento.

Sucede que este preceito legal, para além dos aludidos requisitos de forma, prescreve um novo comando de controlo de validade substantiva do pacto ao introduzir a expressão (que não existia na redação do art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001): “a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-membro, substantivamente nulo.”.

Procurando fazer a concretização da aferição da validade substantiva do pacto de jurisdição, o considerando (20) do Regulamento esclarece que “a questão de saber se o pacto atributivo de jurisdição a favor de um tribunal ou dos tribunais de um Estado-Membro é nulo quanto à sua validade substantiva deverá ser decidida segundo a lei do Estado-Membro do tribunal ou tribunais designados no pacto, incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado-Membro.”

A este propósito, esclarece, com toda a pertinência, RUI VOUGA (Revista do CEJ)14:

“… o legislador europeu resolve, assim, uma controvérsia que só tinha podido nascer devido ao silêncio da Convenção de Bruxelas e do Regulamento n.º 44/2001 sobre este ponto.

Na vigência destes dois textos, hesitava-se entre a aplicação: i) da lei material do juiz demandado (=Lex materialis Fori); ii) do direito internacional privado do país cujos tribunais conhecem da questão (=Lex Formalis Fori); iii) da lei escolhida pelas partes para reger a convenção ou pelo menos a cláusula atributiva de competência; iv) da lei do país cujos tribunais foram designados na cláusula.”

No que se deve entender por nulidade substantiva” do pacto de jurisdição, prossegue RUI TORRES VOUGA, desta forma densificando o aludido pressuposto de validade:

A validade dum pacto de jurisdição inclui todas as questões que afec­tam a força vinculativa desta convenção: i) fundamentos de nulidade ex lege, incluindo a falta de requisitos formais e, especificamente, fundamentos de invalidade dos pactos de jurisdição destinados a proteger as partes mais fra­cas (cfr. as disposições visando proteger os segurados, os consumidores e os trabalhadores contidas nas secções 3 [artigo 15.º], 4 [artigo 19.º] e 5 [artigo 23.º] do Capítulo II do Regulamento n.º 1215/2012) ou ii) políticas fortes, fundamentos de resolução do pacto e, eventualmente, iii) todas as questões relativas à formação e existência do pacto, em especial o necessário con­sentimento das partes (visto que, se, antes de mais, não existir o acordo das partes, ele não possui naturalmente nenhuma força vinculativa, tal como não tem nenhuma força vinculativa um pacto que, embora exista, é nulo e de nenhum efeito).”

Na vigência do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001, como este não continha nenhuma regra de conflitos de leis em matéria de nulidade do pacto de jurisdição, o entendimento prevalecente era o de que, se os requi­sitos formais exigidos estivessem preenchidos, isto era tomado como uma indicação dum consentimento suficiente.

Por sua vez, os tribunais tendiam a ser restritivos na aprovação da forma do pacto, precisamente porque a forma era em si mesma uma indicação do consentimento das partes.

Além disso, a palavra “convencionado” usada no artigo 23.º do Regula­mento n.º 44/2001 era tomada como um sinal da exigência dum patamar mínimo autónomo para o consentimento. Dentro desta interacção entre a forma e o consentimento, teria sido plausível excluir qualquer recurso adicional ao direito interno para avaliar o consentimento.

No entanto, muitos tribunais dos Estados-Membros não deixaram de recorrer ao direito interno e, por esta via, acabaram por seleccionar de modo diverso a lei nacional aplicável.

O legislador do Regulamento Bruxelas I revisto quis resolver este pro­blema e, nesse desiderato, copiou a regra de conflitos de leis para a nuli­dade instituída na Convenção de Haia de 2005 sobre os acordos de eleição de foro.

O legislador europeu explicou (no considerando 20 do preâmbulo do Regulamento n.º 1215/2012) que esta regra de conflitos de leis respeita tão só à “validade substantiva” (a capacidade, a representação e os efeitos relativamente a terceiros não estão aqui compreendidos, porque estas ques­tões não estão abrangidos pela regra de conflitos da referida Convenção). Do mesmo modo, a interpretação do pacto não está coberta pela mencio­nada regra de conflitos.

Mas o legislador do Regulamento n.º 1215/2012 não explicou se a cir­cunstância de ter sido copiada a aludida regra de conflitos de leis implica que o anterior nexo entre a forma e o consentimento também deva ser mo­dificado e reformulado.

(…)

O inciso que consta deste artigo 25.º, n.º 1, “a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo” levanta um problema de conflito de leis: ao estabelecer que a apreciação da validade substancial (i. é quanto ao fundo) do pacto deve ser feita segundo o direito do Estado-Membro designado pelas partes, o legislador do Regulamento pretendeu exigir a aplicação do direito substancial ou das regras de confli­tos de leis do Estado designado?

O preâmbulo do Regulamento n.º 1215/2012 precisa (no considerando 20) que a questão da validade substancial da cláusula atributiva de com­petência deve ser decidida aplicando a lei do Estado-Membro designado no pacto, «incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado-Membro». Ao dispor implicitamente que a lei aplicável em matéria de validade substan­cial do pacto de jurisdição é competente no seu conjunto, isto é, incluindo as regras de conflitos de leis do Estado-Membro designado, o mencionado Considerando 20 consagra - aparentemente - a aplicação, nesta sede, do mecanismo de reenvio.

Como bem observa Arnaud Nuyts, isto é, de alguma maneira, uma apli­cação da teoria do reenvio: «o juiz deve ter em conta o conjunto da ordem jurídica da lei designada, o qual pode compreender ele próprio uma regra de conflitos designando uma outra lei que não a do juiz eleito para determinar a validade substancial da cláusula» (destaques nossos).


*


Aplicando as considerações teóricas acabadas de tecer à situação dos autos, importa, pois, em obediência ao comando do art. 25.º, n.º 1 do Regulamento, apreciar a validade substancial do pacto de jurisdição convencionado pelas partes oponentes do litígio aplicando, para o efeito, a lei do Estado membro designado, isto é, a lei espanhola.

Ora, de acordo com a legislação espanhola aplicável ao contrato de agência – Disposição Adicional segunda da Ley 12/1992, de 27 de mayo15 – a competência para o conhecimento das ações respeitantes a contratos de agência corresponde ao juiz do domicílio do agente, sendo nulo qualquer pacto em contrário.

Aplicando o normativo acabado de citar à situação em causa nos autos, o tribunal recorrido concluiu que “como, no caso concreto, Espanha não é o país do domicílio do agente, tal pacto atributivo de jurisdição é nulo e o Tribunal espanhol não é competente.”.

Com efeito, a conclusão assim firmada no acórdão recorrido parte do pressuposto, por um lado, de que a referida disposição da lei espanhola se assume como uma norma imperativa reguladora de competência interna e internacional e, por outro lado, que a mesma tem plena aplicabilidade ao caso sub judice.

Não nos parece que a Relação tenha razão.

Em primeiro lugar, cumpre atentar na natureza do normativo contido na referida lei espanhola.

Sobre esta questão, o tribunal recorrido entra em aparente contradição quando começa por concluir que aquela disposição “é uma norma interna (de Direito interno espanhol)” e, mais à frente na sua motivação, refere tratar-se “de uma norma reguladora da competência (interna e internacional)”, sem que fundamente, de forma clara, esta última asserção.

Se nos parece evidente que o estatuído na Disposição Adicional da Ley 12/1992 é uma norma de competência territorial interna, a produzir efeitos no âmbito do direito interno espanhol, o mesmo não sucede quanto à proclamada vocação internacional do mesmo normativo.

Com efeito, nada há, na referida Ley, que permita concluir que o âmbito de aplicação do referido diploma legal abrange também matéria de atribuição de competência internacional, ou seja, que pretenda estabelecer um critério legal de atribuição de competência internacional à jurisdição espanhola.

Conforme reconhecido pelo acórdão recorrido, a Ley 12/1992, relativa ao contrato de agência, resultou da transposição para ordem jurídica interna espanhola da Directiva Comunitária n.º 86/563/CEE, do Conselho, de 18-12-1986 (que foi igualmente transposta para a nossa ordem jurídica através do Decreto-lei n.º 178/86, de 3 de julho).

Compulsado, porém, o texto integral da referida Directiva, constata-se que a mesma não contém qualquer norma com pretensão de regular a competência territorial – seja interna, seja transnacional – dos litígios relativos a relações contratuais de agência, única via através da qual se admitiria a vocação internacional da norma reguladora da competência. Não existindo nenhum comando comunitário nesse sentido, não há senão como concluir que o âmbito de aplicação do referido normativo tem cariz meramente interno.

De resto, é o que começa por concluir o tribunal recorrido quando refere:

Considerando que a Diretiva Comunitária n.º 86/653/CEE do Conselho de 18 de Dezembro de 1996 não contem qualquer norma que imponha a eleição do foro competente, o do domicílio do agente, temos de concluir que se trata de uma norma interna (de direito interno espanhol) (…)”.

No mesmo sentido, veja-se o que se escreve na sentença da Audiencia Provincial de Santa Cruz de Tenerife de 10-09-2001:

(…) hay que insistir en este sentido que la Disposición Adicional de la Ley citada -no integrada en el conjunto normativo que regula la extensión y los límites de la jurisdicción española-, no parece que constituya una norma delimitadora de tal competencia, sino que, como se ha señalado y presuponiendo esta jurisdicción, lo que establece es el fuero imperativo del domicilio del agente como criterio distribuidor de la competencia propiamente dicha; es decir, se limita a establecer un fuero de competencia territorial pero no un criterio de atribución de la competencia internacional a la jurisdicción española.”.

Temos, assim, que o referido normativo, de direito interno espanhol, não tem aplicabilidade ao caso que nos ocupa, que assume natureza transnacional, já que uma das partes do contrato reside num outro Estado membro da União Europeia.

A natureza internacional do litígio convoca, pois, para efeitos de apuramento da competência do tribunal em razão da nacionalidade, a aplicação imperativa do regime previsto no Regulamento n.º 1215/2012 – que, no caso, é, de resto, contraditório com o estatuído na citada Disposição Adicional da Ley 12/1992.

Efectivamente, o Regulamento n.º 1215/2012 demanda a aplicação das regras comuns em matéria de competência judiciária aí previstas e, em conformidade com o que se escreve no considerando (19), pressupõe, em regra, a autonomia das partes quanto à escolha do tribunal competente, sem prejuízo das competências exclusivas definidas no Regulamento.

O disposto no art. 25.º dá voz a esse mesmo desiderato, na medida em que concede às partes a ampla liberdade de, independentemente do seu domicílio, convencionarem que um tribunal de um Estado membro tem competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica. Pelo contrário, a Disposição Adicional da Ley 12/1992 que vimos analisando impede, em absoluto, a existência de pactos de jurisdição que atribuam competência a outro tribunal que não o do domicílio do agente.

Não se aceita, assim, a solução da decisão recorrida, já que a consequência do entendimento aí vertido passa pelo afastamento liminar e automático do regime vertido no citado art. 25.º do Regulamento comunitário sempre que estejam em causa litígios decorrentes da celebração de contratos de agência, em que uma das partes tenha domicílio em Espanha e em que tenha sido celebrado um pacto de jurisdição a afastar a regra da competência (internamente estabelecida) do domicílio do agente. Ora, uma tal solução parece afrontar o princípio do primado do direito da União Europeia sobre os direitos internos dos Estados membros e o disposto no art. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (segundo o qual “o regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados membros.”).

A única forma de, no caso, compatibilizar os dois regimes é, pois, considerar que o normativo previso na Ley espanhola, com aptidão para produzir efeitos na ordem jurídica interna espanhola, não é susceptível de ser transposto para as situações jurídicas plurilocalizadas ou transnacionais como é o caso sob apreciação, ao qual deverá ser apenas aplicado o regime estatuído no Regulamento comunitário.

É certo que, segundo o acórdão recorrido, a solução defendida encontra apoio no próprio art. 25.º do Regulamento, já que este instrumento remete expressamente para a lei interna dos Estados membros – neste caso, a lei espanhola – quando determina que o pacto de jurisdição é válido, a menos que este seja, nos termos da lei do Estado membro a quem foi atribuída a competência para decidir o litígio, “substantivamente nulo”.

Sucede, porém – e aqui entramos na segunda ordem de razões pelas quais se entende não ser aplicável o referido normativo interno ao caso sob análise – , que, ainda que não se pugnasse pelo afastamento liminar da disposição interna de direito espanhol com o fundamento atrás referido de que o seu âmbito de aplicação territorial não abrange as situações plurilocalizadas contempladas pelo Regulamento comunitário, certo é que a virtualidade de a referida norma servir como parâmetro aferidor da validade substantiva do pacto de jurisdição aqui sob apreciação sempre dependeria de a mesma consubstanciar, como é bom de ver, uma norma de direito substantivo.

Com efeito, o que consta do art. 25.º, n.º 1 do Regulamento – “a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo” (destaque nosso) parece claro no sentido de impor a apreciação da validade substancial (i. é, quanto ao fundo) do pacto de jurisdição. E o conceito de “nulidade substancial” não consentirá, segundo cremos, a abrangência de irregularidades ou invalidades processuais, designadamente por violação de regras de competência previstas na legislação interna dos Estados membros.

No caso, parece evidente que a Disposição Adicional da Ley 12/1992, que regula matéria relativa à competência judicial, é uma norma de cariz processual (e não de direito substantivo). Nesta medida, a nulidade estatuída na referida Disposição Adicional corresponderá necessariamente a uma invalidade também ela de natureza processual (e não substantiva), não assumindo, assim, aptidão para afastar a validade do pacto de jurisdição celebrado pelas partes à luz do citado art. 25.º do Regulamento.

A este propósito, reitera-se o entendimento consistentemente seguido pelo TJUE e pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a noção de pacto de jurisdição é autónoma face aos ordenamentos jurídicos dos Estados membros e, ainda – com maior relevância para o caso sob análise – , que “o conceito de invalidade substancial contido no art. 25.º do Regulamento não abrange a invalidade por violação de regras processuais de direito interno (…)” – entendimento expressamente adoptado nos Acórdãos do STJ de 9-05-2019 e 14-07-2020, supra citados.

Conforme explica RUI TORRES VOUGA, não se pode ignorar que o legislador adicionou o requisito de validade substantiva do pacto no n.º 1 do art. 25.º do Regulamento no contexto de controvérsia no âmbito da apreciação da validade do “consentimento” das partes, em que muitos tribunais dos estados membros recorriam, para o efeito, ao seu direito interno, o que permite intuir que a expressão “nulidade substantiva” dirá, no essencial, respeito a questões relativas à formação e existência do pacto, em especial ao necessário consentimento das partes.

O que ficou dito é suficiente para chegarmos à conclusão de que, também por esta via, isto é, pela natureza marcadamente processual da referida norma interna, de direito espanhol, se pugnaria pela sua não aplicabilidade ao caso dos autos e, consequentemente, pela insusceptibilidade de a mesma ferir de nulidade (substantiva) o pacto de jurisdição celebrado pelas partes em litígio.


*


Um terceiro argumento se pode invocar – trazido pela recorrente nas suas alegações de recurso – e que assume particular relevância para o presente processo.

Com base no que já se escreveu acerca da incompatibilidade entre o regime jurídico estabelecido no art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 e o que decorre da Disposição Adicional da Ley n.º 12/1992, situações houve em que os tribunais espanhóis decidiram desaplicar esta norma, por a considerarem revogada pelo regime posterior instituído pelo Regulamento comunitário.

Exemplificativamente, destaca-se, a este propósito, o seguinte excerto da sentença proferida pela Audiencia Provincial de Barcelona de 15-02-2019 (e que assume maior relevância pela referência a várias outras decisões judiciais de tribunais espanhóis perfilhando idêntico entendimento, designadamente quanto à aptidão meramente interna da referida Disposição Adicional):

En definitiva, la disposición adicional segunda de la Ley 12/1992 atribuye la competencia territorial en derecho interno, no pretendiendo distribuir la jurisdicción internacional, por lo que no resultaría aplicable a este caso en que interviene una parte extranjera.

Lo contrario, como dijo dicho auto de Pontevedra, supondría que cada Estado miembro de la Unión pudiera introducir restricciones a las cláusulas de sumisión de competencia en este tipo de contratos - de agencia - loque nos llevaría a una clara desarmonización, pues podría dar lugar a la fijación en cada Estado miembro de diferentes criterios, que podrían llegar a ser contradictorios.

Ciertamente, el legislador español puede establecer, al margen del derecho comunitario, aunque no contrael mismo, normas sobre competencia internacional, e incluso podría haberlo hecho en la Ley 12/1992, complementando la extensión y límites de la jurisdicción española a la que se refieren los artículos 21 ysiguientes de la LOPJ, pero, de ser así, debería establecerlo de forma expresa e inequívoca, completando su propio sistema, y sin contradecir al derecho de la Unión.

Todo ello nos lleva a desestimar el recurso y confirmar el auto apelado, por sus propios argumentos, sin necesidad de añadir que el Reglamento (UE) nº 1215/2012 se aprobó como instrumento convencional del derecho europeo de aplicación preferente, además, veinte años después de la disposición adicional de la Ley nacional 12/1992, sobre el Contrato de Agencia, en cuanto a la preferencia temporal establecida por el principio lex posterior derogat priori, derogación tácita de la ley anterior, ex art. 2.2 CC , sentado que ese Reglamento forma parte del derecho interno, a tenor de lo dispuesto en el art. 96 CE y 1.5 del Código Civil.”.

A convergência jurisprudencial espanhola no sentido de que a Disposição Adicional da Ley 12/1992 não se assume como norma reguladora de competência internacional e de que, ademais, a mesma não se pode ter como vigente em face da aprovação posterior do Regulamento comunitário n.º 1215/2012, que a contraria, reforça a posição que aqui seguimos no sentido de que aquele normativo de direito espanhol não tem virtualidade para, no caso concreto, servir como parâmetro de validade substancial do pacto de jurisdição celebrado entre as partes.

Esta é, de resto a posição que mais se coaduna com as exigências de aplicação uniforme do direito da União Europeia que exige que o sentido e alcance dos normativos comunitários devem ser, por princípio, interpretados de modo autónomo face ao direito interno dos Estados membros e à luz do objetivo prosseguido pela regulamentação em causa (cf., a título de exemplo, o Acórdão do TJUE de 27-06-201316).


*


Afastada a aplicabilidade daquele normativo interno, forçoso será concluir que estão reunidos os pressupostos de ordem formal e material previstos no citado art. 25.º do Regulamento quanto ao pacto de jurisdição outorgado pelas partes, concluindo-se, pois, pela sua validade e eficácia.

Atribuindo o referido pacto de jurisdição aos tribunais espanhóis a competência para a apreciação do litígio em causa, não se vislumbra outra saída que não seja julgar verificada a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses e, consequentemente, absolver a ré da instânciaut arts. 96.º, n.º 1, al. a), 97.º, n.º 1 e 99.º, n.º 1, todos do CPC – , assim se revogando a decisão recorrida.


**


Face a este entendimento, prejudicado fica, naturalmente, o conhecimento do pedido de reenvio prejudicial suscitado pela recorrente nas suas conclusões recursivas, sendo certo que o mesmo foi suscitado a título meramente subsidiário.

De qualquer modo, sempre pugnaríamos pela improcedência de um tal pedido, tendo em conta que, no caso, não se nos suscitam dúvidas na interpretação das normas comunitárias aplicadas (pese embora se reconheça a necessidade de ser densificado juridicamente o conceito de “nulidade substantiva” a que alude o art. 25.º, n.º 1 do Regulamento).


**


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, concedendo-se a revista.

Consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da 1ª instância (que, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses e absolveu a ré da instância – ut arts. 96.º, n.º 1, al. a), 97.º, n.º 1 e 99.º, n.º 1, todos do CPC).

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 12 de Setembro de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Catarina Serra (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

_______


1. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 48.

2. Paula Costa e Silva, “A longa vacatio legis da Convenção de Bruxelas - Anotação aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 1997 e de 5 de Novembro de 1998”, Revista da Ordem dos Advogados, p. 1237, consultável em https://portal.oa.pt/upl/%7B104b4283-439d-4bec-877d-b8adcac59cf6%7D.pdf

3. O destaque é nosso.

4. In Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44 de 2001, Coimbra Editora, pág. 31

5. Cf. TCE 10/3/1992, no Acórdão Powell Duffryn c. Wolfgang Petereit, Proc. n.º 214/89, disponível em:

  https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=ecli:ECLI:EU:C:1992:115

6. SOFIA HENRIQUES, ob. cit., pág. 65.

7. In Direito Internacional Privado – Competência Internacional, Vol. III, Tomo I, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, págs. 234-235

8. In Pactos de Jurisdição e swaps: demasiado “nacionalismo” e pouco “europeísmo”? – Post publicado em 26-04-2014 no blog do IPPC, consultável em https://blogippc.blogspot.com/2014/04/pactos-de-jurisdicao-e-swaps-demasiado.html

9. Processo n.º 161/18.2T8FAR.E1.S1

10. Processo n.º 3793/16.0T8VIS.C1.S1 (Nuno Pinto Oliveira), disponível em www,dgsi.pt.

11. No mesmo sentido, veja-se, ainda, os Acórdãos de 17-03-2016 (Ana Paula Boularot), processo n.º 588/13.6TVPRT.P1.S1, de 16-02-2016, processo n.º 135/12.7TCFUN.L1.S1 (Gabriel Catarino) e de 19-12-2018, processo n.º 2312/16.2T8FNC.L1.S1 (Maria da Graça Trigo), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

12. Processo n.º 2038/20.2T8LRA.C1.S1 (Isaías Pádua) - Disponível em www.dgsi.pt.

13. In ob. cit., pág. 234.

14. In Novo Regime Jurídico dos Pactos de Jurisdição, Revista do CEJ, 1.º semestre, 2018, pág. 77.

15. Que pode ser consultada em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1992-12347.

16. Processo n.º C-320/12, que pode ser consultado em:  https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62012CJ0320