Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2724/20.7T8CBR.C1-A.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
LEI APLICÁVEL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
REGULAMENTO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
SUCESSÃO
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
O Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões apenas se aplica à sucessão de pessoas falecidas a partir de 17.08.2015.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

  

l.  Nos presentes autos de Inventário por óbito de AA, em que é cabeça de casal BB, por requerimento de 1-3-2021, veio a interessada CC requerer a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, n.º 1, alínea a) do C.P.C., porquanto:

Corre termos nos Tribunais Franceses, ação onde se discute a competência da Jurisdição Francesa quanto ao inventário aberto por óbito de AA.

O Tribunal de Grande Instância ... decidiu que a jurisdição francesa é competente uma vez que a inventariada, AA, tinha a sua residência habitual e última em França.

Tal decisão não transitou ainda em julgado, estando em apreciação na Cour d´Appel de Paris, sendo que todos os aqui interessados apresentaram as suas alegações.

Verifica-se assim uma situação de litispendência, com identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o que pode vir a originar decisões contraditórias sobre a mesma situação de direito.

De facto, resulta do Regulamento da UE nº 650/12/4 de Julho que são competentes em matéria de sucessões, a jurisdição do estado membro, no qual o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.

2. Por requerimento de 8-7-2021, veio o cabeça de casal e interessado DD requerer a apreciação e confirmação da competência deste tribunal em matéria sucessória para efeito de partilha dos bens situados em Portugal que integram a herança da inventariada, prosseguindo os ulteriores termos até final em conformidade com o sistema jurídico português, alegando que:

O Requerimento Inicial destinado a pôr termo à comunhão hereditária por decesso da Inventariada, nos termos do artigo 1º./5, alínea a), do Regime Jurídico do Processo de Inventário [Lei nº.23/2013, de 5 de março], deu entrada no Cartório Notarial competente em 19/09/2016, ou seja, há mais de cinco anos.

A mencionada decisão estrangeira mostra-se exclusivamente relacionada com os bens da herança situados em França.

3. Respondeu a interessada CC (7-9-2021), requerendo (novamente) a suspensão do presente processo, a fim de se evitar a situação de litispendência, até ser proferida a decisão final pela Cour d´Appel de Paris, cuja decisão final está já agendada para 4 e 19 de Janeiro de 2022.

4. Replicaram o cabeça-de-casal e interessado DD (20-9-2021), requerendo (novamente) a apreciação da sua pretensão, atento o prazo entretanto decorrido desde a data em que o processo começou a correr até à presente data, sendo que qualquer cidadão tem direito a que uma causa em que intervenha seja objeto de decisão em prazo razoável face ao disposto no artigo 20º., nº.4, da Constituição da República e artigo 6º. da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei nº 65/78 de 13 de outubro.

5. Respondeu a interessada CC (4-10-2021), ao que se sucedeu resposta, uma vez mais, do cabeça-de-casal e interessado DD (18-10-2021 e 11-11-2021), bem como a interessada CC voltou a responder (28-10-2021 e 24-11-2021).

6. Entretanto a interessada CC veio dizer que a decisão da 1ª instância, objeto de recurso, foi confirmada pela Cour d´Appel de Paris.

Respondeu o mencionado cabeça-de-casal e interessado afirmando que conforme já anteriormente sublinhado o órgão jurisdicional apenas decidiu em matéria sucessória quanto aos bens situados unicamente em França.

7. Na primeira instância foi proferida decisão nos seguintes termos «Ante o exposto, e termos do art.º 8.º, n.º 4, da CRP, e art.os 4 e 21.º, n.º1, do Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, não se aplicando o disposto nos art.os 59.º, 62.º, 63.º e 94.º, do Código de Processo Civil, declara-se o presente Juízo Local Cível incompetente, em razão da nacionalidade, para julgar os presentes autos de inventário e competente a Jurisdição Francesa.

Pelo exposto, absolvo os interessados Requeridos da instância – art.ºs 96.º, al. a), 97.º, 99.º, n.º 1, 278º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 1 e 577.º, al. a), do Código de Processo Civil.

Custas pelo interessado Requerente».


8. Inconformado, apelou o cabeça-de-casal e interessado DD, tendo sido proferida decisão singular, que julgou o recurso procedente, revogando a decisão recorrida, ordenando que os autos prossigam para os efeitos tidos por convenientes.

A recorrida reclamou para a conferência, pedindo que se mantenha a decisão de 1ª instância.


9. Por Acórdão de 12.04.2023 a Relação de Coimbra decidiu «Pelo exposto, indefere-se a reclamação da recorrida, mantendo-se a decisão do Relator reclamada».

           

10. Inconformada, a interessada CC interpôs RECURSO DE REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1. Corre inventário por óbito, em .../.../2014, de AA, em que é cabeça de casal o ex-cônjuge BB, e em que são ainda interessados os filhos DD e CC.

2. Por requerimento (de 1.3.2021), veio a interessada CC requerer a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, nº 1, a) do NCPC., porquanto: - corre termos nos tribunais franceses, acção onde se discute a competência da Jurisdição Francesa quanto ao inventário aberto por óbito de AA;

3. O Tribunal de Grande Instância ... decidiu que a jurisdição francesa é competente uma vez que a inventariada, AA, tinha a sua residência habitual e última em ...;

4. Tal decisão não transitou ainda em julgado, estando em apreciação na Cour d´Appel de Paris, sendo que todos os aqui interessados apresentaram as suas alegações;

5. Resulta do Regulamento da UE nº 650/12/4 de Julho que são competentes em matéria de sucessões, a jurisdição do estado membro, no qual o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito;

6. Resulta da escritura de Habilitação de Herdeiros, junta ao requerimento inicial, de 17 de Setembro de 2016, que a inventariada teve como sua habitual e última residência em 120 Rue ..., ..., ..., França;

7. Uma vez que parece assistir razão à jurisprudência francesa – a residência habitual e última da inventariada foi em França – entende a recorrente que este processo deverá ficar suspenso, até à decisão final francesa.

8. Porém, após alegações de ambas as partes, concluiu o tribunal a quo que a Jurisdição Francesa não é a competente nos presentes autos uma vez que não estão preenchidos os requisitos cumulativos exigido no Regulamento Europeu nº650/2012, de 4 de Julho.

9. Ora, o regulamento é aplicável a partir de 17 de agosto de 2015.

10. Segundo o disposto no art. 83º, nº 1, do identificado Regulamento, que versa sobre disposições transitórias, o mesmo é aplicável às sucessões das pessoas falecidas em 17 de Agosto de 2015, ou após essa data. Isto é, não se aplica a sucessão de pessoas falecidas antes da apontada data.

11. Atenta a data do óbito da autora da herança, .../.../2014, é certo que não se encontra preenchido o requisito de aplicação do invocado Regulamento.

12. Assim, não estando preenchido o requisito supracitado o Tribunal Francês parece não deter competência para decidir o presente processo de inventário.

13. Não obstante, há que ter em mente duas questões que não se podem olvidar: A 1ª ação de inventário foi instaurada nos Tribunais franceses pela recorrente e no acervo hereditário a partilhar há bens sitos em território nacional e bens sitos em território francês.

14. A realidade social, económica e financeira e inclusive política de Portugal e França são completamente distintas, pelo que não se pode aceitar que prédios sitos em França possam ser avaliados por peritos portugueses, que só avaliam prédios sitos em território português.

15. Pelo que aplicar o Regulamento acima enunciado e excluir in totum a competência da jurisdição francesa neste processo, pode conduzir a flagrantes injustiças e perdas económicas das partes interessadas, sendo que o que se pretende alcançar com o recurso aos tribunais é a verdade material e realizar – se a justiça para todos os intervenientes, havendo equilíbrio e razoabilidade nas decisões a tomar.

15. Equilíbrio esse que fica, desde logo, afastado se se mantiver a decisão da 2ª instância, que contrariou a proferida pela 1ª instância, sobretudo quanto à partilha dos bens sitos em território francês.

16. Até porque é do conhecimento comum que um prédio sito em França tem um valor comercial e patrimonial muito maior do que um prédio sito em território nacional.

17. Atentando na delimitação do objecto processual configurado nestes autos, resulta evidente que existe uma relação de prejudicialidade entre a acção que corre termos em França e a que corre termos em Portugal, sendo que a primeira a ser instaurada foi a que corre em França.

18. No nosso direito prevalece o princípio de unidade e universalidade da partilha que impõe que todos os bens, situados em território nacional ou no estrangeiro, devem ser considerados na partilha a efectuar, a não ser que exista alguma norma legal que exclua um dado bem dessa partilha.

19. Pode – se dizer que os argumentos da recorrente ficam-se pela invocação de razões práticas, não fundadas em regras jurídicas, mas também elas a serem alvo de consideração.

20. Até porque foi a recorrente/interessada na partilha que levantou a questão estando preocupada com a questão da eficácia da sentença de partilha.

21. Ou seja, o Tribunal Francês ainda não se arroga de competência exclusiva sobre os bens situados no seu território e território nacional (apelação corre termos). A mencionada decisão estrangeira mostra-se exclusivamente relacionada com os bens da herança situados em França. Logo, pelo menos, não faz qualquer sentido que os bens imóveis situados em França sejam objeto de avaliação e partilha em país estrangeiro, ou seja, em Portugal.

22. Sem olvidar a existência do Regulamento Europeu aqui em apreço, já Alberto dos Reis reconhecia, mas afastava o princípio da unidade do inventário apenas quando se imponham razões de ordem prática, sempre que se esteja em presença de um conflito de jurisdições. “...O bom senso aconselha que os tribunais de cada país, em caso de conflito, se limitem a inventariar e partilhar os bens existentes no território nacional. Uma coisa é, pois, o princípio, outra a actuação prática dele.

23. O processo de inventário é na sua essência uma medida de protecção destinada a evitar prejuízos e a distribuir equitativamente todo o património de uma herança ou de um património comum em consequência, como é o presente caso.

24. Todavia, as questões práticas aqui levantadas pela recorrente, além de fazerem sentido, devem ser levadas em linha de conta nos presentes autos, pelo menos, garantindo que os bens sitos em França sejam objecto de partilha na jurisdição francesa.

25. Veja – se que, no artº 63º-A, al. a), do CPC, na sua redacção introduzida pela reforma de 95/96 – Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 (visando, em sede de competência internacional, o objectivo de alinhar o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano, como escreve o Prof. Dr. Rui Manuel Moura Ramos, in R.L.J., ano 130º - 1997/1998, pg. 213) -, atribui-se competência exclusiva aos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais…sobre bens imóveis sitos em território português – “fórum rei sitae”.

26. Porém, a razão de ser daquela norma, sobre reserva da jurisdição dos tribunais portugueses, radica na circunstância de o tribunal da situação do bem imóvel estar melhor apetrechado para conhecer os elementos de facto inerentes e porque, em geral, nas acções sobre direitos reais terem frequentemente lugar diligências de prova ao local – inspecções e perícias (veja-se o artº 70º, nºs 1 e 3, do CPC) – no caso: bens franceses, França.

27. Por isso, tem-se entendido que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, neste particular, que as acções se prendam indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que este (o imóvel) consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo, o que também sucede na presente demanda pois a partilha incide sobre bens imóveis. Ora, se o lugar da abertura da sucessão é França é esta a jurisdição competente para o inventário e tendo o falecido deixado bens em França, será competente para o inventário o tribunal do lugar da situação dos imóveis.

28. In casu, está excluída a aplicação do Regulamento.

29. Há que averiguar a verificação de factores de determinação de competência internacional não exclusiva e previstos no artigo 62.º, do CPCivil. Dispõe esta norma: Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

29. Correspondem as alíneas a) e b) ao denominado princípio da coincidência, a alínea c) ao princípio da causalidade e a alínea d) ao princípio da necessidade.

30. Não se verifica no caso dos autos que a previsão das alíneas acima citadas permita concluir pela competência internacional exclusiva de Portugal na presente causa.

31. Nem resulta «apreciável dificuldade» para a recorrente na propositura do processo em outro país, uma vez que é indiscutível a existência de elementos ponderosos de conexão pessoal (a nacionalidade das partes) e real (a situação dos bens) com a ordem jurídica francesa e o inventariado.

32. Está em causa a partilha de bens imóveis, com a consequente necessidade de obtenção de documentos registrais e de efectivação final de registos, com eventual necessidade de avaliação dos mesmos bens ou até de apreciação da natureza dos mesmos em relação ao património hereditário, com aplicação das regras do foro da situação dos bens.

33. Ou seja, as operações e decisões que envolvem a partilha encontram-se estreitamente relacionadas com actos a praticar em território francês e com o regime jurídico francês, o que determina apreciável dificuldade na demanda em foro português para o caso dos bens sitos no estrangeiro.

34. Teixeira de Sousa, defende quanto às regras relativas à competência internacional, a orientação dominante que vigora na ordem jurídica internacional, ou seja, essa competência se afere pela lex fori, isto é, pela lei do estado onde a acção se encontra pendente, cabendo, por conseguinte, ao direito interno de cada estado regular a competência internacional dos seus próprios tribunais, determinando quais os factores de conexão com o litígio que lhes é submetido que considera relevantes para efeitos de lhes atribuir competência internacional para conhecer do mesmo quando este seja plurilocalizado e sendo, por isso, a essas regras de direito interno que se impõe atender para efeitos de se saber se os tribunais desse estado são ou não internacionalmente competentes    para    conhecer    do    litígio    que    lhes    é    submetido.

35. Importa apurar se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque prevalecem sobre os restantes critérios.

36. As normas do Código de Processo Civil não afastam, em termos de competência internacional, o que for determinado por Regulamento da União europeia que se aplique ao caso concreto.

37. A Recorrente intentou a presente acção de inventário contra os recorridos (interessados na partilha) peticionando que o processo de inventário para partilha de bens por herança corresse termos nos tribunais francesas, onde se situam parte dos bens imóveis e por ter sido o país onde a de cujus deteve a sua última residência e ali faleceu, a que acresce o facto da recorrente também residir nesse país.

38. Tanto Portugal como França encontram-se abrangidos pelo campo territorial do Regulamento: aliás, todos os Estados-Membro da União Europeia a adoptaram ou foram por ela abrangidos. Este Regulamento é aplicável às sucessões das pessoas falecidas a partir do dia 17 de Agosto de 2015, inclusive.

39. Os tribunais judiciais portugueses aferem a sua competência internacional de acordo com as regras do direito interno e, também, das regras de direito internacional que obriguem o Estado português. Assim, o art.º 59.º do CPC, sob a epigrafe “Competência internacional”, estipula que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”

40. Daqui resulta que quando algum destes instrumentos seja aplicável, é pelas regras nele estabelecidas que deve aferir-se a competência dos tribunais portugueses. E resulta também que se for aplicável algum desses instrumentos e dele não resultar a competência dos tribunais portugueses, também não poderá tal competência resultar da aplicação das regras internas.

41. Em relação a litígios que tenham conexão com estados membros da União Europeia, haverá que atentar nas regras de alguns Regulamentos, que prevalecem sobre o direito interno (cfr. artigos 8.º n.º 4 da CRP e 288.º do TFUE).

42. O Regulamento (UE) n.º 650/2012, que incide sobre matéria de sucessões, conforme consta no considerando 7 do Regulamento, este instrumento jurídico da União Europeia visou “facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça. No espaço europeu de justiça, os cidadãos devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessão. É necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão”.

43. O âmbito material de aplicação do Regulamento é, conforme o considerando 9, “todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.”

44. A autonomia do conceito de sucessões para o efeito de aplicação do Regulamento (EU) n.º 650/2012 é, também aqui, consequência dessa necessidade (neste caso em especial, cfr., v.g., Carlos de Melo Marinho, Sucessões Europeias – O novo regime sucessório europeu, Quid Juris, 2015, p. 23 e 24).

45. Quanto à natureza transfronteiriça da sucessão, suscetível de convocar a aplicação do Regulamento, os elementos de conexão assumem distintas facetas, podendo emergir da nacionalidade estrangeira do de cujus, da sua residência habitual em país distinto, da eleição, por si feita, para regular a sua sucessão, de uma lei estrangeira, da existência de algum dos bens integrantes do acervo hereditário em território situado extramuros, da submissão dos direitos relativos à herança a uma lei distinta da interna ou da nacionalidade estrangeira ou residência habitual, noutro país, dos sucessíveis (cfr. Carlos Marinho, obra citada, p. 22).

46. In casu, ocorre o facto de a morte da de cujus ter ocorrido na França e de pelo menos um dos sucessíveis, neste caso a R., residir na França e a falecida tinha residência habitual na França aquando do seu óbito. Assim, o caráter transfronteiriço da sucessão também ocorre para o efeito de aplicação do Regulamento.

47. Para concluir pela não aplicabilidade ao caso sub judice do aludido Regulamento (UE) n.º 605/2012 sobre sucessões diga – se o seguinte: O Regulamento abarca as questões de direito internacional privado em matéria sucessória, como a competência internacional das jurisdições para determinar a sucessão e a lei que lhe é aplicável, mas não regula o direito sucessório material, que continua a caber inteiramente aos Estados-Membros.

A questão que aqui se coloca insere-se exactamente no âmbito do direito sucessório material, excluindo a aplicação do Regulamento. Este a aplicar-se (com a discussão prévia sobre o conceito de residência habitual) seria apenas para efeitos de partilha/inventário decorrente do óbito de da inventariada.

48. Conforme já exposto, a atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado pressupõe que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado. Nas palavras dos Professores João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, [e]lementos de conexão comuns são o lugar da situação dos bens, o lugar do cumprimento da obrigação, o lugar da ocorrência do dano, o domicílio do demandado e a vontade das partes. Estes elementos de conexão são escolhidos em função de diversos interesses, como, por exemplo, a boa administração da justiça, a efetividade da tutela processual, a harmonia das decisões sobre um litígio, o interesse das partes, a proteção de partes mais fracas e a proximidade com o litígio” (in Manual de Processo Civil, volume I, ob. cit., p. 173).

49. Quanto à competência, a regra geral aplicável está enunciada no art.º 4.º do Regulamento: “São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito”.

50. Este critério coincide tendencialmente com o da lei substantiva a aplicar à sucessão.

51. Com efeito, nos termos do art.° 21.° n.° 1, “[s]alvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito”.

52. A opção por este critério, em detrimento do da nacionalidade do de cujus, que prevalece no direito interno de muitos países, é justificada no considerando n.º 23 pela tomada de consciência da mobilidade crescente dos cidadãos e a ideia de que assim melhor se assegurará a boa administração da justiça, assegurando-se uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida.

53. Também o conceito de (última) residência habitual deverá ter um tratamento autónomo, próprio do ordenamento jurídico europeu (cfr., v.g., Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Regulamento Europeu das sucessões”, in BFDUC, vol. XCIV, tomo II, 2018, p. 1175).

54. No considerando n.º 23 exarou-se o seguinte:

“A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.”

55. E no considerando n.º 24 tem-se o cuidado de acrescentar ainda o seguinte:

“Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.”

56. Para Carlos Marinho, na avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência, a configuração das relações familiares e sociais constitui elemento-índice de relevo (obra citada, p. 44).

57. A situação excecional no considerando n.º 25 do Regulamento, diz:

“No que diz respeito à determinação da lei aplicável à sucessão, a autoridade que trata da sucessão pode, em casos excecionais – quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua residência habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as circunstâncias do caso indiquem que tinha uma relação manifestamente mais estreita com outro Estado – chegar à conclusão de que a lei aplicável à sucessão não deverá ser a do Estado da residência habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita. No entanto, a relação manifestamente mais estreita não deverá tornar-se em fator de conexão subsidiário caso se revele complexa a determinação da residência habitual do falecido no momento do óbito.”

58. O que é a situação sub iudice em relação à inventariada que detinha relação manifestamente mais estreita com França.

59. Essa aplicabilidade à sucessão do direito de um outro Estado não determina a incompetência do tribunal da última residência habitual do de cujus (sem prejuízo do previsto nos artigos 5.º, 6.º e 7.º do Regulamento).

60. Prevê também o Regulamento, como o direito nacional, aliás, que a incompetência internacional deve ser oficiosamente declarada (artigo 15º do Regulamento e 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, n.º, 1, todos do Código de Processo Civil)

61. De todo o exposto se conclui que por haver que dar o primado ao Direito Comunitário, o recurso não incorre em qualquer violação dos fatores de atribuição da competência internacional estabelecidos no artigo 62º do Código de Processo Civil, porquanto o artigo 59º do mesmo diploma condiciona a sua aplicação ao que se “encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”.

62. Por seu turno, os artigos relativos à competência em razão do território relativos à matéria sucessória só poderão ter aplicação após ter sido determinada a competência internacional dos tribunais portugueses”.

63. Ante o exposto, e termos do art.º 8.º, n.º 4, da CRP, e art.os 4 e 21.º, n.º1, do Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, não se aplicando o disposto nos art.os 59.º, 62.º, 63.º e 94.º, do Código de Processo Civil, deve declara-se a jurisdição portuguesa incompetente, em razão da nacionalidade, para julgar os presentes autos de inventário e competente a Jurisdição Francesa, se não na totalidade, pelo menos quanto aos bens sitos no seu território.

TERMOS EM QUE, face ao supra exposto, requer – se que seja feita a tão costumada JUSTIÇA e ser declarada a competência da jurisdição francesa para decidir do presente inventário ou, pelo menos, se determinar a sua competência quanto aos bens imóveis situados no seu território.


7. O Recorrido apresentou contra-alegações invocando que:

O objeto do recurso entretanto interposto pela recorrente/CC apresenta-se delimitado pelo teor das suas conclusões [artºs. 635º./4 e 639º./1, do C.P.C.] as quais, não obstante a sua prolixidade, incidem em síntese sobre duas vertentes jurídicas correspondentes aos seguintes conspectos temáticos:

a) Inaplicabilidade do Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de julho face ao caso sub judice, designadamente em relação à sucessão aberta por morte da Autora da Herança, cujo óbito ocorreu em 07.09.2014.

b) A situação plurilocalizada dos bens da herança e a sua conexão prática em face dos ordenamentos jurídicos português e francês.

Assim, quanto à inaplicabilidade do referido Regulamento à sucessão por morte da Autora da Herança, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, e bem, que tendo aquela falecido em .../.../2014, não se encontra o termo da respetiva comunhão hereditária sujeito às regras estabelecidas no mesmo Regulamento, dado que apenas se aplica às sucessões das pessoas falecidas após a data de 17 de agosto de 2015, conforme disposição transitória inequívoca constante do seu artigo 83º..

Neste contexto, dispõe, antes de mais, o artigo 674º./1, alíneas a) a c), do CPC., que a revista pode ter por fundamento a violação da lei substantiva, a violação ou a errada aplicação da lei do processo ou as nulidades previstas nos artigos 615º. e 666º..

Porém, de acordo com as conclusões da recorrente, afigura-se que o recurso de revista por esta interposto não tem por fundamento qualquer das referidas violações ou nulidades, já que antes reconhece que o Douto Acórdão Recorrido aplicou corretamente a lei substantiva ao considerar que o aludido Regulamento não é definitivamente aplicável ao caso sub judice.

Donde, não se vislumbrando neste segmento qual o objeto [inexistente] do subjacente recurso, atento o tipo de argumentação nele versado, importa obviamente que seja mantido o Douto Acórdão Recorrido, com as legais consequências.

Para além da problemática relacionada com a inaplicabilidade do referido Regulamento à aludida sucessão, levanta a recorrente a questão da falsa litispendência decorrente da situação e partilha dos bens da herança localizados em França, sendo que a mesma herança integra também os demais bens existentes em Portugal.

Daí que importe desde já salientar prima facie que, conforme decorre dos autos, o requerimento inicial destinado a pôr termo à comunhão hereditária por decesso da inventariada, deu entrada inicialmente no Cartório Notarial competente  em 19.06.2016, tendo o recorrido/cabeça de casal apresentado a respetiva relação de bens, observando para tanto o princípio da unidade e da universalidade do inventário, relacionando assim todos os bens da herança, designadamente quer os situados em Portugal, quer os que se encontram localizados em França.

A recorrida, então devidamente representada nos autos por advogado constituído, reclamou contra a predita relação de bens ao abrigo do artº. 32º. da Lei 23/2013, de 5 de março, requerendo a notificação do recorrido para arrolar determinados bens em falta, entre os quais alguns situados em França [vide Requerimentos sob as Refªs. ...18 e ...19 de 13.02.2017], mas não suscitou a incompetência da jurisdição portuguesa para resolver a matéria de que trata o subjacente processo de inventário.

Só que, fazendo tábua rasa da sua anterior intervenção no aludido processo de inventário  em  curso, decidiu a recorrente/CC          instaurar posteriormente um processo em 14.05.2018 junto do Tribunal de Grande Instância ... [França], nos termos do qual requereu a notificação do aqui recorrido e do interessado/DD, para que fosse ”ordenada a abertura de operações de conta, liquidação, partilha indivisa existente entre as partes relativamente aos bens situados em ... e ..., indicando expressa e taxativamente para o efeito apenas os seguintes:

i.    Uma casa situada em 120, Rue ... em ....

ii.   Dois apartamentos alugados situados no mesmo endereço.

iii.   Uma dependência no mesmo terreno.

iv.  Uma garagem em ....

Na sequência do referido processo, foi proferida decisão, confirmada posteriormente por acórdão do “Cour D’Appel de Paris”, cujo aresto determinou  a liquidação e partilha daqueles mesmos bens situados exclusivamente em França, no âmbito da mencionada sucessão de EE, falecida em ... em .../.../2014, mas sem ordenar a partilha dos bens da herança situados em Portugal.

Donde, face à inaplicabilidade do predito Regulamento, claro se afigura que pontifica para os presentes efeitos o disposto no artº. 62º. do Código Civil, cujo normativo manda aplicar à sucessão por morte a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento, sendo que no caso dos presentes autos a falecida é de nacionalidade portuguesa, não existindo aparentemente nenhuma norma que determine para os presentes efeitos a “lex rei sitae”.

Portanto, face ao princípio da unidade e universalidade da partilha em processo de inventário, devem todos os bens ser considerados na respetiva relação, sejam os situados em território nacional, sejam os situados no estrangeiro, pois que, até ao início de vigência do referido Regulamento, não se vislumbra qualquer tratado ou convenção internacional que assegure o efeito prático daquele princípio.

Dito isto, ……não ignora, porém, o ora recorrido que uma coisa é o aludido princípio, outra é a solução exequível mais adequada.

POR ISSO, …… tem o aqui recorrido pugnado para que a partilha dos bens situados em Portugal, atentos os direitos disponíveis das partes, se efetive no âmbito dos presentes autos, conforme insistentemente tem suscitado [mas sempre até agora em vão face à postura obstrutiva e autista da recorrente] já que, havendo bom senso, poderá a partilha dos bens sitiados no território nacional ser de imediato processada, sem prejuízo da partilha dos bens situados em França, cuja operação deverá seguir em relação a estes, no interesse das partes, a tramitação gizada no acórdão proferido pelo “Cour d’Appel de Paris”.

Em  conclusão, espera o  aqui recorrido e cabeça   de  Casal   que a recorrente/CC, ao dar sinais de ter despertado no bom sentido do termo e do pragmatismo esclarecido, se disponibilize finalmente para agilizar a partilha dos bens situados em Portugal de acordo com a solução prática mais adequada.

Conclui pedindo que seja negado provimento à revista.


8. O Tribunal da Relação de Coimbra admitiu o recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A factualidade provada é a que se encontra descrita supra I

2. A inventariada faleceu em .../.../2014.


III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pela Recorrente a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas a seguinte:

1ª- Será aplicável ao presente inventário o Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012?

Vejamos

Nos termos do artigo 4º do Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 «São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito»

Dispõe o art.º 21.º n.º 1 do mesmo diploma que «Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito».

Por último, atento o disposto no artigo 83.º do Regulamento em apreço, o mesmo é aplicável às sucessões das pessoas falecidas a partir de 17 de agosto de 2015.

Perante os preceitos legais sumariamente enunciados e ponderando a factualidade provada nos presentes autos, afigura-se-nos ser manifesto que nenhuma razão assiste à recorrente não merecendo o Acórdão recorrido qualquer censura.

Recorde-se que nos presentes autos a ora Recorrente e interessada veio, por requerimento de 1-3-2021, requerer a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, n.º 1, alínea a) do C.P.C.

Posteriormente, por requerimento de 8-7-2021, veio o cabeça de casal e interessado DD requerer a apreciação e confirmação da competência deste tribunal em matéria sucessória para efeito de partilha dos bens situados em Portugal que integram a herança da inventariada, prosseguindo os ulteriores termos até final em conformidade com o sistema jurídico português.

A ora recorrente voltou em 7-9-2021, a requerer a suspensão do presente processo, a fim de se evitar a situação de litispendência, até ser proferida a decisão final pela Cour d´Appel de Paris, cuja decisão final está já agendada para 4 e 19 de Janeiro de 2022.

A sentença de primeira instância, aplicando aos presentes autos o Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, declarou o Juízo Local Cível incompetente, em razão da nacionalidade, para julgar os presentes autos de inventário e competente a Jurisdição Francesa.

Esta decisão foi revogada pelo Acórdão recorrido que entendeu ser inaplicável aquele Regulamento e, assim, ordenou que os autos deverão prosseguir para os efeitos tidos por convenientes.

E nenhuma censura merece o decidido.

Como bem se salienta no Acórdão recorrido a decisão da primeira instância, partiu de um pressuposto errado quando afirma que «Quanto ao âmbito temporal: por força do artigo 83.º deste diploma, o Regulamento é aplicável às sucessões das pessoas falecidas em 17 de agosto de 2015, ou após essa data. Atenta a data do óbito da autora da herança, encontra-se preenchido este requisito».

A inventariada faleceu em .../.../2014.

Sendo o Regulamento aplicável às sucessões das pessoas falecidas a partir de 17 de Agosto de 2015 é inequívoco que não se encontra preenchido o requisito de aplicação do invocado Regulamento, sendo inaplicável ao caso toda a argumentação jurídica em defesa da sua aplicação (seja na sentença da primeira instância seja nas alegações da recorrente).

Assim, tal como decidiu o Acórdão recorrido, não podendo ser aplicado ao caso concreto as regras do Regulamento em discussão, também não podia subsistir a decisão de primeira instância que declarou a incompetência internacional do tribunal com base no referido Regulamento.

A esta conclusão não obsta o facto de o Tribunal ... [Referência: ...29] em decisão que foi confirmada pela Cour d’Appel de Paris – Pôle 3 – Chambre 1, de 16 de Fevereiro de 2020, (ao contrário do que afirma a recorrente na conclusão 4.ª), ter decidido que a residência habitual e última da inventariada foi em França – concretamente em 120 Rue ..., ..., ..., France [conforme também assento de óbito n.º ...5 – Referência ...56].

Antes de se atender à residência da inventariada para fixar a competência do Tribunal nos termos do Regulamento importava saber se o próprio Regulamento seria aplicável tendo em consideração as disposições transitórias e temporais de tal Regulamento, fixadas nos arts. 83º e 84º.

E, como se viu e repete-se, o regulamento é aplicável apenas a partir de 17 de agosto de 2015, melhor dito às sucessões das pessoas falecidas em 17 de Agosto de 2015, ou após essa data.

O Regulamento não se aplica a sucessão de pessoas falecidas antes da apontada data, como é o caso dos presentes autos, uma vez que a inventariada faleceu em .../.../2014.

Concluindo, podemos afirmar que o Regulamento da EU n.º 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões apenas se aplica à sucessão de pessoas falecidas a partir de 17.08.2015.

Impõe-se, assim, a improcedência desta questão e consequentemente da Revista.

Em suma, entendemos que se impõe a improcedência total das alegações da recorrente, pelo que se nega a revista.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar a revista, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 06 de julho 2023


José Sousa Lameira (relator)

Conselheira Fátima Gomes

Conselheiro Maria dos Prazeres Beleza