Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA IDENTIDADE DE FACTOS QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO INQUÉRITO ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO NULIDADE REJEIÇÃO | ||
Data do Acordão: | 04/27/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Sumário : | I - A lei, ao referir-se à mesma questão de direito refere-se a decisões expressas e não a julgamentos implícitos ou a argumentos jurídicos da resolução da questão. II - Se as situações fácticas subjacentes aos dois acórdãos são distintas, essencialmente quanto ao modo de apreciação dos factos e encerramento do inquérito, a diferente solução da questão jurídica a que chegaram os arestos em confronto foi determinada por essa diversidade das situações fácticas apreciadas e não por professarem entendimentos distintos quanto ao sentido e alcance das normas jurídicas aplicadas. III - Não tendo os dois julgados decidido a mesma questão fundamental de direito em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos, o recurso não pode prosseguir por não se verificar, no caso concreto, um dos requisitos essenciais para dele se tomar conhecimento, ou seja, a existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre acórdãos – art.º 441.º, n.º 1, do CPP. | ||
Decisão Texto Integral: | Recurso Fixação de Jurisprudência Processo: 2088/19.1T8LSB.L1-A.S1 5ª Secção Criminal
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA e BB, Assistentes no processo aqui identificado, interpuseram Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, nos termos dos arts.ºs 437.º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 26/07/2022, proferido nos presentes autos (acórdão recorrido) e transitado em julgado, em 12/09/2022, considerando que, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com outro aresto daquela mesma Relação, proferido em 11/04/2018, no Processo n.º 39/17.7PBLRS-3 (acórdão fundamento) e , disponível em www.dgsi.pt. Por despacho de 03/11/2022, o TRL admitiu o presente recurso. 2. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que “(…) o recurso deve ser rejeitado em razão de inexistir qualquer oposição de julgados (artigo 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal).”, nos seguintes termos: “(…) 5.2.3. Como se pode verificar, as situações de facto subjacentes aos dois acórdãos são distintas. Na do acórdão recorrido, o Ministério Público, ainda que em moldes «genéricos e abrangentes», «por exceção de partes» (sic), justificou o não exercício da ação penal relativamente a todos os crimes de natureza pública (denúncia caluniosa) e semipública (injúria e de difamação na forma agravada) que enformavam o objeto do inquérito.
Ao invés, na do acórdão fundamento, o Ministério Público não tomou posição quanto aos crimes de violência doméstica denunciados pelo arguido na medida em que, sem determinar o seu arquivamento e contrariando o que se havia proposto fazer [«oportunamente será extraída certidão dos elementos pertinentes para a investigação dos factos que o arguido imputa à mãe das suas filhas …»], não procedeu à extração de certidão para investigação dos correspondentes factos. No acórdão recorrido foi, assim, colocada e analisada a questão da valia processual da fundamentação genérica do despacho de arquivamento relativamente à totalidade dos ilícitos denunciados. No acórdão fundamento, por sua vez, foi suscitada e debatida a questão da preanunciada, mas não concretizada extração de certidão para investigação de um dos crimes denunciados e, consequentemente, da omissão de pronúncia a respeito do mesmo, em parte alguma se discutindo se um despacho de arquivamento com os contornos «genéricos e abrangentes» do proferido no processo do acórdão recorrido (5.2.1.f. e 5.2.1.i.), inquina o processo de nulidade. Não sendo, então, as duas situações comparáveis nem se detetando, por conseguinte, nos acórdãos em confronto quaisquer divergências de interpretação jurídica, seja quanto ao artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal, seja quanto ao artigo 276.º, n.º 1, do mesmo Código, ...”.
Notificados para se pronunciarem sobre o teor do parecer do MP, os arguidos CC e DD, aderiram ao seu conteúdo.
Porém os Assistentes, divergindo do mesmo, disseram, essencialmente que: “(…) A questão jurídica que constitui objeto do presente recurso de fixação de jurisprudência prende-se com saber se a norma constante do n.º 1 do artigo 276.º do CPP pode ser interpretada no sentido de permitir ao Ministério Público encerrar o inquérito sem proferir decisão expressa, de arquivamento ou acusação, e sem se pronunciar, apreciar ou remeter de forma expressa e literal para a materialidade que foi denunciada por queixa apresentada e que foi alvo de apreciação no inquérito. 3. Concretamente, a admissibilidade do encerramento do inquérito, sem despacho de arquivamento ou acusação, quanto a todos os crimes semipúblicos e públicos denunciados e sem se pronunciar sobre toda a materialidade, denunciada e apurada no inquérito, permitindo-se dar como encerrado o inquérito com base em interpretações, por exceção, uma vez que 4. No acórdão fundamento, o douto Tribunal da Relação de Lisboa pugnou pelo entendimento de que inexistindo pronúncia expressa do Ministério Público quanto ao arquivamento ou acusação em relação a determinados factos denunciados há lugar a nulidade insanável, nos termos da alínea b) do artigo 119.º do CPP em virtude de verificação de omissão de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º CPP. 5. Com efeito, o acórdão fundamento, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 39/17.7PBLSR-3, DE 11.04.2018 sufraga que «De facto, a mera declaração que foi feita no despacho de encerramento do inquérito (fls. 316 e segs) de que “(...), oportunamente, será extraída certidão dos elementos pertinentes para a investigação dos factos que o arguido imputa à mãe das suas filhas, em concreto os que são susceptíveis de integrar a prática pela mesma do crime de violência doméstica sobre as duas menores”, não pode ser considerada como decisão do Ministério Público quanto aos factos ali denunciados, na medida em que para além de não ser pronunciar especificamente no sentido do arquivamento ou da dedução de acusação quanto a tais factos, não resulta dos autos que tenha sido extraída qualquer certidão para apuramento dos factos ali denunciados.» (negrito e sublinhado nosso) 6. Tendo ainda referido no sumário do invocado aresto que: «v.– Ora, determina o artº 276 nº1 do C.P. Penal que o encerramento do inquérito implica que seja dado um destino final a todas a materialidade que foi alvo de apreciação no decurso do mesmo, tipicamente por proferimento de despacho acusatório ou por arquivamento. vi.- Sucede, todavia, que no caso dos autos, há uma parte da materialidade que deveria ter sido submetida a tal escrutínio (a que se mostrava vertida no processo cuja apensação foi ordenada) que o não foi; isto é, os factos e imputações constantes na denúncia apresentada pelo arguido, mostram-se por apreciar e decidir, pois sobre os mesmos não foi prolatado qualquer despacho acusatório ou de arquivamento. vii. – O que parece decorrer da consignação feita pelo Mº Pº no despacho de encerramento do inquérito nos presentes autos, de eventual e futura extração de certidão ( e dizemos que parece, pois nenhuma explicação se mostra aí exarada que permita saber-se quais os fundamentos desse modo de agir), é que pretenderá proceder à desapensação do inquérito anteriormente apensado, passando então a apreciá-lo em fase de inquérito e, posteriormente, proceder ao seu encerramento, arquivando-o ou acusando.» (Negrito e sublinhado nosso) 7. Tendo concluído a final que: «x.- Não o fazendo, daí resultou que, quanto a tal factualidade, existe falta de promoção do processo, por incumprimento do vertido no art. 48º do C.P.Penal. E se assim é, estamos perante a nulidade referida no art. 119º al. b) do C.P.Penal. Tal nulidade é de conhecimento oficioso (art.º 120 n.º 1 do C.P.Penal, a contrario) e tem como limite temporal de apreciação o transito em julgado da decisão final (condenatória ou absolutória).» (Negrito e sublinhado nosso) 8. Sucede que, no Acórdão recorrido é contrária a interpretação e aplicação da mesma norma jurídica, da primeira parte do n.º 1 do artigo 276.º CPP, tendo culminou num resultado distinto quando confrontada com uma realidade fáctica igualmente obscura, não expressa e equivoca no que à decisão de arquivar ou acusar no termo da fase de inquérito diz respeito. 9. Tendo, neste caso, o douto Tribunal da Relação de Lisboa entendido que: «Com o devido respeito, os termos em que o M.ºP.º se pronunciou acerca dos ilícitos podem ser qualificados de genéricos e abrangentes, pouco específicos quanto aos ilícitos que versa a sua decisão de não acusar , mas pelos termos antecedentes em que se pronuncia pela inexistência de crime de denúncia caluniosa e relativamente ao qual determina o arquivamento, a menção feita no segundo segmento do despacho de fls. 548 e seguintes, só pode ser lida, por exceção de partes, como referindo-se aos crimes de difamação e injurias, na forma agravada, p. e p. pelos art. 184º e art. 132º n.º 2 alínea I) do Código Penal.». 10. No Acórdão Recorrido o Tribunal da Relação tece considerações quanto à forma segundo a qual o despacho foi elaborado, afirmando que os termos em que o Ministério Público se pronunciou «podem ser qualificados de genéricos e abrangentes, pouco específicos». 11. Contrariamente o Acórdão Fundamento afirma taxativamente que o Ministério Público deve pronunciar-se especificamente no sentido de arquivar ou acusar quanto aos factos que chegam ao seu conhecimento. 12. Decisões opostas, para um mesmo problema/questão de fundo. 13. Questão que é a obscuridade de um despacho que coloca termo à fase de inquérito, com falta de clareza na decisão de arquivar ou acusar quanto a determinada factualidade levada ao conhecimento do Ministério Público no âmbito de crimes cuja natureza não é particular. 14. E, que não se pode confundir com a concretização ou não de extração de certidão para investigação de um dos crimes denunciados, como erradamente sufraga o parecer a que se responde, que erra na identificação da questão submetida à apreciação nos dois acórdãos, que estão em oposição, quanto à mesma. 15. Nestes termos, e fundamentos constantes do requerimento de interposição de recurso, deve o presente Recurso de fixação de jurisprudência ser admitido.”. Interessa, pois, saber se para a resolução do caso concreto o TRL, em dois acórdãos diferentes, chegou a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito. 3. Colhidos os vistos cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Enquadramento jurídico O recurso para fixação de jurisprudência tem como objectivo a uniformização da jurisprudência. Nos termos do art.ºs 437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a oposição de julgados justificativa dos recursos para fixação de jurisprudência pressupõe que os acórdãos em confronto hajam decidido a mesma questão jurídica fundamental em sentidos reciprocamente contrários ou contraditórios. A lei, ao referir-se à mesma questão refere-se a uma relação de identidade e não de mera semelhança, e exige que os quadros normativos e as realidades factuais que subjazem às decisões em confronto sejam substancialmente idênticos, de tal modo que a contradição decorra apenas de uma divergente interpretação jurídica. E ao referir-se à mesma questão de direito refere-se a decisões expressas e não a julgamentos implícitos ou a argumentos jurídicos da resolução da questão. Note-se ainda que a identidade da questão jurídica depende: i) da essencial permanência da legislação aplicada nos dois arestos – art.º 437.º, n.º 3, do CPP; ii) que a questão só se mostra fundamental – e não meramente argumentativa e, por isso, acessória – quando a sua resolução decisivamente determinou algum dos comandos decisórios dos acórdãos; iii) e que, nas hipóteses em que o confronto se faça entre acórdãos das Relações, o recurso extraordinário do presente tipo não será admissível se a pronúncia do acórdão recorrido for conforme à jurisprudência anteriormente fixada pelo STJ – art.º 437.º, n.º 2, do CPP. Assim, para se averiguar da ocorrência de uma oposição entre dois julgados, há que abstrair, da globalidade dos discursos de cada um deles, as proposições jurídicas que traduzam o essencial das suas pronúncias decisórias no ponto conflitual indicado pelo recorrente; e, adquirido que tais proposições são constituídas por termos com o mesmo sentido lógico, importa, em seguida, cotejá-las para ver se elas são reciprocamente opostas – o que sucederá se, detendo ao menos uma delas carácter geral, pudermos asseverar que só uma é necessariamente correcta ou verdadeira ou que a correcção ou verdade de uma implica a incorrecção ou falsidade da outra. 2. Da verificação dos pressupostos formais: No caso, os Assistentes interpuseram o presente recurso para fixação de jurisprudência em 10/10/2022, sendo certo que, o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 12/09/2022 – Ref.ªs Citius ...33 e ...39 e certidão Ref.ª Citius ...73 – pelo que, o recurso é tempestivo. Os Assistentes têm legitimidade – art.º 437.º, n.º 5 do CPP –, tendo indicado o acórdão fundamento relativamente ao qual entendem que o acórdão recorrido se encontra em oposição, pelo que, nos termos dos art.ºs. 438.º, n.º 1 e 437.º, do CPP, encontram-se preenchidos os pressupostos de natureza formal de tempestividade e legitimidade para recorrer. Nestes autos, os Assistentes recorrentes afirmam que os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, que se lhes deparara e que, em seu entender, directamente respeita ao art.º 48.º do Código Penal: trata-se do modo como o Ministério Público (MP) promoveu (ou não) o processo penal, em ambos os processos.
E, realmente, os dois arestos enfrentaram esse mesmo problema de direito, aliás fundamental na economia de ambos – por influenciar, directamente, as suas pronúncias decisórias. Porém, em domínio fáctico diferenciado. Com efeito, como bem salientou o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, a situação fáctica juridicamente relevante nos dois acórdãos não é idêntica. Relativamente aos crimes de injúria e difamação agravados, o Ministério Público não se pronunciou e convidou os assistentes a deduzirem acusação particular, não tendo acompanhado a mesma - cfr. despachos de fls. 257 e 290-293. No início das diligências de instrução, realizadas no dia 13/11/2020, a Mma. JIC declarou a nulidade de inquérito, a partir de fls. 257, por omissão de pronúncia quanto à prática do crime de difamação agravada, que reveste natureza semi-pública e os autos foram devolvidos ao DIAP - cfr. fls. 483-485. Recebido o inquérito, o Ministério Público deu de imediato cumprimento ao disposto no art. 0 285 0 , n.0 1 e 3 do C.P.P. e notificou os assistentes para deduzirem acusação particular relativamente aos denunciados crimes de difamação, de natureza particular - cfr. fls. 504. Os assistentes vieram deduzir nova acusação particular - cfr. fls. 514-545. O titular do inquérito arquivou novamente o crime de denúncia caluniosa, considerando que a conduta denunciada não integra o tipo objectivo e subjectivo de tal crime e considerou que os demais factos ocorreram no âmbito de campanha eleitoral para os órgãos de governo da faculdade, onde os assistentes integravam uma lista, pelo que não existiam nos autos indícios que configurassem a prática de qualquer crime por parte dos arguidos. Por outro lado, não acompanhou a acusação particular deduzida pelos assistentes cfr. fls. 547-553. Com o devido respeito, os termos em que o M.º P.º se pronunciou acerca dos ilícitos podem ser qualificados de genéricos e abrangentes, pouco específicos quanto aos ilícitos que versa a sua decisão de não acusar, mas pelos termos antecedentes em que se pronuncia pela inexistência de crime de denúncia caluniosa e relativamente ao qual determina o arquivamento, a menção feita no segundo segmento da despacho de fls. 548 e seguintes, só pode ser lida, por excepção de partes, como referindo-se aos crimes de difamação e injúrias, na forma agravada, p. e p. pelos art.º 184º e art.º 132º n.º 2 alínea I) do Código Penal. Matéria bem diferente será a apreciação da justeza e bondade dos fundamentos invocados para o arquivamento dos autos quanto aos denunciados crimes, mas isso seria objecto da instrução requerida pelos assistentes, o que efectivamente ocorreu na decisão ora recorrida. Nesta perspectiva, não se verifica a nulidade invocada.
Por relação à segunda questão suscitada pelos recorrentes nulidade da decisão instrutória por falta de fundamentação - os recorrentes defendem a necessidade de tal decisão se pronunciar sobre cada um dos factos, ou grupo de factos, imputados pelos Assistentes a cada um dos arguidos, tendo ao invés feito uma súmula dos factos, impondo-se ao Tribunal a quo identificar quais, de todos esses factos, os que considerou indiciariamente provados e não provados. Mais alegam os recorrentes que, analisada a decisão recorrida, verifica-se que não consta da mesma qualquer facto dado como indiciariamente provado ou não provado, não se especificou nem fundamentou em concreto, quanto a cada facto imputado, se a prova produzida permitia considerá-lo indiciariamente provado ou não provado, inexiste motivação sobre a decisão de facto, inexiste qualquer análise crítica das provas produzidas no inquérito e alegadas no requerimento de abertura de instrução dos Assistentes, não se evidenciando de que forma o Tribunal formou a sua convicção para decidir pela não pronuncia dos três arguidos. Como refere o M.º P.º na sua resposta ao recurso, quanto à necessidade de especificar quais os factos do requerimento de abertura de instrução que estão suficientemente indiciados e quais os factos que não estão suficientemente indiciados, importa ter presente a correcta interpretação do art.º 308.º , n.º 2, do C.P.P. Este preceito legal apenas refere que o deve conter os elementos exigidos pelo art.º 283.º, n.º 3, do mesmo diploma legal - com a narração dos factos, tal como é exigida para uma acusação do M.P. — o que se compreende uma vez que aquela decisão de pronúncia constituirá o objecto da audiência de julgamento, tal como a acusação, pública ou particular, o constituiria se não houvesse a fase facultativa da instrução. Seguindo a postura desenvolvida pelos recorrentes, também o despacho de não pronuncia teria de indicar as provas que se iriam produzir em audiência num julgamento que não teria lugar. Inútil. Por outro lado, agora na perspectiva das necessidades de fundamentação, os termos em que os assistentes recorrentes assentam a respectiva ausência no despacho recorrido, parece querer impor a observância do disposto no art.º 374º n.º 2 CPP — requisitos específicos da sentença final — tornando estes aplicáveis aos despachos de não pronúncia. Decorre expressamente do acima referido art.º 308º n.º 2 do C.P.P. que a fundamentação de direito e de facto pode ser feita por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou o RAI (nos termos do art.º 307.º , n.º 1, 2a parte), remetendo o mesmo preceito legal para o art.º 283. º , n.º 3, [isto em caso de pronúncia] e não para o art.º 374º , n.º 2 do C.P.P. Daqui conclui-se que o dever de fundamentação desse tipo de despacho se encontra estabelecido apenas no art.º 97º n.º 5 CPP: "Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. O despacho recorrido cumpre suficientemente este dever de fundamentação, designadamente quando resume a fls. 944-947, no essencial, a matéria constante do RAI e a descrição da prova recolhida em inquérito e em instrução. Como se refere no AC. do Tribunal da Relação de Lisboa, desta Secção Criminal, proferido no Proc. 5784/18.7T9LSB.L1-5, em que foi relator Relator Jorge Gonçalves, datado de 13.07.2021, disponível em www.dgsi.pt/jtrl : "Existem razões para distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados, dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. Tratando-se, no caso, de um despacho de não pronúncia, a alegada falta de fundamentação, por falta de menção dos factos suficientemente indiciados e não indiciados, não se traduz numa nulidade insanável e de conhecimento oficioso, podendo discutir-se, o que para o presente caso não releva, se é uma nulidade sanável ou uma irregularidade. Porém, existindo o dever de fundamentação de todos os actos decisórios (artigo 97º do C.P.P.), que assume particularidades quanto à decisão instrutória, a imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia, que permita conhecer os factos suficientemente indiciados e não indiciados, não tem de assumir, em todos os casos, a nosso ver, uma mesma configuração prática, podendo bastar-se, num caso como o presente, com a indicação, de forma perceptível, ainda que por remissão, dos factos que o tribunal considerou suficientemente indiciados e aqueles que assim não considerou." Por todo o exposto, consideramos que a decisão recorrida não está ferida de qualquer irregularidade ou nulidade. As objecções interpretativas trazidas à motivação de recurso por parte do assistente em nada beliscam a leitura que a Mma. JIC fez das provas trazidas ao inquérito. Assim, tendo presente aquelas formulações jurisprudenciais e doutrinais, como a decisão de não pronúncia equivale a uma decisão absolutória, tal como referem os acórdãos do STJ de 11.10.2001, 12.12.2002 e 21.4.2004, disponíveis em www.gde.mj.pt/jstj , ao abrigo dos artigos 425.º n.º 5 ex vi artigo 400.º n.º 1 al. d) ambos do Código Processo Penal, remete-se para a posição assumida na decisão recorrida bem como aos fundamentos ali vertidos, tudo a que adere este Tribunal ad quem pelo que, aqui, os subscreve. Por todo o exposto, não assiste razão aos recorrentes sendo de negar provimento ao recurso interposto.”. Ora, o acórdão fundamento disse duas coisas distintas, sobre a única questão jurídica emergente que identificou como sendo a do encerramento da fase do Inquérito: Efectivamente, assim se decidiu neste aresto: “(…) o encerramento do inquérito exigia a efectiva concretização dessa sua assumida posição processual; ou seja, para que o inquérito se possa entender como efectivamente susceptível de ser encerrado, deveria o Mº Pº ter ordenado a imediata extracção de certidão para, em processado autónomo, proceder ao inquérito relativo à denúncia apresentada pelo arguido” sendo certo que, “Não o fazendo, daí resultou que, quanto a tal factualidade, existe falta de promoção do processo, por incumprimento do vertido no artº 48 do C.P. Penal. E se assim é, estamos perante a nulidade referida no artº 119 al. b) do C.P. Penal. Tal nulidade é de conhecimento oficioso (artº 120 nº1 do C.P. Penal, a contrario) e tem como limite temporal de apreciação o trânsito em julgado da decisão final (condenatória ou absolutória).”, concluindo que “(…) a declaração de nulidade feita, atenta a sua fundamentação, apenas deverá determinar a invalidade dos actos que da mesma dependam funcionalmente. iii.- No caso presente, apenas apresentam tal dependência os factos relativos à denúncia apresentada pelo arguido contra CR.... . (…) tal nulidade deverá ser suprida, mantendo-se a validade de todos os restantes actos processuais, no que se refere à acusação prolatada, à distribuição e à fase processual de julgamento, em que os autos já se encontram e devem ser mantidos.” – sublinhado nosso.
Por sua vez, o aresto recorrido considerou que se colocavam duas questões jurídicas distintas, a saber: Nesta perspectiva, não se verifica a nulidade invocada.”. Com efeito, como salienta o Exmo. Procurador Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, as situações fácticas subjacentes aos dois acórdãos são distintas, essencialmente quanto ao modo de apreciação dos factos e encerramento do inquérito, podendo resumir-se como o fez aquele Senhor Magistrado: no acórdão recorrido, o Ministério Público, ainda que genericamente, fundamentou a sua decisão de arquivamento, justificando o não exercício da ação penal relativamente a todos os crimes denunciados e que enformavam o objeto do inquérito; no acórdão fundamento, o Ministério Público não se pronunciou sobre alguns dos crimes denunciados pelo arguido, nem determinou a extracção de certidão para novo processo e investigação daqueles factos, tal como havia enunciado.
Verifica-se que a diferente solução da questão jurídica a que chegaram os arestos em confronto foi determinada pela diversidade das situações fácticas apreciadas e não por professarem entendimentos distintos quanto ao sentido e alcance das normas jurídicas aplicadas. Designadamente, no que respeita ao disposto nos art.ºs 48.º, 119.º, 120.º e 276.º, n.º 1, do CPP, relativamente à promoção da acção penal, nulidade e arquivamento do Inquérito. Ou seja, no caso, saber se existe nulidade do Inquérito, por falta de promoção da acção penal, quando o Ministério Público não se pronuncia sobre factos denunciados. E, se a situação fáctica juridicamente relevante nos dois acórdãos é idêntica, esta ocorre quando, traduzindo-se em ocorrências processuais, os arestos em confronto resolveram a questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis, e em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos. Não é o caso do presente recurso.
Em suma: os dois julgados não decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos. Pelo que o presente recurso não pode prosseguir por não se verificar, no caso concreto, um dos requisitos essenciais para dele se tomar conhecimento, ou seja, a existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre acórdãos – art.º 441.º, n.º 1, do CPP.
Termos em que, acordando, se decide: Lisboa, 27 de Abril de 2023 (processado e revisto pelo relator)
Leonor Furtado (Relator) Agostinho Torres (Adjunto) António João Latas (Adjunto) |