Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3174/20.0T8STS-F.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
NULIDADE
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
SIMULAÇÃO
PEDIDO
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Apenso:
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- O AI é um interessado para efeitos do art. 286.º do C. Civil e pode intentar uma ação a invocar e pedir a nulidade de negócios jurídicos celebrados pelo devedor/insolvente.

II- Tendo intentado tal ação – a invocar e pedir a nulidade dum negócio jurídico – é como o AI configura a ação que a mesma tem que ser apreciada/julgada, ou seja, não se pode dizer que o que ele invoca e quer é a resolução em benefício da massa e dar como desfecho, a uma ação em que se pede uma declaração de nulidade, uma decisão de improcedência por ter decorrido o prazo de 6 meses referido no art. 123.º do CIRE, ou seja, por ser “procedente a exceção de caducidade”.

Decisão Texto Integral:

Processo: 3174/20.0TBSTS-F.P1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Massa Insolvente de “Exlibris Baco, Nineyards Since 1769, Lda.”, propôs contra "Exlibris Baco, Nineyards Since 1769, Lda.” e “Meridian Matrix - Unipessoal, Lda.” ação com processo comum, pedindo que seja declarada a nulidade do ato consubstanciado na escritura intitulada de "compra e venda", celebrada em 06.04.2020 no Cartório Notarial de ..., a fls. 101 e ss. do livro 3 -S; e que a 2.ª R. seja condenada a entregar à A., completamente livre e desembaraçado, o imóvel vendido, sendo decretado o cancelamento do registo efetuado com base no referido título.

Alegou que, por sentença de 16.03.2021, no âmbito do Processo Principal (autos de Insolvência 3174/20.0T8STS) a 1.ª R. foi declarada insolvente e que o único bem imóvel no processo apreendido é o que foi transmitido à 2.ª R. pela compra e venda de que aqui pede a declaração de nulidade.

Efetivamente, segundo a A., nem a insolvente nem a 2.ª R. pretenderam vender e comprar o imóvel em causa, sendo que “o ato em apreço não passou de uma manobra tendente a obviar – ou, pelo menos, a dificultar – a satisfação dos credores da ora insolvente”.

Ainda segundo a A., extrai-se dos documentos do registo comercial da insolvente e da pretensa adquirente que são familiares os detentores das respetivas participações sociais e os seus gerentes (AA é filho de BB e pai de CC), tendo inclusivamente o escritura respeitante ao negócio impugnado sido outorgada pelo AA, quer enquanto representante da insolvente, na qualidade de procurador, quer na qualidade de gerente da pretensa adquirente; dando-se o caso (tendo sido declarado o preço de € 283.484,42) de o mesmo ter declarado que o montante de 264.234,42 € do preço foi pago por meio do cheque n.º ........94 da CGD, cheque esse que nunca foi sequer apresentado a pagamento; e declarando o AA, na referida qualidade de gerente da segunda R., que o prédio se destinava a revenda, quando é em tal imóvel que o mesmo e a sua família residem.

Negócio que, também se extrai, só foi celebrado por, à data da escritura, a devedora estar já em situação de insolvência, transmitindo o imóvel para evitar que contra si fossem instaurados processos de índole executiva, para impedir que os seus credores pudessem garantir a satisfação do seu crédito e pretendendo manter o imóvel na posse efetiva da “família”.

Mais acrescentou que, para além de toda a situação configurar uma situação de desconsideração da personalidade jurídica e de caracterizar a nulidade por simulação, sempre a nulidade teria que ser verificada em função da respetiva prejudicialidade, atento o desequilíbrio das obrigações assumidas pelas partes; e, ainda, que, tendo sido o contrato de compra e venda celebrado em contrário do que a Lei determina, o mesmo se encontra ferido de nulidade nos termos das disposições conjugadas dos art.º 280º e 294º do CC.

Concluiu – em face de tudo o que alega – que o negócio em apreço é nulo por simulação e por ser contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes: diz que “mesmo que o negócio não tivesse sido simulado e, consequentemente, nulo, sempre o mesmo seria de haver por nulo nos termos dos art.º 280º e 281º”.

Contestaram as RR., sustentando que, considerando a A. que o ato de compra e venda diminuiu, frustrou, dificultou, pôs em perigo ou até retardou a satisfação dos credores da insolvência, deveria ter lançado mão da resolução em benefício da Massa Insolvente, procedimento previsto nos artigos 120.º e seguintes do C.I.R.E e cujo prazo está ultrapassado, razão pela qual não pode o AI, em representação da Massa, intentar a presente ação.

Negaram qualquer conluio fraudulento, afirmando que o contrato de compra e venda outorgado traduz a vontade real das partes e concluíram pela improcedência da ação.

A A. respondeu, concluindo como na PI.

Findos os articulados – estando a instância regular, estado em que se mantém – a Exma. Juíza, entendendo que estava em condições de decidir, proferiu saneador-sentença, “julgando procedente a exceção de caducidade invocada pelas RR. e, em consequência, absolveu as rés do pedido”.

Inconformada com o assim decidido, dele interpôs a A. recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação do Porto de 13/06/2023, foi julgado procedente, revogando-se o saneador-sentença e ordenando-se que os autos prossigam.

Agora inconformada a 2.ª R., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o decidido na 1.ª Instância.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1ª – A primeira e principal questão a resolver nesta sede prende-se com a interpretação e enquadramento jurídico do objeto e da natureza do concreto instrumento pretendido pela Autora, Massa Insolvente. Ou, dito por outras palavras, o que é que a Massa verdadeiramente “quis” com a presente ação. A questão de saber, em abstrato, quais sejam o/os instrumentos de acautelamento que estão à disposição do Sr. Administrador de Insolvência (única questão abordada pelo acórdão recorrido) é uma questão ad latere que, ainda que importante, não se mistura com aqueloutra.

2ª – Tornando-se mister analisar a concreta forma processual do apenso instaurado pela Massa Insolvente, o contexto em que o foi e ainda qual a sua causa de pedir e pedido formulados, verificamos desde logo que, apesar de ter “nascido” autónoma (em Juízo diferente, com forma de ação declarativa em processo comum) a ação proposta pela Massa… logo foi apensada ao processo de insolvência em que nos encontramos, mal “nasceu”.

3ª – Tal ação surgiu num contexto concreto e devidamente apurado de uma falha cometida pela Massa (Administrador de Insolvência) que, pese embora tenha até sido interpelado pelo Tribunal para propor ação de resolução em benefício da Massa (pois era já essa a sua intenção ants manifestada), nada fez em devido tempo, como decorre dos factos provados 4 e 12 a 15.

4ª – Quanto à causa de pedir da, formalmente apelidada, ação de nulidade, são inúmeras as alegações e argumentação que tentam justificar e demonstrar a situação de favorecimento da Ré em detrimento dos credores, a prejudicialidade, e o impedimento de praticar atos de diminuição de património.

5ª Relativamente ao pedido formulado, requer-se a nulidade do negócio de compra e venda… mas pedido-se a condenação da Ré a entregar diretamente à Autora (Massa) e não à insolvente, o imóvel objeto da ação.

6ª - Analisada esta factualidade e o verdadeiro contexto processual e substantivo não vemos como não dar razão à Sentença alcançada em 1ª instância que, antes de mais, concluiu que o que a Autora, Massa Insolvente, pretendeu e pretende com a presente ação é, na verdade, uma resolução em benefício da Massa.

7ª - E assim é porque todos os elementos analisados são próprios e exclusivos de uma resolução em benefício da Massa e não de uma ação de nulidade:

a) Trata-se de um processo que corre por apenso como ocorre numa ação de resolução (tendo sido instaurado inicialmente como autónomo apenas para tentar iludir qual fosse a verdadeira intenção com a ação, sem esquecer que o previsto no artº 85º CIRE apenas serve para ações pendentes e não para ações propostas após a declaração de insolvência);

b) A ação veio na sequência de uma assumida falha na efetivação da resolução em benefício da Massa pois seria essa a verdadeira intenção inicial (e ainda é, diga-se);

c) A causa de pedir envolve e praticamente se resume à alegação de factos relativos à prejudicialidade do acto em relação ao conjunto dos credores e à alegada má fé com que os intervenientes atuaram, isto é, elementos exclusivos da resolução em benefício da Massa e não da Acção simulatória, que depende de requisitos diferentes;

d) O pedido formulado expressamente traduz a intenção de pretender ver ingressado diretamente na esfera patrimonial da Massa o bem objeto da presente ação, sem passar pela insolvente, como sucede na resolução (sem esquecer que insolvente e Massa insolvente são pessoas jurídicas distintas).

8ª – São assim correctas (às quais aderimos incondicionalmente) as apreciações feitas pelo Tribunal de 1ª instância de que:

a) A autora formalmente apela à simulação (…) mas resulta claro, da matéria de facto alegada, que a mesma pugna pela resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda

b) É “inquestionável que a autora invoca matéria caracterizadora duma resolução em benefício da massa insolvente”

c) “a massa veio interpor a presente ação já depois do decurso do prazo de caducidade não peticionado – diretamente – a resolução em benefício da massa, mas, sim, a nulidade do negócio em causa, pretendendo, em última análise, a reintegração do imóvel na massa insolvente.

9ª – Isto sem nos esquecermos que na “caracterização não releva a qualificação jurídica conferida pela parte: trata-se de apurar qual a causa de pedir invocada, independentemente do nomen juris utilizado pela autora; é aoTribunal que cabe proceder ao enquadramento jurídico-normativo que considera correto, ainda que divergente do sustentado pelas partes” (ac STJ de 2.4.2019 -2134/17.3T8EVR.E1.S2).

10ª – Se, ao correto enquadramento jurídico vindo de realizar, somarmos o contexto específico em que surge esta ação de “nulidade” (pretendendo a Massa recorrer a um instrumento que viu caducar por sua própria incúria, dando-lhe apenas outro nome…) parece-nos evidente que não se poderá admitir a presente ação.

11ª - E não se diga que não o tenha podido fazer (pelas cartas não serem recebidas) pois que, “Não podendo ser realizada essa resolução por carta registada, nada obstava a que o pedido de resolução em causa fosse concretizado por meios judiciais” (pág. 15).

12ª – Assim, a “admitir-se a possibilidade de interposição desta ação, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto no C.I.R.E. para a resolução em benefício da massa insolvente.” (pág. 15)

13ª – Não existe assim aqui uma ação de nulidade por simulação mas sim uma ação de resolução em benefício da Massa “mascarada”, formalmente apelidada de Ação de simulação (como refere a Sentença) mas que, mesmo assim, não oculta a verdadeira natureza e objetivo da pretensão.

14ª – Motivo porque, ao contrário do que concluiu o acórdão recorrido, o aresto do Supremo Tribunal convocado na Sentença de 1ª instância (2134/17.3T8EVR.E1.S2) tem aqui completa e perfeita aplicação (ao contrário dos 2 arestos convocados pelo acórdão recorrido) por se tratar de uma situação idêntica: também aqui (como nesse caso) o que está em causa é a tentativa da “Massa” em pretender “mascarar” uma resolução em benefício da Massa, fazendo-a passar por uma ação de nulidade.

15ª – Também aí (como aqui) “a matéria de facto alegada pela autora não é substancialmente caracterizadora da simulação fundamento da putativa nulidade”. Também aí (como aqui) “a autora invoca a existência de simulação, para sustentar a prejudicialidade dos atos em relação à massa e formula a pretensão de obter a reintegração no património da insolvente dos bens que responderiam pelas dividas desta e assim, acautelar os interesses da generalidade dos credores. Parece pois evidente que se está a invocar matéria caracterizadora duma resolução em beneficio da massa insolvente e nela está a causa em que assenta a pretensão da A. – e se é essa relação que consubstancia a causa de pedir e funda o pedido, então é óbvio que estamos perante uma ação de resolução em beneficio da massa insolvente, que o tribunal assertivamente apreciou.”

16ª – “Ex adverso, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade”

17ª – Mas mais: Além de ser notória a verdadeira intenção desta ação (que não é outra a de “dar a volta” a uma caducidade evidente, numa intolerável fraude processual)… é igualmente incontornável uma outra fraude processual em se propor uma ação formalmente autónoma mas que logo depois vem a ser apensada ao processo de insolvência, apenas para tentar evitar a constatação daquela caducidade (dando a aparência de uma ação autónoma…).

18ª - Permitir que a Massa pudesse lançar mão de um outro instrumento quando não aproveitou e usou (por incúria exclusivamente sua) o instrumento adequado para o efeito, e colocando ardilosamente uma ação própria com o objetivo de depois a poder apensar à insolvência… seria permitir e tolerar um comportamento processualmente fraudulento! Seria um abuso de direito processual! (de conhecimento oficioso)

19ª - Apesar de “de per se”, a questão se dever resolver no âmbito da correcta interpretação do que esteja verdadeiramente em causa, e salvo melhor opinião, entendemos que a Massa e o Sr. Administrador de Insolvência não são “livres” de lançar mão a todos os instrumentos que a lei civil concede (nomeadamente os previstos nos artºs 605º e ss CC que Massa Insolvente refere) e mesmo que abstratamente com a finalidade de acautelar os credores. E assim é por vários argumentos de diversa ordem. Vejamos:

20ª - A - Desde logo o elemento histórico. Lembrando o anterior CPEREF, e como como referem Luís C. Fernandes e J. Labareda (in CIRE anot. 2ª ed, pág. 524 em anotação ao artº 120) “nesses preceitos previa-se, além da resolução, a impugnação dos atos do insolvente que, para demarcar do regime comum estabelecido nos artº 610º e ss do CC era designada de impugnação pauliana coletiva. O CIRE ao restringir significativamente o recurso a este meio (…) veio aplicar, em sede de resolução e respetivos requisitos, pontos do regime que nos direito anterior eram relativos aos atos suscetíveis de impugnação”.

Isto é, de todas as medidas civis de conservação de garantia patrimonial (4) apenas uma existia em âmbito falencial - a impugnação pauliana coletiva – e mesmo essa deixou de existir no âmbito do CIRE.

21ª - Tal “mudança” de regime (CPEREF > CIRE) não surge assim por mero acaso pois que, no “contrato social” ou “equilíbrio de interesses” que todas as leis procuram assegurar, é perfeitamente justificável que o legislador tenha querido restringir os meios que a Massa pudesse lançar mão em virtude da contrapartida de lhe “dar” um instrumento “fortíssimo” para acautelar os credores no âmbito do que houvesse para acautelar: a resolução em benefício da Massa.

22ª – Depois, (B) o elemento legal sob o prisma positivo: o instrumento legalmente adequado a procurar garantir a conservação da garantia patrimonial é a resolução em benefício da massa previsto nos artº 120 e ss do CIRE (e não outro). “Fortíssimo” porque apenas depende de 2 requisitos: a prejudicialidade à massa insolvente e a má-fé de terceiro. E mesmo esta última beneficia de várias presunções legais. Para não falar na resolução incondícional do artº 121º CIRE!

Sem olvidar que a lei insolvencial é, para todos os efeitos, uma lei especial em relação ao código civil a quem apenas vai “beber” em caso de lacuna. E não existe motivo para recorrer aos meios civis com um meio insolvencial tão forte.

23ª – Ainda, (C) o elemento legal sob o prisma negativo: Nada indica a Lei (CIRE) que permita fazer concluir que o Sr. Administrador de Insolvência (e a Massa que representa) possa lançar mão de todos os instrumentos que a Lei civil lhe concede, mesmo que exercidos dentro do processo de insolvência.

24ª – Não se recorra ao artº 82º/3/c) CIRE pois que esse remete para ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência e não para ações de invalidade. São regimes totalmente diferentes.

Não se confundem. E este aspeto não é coincidência ou falha legislativa: o artº 82º/3/c) CIRE é precisamente a peça (do puzzle da proteção dos credores que a lei consagra) que faltaria caso não existisse o instrumento da “resolução em benefício da massa”: para a indemnização, o artº 82º/3/c). Para a resolução de demais actos que afectem e prejudiquem os credores, a resolução em benefício da massa (120º CIRE). Simples.

25ª - Por outro lado, (D) o elemento teleológico: a necessidade de urgência na resolução das questões insolvenciais (aliás consagrada no artº 9º e pedra angular de toda a política legislativa insolvencial): Além de ser percetível que o legislador tenha feito substituir os meios civis de garantia patrimonial pela figura da resolução em benefício da Massa, a verdade é que não o fez por acaso mas antes para assegurar que a resolução das questões insolvenciais se faça de uma forma célere.

26ª - Se tolerássemos que a Massa pudesse, a qualquer altura (porque assim é a natureza do regime da nulidade), propor uma ação de nulidade a todo o tempo…,quando é que terminaria uma insolvência?

27ª - Até o princípio basilar da segurança do comércio jurídico apresenta limites: desde logo o tempo. Qual a utilidade de um processo insolvencial em que os credores tenham que estar à espera décadas para que se concluam todas as ações, mesmo que urgentes e mesmo corram por apenso ao processo de insolvência?

28ª - A certeza jurídica deve ser sempre temperada e equilibrada com outros valores, dando-se “saltos” de fé, determinando-se instrumentos que poderão não ser os mais “certos” (latu sensu) de minuciosamente analisados fosse, mas são os que se impõem sob pena se se perpetuarem no tempo (Justiça tardia não é seguramente Justiça.)

29ª - Não faria o menor sentido (não é esse o espírito da lei) que, com tais ações civis, pudesse um Sr. Administrador de Insolvência e a Massa Insolvente que representa perpetuarem uma insolvência, quando… têm ao seu alcance um instrumento mais célere, simples e eficaz que é, acrescentaremos nós, o único e exclusivamente adequado (120º CIRE).

30 – Seria uma incongruência legislativa conceder a oportunidade à Massa Insolvente a poder “tornear a lei”, propondo ação quando deixou indevidamente caducar o direito de exercer o seu direito potestativo à resolução em benefício da massa. Que sentido faria (que utilidade teria) o artigo 123º CIRE que justamente baliza no tempo a janela, pertentória, de oportunidade da Massa Insolvente?

Ou nas palavras do aresto deste Supremo vindo de citar, “Ex adverso, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade”.

31ª – Discorda-se assim dos argumentos expendidos no aresto da Relação do Porto (proc. 1967/17.5T8PRD) quando refere que, com o regime do artº 120º CIRE, “Não se pretende, ao estabelecer essas possibilidades de resolução, diminuir ou condicionar a tutela do património do insolvente, quando essa tutela careça, efectivamente, da propositura de acções…” entendendo que pode a Massa instaurar livremente tais ações.

32ª - Tal conclusão, aparentemente “bondosa”, é simplesmente indefensável. Pois que embora pareça virtuoso o objetico de procurar que os credores fiquem o melhor acautelados possível, concedendo-lhes todos os instrumentos que a Lei lhes dá, a verdade é que… não pode ser assim! E desde logo por razões de proteção dos próprios credores, impedindo-os de persseguir perpetuamente uma dada situação em detrimento da celeridade que é tão cara ao legislador e a eles próprios (credores).

33ª - Assim, porque, e sempre sem prejuízo de não nos encontrarmos aqui no âmbito de uma ação de nulidade (que apenas o foi formalmente classificada pela Massa Insolvente) – 1º erro do aresto recorrido…… a verdade é que, contrariamente ao que poderia ser a melhor opção legislativa, entendemos, numa correcta interpretação, estar vedado ao Sr. Administrador de Insolvência o recurso ao meios de garantia patrimonial previstos na lei civil, sobretudo quando este (Massa) tenham deixado caducar o direito potestativo à resolução por sua própria incúria. (2º erro do aresto recorrido). (…)”

Contra alegou a A., visando a manutenção do Acórdão da Relação.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

I. A petição inicial apresentada pela recorrida, nomeadamente a causa de pedir e o pedido, é de uma “típica” acção tendente à declaração de nulidade por simulação;

II. Para além da nulidade por simulação, a causa de pedir estriba-se em factos conducentes à declaração de nulidade por fraude à Lei e por abuso de direito;

III. A acção foi instaurada no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim e mais tarde apensada aos autos de insolvência, por ter sido requerido pelo Sr. administrador da insolvência no cumprimento das suas obrigações, em vista da celeridade processual conferida pelo carácter urgente do processo de insolvência e do maior ressarcimento dos credores, sendo este o fim último do processo de insolvência;

IV. Não é o facto do administrador da insolvência não ter querido ou conseguido exercer o direito à resolução do negócio em benefício da massa insolvente atempadamente, que o impede de lançar mão da acção tendente à declaração de nulidade;

V. A causa de pedir não se bastou com a alegação de factos exclusivos de uma típica acção de resolução de negócio em benefício da massa insolvente. Pelo contrário, a causa de pedir vertida pela recorrida é farta no que a factos integradores ao instituto da nulidade respeita;

VI. As causas de pedir na acção de resolução e na acção tendente à declaração de nulidade são próximas e, em parte, iguais, pelo que não pode deixar de haver similitude entre ambas.

VII. Mas nem por isso se pode, sem mais, reconduzir a causa de pedir de uma acção de nulidade à causa de pedir de uma acção de resolução, para concluir que, com base neste último regime, o direito da recorrida caducou.

VIII. Na petição inicial, a recorrente alegou todos os factos concretizadores e típicos de uma acção tendente à obtenção de declaração de nulidade de negócio jurídico.

IX. O regime especial (da resolução) não afasta ou impede o regime geral (da nulidade).

X. Atenta a causa de pedir e a pretensão da recorrida (declaração de nulidade do negócio), outro pedido não poderia ter sido vertido.

XI. No pedido formulado pela recorrida na petição inicial, também não existe correspondência substancial com o pedido típico de uma acção de resolução, sendo de notar que a recorrida pede a entrega do imóvel, mas não a reintegração do imóvel na massa insolvente, posto que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência e, bem assim, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – Cf. art.º 81º, do CIRE.

XII. A procedência do pedido principal [al. a)] tem por consequência indefectível a destruição do registo de aquisição a favor da recorrente, com a consequente reposição em vigor do registo de aquisição a favor da insolvente, mas não a favor da massa insolvente, como a recorrente pretende fazer crer;

XIII. O tribunal não está obrigado à qualificação jurídica dada pelas partes, mas também é certo que a qualificação a atribuir pelo tribunal não se poderá afastar, infundadamente, da causa de pedir e do pedido formulado, sendo de referir que o caso vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.04.2019, prolatado no âmbito do processo n.º 2134/17.3T8EVR.E1.S2, consultável em www.dgsi.pt, de que a recorrente se socorre para estribar a sua posição, não é sequer idêntico ao dos presentes autos, pois que ali apenas foram alegados factos tipo de uma acção de resolução;

XIV. Os regimes da ação de resolução e da acção tendente à declaração de nulidade são distintos, sendo o primeiro especial, dele se salientando, desde logo, o prazo de 6 meses contados do conhecimento (dentrodo prazo de 2 anos contados da declaração da insolvência) para exercício do direito, e a legitimidade para propor a acção pertencente ao administrador da insolvência em representação da massa insolvente, e o segundo é geral, dele sobressaindo, desde logo, o prazo geral de 20 anos para exercício do direito e a legitimidade para propor ação pertencente a qualquer interessado.

XV. Sem paralelo no regime da resolução, porque o vício é de tal forma grave, a nulidade é ainda de conhecimento oficioso – Cf. art.º 286º, do Código Civil (CC).

XVI. Um não exclui o outro, independentemente do administrador da insolvência não ter querido ou podido exercer o direito à resolução dentro do prazo de seis meses, contados do conhecimento;

XVII. Um regime (resolução), não afasta ou prejudica o outro (nulidade), parecendo-nos, até porque, para além de outras características únicas de cada forma processual (como os prazos de, respetivamente, dois e vinte anos, como a legitimidade de, respectivamente, pertencente ao administrador da insolvência e a qualquer interessado, como o do conhecimento oficioso para o caso da nulidade), a diferença destes regimes assenta, essencialmente, no facto do primeiro consagrar um conjunto de presunções probatórias a favor da massa insolvente e o segundo não.

XVIII. Basta ter presente, que tem vindo a ser considerado – erradamente a nosso ver – que a declaração onde o administrador da insolvência manifesta o exercício do direito à resolução é receptícia. Se acaso o escrito não for recebido dentro daquele prazo (o que não é difícil que o visado consiga), o administrador, de acordo com a tese da recorrente, já nada poderá fazer.

XIX. Estaria assim descoberto o caminho para sedimentar na ordem jurídica, aquilo que a lei não permite sedimentar pelo prazo de 20 anos (regime da nulidade);

XX. Com a entrada em vigor do CIRE a acção de impugnação paulina colectiva prevista no CPEREF foi eliminada e substituída pela acção de resolução;

XXI. A ação tendente à declaração de nulidade não é uma impugnação pauliana, nem tampouco uma acção de resolução.

XXII. O CIRE é um compêndio legislativo que contém um conjunto de leis especiais, não derrogando as leis gerais em tudo o que naquelas disposições não seja contrariado.

XXIII. Ao substituir a impugnação pauliana colectiva, prevista no CPEREF, pela acção de resolução, prevista no CIRE, o legislador apenas pretendeu introduzir um mecanismo mais célere no processo de insolvência, mas sem que, por isso, tenha afastado os regimes previstos nos termos gerais, nomeadamente o da nulidade dos negócios jurídicos.

XXIV. Ao contrário da impugnação pauliana, que apenas está na disponibilidade dos credores, aação de nulidade de actos praticados pelo devedor está na disponibilidade de qualquer pessoa que demonstre ter interesse na respectiva declaração (Cf. art.º 286º do CC), pelo que, ao contrário do que acontece com a impugnação pauliana, a circunstância de o CIRE não o prever expressamente não tem idoneidade para concluir que o administrador da insolvência não tem legitimidade para invocar a nulidade dos actos, porquanto esta legitimidade encontra apoio no Código Civil por se dever considerar – como consideramos – que a massa insolvente, através do administrador da insolvência, é interessada para esse efeito.

XXV. Não nos parece consentâneo com o pensamento do legislador e com a ordem jurídica em geral que, estando em causaum acto nulo, se limitasse profundamente a possibilidade de destruir os seus efeitos, por iniciativa da massa insolvente e do administrador da insolvência, aos casos em que é possível a resolução em benefício da massa insolvente, porquanto a nulidade pode e deve ser invocada e declarada a todo o tempo, como determina o art.º 286º do CC.

XXVI. À falta de qualquer estipulação no CIRE quanto à possibilidade do administrador da insolvência poder propor acção de resolução, haverá de concluir-se que ao administrador da insolvência não está vedada a possibilidade de lançar mão das acções tendentes à conservação das garantias patrimoniais, constantes do regime geral.

XXVII. Com a declaração de insolvência, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, tendo, durante a pendência da insolvência, exclusiva responsabilidade para propor e fazer seguir acções, ou seja, os poderes de que o insolvente é privado são atribuídos ao administrador que àquele se substitui – Cf. art.º 81, n.º 4, e art.º 82º, ambos do CIRE;

O argumento de que a acção tendente à declaração de nulidade determina uma morosidade do processo de insolvência, que não é compatível com a instauração de acção tendente à declaração de nulidade, cai na medida em que com a apensação aos autos de insolvência o processo assume carácter urgente.

Ainda que o administrador da insolvência tenha deixado caducar o seu direito de propor acção de resolução, nem por isso se pode considerar que o mesmo está a “tornear” a lei ao propor uma acção declarativa tendente à declaração de nulidade do mesmo negócio jurídico.

Se assim fosse, estaria descoberto o caminho para que os intervenientes num pacto simulatório saqueassem o que por direito pertence aos credores da insolvência, bastando apenas 6 meses contados do conhecimento do negócio jurídico por parte do administrador da insolvência e dentro do prazo de dois anos contados da data da declaração da insolvência, para que tal sucedesse.

Também não colhe o argumento de que a impossibilidade de lançar mão da acção de nulidade surge em defesa dos credores. Pelo contrário, considerando que os credores são os únicos prejudicados com a declaração da insolvência, ao administrador da insolvência competirá propor uma acção tendente à declaração de nulidade.

É que, o propósito principal do processo de insolvência passa pelo maior ressarcimento dos credores da insolvência e, nessa medida, tudo quanto a massa insolvente conseguir recuperar reverterá, a final e depois de convertido em dinheiro, a favor dos credores. Seguramente um credor preferirá aguardar que o processo de insolvência decorra, em teoria, por mais um ou 2 anos, acabando por receber os créditos reclamados, do que preferirá que o processo de insolvência encerre 2 anos antes, acabando por nada receber dos créditos reclamados.

Argumentar que uma massainsolvente não pode lançar mão da acção tendente à declaração de nulidade ou reconduzir, sem uma análise casuística, uma tal acção a uma acção de resolução em benefício da massa insolvente, aplicando-lhe as regras atinentes ao prazo de caducidade, porque a matéria ali alegada é próxima, idêntica ou igual à matéria alegada a propósito da resolução, constitui uma violação de um direito constitucionalmente consagrado, nomeadamente o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, plasmado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.

(…)

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

Nas Instâncias, foram fixados os seguintes factos:

1. A sociedade "Exlibris Baco, Nineyards Since 1769, Lda." foi declarada insolvente por sentença proferida em 16/3/2021, transitada em julgado.

2. Em 23/4/2021, o Sr. administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência apresentou, nesse processo, o relatório a que alude o art. 155.º do C.I.R.E.

3. Em 1/6/2021, o Sr. administrador da insolvência nomeado juntou aos autos um auto de Apreensão de bens arrolando para a massa uma habitação na cave, rés-do-chão, 1º e 2º andar registado na CRP nº 3081 - F" - na matriz urbana - Urbano 8128-F na Rua ..., dizendo no auto de Apreensão de bens que "O imóvel está em processo de Resolução, nos termos do artigo 120.º e 123.º do Cire, uma vez que foi vendido, conforme escritura notarial, em 26-04-2020, cujos intervenientes são familiares.".

4. Em 7/6/2021, o Sr. administrador da insolvência juntou aos autos de insolvência um requerimento dizendo que estava a proceder a resolução em benefício da massa nos termos do artigo 120.º e 123.º do CIRE, relativo ao Imóvel, vendido, c.fr. escritura em Notário, em 06-04-20.

5. O mesmo referiu nesse requerimento que as primeiras cartas remetidas para a resolução em benefício da massa insolvente haviam sido devolvidas pelo que remeteu 2.ªs vias das cartas.

6. Juntou a esse requerimento os avisos comprovativos da devolução das primeiras cartas remetidas para a resolução em benefício da massa, resultando dos mesmos que as primeiras cartas de resolução foram remetidas a 20/5/2021

7. No apenso de Apreensão de bens foi proferido despacho, em 29/6/2021, determinando-se a notificação do Sr. administrador da insolvência para "informar se procedeu à resolução em benefício da massa do contrato de compra e venda do imóvel que identifica e, em caso afirmativo, juntar documentos comprovativos dessa resolução a fim de se apurar em que data a mesma foi realizada."

8. O Sr. administrador da insolvência respondeu a essa notificação, em 2/7/2022, dizendo, entre outras coisas, que "Requeremos que através de Notificação Judicial Avulsa, em regra de custas, que seja notificado da resolução, conforme cartas anexas e auto de apreensão, cfr. os autos, para cada um dos intervenientes cujas cartas não foram recepcionadas.".

9. Por despacho de 7/7/2021 determinou-se a notificação do Sr. administrador da insolvência para "esclarecer se já requereu a notificação judicial avulsa que refere no seu requerimento apresentado em 2/7/2021 porquanto tal notificação judicial avulsa não pode ser requerida nestes autos."

10. Em 14/7/2021 o Sr. administrador da insolvência juntou aos autos uma notificação judicial avulsa que havia apresentado na Unidade Central de ....

11. Em 28/7/2021 o Sr. administrador da insolvência juntou aos autos uma certidão de não notificação extraída dos autos de notificação judicial avulsa n.º 3428/21.9...

12. Por despacho de 16/8/2021 determinou-se a notificação do Sr. administrador da insolvência para esclarecer o que tiver por conveniente, designadamente se irá avançar com a interposição de ação judicial para esse efeito nos termos do art. 126.º, n.º do C.I.R.E.

13. Em 30/9/2021 o administrador da insolvência nomeado em substituição do anterior administrador da insolvência veio ao apenso de Apreensão de bens informai que "verificando-se a caducidade do prazo para a ação de resolução, irá dar entrada de ação de nulidade da venda do imóvel"

14. Por despacho de 14/12/2021 foi proferido novo despacho notificando o Sr. administrador da insolvência para, em 5 dias, informar o que tiver por conveniente, designadamente se já interpôs acção de nulidade da venda do imóvel a que fez referência em 30/9/2021 e/ou que outra decisão tomou atendendo a que estes autos revestem carácter de urgência e que a sua inércia está a retardar o normal andamento do processo.

15. Em 22/12/2021 foi interposta a presente acção.

16. Em 06.04.2020, por escritura intitulada de "compra e venda", celebrada no Cartório Notarial de ..., sito na Rua ..., a fls. 101 e ss. do livro 3 -S, a insolvente vendeu e a segunda ré comprou o seguinte prédio: - Fracção autónoma, designada pela letra F, correspondente a habitação na cave, rés do chão, primeiro e segundo andar, sito na Rua ..., do prédio urbano sito em ..., ... da Rua ..., e Rua ..., composto de edifício de cave, rés do chão, primeiro, segundo, terceiro e quarto (este recuado) andares e logradouro, descrito na competente Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 3081 - F, da freguesia de ..., inscrito na matriz urbana da união de freguesias de ... e ... sob o artigo 8128 - F.

17. Naquele ato notarial, a primeira ré declarou que pelo preço de 283.484,42€ já recebido, vendia à segunda ré o prédio identificado no artigo antecedente.

18. Posteriormente à celebração da escritura e em consequência, a segunda ré registou a aquisição e averbou o prédio em seu nome junto da autoridade tributária.


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III – Fundamentação de Direito

Pode ou não – é esta a questão da presente revista, como era a da apelação e como foi a da decisão proferida na 1.ª Instância – um Administrador de Insolvência (AI) intentar uma ação visando obter a declaração de nulidade dum negócio jurídico celebrado pelo Insolvente (de cuja Massa Insolvente é AI)1.

Questão a que as Instâncias responderam diferentemente: a 1.ª Instância, negativamente, e a 2.ª Instância, afirmativamente (daí, a presente revista).

Para responder negativamente, argumentou-se na decisão da 1.ª Instância (sendo no essencial estes os argumentos aqui invocados pela 2.ª R./recorrente):

“(…)

A autora formalmente apela à simulação, à nulidade por violação da lei e por abuso de direito, mas resulta claro, da matéria de facto alegada, que a mesma pugna pela resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda.

A mesma, na petição inicial, apesar de dizer que a 1.ª ré não quis vender, nem a 2.ª ré quis comprar, o imóvel em causa, refere que “a insolvente, sabendo que não tinha capacidade de pagar e estancar os processos de natureza declarativa, antecipando a instauração das execuções, transmitiu o imóvel, assim obviando a que os seus credores pudessem garantir a satisfação do seu crédito, por um lado e, por outro lado, mantendo o imóvel na posse efectiva da “família””

De acordo com a alegação da autora, o negócio de compra e venda outorgado entre as partes visou frustrar a satisfação dos credores da insolvente, tratando-se, no fundo, de um ato gratuito, dizendo a autora que o preço não foi pago e, a ter sido, não teve qualquer real intenção de pagamento do preço, na medida em que tal quantia retornou à esfera da 2.ª ré ou dos seus sócios (embora não alegue quaisquer factos de onde resulte essa alegação).

Parece-nos, assim, inquestionável que a autora invoca matéria caracterizadora duma resolução em benefício da massa insolvente e nela está a causa em que assenta a pretensão da autora.

É certo que a autora veio peticionar a declaração de nulidade do contrato de compra e venda, mas para concluir que se ordene a condenação da 2.ª ré a entregar à autora o imóvel em causa.

Assim sendo, a pretensão da autora está necessariamente sujeita à resolução em benefício da massa e ao seu regime específico.

Com efeito, admitir-se a possibilidade de interposição desta ação estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto o C.I.R.E. para a resolução em benefício da massa insolvente.

Analisado o C.I.R.E. constatamos que o nosso legislador optou claramente por, neste diploma, consagrar um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente: o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

Este instituto permite, tal como peticiona a autora, obter a reintegração para a massa insolvente de ativo patrimoniais que hajam sido subtraídos pela prática de atos em determinado período de tempo.

Ora, ao pedir nesta ação a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelas rés, a massa insolvente pretende, apenas e só, que o imóvel em causa seja reintegrado na massa insolvente.

(…)

Sabendo o Sr. administrador da insolvência que dispunha do prazo de caducidade de seis meses, ou seja, que a ação teria que ser interposta até 20 de novembro de 2021, a verdade é que não interpôs a referida ação de resolução em benefício da massa até essa data, tendo deixado caducar esse direito, apenas tendo a presente ação sido intentada em 22 de dezembro de 2021.

Tendo sido ultrapassado esse prazo de 6 meses, a massa veio interpor a presente ação já depois do decurso do prazo de caducidade não peticionado – diretamente – a resolução em benefício da massa, mas, sim, a nulidade do negócio em causa, pretendendo, em última análise, a reintegração do imóvel na massa insolvente.

Salvaguardando o devido respeito por opinião contrária, o que a massa pretende através da presente ação é a reintegração do imóvel na massa.

E, embora faça alusão a nulidade do ato de compra e venda por simulação, por ser contrário à lei e abusivo, o regime aplicável é o da resolução, por se estar em sede especial insolvencial, “daí a relativa pouca importância conferida à alegação da factualidade conducente à nulidade (também consubstanciadora dos fundamentos de resolução), porquanto o que manifestamente relevava, como releva, é que o Sr. administrador da insolvência não procedeu, como se lhe imporia, à resolução atempada do negócio, de onde a operância da caducidade de harmonia com o disposto no artigo 123º, nº1 do CIRE, por estarem excedidos os prazos legais, como se concluiu” – ver acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 2/4/2019, processo n.º 2134/17.3T8EVR.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt.

Este tribunal não desconhece os inúmeros acórdãos de tribunal Superiores em que é dito que a massa insolvente pode interpor ação a peticionar a declaração de nulidade de negócios outorgados pela insolvente.

A verdade é que, salvaguardando o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que, tal como é mencionado no referido acórdão do Supremo tribunal de Justiça 2/4/2019 acima citado, entendemos que, estabelecendo o C.I.R.E. um regime de resolução de negócios em benefício da massa e um prazo de caducidade para se fazer operar essa resolução, não pode admitir-se que o Sr. administrador da insolvência deixe passar os prazos de caducidade previstos no C.I.R.E. para fazer operar a resolução e, posteriormente, lance mão de uma ação peticionado a nulidade do negócio como forma de, em última ratio, obter o mesmo efeito que obteria através da resolução – a reintegração de bens na massa insolvente.

Se assim se entender está descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade.

Aderimos, pois, integralmente ao entendimento propugnado no acórdão do Supremo tribunal de Justiça citado quando refere que “O AI querendo fazer operar a resolução do contrato de compra e venda, visando a reintegração do seu objecto na massa insolvente, deveria tê-lo feito atempadamente, no prazo de seis meses, de harmonia com o disposto no artigo 123º, nº1 do CIRE, sob pena de caducidade”.

E a verdade é que o Sr. administrador da insolvência, no processo de insolvência, referiu pretender resolver o ato em benefício da massa, não o tendo feito atempadamente.

Ora, não tendo o Sr. administrador da insolvência feito operar a resolução em benefício da massa no aludido prazo de 6 meses a contar do conhecimento do ato, entendemos que deve ser julgada procedente a exceção de caducidade invocada pelas rés e, em consequência, absolver as rés do pedido.

(…)”

Percebe-se o raciocínio – suportado no Ac. deste STJ de 02/04/2019, como se invoca – mas não se pode acompanhá-lo.

Se um Administrador de Insolvência intenta uma ação em que pede a declaração de nulidade dum negócio jurídico celebrado pelo insolvente, não se pode dizer – e é isso que acaba por ser dito na decisão da 1.ª Inst. e no invocado Ac. do STJ – que o que ele pretende é a resolução do negócio em benefício da massa, para, a partir daí, tratar e apreciar a ação como se se estivesse numa ação em que está em causa e em que se pede a resolução em benefício da massa e para, é o ponto saliente, lhe colocar termo com fundamento na procedência da exceção de caducidade (não, já se vê, da ação de nulidade intentada, mas sim da “requalificação” oficiosamente operada na ação).

Uma coisa é o poder de configuração jurídico-normativa que é conferido ao Tribunal pelo art. 5º/3 do C. P. Civil, outra coisa, diversa, é o Tribunal desconsiderar o que o A. invoca e pede e, contra e em desfavor da posição do A., dizer que o invocado e o pedido são coisas diferentes.

Consistindo o pedido no efeito jurídico que se pretende obter com a ação (cfr. art. 581.º/3 do CPC) – mais exatamente, no efeito prático-jurídico que o autor pretende obter – há muito que a jurisprudência considera, por ex., que não obstará ao sucesso duma impugnação pauliana pedir-se a nulidade do ato e não, como é juridicamente correto, a ineficácia relativa do ato.

Porém, “requalificar” juridicamente, em simultâneo, a causa de pedir e o pedido – que é o que no fundo é feito na decisão da 1.ª Instância – para lhe aplicar uma decisão de improcedência, por caducidade, não é processualmente admissível.

A liberdade de apreciação da matéria de direito por parte do juiz –pese embora o modo amplo como, no art. 5.º/3 do CPC, se diz que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – tem limites, como sejam os que decorrem do princípio do dispositivo (art. 3.º/1 do CPC), do princípio do contraditório (art 3.º do CPC), do princípio da estabilidade da instância (arts. 264.º e 265.º do CPC), das regras da preclusão (art. 573.º do CPC) ou do princípio do pedido (art. 609.º do CPC), limites que são ultrapassados quando, pela referida requalificação oficiosa, se opera uma verdadeira transmutação processual.

Quando um A. alega – ainda que mal – factos que, a seu ver, infetam com o vício de nulidade um negócio jurídico celebrado pelos RR. e pede, em conformidade, que se declare a nulidade de tal negócio jurídico, não pode o tribunal requalificar a causa de pedir e o pedido e dizer que a ação é outra coisa que não uma ação de nulidade, para a seguir dizer que a “ação requalificada” está sujeita a um prazo de caducidade já escoado: se o A. alega mal os factos, se os mesmos são insuficientes para integrar a nulidade invocada/pedida, o que o tribunal tem de fazer, naturalmente, é julgar a ação – como foi “qualificada” pelo A., ou seja, sem “requalificações” – improcedente.

Enfim, a presente ação tem que ser apreciada e considerada tal como foi intentada: é uma ação em que se invocam vícios geradores de nulidade e em que se pede que seja declarada a nulidade dum negócio jurídico, não é uma ação em que se invoca e pede a resolução em benefício da Massa Insolvente – sem prejuízo do que se alega também poder ser alegado numa resolução em benefício da Massa e sem prejuízo do objetivo ser, identicamente, a reintegração do imóvel na Massa.

E, sendo assim, toda a questão, passa “apenas” por saber, sem requalificações, se um Administrador de Insolvência pode intentar, como é o caso, uma ação visando obter a declaração de nulidade dum negócio jurídico celebrado pelo Insolvente.

Pode dar-se o caso – é uma hipótese de raciocínio que estamos a colocar – de haver disposições do CIRE de que resulte que o AI não pode pedir a nulidade de negócios jurídicos celebrados pelo Insolvente.

Veja-se o que sucede (em face das disposições introduzidas pelo CIRE) no “caso paralelo” (à resolução em benefício da Massa) da Impugnação Pauliana:

A impugnação pauliana, é sabido, é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do ato impugnado (assim como sucede na resolução em benefício da Massa): com a impugnação pauliana não aspira o credor a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer ato patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; com a impugnação pauliana, apenas pretende o credor que o ato seja ineficaz2 em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.

E a questão – daí esta pequena incursão – está em saber/dizer se um A. I. pode intentar uma impugnação pauliana (dum ato do devedor/insolvente):

Antes do CIRE, quer o art. 1201.º do CPC, quer o art. 157.º do CPEREF, previam explicitamente serem impugnáveis em benefício da massa falida os atos suscetíveis de impugnação pauliana; ações/impugnações que “eram dependência do processo de falência” e para as quais era conferida legitimidade ativa (cfr. art. 1204.º/1 do CPC e art. 160.º/1 do CPEREF) ao administrador/liquidatário (ação pauliana que, julgada procedente, beneficiava todos os credores, ou seja, os atos eram “impugnáveis em benefício da massa falida”, como se dizia no art. 157.º do CPEREF).

Hoje, diversamente, o CIRE não contém qualquer preceito a prever, no âmbito da insolvência, a impugnação dos atos suscetíveis de impugnação pauliana; não admite sequer (cfr. 127.º/2 do CIRE) que quaisquer ações/impugnações paulianas pendentes sejam apensas ao processo de insolvência; e também não confere expressamente ao administrador de insolvência legitimidade ativa para intentar tais ações/impugnações.

Mais, o CIRE só admite que prossigam ou sejam instauradas ações paulianas (que nunca serão apensas) de atos cuja resolução não haja sido declarada (ou em que esta seja declarada ineficaz por decisão definitiva) pelo administrador de insolvência (como resulta do art. 127.º/1 e 2 do CIRE) e, nesse caso, “julgada procedente a ação de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do art. 616.º do C. Civil, com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos” (cfr. 127.º/3 do CIRE).

Ou seja, o CIRE, além do que deixou de prever quanto à impugnação pauliana (por comparação com a legislação anterior), afastou-se concludentemente (como resulta do transcrito 127.º/3) da tradição anterior, que determinava (como se referiu) que a procedência da impugnação pauliana aproveitava à comunidade dos credores: além da alusão ao interesse do credor nos remeter para a ação pauliana singular, só é concebível que o interesse do credor seja aferível “com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos” se, logicamente, a impugnação só aproveitar/beneficiar o credor/impugnante.

Em síntese, o CIRE rejeita as especialidades que a ação pauliana tinha nas codificações falimentares anteriores, dá prevalência à resolução declarada pelo administrador de insolvência e restitui (comprimida por tal prevalência) a impugnação pauliana à configuração e recorte que a mesma tem na lei geral (610.º e ss. do C. Civil): meio de conservação patrimonial (que não coloca em crise a validade do ato impugnado), em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer ato patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo, mas em que apenas pretende que o ato seja ineficaz em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.

Sendo assim, em face de tal ineficácia relativa da lei geral (aproveitando os efeitos da impugnação apenas ao credor impugnante), sem lei expressa – como dantes acontecia quer com os art. 1201.º e 1204.º do CPC quer com os art. 157.º, 159.º e 160.º do CPEREF – uma ação pauliana (com efeitos de “ineficácia coletiva/universal”) não existe verdadeiramente e, por conseguinte, podemos afirmar – é onde se pretende chegar com esta breve incursão – que das disposições introduzidas pelo CIRE resulta que o AI não pode (deixou de poder, face à lei anterior) impugnar paulianamente negócios jurídicos celebrados pelo devedor/Insolvente.

Mas – é o ponto – já não resulta de quaisquer disposições introduzidas pelo CIRE que o AI não possa invocar e pedir que negócios nulos praticados pelo devedor/insolvente sejam assim declarados com todas as consequências legais.

O CIRE dá, muito claramente, prevalência à resolução declarada pelo AI, mas tal não significa, pese embora tal prevalência, que um negócio do insolvente infetado com vícios geradores de nulidade não possa ser atacado pelo AI.

Um negócio nulo – nulidade que, todos o sabemos, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. 286.º do C. Civil) – não deixa de o ser por um dos contraentes ter sido declarado insolvente.

Sendo o AI a pessoa incumbida da gestão e liquidação da Massa Insolvente no âmbito do processo de insolvência, cabe-lhe o dever de apreender e fazer ingressar na Massa todos os bens que dela possam/devam fazer parte, pelo que, sabendo da existência de negócios nulos praticados pelo devedor/insolvente, é um “interessado”, para efeitos do art. 286.º do C. Civil, que pode invocar/pedir tal nulidade (tendo em vista fazer ingressar os objetos mediatos de tais negócios jurídicos na Massa Insolvente).

E não é por, antes, o AI não ter cumprido devidamente tal dever, ou seja, não é por, antes, como sucede nos autos3, não ter intentado oportunamente a resolução em benefício da Massa, deixando caducar tal resolução, que fica impedido de, sendo o caso, invocar/pedir a nulidade do negócio jurídico em causa (ou seja, não fica impedido de tentar sanar o seu próprio e anterior incumprimento, traduzido na não resolução oportuna em benefício da massa)4.

Sem que se possa dizer, pertinentemente, que, em tal hipótese, a admitir-se a possibilidade de intentar a ação de nulidade, “estaria descoberto o procedimento (…) para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade previsto o C.I.R.E. para a resolução em benefício da massa insolvente.

É que tal solução não obstaculiza o prazo de caducidade do art. 123.º do CIRE: não se diz que a resolução em benefício da massa não haja caducado (a resolução, não há qualquer dúvida ou divergência, caducou).

O que se diz é que, agora, na ação de nulidade, estamos noutro e diverso meio processual, em que o que se invoca tem outros e mais exigentes requisitos/pressupostos, sendo estes e não os da resolução em benefício da massa que têm que ser/ficar alegados/demonstrados.

Importa não esquecer que, por meio do instituto da “resolução em benefício da massa insolvente”, o CIRE instituiu um mecanismo de reconstituição do património do devedor que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de atos prejudiciais a esse património, com vista a apreender para a massa insolvente aqueles bens que nela se manteriam caso não houvessem sido pelo devedor/insolvente praticados ou omitidos atos que se mostram prejudiciais à massa; “destruição” que pode ocorrer, de acordo e nos termos dos art. 120.º e 121.º do CIRE, por via quer da “resolução condicional” quer da “resolução incondicional”, sendo que, no caso desta última (resolução incondicional), apenas se exige, para os atos serem resolvidos, que os mesmos integrem algum das concretas hipóteses normativas previstas na várias alíneas do art. 121.º/1 do CIRE, não se exigindo a alegação e prova da prejudicialidade e da má-fé do terceiro interveniente, ou seja, é o que se pretende significar, ao ficar caduca a resolução, perde-se um mecanismo expedito e ágil de reconstituição do património do devedor.

E importa ter presente que este mecanismo apenas engloba os atos prejudicais à Massa praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, o que não pode querer significar que todos os atos temporalmente anteriores do devedor/insolvente ficam a coberto de todo e qualquer tipo de impugnação (de qualquer outro mecanismo de reconstituição do património do devedor): apenas significa que os atos anteriores aos dois anos ficam a coberto do mecanismo expedito da Resolução em Benefício da Massa, mas sujeitos a outros “mecanismos”, desde que estejam verificados, claro está, os respetivos requisitos/pressupostos (que serão certamente mais exigentes)5.

A realidade da vida dá lugar, em inúmeros casos, a vários tipos de tutela jurídica e se uma delas se extingue, por prescrição ou caducidade, tal não significa que todas as restantes tutelas também se extingam (é relativamente comum um lesante incorrer tanto em responsabilidade contratual como a extracontratual e esta prescrita não fica o lesado impedido de invocar aquela).

Por conseguinte – aqui e em todos os casos em que tal sucede (em que há várias tutelas alternativas/cumulativas) – há que apurar se se verificam os requisitos/pressupostos da tutela que, no processo concreto, se invoca e peticiona.

Em síntese conclusiva:

O AI é um interessado para efeitos do art. 286.º do C. Civil e pode intentar uma ação a invocar e pedir a nulidade de negócios jurídicos celebrados pelo devedor/insolvente.

Tendo intentado tal ação – a invocar e pedir a nulidade dum negócio jurídico – é como o AI configura a ação que a mesma tem que ser apreciada/julgada, ou seja, não se pode dizer que o que ele invoca e quer é a resolução em benefício da massa (e dar como desfecho, a uma ação em que se pede uma declaração de nulidade, uma decisão de improcedência por ser “procedente a exceção de caducidade6).

E isto é assim ainda que o A. (AI) não haja alegado “bem”, ainda que não haja alegado devidamente os requisitos/pressupostos da(s) nulidade(s) que diz invocar, ainda que, configurando-se corretamente o que o A. alegou, se deva concluir que a sua alegação corresponde apenas aos requisitos/pressupostos da resolução em benefício da Massa (em tal hipótese, o desfecho da ação será a improcedência e não “procedência da exceção de caducidade”).

E com isto não queremos dizer que é este o caso, que o AI alegou “mal”, tendo em vista o que diz invocar e pedir (apenas quisemos dizer que, mesmo quando alega “mal”, o processo deve prosseguir para a referida apreciação).

Bem recentemente, esta 6.ª Seção (competente em matéria de insolvência), pronunciou-se (no Ac. STJ de 28/06/2023, Processo: 1936/15.0T8VFX-R.L1.S1, disponível no ITIJ) sobre um caso de contornos factuais muito semelhantes aos alinhados pelo A. na PI, nos seguintes termos (sumário de tal Acórdão):

Não preenche os requisitos/elementos da simulação absoluta o trespasse dum estabelecimento comercial efetuado entre duas sociedades com o fim de desmantelar/esvaziar a trespassante e de defraudar e prejudicar os seus credores: a realização de tal negócio é até, em termos necessariamente efetivos e reais, um instrumento para a consecução do pretendido fim/resultado negocial (desmantelar/esvaziar a trespassante), ao arrepio de toda e qualquer intencionalidade simulatória.

Estando provado que a trespassante, entretanto declarada insolvente, alienou o seu estabelecimento comercial “a fim de defraudar as expectativas dos seus credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos”, “com intento prejudicial aos interesses dos seus credores” e visando “desmantelar” a trespassante que assim ficou “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, dando-se o caso de as contraentes em tal alienação/trespasse serem sociedades da titularidade, em idêntica percentagem, dos mesmos dois sócios e da trespassária haver sido constituída no próprio dia do negócio e não ter ficado provado o pagamento do respetivo preço, deve entender-se que ocorre ilicitude do fim com que as partes celebram tal negócio jurídico.

Um tal negócio, atenta a finalidade do mesmo, configura uma conduta próxima das que estão tipificadas como constituindo crimes de insolvência dolosa do art. 227.º do C. Penal, devendo considerar-se que o fim de tal negócio colide com os princípios que integram a Ordem Pública e que se deduzem de tal tipo criminal e dos preceitos legais (como os arts. 601.º, 605.º e 610.º do C. Civil) que defendem o credor contra os atos de esvaziamento e dissipação do património do devedor.

Ademais, alienar património, para fugir aos credores, em proveito próprio (indireto, na medida em que, através da trespassária, o estabelecimento continuava na titularidade das mesmas pessoas), deixando a alienante/trespassante “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, é um negócio que é eticamente reprovável, que não está de acordo com a decência económica e do inter-relacionamento entre pessoas e cujo fim, por isso, é contrário aos Bons Costumes.

Com um tal negócio/trespasse, apenas se visou retirar o estabelecimento da esfera jurídica da devedora e ora insolvente, para defraudar os seus credores, colocando-o “a salvo” (dos credores) na esfera jurídica de outra sociedade (detida exatamente pelas mesmas duas pessoas que eram titulares da vendedora/trespassante), pelo que é incompatível e inadmissível à luz dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa manter a validade de um negócio jurídico celebrado em tais termos e com tal fim.

Tendo-se provado que a ilicitude do fim é comum aos dois contraentes do negócio, é a globalidade negocial que fica em causa, tendo tal ilicitude do fim negocial como consequência a nulidade do próprio negócio, de acordo e nos termos do art. 281.º do C. Civil.

O que se acaba de transcrever é, naturalmente, um obiter dictum, uma vez que não faz parte do estrito objeto da presente revista dizer/decidir se o que o A. alegou “dá” ou não, devidamente demonstrado, para alguma das nulidades por ele invocadas, porém, face ao que se considerou/decidiu em tal Acórdão, até temos que admitor que sim: o alegado pela A., desde que devidamente demonstrado, é suscetível de configurar um negócio jurídico com fim contrário à Ordem Pública e ofensivo dos Bons Costumes (com o que até podemos dizer que a “requalificação” operada na 1.ª Instância e agora pretendida pela R./recorrente, para além de ser processualmente inadmissível, também não estará substantivamente correta).

É quanto basta para julgar totalmente improcedentes as conclusões da 2.º R./recorrente e para negar a revista.

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IV - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a revista.

Custas pela 2.ª R./recorrente.

Lisboa, 02/11/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Ana Resende

Ricardo Costa, vencido conforme declaração anexa.

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1. Ou seja, não é exatamente como se diz no Acórdão recorrido, em que se parece cingir a questão à propositura de ação visando obter a declaração de nulidade, com fundamento em simulação; aliás, como resulta do breve relatório, supra efetuado, a A. não invoca, para a declaração de nulidade, apenas e só a simulação.↩︎

2. Antunes Varela, in RLJ, ano 122º, pág. 252 e ss.; Almeida e Costa, Obrigações, 4.ª ed., pág. 599.↩︎

3. O anterior Administrador de Insolvência.↩︎

4. Sanação, por parte do AI, que, claro, só pode ocorrer até ao encerramento do processo, momento em que o devedor/pessoa singular recupera a gestão dos seus negócios e em que o devedor/sociedade é extinto, ou seja, a segurança e a certeza jurídicas não são, ao contrário do que a 2.ª R. invocada, colocadas em causa (a incerteza e insegurança que possa existir decorre apenas do legislador fazer em relação aos negócios nulos um juízo bastante desvalioso: o legislador considera que estão em jogo interesses de ordem pública e nega-lhe eficácia, não aceita que o vício seja sanado e permite a sua arguição sem limite de tempo).↩︎

5. Com exceção, como se expôs, da impugnação pauliana (por resultar do CIRE o seu afastamento).↩︎

6. É de facto um pouco estranho que uma ação que pode ser intentada a todo o tempo possa terminar por caducidade.↩︎

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Processo: 3174/20.0TBSTS-F.P1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção


Votei vencido.


Não está em causa a bondade do argumentado sobre a legitimidade do administrador de insolvência (AI) para, em representação da massa insolvente, arguir a ineficácia de negócios jurídicos (nulidade, anulação, inefácia relativa) do insolvente1, nem a autonomia nesta acção do respectivo pedido e sua causa de pedir.


O que decisivamente releva, atenta a materialidade dada como assente, em especial os factos provados 4. a 15., é a utilização – ou valorização exclusivamente formal – dos princípios de ordem processual que legitimam a presente acção para, vista a tramitação nos autos, contornar ou defraudar a especialidade da disciplina da resolução dos negócios em benefício da massa insolvente (arts. 120º e ss do CIRE) – também essa reconduzível a uma espécie de ineficácia2 –, quando dessa factualidade decorre com forte impressividade que a extinção por meio dessa resolução específica constituía o intento do primeiro AI para reintegrar a massa insolvente com o bem imóvel pertinente (cfr. factos provados 4. a 11.), afectado pelo decurso do prazo de caducidade que condicionava tal intento para exercicio do direito potestativo à resolução (art. 123º, 1, do CIRE), sendo tal impedimento superado depois pelo recurso à nulidade, sem dependência de tempo para invocação, por parte do segundo AI.


O facto 13. é elucidativo:


“Em 30/9/2021 o administrador da insolvência nomeado em substituição do anterior administrador da insolvência veio ao apenso de apreensão de bens informar que ‘verificando-se a caducidade do prazo para a ação de resolução, irá dar entrada de ação de nulidade da venda do imóvel’”.


Nesta tipologia de situações, confrontados com a especialidade ditada pelo CIRE, julgo estarmos perante manifesto abuso processual (traduzido em inadmissível conduta contraditória), conducente à preclusão do direito de acção judicial3 que o AI veio a protagonizar nesta acção. E, dado como assente a perda do direito processual por aplicação do art. 334º do CCiv. (no âmbito do conhecimento oficioso proporcionado pelos arts. 5º, 3, e 608º, 2, 2.ª parte, do CPC)4, o recurso ao critério gizado pelo Ac. desta 6.ª Secção do STJ, proferido em 2/4/2019 (processo n.º 2134/17, Rel. Ana Paula Boularot), deveria prevalecer e fazer decair a pretensão materializada no pedido de declaração de nulidade.


Repristinaria a sentença proferida em 1.ª instância, aproveitando igualmente uma boa parte da sua fundamentação, ainda que em conjugação com o predito, e julgaria procedente a revista.


STJ/Lisboa, 2/11/2023


O 2.º Adjunto


Ricardo Costa

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1. Na verdade, a resolubilidade dos actos do insolvente no quadro do mecanismo previsto no CIRE não afasta os mecanismos comuns de tutela da garantia patrimonial (convergentes, LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2013, sub art. 120º, pág. 525), com excepção do regime previsto no art. 127º para a impugnação pauliana.↩︎

2. V. MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, “Um confronto entre a resolução em benefício da massa insolvente e a impugnação pauliana”, IV Congresso de Direito da Insolvência, coord.: Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 134-135.↩︎

3. Em abono, ex professo, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa in agendo, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 83 e ss (“A eficácia material das regras do processo não se denota, apenas, na sua funcionalização aos objectivos substantivos. (…) Noutros termos: o nível adjectivo não é arbitrário: ele próprio integra-se na ordem jurídica, promovendo o repercutir dos seus valores fundamentais.”), em esp. 92 (“As acções judiciais intentadas contra a confiança previamente instilada ou em grave desequilíbrio, de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas.”).↩︎

4. Regime que vem sendo tratado e densificado pelo STJ com acuidade ao longo dos anos: v., mais recente e exemplificativamente, os Acs. de 12/1/2021, processo n.º 2689/19, Rel. Maria Clara Sottomayor, e de 5/6/2018, processo n.º 10855/15, Rel. Henrique Araújo, sempre in www.dgsi.pt.↩︎