Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1032
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
TELECOMUNICAÇÕES
Nº do Documento: SJ200306050010327
Data do Acordão: 06/05/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 358/02
Data: 11/06/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1 - O direito de exigir o pagamento do preço dos serviços públicos essenciais previstos na Lei nº. 23/96, de 26 de Julho prescreve no prazo de seis meses após essa prestação - artº.10º, nº. 1 da Lei;
2 - a prescrição prevista nesta disposição legal tem natureza extintiva e não simplesmente presuntiva;
3 - o disposto na al. g) do artº. 310º do CCivil não tem aplicação às dívidas provenientes da prestação deste tipo de serviços.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A, S.A." propôs no Tribunal Judicial de Braga contra B acção ordinária pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 5.155.013$00, montante somado de facturas em dívida (4.447.478$00) e juros vencidos (707.535$00) pela utilização da rede pública de telefone e respectivo tráfego.
O réu contestou (fls. 23), desde logo por excepção, invocando a prescrição resultante da aplicação ao caso do prazo de seis meses previsto no artº. 10º da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho, dado que o serviço público de telefone é um serviço público essencial.
A autora replicou (fls. 34) dizendo, além do mais e em resumo:
que «a prescrição invocada pelo réu ... apenas se reporta ao direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, prazo que se esgota com a apresentação da factura, como decorre da conjugação dos artºs. 9º, nºs. 4 e 5 e 16º, nºs. 2 e 3 do Dec.lei nº. 381-A/97, de 30 de Dezembro ... sendo o prazo de prescrição de seis meses o lapso de tempo decorrido desde a prestação do serviço até à data de apresentação da factura e não até à data da propositura da acção judicial»;
que parte do valor das facturas se refere a chamadas de valor acrescentado e serviços móveis, que a Lei nº. 23/96, de 26 de Julho não consagra como serviços públicos essenciais.
O réu treplicou (fls.64), insistindo pela prescrição invocada.
Em despacho saneador-sentença de fls. 77 a 83 o Tribunal Judicial de Braga julgou «a acção improcedente (por procedência da excepção peremptória da prescrição», absolvendo o réu do pedido.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (fls. 114 e 115), em recurso de apelação interposto pela autora, foi confirmada a sentença.
Inconformada, interpõe a autora o presente recurso de revista, alegando a fls. 149 com as seguintes CONCLUSÕES:
1. - Entendendo-se que a prescrição prevista na Lei 23/96, tem natureza extintiva, há que atender ao prescrito no citado diploma (nº. 1 do artº. 10º do citado diploma), em conjugação com o disposto, nos nºs. 4 e 5 do artº. 9º e nºs. 2 e 3, do artº. 16° do DL nº. 381-A/97, de 30 Dezembro - diploma que regulamenta a Lei de Bases das Telecomunicações (Lei 91/97, de 1 de Agosto).
2. - Ambos os diplomas referem expressamente " o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado " (cfr. n° 1 do artº. 10º da Lei 23/96 e nº. 4 do artº. 9º e n° 2 do artº. 16º do DL n° 381-A/97).
3. - Direito que se tem por exercido pela simples apresentação das facturas.
4. - Por contraposição ao direito de exigir o crédito aqui em causa.
5. - De facto, o Dec.lei nº. 381-A/97 não só insistiu no conceito de direito de exigir o pagamento do preço, como até o definiu por referência à data da apresentação da factura, computando o prazo de prescrição como sendo o lapso de tempo decorrido desde a prestação do serviço até à data da apresentação da factura.
6. - E não tendo sido derrogada, quanto a esta matéria a alínea g) do artº. 310º do CCivil, prescrevem no prazo de cinco anos quaisquer prestações periodicamente renováveis, onde claramente se incluem as prestações oriundas do contrato de prestação de serviço telefónico.
7. - O crédito da autora resultava não só da prestação do serviço público essencial mas também da prestação de outros serviços como serviços de audiotexto e móveis, prestações ou serviços que se suportam no serviço fixo de telefone mas que não cabem no âmbito do serviço universal de telecomunicações (preâmbulo do Dec.lei nº. 458/99, de 5/11 e artºs. 2º, 3° e 4 o do mesmo diploma legal).
8. - Não são aplicáveis ao crédito da recorrente, pelo menos na parte resultante da prestação de serviços de audiotexto e móveis, as regras da prescrição previstas na Lei nº. 23/96, de 26 de Julho.
9. - Que apenas se aplicam à prestação do serviço telefónico público essencial, conforme resulta do seu artigo 1º.
10º. - Pelo que tem aplicação, no entendimento da recorrente, e no caso sub judice, as regras gerais sobre prescrição estabelecidas no Código Civil e previstas no artigo 310º, g) .
11º. - Errada foi a interpretação dada às normas do artº. 1º, 5º e 13º da Lei 23/96, de 26/07, assim como às normas do artº. 1º do Dec.lei nº. 177/99, de 21/05, e artºs. 2º, 3º e 4º do Dec.lei 458/99, de 5/11.
Contra-alega o réu a fls. 163 no sentido de ser negada a revista pretendida.
FACTOS fixados pelas instâncias:
a) A autora tem por objecto a exploração e prestação do serviço público de telecomunicações;
b) O réu requereu à autora a prestação do serviço de telefone mediante o pagamento mensal das taxas fixadas no tarifário em vigor;
c) Satisfazendo o pedido, a autora montou na residência do Réu, na Rua ..., Fafe, o posto telefónico com o n° ...;
d) Desde então a referida rede pública comutada passou a ser utilizada, sendo originadas e recebidas chamadas, sendo debitadas ao réu, mensalmente, as facturas correspondentes a essa utilização e tráfego gerado, e que incluem o valor das chamadas efectuadas e taxas de assinatura mensal e que deveriam ser pagas no prazo nas mesmas referidas;
e) O réu foi interpelado pela autora para proceder ao pagamento relativo ao mês de Abril de 2000, através de factura com data limite de pagamento de 2 de Maio de 2000, e datada de 18/04/2000 (fls. 7);
f) O réu foi interpelado pela autora para proceder ao pagamento relativo ao mês de Maio de 2000, através de factura com data limite de pagamento de 29 de Maio de 2000, e datada de 15/05/2000 (fls. 8);
g) As referidas facturas foram apresentadas ao réu para pagamento dentro do prazo de seis meses após a sua emissão;
h) A presente acção deu entrada em juízo no dia 19/09/2001 e o réu foi citado em 22/10/2001 (fls. 21 e 22).

Duas questões nos vêm colocadas na revista.
A saber:
1 - de como interpretar e aplicar os artºs.10º, nº. 1 da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho, os artºs. 9º, nº. 4 e nº. 5 e 16º, nº. 2 e nº. 3 do Dec.lei nº. 381-A/97, de 30 de Dezembro e o artº. 310º, al. g) do CCivil, no que toca à prescrição do crédito do preço da prestação do serviço telefónico;
2 - da aplicação ou não dessas mesmas regras ao crédito pelo preço do serviço de audiotexto ou (e) de serviços móveis, atento também o disposto no artº. 1º do Dec.lei nº. 177/99, de 21 de Maio e nos artºs. 2º, 3º e 4º do Dec.lei 458/99, de 5 de Novembro.
O que dizer quanto à primeira questão?
A Lei nº. 23/96, de 26 de Julho «cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais». A protegê-lo, no que diz respeito ao que é serviço essencial, do maior poderio das empresas com as quais se vê obrigado a contratar; protegê-lo mesmo de si próprio, perante tentações de consumo excessivo que a «essencialidade» hodierna dos bens em causa e a facilidade tecnológica da sua utilização potenciam, arrastando para uma possibilidade de sobreendividamento que de todo em todo a lei quer evitar.
E é neste sentido que não há como pagar hoje o que hoje se consome; impõe-se prevenir e evitar a indesejada hipótese de acumulação excessiva de pagamentos parciais de preço que se vão acumulando no tempo.
Ora isto só se consegue impondo ao credor, ao fornecedor dos bens e serviços considerados pela lei como essenciais - para o que aqui importa o «serviço de telefone» da al. d) do nº. 1 do artº. 1º da lei - a obrigação de agir rápida e atempadamente na cobrança dos seus direitos, por esta via fazendo com que o consumidor pague em cada dia o que em cada dia consome, passe a expressão, e tranquilizando-o para o futuro, sabendo que o credor lhe não pode vir exigir mais tarde aquilo que oportunamente lhe não pediu.
Só assim se assegura uma melhor qualidade de vida dos utentes, sem que se possa dizer que se faz recair um excessivo encargo sobre os fornecedores, humanamente e tecnologicamente bem apetrechados para responder a esta necessidade da «ordem pública de protecção ou ordem pública social» - ver Calvão da Silva, RLJ, Ano 132º, pág. 154, em anotação a acórdãos da Relação do Porto e da Relação de Lisboa.
Ora bem:
é para atingir este desiderato que o artº. 10º, nº. 1 da Lei estabelece que o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.

Quer dizer:
em prestações deste tipo, que (também) periodicamente se renovam, que mensalmente se renovam, já não necessita o eventual devedor, para ficar descansado, de esperar os cinco anos previstos no artº. 310º, al. g) do CCivil, mas basta-lhe o período de seis meses previsto na lei de protecção do utente de serviços essenciais.
A prescrição como facto extintivo de obrigação que eventualmente tenha assumido já não necessita do prazo de cinco anos do artº. 310º; contenta-se com o prazo de seis meses do artº. 10º, nº. 1 da sua (dele, consumidor de serviço de telefone) lei de protecção.
O universo jurídico desaplicou ao caso o CCivil e, para proteger o utente do serviço, fê-lo cair no enquadramento do artº. 10º, nº. 1.
A prescrição expressa neste artigo pela fórmula o direito de exigir o pagamento do preço ... prescreve... é, claramente, uma prescrição extintiva - neste sentido o já mencionado comentário de Calvão da Silva. Nada tem a ver com a presunção de cumprimento da obrigação.

A fórmula do artº. 10º, nº. 1 da Lei nº. 23/96 passou, ipsis verbis, para duas disposições do Dec.lei nº. 381-A/97, de 31 de Dezembro, que regula o regime de acesso à actividade dos operadores de redes públicas de telecomunicações e dos serviços de telecomunicações de uso público em desenvolvimento da Lei nº. 91/97, de 1 de Agosto, a Lei de Bases das Telecomunicações.
Sob a rubrica «Protecção dos utentes» - artº. 9º, nº. 4 - e sob a rubrica «Sistemas de preços» - artº. 16º, nº. 2 - lá aparece o mesmo texto - o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
O mesmo texto, o mesmo desenho da prescrição como factor extintivo do direito do credor, o prestador do serviço. Nem podia ser outra coisa, dado o carácter injuntivo que a Lei nº. 23/96 quis dar - explicitamente! - aos direitos que atribui aos utentes de serviços públicos essenciais.
O que prescreve é o direito do credor; e esse - di-lo a lei - prescreve decorridos seis meses sobre a prestação do serviço.
Com o decurso desse prazo morre o direito do credor, o direito de exigir o cumprimento da contraprestação do devedor, ou seja, o pagamento do preço.
E só não morre se se verificar algum dos factos que evitam a extinção dos direitos por esta via, que interrompem a prescrição.
Necessariamente, com os condicionamentos previstos no artº. 326º, nº. 1 do CCivil - a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo ...
Um novo prazo de seis meses, já se vê.
A menos que se pretendesse (contra o expressamente determinado pelo nº. 2 do artº. 326º - a nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva ...) que o novo prazo a contar fosse agora o da al. g) do artº. 310º do CCivil.
O que seria absurdo - a lei, que em nome do interesse dos utentes queria encurtar drasticamente o prazo de prescrição, teria encontrado afinal um prazo somado ainda mais lato do que o vulgar prazo de prescrição das outras prestações periodicamente renováveis... apesar de não essenciais.
Dito isto, importa realçar a factualidade a ter em conta:
os consumos são respeitantes aos meses de Abril e Maio de 2000;
as facturas foram emitidas em 18 de Abril e 15 de Maio de 2000;
o réu foi citado para a acção apenas em 22 de Outubro de 2001, numa acção proposta em 19 de Setembro de 2001.
Desde os consumos até à propositura da acção, à citação do réu;
desde mesmo a emissão das facturas até à propositura da acção, à citação do réu,
correram - é o tempo! - muito mais de seis meses.
Há muito estava, então, prescrito o direito da autora
quer se considerem como factos interruptivos da prescrição apenas os previstos no artº. 323º, nº. 1 do CCivil, quer se considere também como facto interruptivo da prescrição a apresentação das facturas interpretando neste sentido o que vem disposto nos artºs. 9º, nº. 5 e 16º, nº. 3 do Dec.lei nº. 381-A/97, de 30 de Dezembro - para efeitos do número anterior considera-se exigido o pagamento com a apresentação de cada factura - no sentido negativo o citado parecer de Calvão da Silva.

Quanto à segunda questão que nos foi colocada - a da aplicação ou não destas mesmas regras ao crédito pelo preço do serviço de audiotexto ou (e) de serviços móveis, atento também o disposto no artº. 1º do Dec.lei nº. 177/99, de 21 de Maio e nos artºs. 2º, 3º e 4º do Dec.lei 458/99, de 5 de Novembro - é questão de que este tribunal não pode conhecer.
Os tribunais de recurso só podem debruçar-se - salvo no que diga respeito a questões de conhecimento oficioso, e a prescrição não é manifestamente uma delas (artº. 303º CCivil) - sobre questões que ao tribunal a quo tenha sido dado pronunciar-se.
É o que resulta da própria natureza dos recursos em processo civil, que - bem se sabe - são recursos de reponderação ou revisão - Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, 1992, pág.175.
Recursos que, portanto, e como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência, «não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido».
Assim sendo, a finalidade da presente revista só poderia consistir num pedido de reponderação do acórdão da Relação, no tocante à interpretação ou aplicação do direito aí feita - ver, por exemplo, o voto de vencido no Ac. STJ de 14 de Maio de 1996, CJSTJ, T2, pág. 70 e o Ac. deste Tribunal de 10 de Maio de 2000 (Martins da Costa), no BMJ nº. 497, pág. 343.
Só que esta segunda questão não foi abordada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
E não foi abordada porque lhe não foi colocada - ver as conclusões da alegação da apelante "A, S.A." de fls. 92 a 100.
Como lhe não foi colocada a eventual nulidade da sentença do Tribunal Judicial de Braga na parte em que se não debruça sobre essa mesma questão.
E as nulidades da sentença - com excepção da al. a) do nº. 1 do artº. 668º do CPCivil - dependem da arguição dos interessados, não são de conhecimento oficioso.
A questão é agora, portanto, uma questão nova e a inovação está proibida nos recursos.
D E C I S Ã O
Nega-se a revista.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 5 de Junho de 2003
Pires da Rosa
Quirino Soares
Neves Ribeiro