Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
79/20.9NJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: CRIME MILITAR
PERMANÊNCIA IRREGULAR
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
INSTALAÇÃO MILITAR
CRIME DE PERIGO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Justiça Militar («CJM») constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei. O direito penal militar é um direito que tutela bens jurídicos especiais inerentes à função militar de defesa nacional.

II. Comete um crime de entrada ou permanência ilegítimas, p. e p. pelo artigo 70.º, n.º 3, al. a), do CJM, aquele que, em qualquer tempo, sem motivo justificado, entrar ou permanecer em força ou instalação militares. O que remete para as definições do artigo 6.º do CJM sob a epígrafe «Local de serviço», dando evidência à ideia de que a «instalação militar» se define pelo serviço e pela função a que está afeto: é um local onde os militares prestam serviço ou onde exercem uma função militar, aí se incluindo as «bases» militares.

III. As bases aéreas constituem instalações militares da Força Aérea que dependem do Comando Aéreo (CA), sob autoridade do Comandante Aéreo.

IV. O bairro residencial do pessoal da Base Aérea n.º 11, em Beja, construído para a realização de «interesse para a defesa nacional», é um dos elementos do conjunto que constitui a «unidade aérea» que faz parte da base aérea, afeto à realização das suas finalidades e ao cumprimento da sua missão como componente operacional da Força Aérea.

V. O edifício onde o arguido entrou sem autorização ou motivo justificado encontra-se implantado neste bairro residencial. Independentemente do seu estado de conservação e do facto de estar ou não ocupado, tal edifício faz parte da base aérea, estando afeto à finalidade e à função que esta desempenha.

VI. Pelo que é parte de uma «instalação militar», na aceção do n.º 3 do artigo 6.º do CJM, constituindo um «local de serviço» militar (n.º 1 do mesmo preceito).

VII. Estando provado que o arguido, sem autorização, entrou num local cuja construção se justificou pela finalidade de realização de um interesse de defesa nacional e que é parte de uma instalação militar, mostram-se preenchidos os elementos objetivos constitutivos do tipo de crime.

VIII. O interesse militar protegido pela norma incriminadora, que qualifica o facto como crime estritamente militar, é o da segurança das Forças Armadas; porém, não é necessário ao preenchimento do tipo de ilícito em questão que a entrada e permanência nessa instalação (objeto da ação) ponha em perigo a segurança das Forças Armadas.

IX. Sendo o crime de «entrada e permanência ilegítimas» da previsão do artigo 70.º, n.º 3, al. a), do CJM um crime de perigo abstrato, o perigo para a segurança não constitui elemento do tipo de crime – como se exigiria no caso de se tratar de um crime de perigo concreto –, mas apenas a justificação para a incriminação.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. Por acórdão de 26 de outubro de 2022 do tribunal coletivo do Juízo C...... ........ .. ......, J... ., do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, foi o arguido AA, com a identificação que consta dos autos, absolvido da prática de um crime de entrada ou permanência ilegítimas, p. e p. pelo artigo 70.º, n.º 3, al. a), por referência ao artigo 6.º, n.º 3, conjugados com o artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar.

2. Do acórdão absolutório foi interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 12 de abril de 2023, revogou a decisão recorrida e condenou o arguido pela prática deste crime, na pena de 2 (dois) meses de prisão, substituída por 60 (sessenta) dias de multa, à taxa de €5,00 (cinco) euros, o que perfaz a multa de €300,00 (trezentos euros).

3. Discordando do decidido pelo tribunal da Relação recorre agora o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

«1º. Constitui objecto do presente recurso o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que o condenou o arguido (…) pela prática em autoria material de 1 (um) crime de entrada ou permanência ilegítimas, previsto e punido pela alínea a) do n.º 3 do artigo 70.º, por referência ao n.º 3 do artigo 6.º, conjugados com os n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º, todos do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) meses de prisão, que se substitui ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 45.º e artigo 47.º, ambos do Código Penal e n.º 2 do artigo 17.º do Código de Justiça Militar, por 60 (sessenta) dias de multa, à taxa de €5,00 (cinco) euros, o que perfaz a multa de €300,00 (trezentos euros),

2º. O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre a interpretação errónea das normas previstas nos artigos 70.º, n.º 3, 6.º, n.º 3 e 1.º, todos do Código de Justiça Militar, em face da prova produzida em audiência de julgamento e dada como provada, pelo que se impunha a absolvição do arguido pela prática do crime de que vinha acusado.

3º. De facto, todos os elementos probatórios demonstram inequivocamente que o arguido cometeu um facto, típico, ilícito, nos termos comuns.

4º. Mas não perante um facto típico e ilícito, que conduzam à subsunção fático-jurídica relativa ao artigo 70.º, nº 3, al. a) por referência ao artigo 6.º, n.º 3, quando conjugado com o disposto no art. 1.º, n.º 1 e 2, todos do CJM.

5º. Com efeito, o edifício denominado T.... está localizado dentro da cidade de ..., no Bairro Residencial da Base ..., destinado alojar militares e civis da Base ... e pessoal militar em trânsito, mediante o pagamento de uma “renda e pagamento diário de uma quantia consoante se for militar ou familiar, respectivamente”, cujas responsabilidades são similares entre senhorio e inquilinos.

6º. É uma área que não está vedada, com várias entradas com acesso a veículos automóveis e que serve de passagem à população em geral sem qualquer tipo de restrição.

7º. E além do mais, tem um infantário, denominado “avião” para filhos de militares e para civis em geral, tem um parque infantil e, ainda, um bar e restaurante.

8º. Com efeito, qualquer pessoa pode deambular livremente, sem qualquer tipo de restrições, pois, não põe em causa a segurança militar, pois, é um bairro como tantos outros existentes na cidade de ....

9º. As circunstâncias de o arguido ter entrado naquele edifício “t....” propriedade da Força Aérea, que outrora foi alojamento para militares e respectivas famílias, que há vários anos se encontra devoluto, não é suficiente para qualificar a conduta do arguido (em vez de crime comum) como crime estritamente militar, nos termos do art. 70.º, n.º 3, al. a), por referência ao art. 6.º, n.º 3, do CJM, que lhes foi imputado.

10º. De qualquer modo, a norma prevista no art. 6.º, n.º 3 ao classificar “instalação militar”, pese embora que o edifício t.... propriedade da Força Aérea será de afastar a incriminação ao arguido.

Pelo que,

11º. Não é a circunstância da entrada ou permanência ilegítima naquele edifício “t....” pertencente ao património militar privativo da Força Aérea, que só por si permite qualificar a conduta dos arguidos como “crime estritamente militar.

12º. Era necessário que a conduta do arguido colocasse em causa os interesses militares da defesa nacional (nesta se incluindo a própria operacionalidade militar).

13º. No caso concreto, o arguido não lesou ou pôs em perigo de lesão o bem jurídico militar.

14º. O facto do arguido ter entrado na t...., não foi colocado em causa a capacidade militar e, muito menos, a operacionalidade das forças armadas, o que tudo mostra igualmente que não estiveram sequer em perigo os interesses militares da defesa nacional, pois este edifício “t....” não se encontra dentro do perímetro da Base ....

15º. Deste modo, a simples entrada naquele edifício “t....”, não é um elemento de conexão suficiente forte e estruturante para se considerar, que em vez de um crime comum, se está perante um crime estritamente militar.

16º. A entrada na T...., nas referidas circunstâncias, revela que apenas existe uma conexão acidental com a instituição militar (por aquele edifício ser propriedade da força aérea),

17º. Deste modo, não é suficiente para se poder concluir que foram directamente colocadas em perigo ou lesados os interesses da defesa nacional, mesmo olhando para a vertente da diminuição da capacidade e operacionalidade militares.

18º. A conduta do arguido acidentalmente ligada a interesses militares, essa conexão não é suficientemente densa para se poder qualificar o referido comportamento como crime estritamente militar em vez de crime comum.

19º. Nesta conformidade, não se encontram verificados os pressupostos que conduzam à subsunção fático-jurídica relativa ao art. 70.º, n.º 3, al. a) por referência ao art. 6.º, n.º 3, quando conjugados com o disposto no art. 1.º, n.º 1 e 2, todos do CJM.

20º. Face ao exposto, atendendo aos dispositivos legais ora referidos, consideramos que a decisão deveria ter sido a de absolver o arguido conforme o foi pelo tribunal a quo.

Nestes termos, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente recurso e, consequência, alterar a decisão recorrida por outra que absolva o arguido (…).»

4. O Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, apresentou resposta no sentido da improcedência do recurso, dizendo

«(…)

O arguido recorrente penetrou num edifício devoluto, situado no bairro habitacional da Força Aérea, sito na Base Militar de....

Tal edifício tinha a porta trancada, pelo que aquele introduziu-se no predito edifício através de uma janela, que escalou.

No exterior, junto ao edifício em causa, encontrava-se colocado um sinal de advertência, assinalando a proibição de acesso ao mesmo.

Em causa, saber se aquele edifício deve ser considerado integrado no conceito de instalação miliar, de acordo com a definição dada pelo n.º 3, do art.º 6.º do Código de Justiça Militar, isto é, se o mesmo é susceptível de poder ser considerado «(...) ponto sensível, ou qualquer outra área ou infraestrutura que se destine a serviço ou função militar».

Quanto à materialidade dos factos apurados dúvidas não há que o arguido, indivíduo dotado de responsabilidade penal, por ter a necessária inteligência e liberdade, desrespeitando o aviso de proibição de acesso ao local e imbuído de livre resolução de consciência, se introduziu no edifício em causa.

O que fez, com acentuada energia resolutiva, porquanto, deparando-se com a porta vedada, escalou a janela, para nele penetrar.

Argumenta o arguido que o edifício em causa não é susceptível de integrar o conceito legal do art.º 6.º, n.º 3 do Código de Justiça Militar porquanto não se destinava a função militar, visto estar desabitado.

Singular concepção do espaço com função militar tem o arguido.

Restringe tal conceito àqueles que são habitados.

As autoridades militares da Base ... tiveram o cuidado de trancar a porta de acesso ao predito edifício e colocaram no exterior sinal proibitivo de acesso.

Utilizando linguagem militar, diríamos que procederam a trabalhos sumários de fortificação do local, solução arquitectónica que se revelou afinal insuficiente para preservar o edifício de visitas não desejadas.

Para um homem médio, de entendimento comum, a circunstância de se ver confrontado com um aviso de proibição de acesso num edifício situado no Base Militar em actividade, deveria ser suficiente para que compreendesse que está perante uma comunicação gráfica com advertência imperativa para não se introduzir ali.

Assim não entendeu o arguido, que de forma livre e consciente, quis executar o comportamento, cuja omissão ou interdição lhe era transmitida.

0 problema da indagação dos juízos de valor a que o interprete deve atender quando se debruça sobre o alcance da lei tem de ser visto à luz geral decorrente do art.º 9.º do Código Civil.

A interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo, anotando ainda a doutrina que, quando a lei criminal se socorre de conceitos normativos de outros ramos de direito, se deve perfilhar o conteúdo que lhe é atribuído no respectivo ramo.

Assim, se acompanha a completa fundamentação do Acórdão recorrido.

Sabemos que será exigir muito que nas múltiplas e variadíssimas relações da vida social o cidadão tivesse sempre o dever de conhecer todas as especiais circunstâncias que porventura concorram para incriminar determinada conduta.

Mas no caso presente, o arguido tinha, contudo, a vida facilitada, porquanto fora colocado um aviso de proibição de acesso junto do edifício em causa e, este tinha as portas vedadas, circunstância que de resto não o demoveu, visto que munido de acentuada energia criminosa, resolveu nele penetrar, através de uma janela.

Assim e em conclusão:

1. Bem andou o acórdão recorrido em condenar o arguido recorrente.

2. Consequentemente, se pugna pela improcedência do recurso.

(…)».

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, acompanhando a resposta do Senhor Procurador-Geral Adjunto na Relação de Lisboa, emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, por, no essencial, «quanto à matéria aqui em questão – no fundo, saber se o edifício onde o arguido se introduziu através de uma janela (como confessou), num local pertencente ao Ministério da Defesa, com um específico aviso dessa circunstância e da restrição de acesso, embora não estando a ser utilizado, pode levar à prática do crime – », entender que «a resposta não pode (…) deixar de ser afirmativa, pois que não se pode restringir a questão da segurança das Forças Armadas ao mero facto de as instalações alvo de entrada ou permanência ilegítima (ilicitude de que o arguido igualmente referiu ser conhecedor) estarem a ser utilizadas ou não aquando da ação do agente». «Isto porque» – acrescenta – «a previsão visa punir a atividade ilícita geradora de um risco presumido, sendo indiferente a sua real verificação, assentando a punição no eventual perigo desde que consumada uma das condutas

6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Apreciando e decidindo.

II. Fundamentação

O acórdão recorrido – factos provados

8. O acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos:

O tribunal coletivo deu como provados, em 1.ª instância, os seguintes factos, que o tribunal da Relação manteve inalterados e que, assim, se devem considerar estabilizados (transcrição):

«[1.] No dia 16 de julho de 2020, entre as 2h00 e as 3h30, o arguido [AA] decidiu introduzir-se no interior do Edifício de Alojamentos de Sargentos e Trânsito, mais conhecido por “.....”, do Bairro … da Base ..., em ....

«[2.] Para o efeito, o arguido AA entrou por uma das janelas situadas no r/c do edifício.

«[3.] No Bairro residencial da Base ..., onde se insere o edifício em causa, encontra-se aposto um sinal informativo na zona oeste, com a menção que aquelas instalações pertencem ao Ministério da Defesa Nacional e que o acesso é restrito.

[4.] Porém, o referido Bairro não se encontra vedado, sendo de livre para quem circula nas vias de circulação automóvel e pedonal ali existentes; acresce que o edifício “.....”, composto por sessenta apartamentos, está desabitado desde 2014 e apresenta já alguma degradação visível ao nível de algumas janelas.

«[5.] O arguido não tinha autorização para entrar no interior do edifício denominado “.....”, o que bem sabia.

«[6.] O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que não se encontrava autorizado a entrar no edifício.

«[7.] O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei.

«Das condições pessoais do arguido AA:

«[8.] O arguido AA admitiu os factos constantes da acusação que a si diziam respeito, com exceção da violação das regras de segurança das Forças Armadas, e mostrou arrependimento pela respetiva prática.

«[9.] O arguido foi condenado no âmbito do Processo Comum 24/20.1... que correu termos no Juízo Local Criminal da Comarca de ..., por decisão de 25.05.2021, transitada em julgado em 24.06.2021, pela prática, em 8.08.2020, de factos subsumíveis ao crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1, do CP, na pena de cinco meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova por um ano.

«[10.] Os pais do arguido separaram-se quando ele tinha cerca de 6 anos.

«[11.] Desde cedo revelou dificuldades no cumprimento de regras estipuladas pelos familiares e outros adultos, adotando, por vezes, comportamentos agressivos, que se foram acentuando durante a sua adolescência. O arguido foi acompanhado em pedopsiquiatria e neuropediatria no Hospital J... ....... ......... em ....

«[12.] O seu percurso escolar foi marcado por total desmotivação pelas aprendizagens e por uma fraca assiduidade, o que contribuiu para retenções repetidas.

«[13.] Gradualmente, iniciou-se no consumo de álcool e de substâncias psicotrópicas.

«[14.] Com o agravamento dos comportamentos disruptivos, o arguido acabou por ser institucionalizado, tendo sido colocado na Comunidade ........... .. ...... .. ........., em ..., próximo do ..., através da Associação de Respostas Terapêuticas.

«[15.] Na instituição concluiu o [9.º] ano, tendo chegado a frequentar o [10.º] ano de escolaridade, que não concluiu por ter sido entretanto chamado para a recruta em ....

«[16.] O arguido reconheceu ter atravessado um período de alguma instabilidade pessoal, que se refletiu aos vários níveis da sua vida, considerando, contudo, que cresceu, se tornou numa pessoa diferente e que encontrou o seu caminho com a vida militar.

«[17.] Atualmente, com 18 anos de idade, encontra-se a finalizar a recruta no Regimento d. ..... ....... .. .......... .....) em ..., onde ingressou voluntariamente há cerca de três meses, prevendo a sua colocação numa outra unidade militar ainda durante o presente mês de outubro.

«[18.] Manifesta a vontade de seguir a carreira militar, pelo que se encontra empenhado em cumprir de forma satisfatória todos os objetivos que lhe forem estipulados pela instituição militar.

«[19.] Desloca-se quando pode a casa da mãe em ..., beneficiando do apoio de toda a família.

«[20.] Atualmente, não desenvolve qualquer atividade de lazer estruturada, assinalando contudo, o gosto pela prática de desporto e da frequência de ginásio, onde privilegia a musculação.

«[21.] Integra o agregado da mãe e do padrasto, ambos enfermeiros em .... O agregado ocupa uma moradia em zona periférica da cidade, que reúne adequadas condições habitacionais. A situação económica do agregado foi descrita como estável.»

Objeto e âmbito do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão do tribunal da Relação que, revogando um acórdão absolutório proferido pelo tribunal coletivo competente para em 1.ª instância conhecer de um crime estritamente militar, nos termos do artigo 111.º do Código de Justiça Militar, aplicou ao arguido, agora recorrente, uma pena de multa pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 70.º, n.º 3, al. a), por referência ao artigo 6.º, n.º 3, conjugados com o artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma.

Apesar de a decisão recorrida ter aplicado uma pena não privativa da liberdade, o recurso é admissível, nos termos da parte final da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, e da al. b) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, por se tratar de um caso de recurso de decisão condenatória proferida em recurso de decisão absolutória da 1.ª instância.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sendo limitado ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do mesmo diploma), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

10. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir a questão de saber se os factos provados preenchem ou não os elementos constitutivos do tipo de crime de entrada ou permanência ilegítimas, p. e p. pelo artigo 70.º, n.º 3, al. a), por referência ao artigo 6.º, n.º 3, conjugados com o artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar e se, em consequência, deve ou não manter-se a decisão condenatória recorrida.

11. Perante a matéria de facto provada, o acórdão recorrido fundamentou a decisão em matéria de direito, quanto à qualificação jurídica dos factos, nos seguintes termos:

«(…)

Para explicar a necessidade de normas penais especiais para os militares podemos lançar mão da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale (…):

O Direito é facto + valor + norma.

FACTO

O facto é que os cidadãos e cidadãs integrantes das instituições militares são os únicos seres humanos de quem a lei exige o sacrifício da própria vida. A nenhum funcionário público, na verdade a nenhum cidadão ou cidadã, exceto aos militares, a lei impõe deveres tão especiais, deveres que podem implicar a obrigação de morrer e até de matar.

VALOR

A vida é o bem supremo do indivíduo, o maior valor tutelado pelo Direito e, por isso, os crimes contra a vida são os mais graves na legislação de todos os países civilizados.

Para os integrantes das Forças Armadas, que são obrigados, em determinados momentos, a morrer e a matar, há um outro valor que se sobrepõe à própria vida. Este valor é a defesa militar da República e da Pátria. Essa é uma circunstância única, especial, singular, incontornável.

A existência desse valor, não pode dar-se sem que as Forças Armadas se organizem com base na Hierarquia e Disciplina, que são os valores fundamentais de tais instituições constitucionalmente assegurados.

NORMA

Da conjugação desses factos e valores surge a necessidade de normas específicas no campo Penal, maxime para a tutela da Hierarquia e Disciplina, pilares das Forças Armadas, bem como no que aqui releva a Entrada ou permanência ilegítimas, em instalação militares [cf. alínea a) do n.º 3 do art. 70.º, n.º 3 do art. 6.º, «ou qualquer outra área ou infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar».


***


Como é consabido, vários são os critérios para a definição de crime militar:

(i) Ratione personae: Leva em conta a condição de militares dos envolvidos e dos deveres que lhe são inerentes;

(ii) Ratione loci: Leva em consideração o local da ocorrência do delito (por ex.: Edifício de Alojamento de Sargentos e Trânsito, propriedade do Ministério da Defesa Nacional; ou qualquer outra área sob administração militar; ou infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar).

(iii) Ratione legis: São crimes militares aqueles que a lei define assim.

(iv) Ratione materiae: Exige que se verifique a dupla qualidade, no ato e no agente.

(v) Ratione temporis: São militares aqueles praticados em determinados momentos, como no caso de guerra declarada.

A Constituição da República Portuguesa adota o critério ratione legis [cf. art. 213.º e n.º 2 do art. 1.º do Código de Justiça Militar (…)].

Na verdade, a nossa Lei Fundamental abandona o conceito de crime essencialmente militar substituindo-o pelo conceito de crime estritamente militar (1).

Contudo a Constituição não define o conceito nuclear de crimes estritamente militares (cf. arts. 211.º, n.º 1, e 213.º), remetendo para a lei (cf. Lei n.º 101/2003, de 14-nov. — Estatuto dos Juízes Militares e Assessores Militares do Ministério Público e n.º 2 do art. 1.º do Código de Justiça Militar vigente — Lei n.º 100/2003, de 15-nov.).

Se bem vemos, o Órgão Legiferante com a mudança de advérbios de modo almeja alcançar um maior rigor quantos aos bens jurídicos carecidos de tutela especial (2).

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira «A acentuação do rigor conceitual na tipificação dos crimes estritamente militares parece apontar para a ideia de que se trata de factos gravemente lesivos de bens jurídico-militares (puníveis com penas de prisão) (…)» (3).

Contudo, ao deferir ao legislador ordinário a competência para definir o crime estritamente militar, a Constituição da República não lhe conferiu a franquia de criar, arbitrariamente, figuras de infração penal militar, estranhas ao que se possa conceitualmente admitir como tal.

Quanto a nós, afigura-se-nos que os bens jurídicos que forem necessários para proteger os valores que a ordem constitucional considera como fundamentais terão que receber o status de bem jurídico-penal.

Na verdade o Órgão Legiferante deve basear-se na Constituição da República e nos valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, tendo em conta o caráter limitativo da tutela penal.

Neste particular, não podemos olvidar que o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo Direito Penal como ante o Direito Penal. Assim, encontram-se na norma constitucional as pautas substanciais para a incriminação ou não de condutas.

Se bem vemos, o Direito Penal Militar é o ramo especializado do Direito Penal que estabelece as regras jurídicas vinculadas à proteção das instituições militares e ao cumprimento da sua destinação constitucional (cf. arts. 209.º, n.º 4, 211.º, n.º 3, 213.º e 275.º, todos da Constituição da República Portuguesa).

Ora, se as Forças Armadas são instituições permanentes e que possuem a função de defesa militar da República e da Pátria (cf. arts 275.º e 276.º da Constituição da República Portuguesa), se o crime é praticado contra as Forças Armadas, contra a instituição militar, contra militares, contra o património sob administração militar, de alguma forma são afetadas as instituições militares. Deste modo, os bens jurídicos tutelados aqui na esfera militar são relacionados à própria existência, ao próprio funcionamento, dessas instituições militares.

Importa agora, para melhor compreensão, quanto ao que aqui releva, ver o que diz o Código de Justiça Militar (…).

Este tipo legal de crime integra o CAPÍTULO IV Crimes contra a segurança das Forças Armadas.

O Código Castrense apresenta uma definição do crime estritamente militar no referido n.º 2 do art. 1.º, que aqui se relembra:

«Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.»

Assim, podemos dizer que crime militar é a conduta que, direta ou indiretamente, atenta contra os bens e interesses jurídicos das instituições militares, qualquer que seja o agente.

O que torna saliente o crime estritamente militar é a exclusividade ou prevalência do bem militar em causa, que se averigua com referência às funções atribuídas às Forças Armadas pela Constituição da República Portuguesa.

Nesta linha de raciocínio, o crime estritamente militar define-se, dessa forma, por se apresentar em apertada ligação com os valores da instituição militar constitucionalmente positivados, e visto que se recortam na estrutura e funcionalidade dessa instituição em ordem àqueles valores.

As normas incriminadoras da parte especial do Código de Justiça Militar tipificam os crimes estritamente militares, onde se inclui no que aqui interessa o crime em apreciação nestes autos: de Entrada ou permanência ilegítimas, da previsão da alínea a) do n.º 3 do art. 70.º do referido Corpo de Leis.

O critério ratione legis, ou critério objetivo, corolário do princípio nullum crime sine lege, sempre teve presença marcante no processo evolutivo no Direito Penal Militar.

Com o critério ratione legis, ou critério objetivo, crime militar é aquele definido em lei, portanto o previsto no Código de Justiça Militar, com atendimento aos requisitos expressos nesse mesmo diploma penal, compreendendo os crimes estritamente militares. (cf. art. 213.º da Constituição da República Portuguesa e n.º 2 do art. 1.º do Código de Justiça Militar).

O crime militar, para o que aqui releva, é a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares e às suas atribuições legais.


***


A esta luz, vejamos mais concretamente o caso dos autos.

Apesar de desocupado desde 2014, o edifício designado por “.....”, era o edifício de alojamentos de Sargentos e Trânsito, sito no Bairro … da Base ..., em ..., pertence às Forças Armadas (Ministério da Defesa Nacional), e encontra-se situado em zona de acesso restrito, existindo indicação nesse sentido, factos esses que o arguido/recorrido AA sabia e que assumiu em Juízo.

O edifício em causa encontrava-se fechado, existindo um cadeado na porta principal (Cf. foto 8 de fls. 66 dos autos), factos estes que o arguido AA também sabia, sendo que, para aceder ao interior do mesmo, teve que utilizar uma janela, local por onde também acabou por sair.

Como fluí de tudo o que acima dito ficou, é a conceção de crime estritamente militar que preside ao Código de Justiça Militar em vigor (…), definindo no seu n.º 2 do art. 1.º, que «constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei».

O crime estritamente militar é caracterizado pela exclusividade do bem militar em causa, o qual se reconhece atendendo às funções atribuídas às Forças Armadas pela Constituição (cf. o art. 275.º da Constituição da República Portuguesa).

Reveste natureza de crime estritamente militar o facto que ofenda a coesão, a segurança, a eficiência ou a hierarquia da Forças Armadas, mas também os interesses militares da defesa nacional e os demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificados na lei.

A definição como crime estritamente militar está intimamente conexa com a natureza e a missão das Forças Armadas nos termos definidos pela Constituição, na medida em que se tutela um conjunto de bens militares, “enquanto conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam às funções militares específicas” (4 ).

O conceito de crime estritamente militar implica que os bens ou interesses protegidos pelo tipo legal de crime sejam somente militares (5 ).

A base principal do Direito Penal Militar e da sua especialidade alicerça-se no facto de a lei penal militar ter por finalidade a tutela de bens jurídicos especiais, autênticos valores com agasalho na Constituição da República Portuguesa e estimados socialmente que a nosso ver transcendem o âmbito interno da instituição militar (6 ).

Nesta linha de pensamento, como emerge do que já acima deixámos exposto, a subsunção dos factos a um tipo legal de crime estritamente militar depende da sua conexão com os fins constitucionalmente definidos das Forças Armadas, nestes se abrangendo não só a defesa, a liberdade, a segurança e a integridade da nação, como também o cumprimento dos compromissos internacionais do Estado no domínio militar, assim como factos que ponham em causa o bom funcionamento dessas forças enquanto corporação, afetando a sua eficiência, a sua coesão, a sua segurança ou a sua hierarquia.

In casu, com o devido respeito por opinião em contrário, face à globalidade da materialidade fáctica provada e acima descrita, facilmente se vislumbra que a apurada conduta do arguido AA, consubstancia a prática do ilícito qualificado como entrada ou permanência ilegítimas, previsto e punido pela alínea a) do n.º 3 do art. 70.º, do Código de Justiça Militar, ou seja, esta conduta em si encontra-se tipificada como crime no Direito Penal Militar, Direito Penal especializado pelos específicos bens jurídicos que lhe cumpre proteger, sendo relevante in casu: “a segurança das Forças Armadas”. Daí que integre o Capítulo IV do Referido Corpo de Leis.

Todavia, o acórdão ora em crise, no que agora releva, absolveu arguido AA, e para tal nele se deixou expresso (em transcrição parcial na parte relevante):

«Ora, posto que se teve por assente que o arguido entrou sem autorização no edifício denominado “.....”, o qual faz parte integrante do Bairro … da Base ..., em... (sendo que a área de implementação do referido edifício e o aludido Bairro são áreas de circulação livre, por onde se circula sem restrições, segundo todos os testemunhos recolhidos), poder-se-á configurar tal local como uma área ou infraestrutura destinada a qualquer tipo de serviço ou função militar?

«Releva que se teve igualmente por provado que tal prédio é composto por sessenta apartamentos, desocupados de pessoas há cerca de oito anos, isto é, sem que moradores ou qualquer Força Militar ali permaneça atualmente.

«E o que se impõe aquilatar é se quando a norma expressa “qualquer outra área ou infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar”, se deve considerar ou não, para efeitos da aplicação da lei penal militar, que o espaço deva estar funcionalmente ativo, pois só assim se encontra em conexão relevante com interesse de caráter militar, tudo conforme o âmbito de aplicação desta lei penal especial.

A resposta, a nosso ver, só pode ser positiva, pois não estando o espaço ativo, mas militarmente desocupados de pessoas e bens afetos à função militar, ou seja, se constituir uma mera pertença, uma mera propriedade das Forças Armadas, mas sem que esteja afeta ao desempenho das mesmas, por qualquer meio, ou ao seu serviço, não poderá a sua violação colocar em crise a segurança dessa Instituição, deixando de substituir o bem jurídico que vivifica a norma.

«Na verdade, a lei militar não tutela de forma mais gravosa (por referência à tutela comum consagrada nos art. 190.º e 191.º do CP) os imóveis das Forças Armadas só porque são mera pertença das Forças Armadas. Tutela, isso sim, a segurança que é mister estar afeta a esses espaços e a introdução neles, por quem não se encontra autorizado, é apta e idónea (em termos de perigo abstrato, pois a norma não exige que se verifique o perigo em concreto, ou seja que a conduta tenha colocado em perigo um determinado bem), a colocar em crise essa segurança tutelada pela norma.

«Então, como compaginar esta circunstância de o prédio estar desativado, desocupado há anos, com a tutela do bem jurídico segurança, intrínseca ao crime estritamente militar?

«Não é compaginável. Com efeito, cremos que não se pode considerar que os factos dos autos se subsumam ao crime estritamente militar, no sentido de que com a respetiva prática o arguido lesou os interesses militares da defesa nacional ou outro que a CRP cometa às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei. (…)

«Desta feita, estaremos perante um facto típico ilícito, nos termos penais comuns, mas não perante um facto típico e ilícito, como tal configurado pelos normativos conjugados do Código de Justiça Militar, por lhe faltar o elemento relevante de conexão entre a entrada no local e os interesses da segurança nacional das FA, o que apenas se apurou em audiência de julgamento com os factos que se vierem, ali, a apurar.

«Urge concluir, pois, que não se encontram verificados os pressupostos que conduzam à subsunção fático-jurídica relativa ao art. 70.º, n.º 3, al. a) por referência ao art. 6.º, n.º 3, quando conjugados com o disposto no art. 1.º, n.º 1 e 2, todos do CJM.

«Mais não restará, pois, do que absolver o arguido.»


*


A tese argumentativa seguida na decisão recorrida para afastar a aplicação da alínea a) do n.º 3 do art. 70.º do Código de Justiça Militar, ancora-se:

(i) Na circunstância do espaço militar, não estar ativo, mas militarmente desocupado de pessoas e bens afetos à função militar;

(ii) Na circunstância de que o prédio em causa constitui uma mera pertença, uma mera propriedade das Forças Armadas, mas sem que esteja afeta ao desempenho das mesmas, por qualquer meio, ou ao seu serviço;

(ii) Por isso, não poderá a sua violação colocar em crise a segurança dessa Instituição, deixando de substituir o bem jurídico que vivifica a norma.

No seguimento deste pensamento, pese embora todos os factos dados como provados relativamente à conduta do arguido/recorrido AA fossem considerados como consubstanciadores de um facto típico ilícito, o certo é que no entender do Tribunal Coletivo de 1.ª instância plasmado na decisão ora em crise que fez maioria, os mesmos não poderiam ser subsumidos no ilícito previsto pelo Código de Justiça Militar na medida em que lhe falta o elemento relevante de conexão entre a entrada no local e os interesses da segurança nacional das Forças Armadas.

Indo direito ao assunto, desde já adiantamos que, com o devido respeito por opinião em contrário, tal tese argumentativa seguida pelo Tribunal a quo na decisão recorrida não colhe.

Vejamos sucintamente o porquê desta afirmação.

Na nossa humilde opinião afigura-se-nos que não deverá ser exigido, para a subsunção dos factos ao tipo legal de crime da previsão da alínea a) do n.º 3 do 70.º, do Código de Justiça Militar, sob a epígrafe “Entrada ou permanência ilegítimas”, que o local militar que foi alvo de entrada ou permanência ilegítimas, pertencente às Forças Armadas, se encontre ativo, ocupado ou mesmo em funcionamento.

No nosso modesto entendimento, pela própria natureza do bem jurídico em causa “Segurança das Forças Armadas” este tipo legal de crime, para o que ora releva, não faz depender a sua aplicação da circunstância do local se encontrar ou não ocupado ou ativo.

Porque assim é, com o devido respeito por opinião em contrário não tem agasalho na lei exigir tal elemento como parece fazer-se na decisão ora em crise, a qual no nosso entendimento ultrapassa o almejado pelo Órgão Legiferante aquando da construção do tipo legal de crime em causa edificado sob a génese de crime de perigo abstrato.

Na verdade, dúvidas não existem de que o bem jurídico em causa, que se visa amparar pela norma em causa, é a segurança das Forças Armadas, constando do elenco dos crimes previstos no Capítulo IV do Código de Justiça Militar.

In casu, com o devido respeito por opinião diversa, afigura-se-nos que não se pode extrair da materialidade fáctica provada acima descrita, a ilação de que, ao estar desabitado desde 2014 e com alguma degradação visível ao nível de algumas janelas, deixasse de ser instalação militar e/ou não pudesse ser posta em causa a segurança das Forças Armadas.

Na realidade, com devido respeito por opinião diversa, se bem vemos, não nos parece poder restringir-se a questão da segurança das Forças Armadas ao simples facto de as instalações alvo de entrada ou permanência ilegítimas estarem a ser utilizadas ou não aquando da ação do agente.

Na verdade o prédio em causa pertencente ao Ministério da Defesa Nacional tinha como função a residência dos militares da força aérea e respetivas famílias. Assim, tem uma função militar e encontrava-se desocupado, à data da prática dos factos.

No caso em apreço, não obstante se ignore qual o motivo pelo qual se encontrava o edifício em causa desocupado e fechado (7), pois tal não se mostra apurado pelo Tribunal a quo, e, por isso mesmo, não tem tradução concreta nos factos provados, uma coisa nos parece certa: não se pode pôr em crise a propriedade do mesmo (8), pertença do Ministério da Defesa Nacional, a decisão de o desocupar, assim como a decisão de colocar os cadeados na porta principal (cf. foto 8 de fls. 66 dos presentes autos), impedindo a entrada de estranhos naquele local.

Por sua vez, tais decisões tiveram origem nas Forças Armadas e, seguramente, as mesmas foram tomadas no interesse da Força Aérea – Base ... de ..., podendo, ao que tudo indica, estar em causa questões da própria segurança (9).

Nesta linha de pensamento que temos por curial, afigura-se-nos que não se pode interpretar o facto de o prédio em causa: “.....” do Bairro … da Base ... de ..., pertença das Forças Armadas se encontrar, na altura dos factos (16-jul.-2020), desocupado e encerrado, deixasse de ter natureza militar e, consequentemente, não pudesse estar em causa a segurança das Forças Armadas e não pudessem os factos apurados ser subsumidos à previsão da alínea a) do n.º 3 do art. 70.º do Código de Justiça Militar.

Na verdade, admitindo que o tipo legal de crime em causa tem como bem jurídico tutelado, apenas a segurança das Forças Armadas, com o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se-nos que não se pode extrair, da materialidade fáctica provada e acima fixada, que o facto das instalações estarem desocupadas não se prende com questões de segurança.

Com efeito, se bem vemos, existem múltiplos motivos para tal, começando pela segurança dos seus ocupantes, ou da segurança do próprio edifício.

Na realidade, o prédio em causa na data dos factos aqui em causa (16-jul.-2020) encontrava-se vedado, como resultou da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, com uma corrente e cadeado na porta (cf. a referida foto 8 junta a fls. 66 dos autos), o que determinou a que a entrada do arguido/recorrente AA tivesse tido lugar através de uma janela situada no rés-do-chão.

Ora, com o devido respeito por opinião em contrário, tal “.....” não perde, a nosso ver, a natureza militar (10), apenas pelo facto de o prédio em causa se encontrar desocupado, sendo igualmente de pouca ou nenhuma importância para o preenchimento do tipo legal de crime aqui em causa, se naquele momento estava em condições de ser utilizado ou não.

Assim se não entendendo, — o que não admitimos — mas por mera hipótese académica e de raciocínio se aborda, no limite encontrado estava o meio para, em matéria de crimes de perigo abstrato, considerar que não seria criminosa a conduta de quem entra ou permanece, sem autorização, em instalações de investigação militar ou de armamento militar só porque estão desocupadas ou inativas. Posição que, como é bom de ver, e salta aos olhos de qualquer mortal, se mostra a todas as luzes inaceitável porquanto, sem razão válida, contraria a dogmática dos crimes de perigo abstrato e não tem a nosso ver qualquer agasalho na lei positivada ao caso aplicável.

Na verdade, summo rigore o âmbito de proteção da norma visa a segurança das Forças Armadas que pode ser posta em causa, com a apurada conduta do arguido/recorrente AA acima descrita, mesmo que as respetivas instalações militares estejam inativas ou o prédio desocupado.

Na realidade, como dimana do que acima deixámos expresso, ignora-se o motivo de tal desocupação. Contudo, tal quid não implica que o mesmo deixe de ser militar (“instalação militar” no sentido dado pelo n.º 3 do art. 6.º do Código de Justiça Militar: «Por 'instalação militar' entende-se (…) perímetro defensivo, ponto sensível ou qualquer outra área ou infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar.»

Com efeito, relembrando nesta sede os factos relevantes, o edifício tem função de residência dos militares da Força Aérea e respetivas famílias. Encontra-se situado no centro de um Bairro …, pertencente à Força Aérea, que não está totalmente desocupado porquanto resulta da globalidade da prova para os autos carreada e produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento e sujeita ao contraditório da mesma que lá residem militares.

Nas entradas de tal Bairro encontram-se placas com a advertência de que tal local pertence à Força Aérea e que o acesso ao mesmo é restrito.

O prédio em causa encontrava-se fechado com corrente e cadeado, tendo sido acedido pela janela.

É do conhecimento geral que tal Bairro pertence à Força Aérea.

O arguido/recorrido AA, natural de ..., confessou não ter autorização para entrar no edifício em causa denominado “.....”, o que bem sabia.

Tal arguido admitiu ter agido de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que não se encontrava autorizado a entrar no edifício.

Mais admitiu saber que a sua conduta era proibida e punida pela lei.


*


Por sua vez, noutra linha de pensamento, cumpre aqui ter presente que o tipo legal de crime em causa é um crime de perigo abstrato, o que significa que o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição.

Como é consabido, o crime de perigo é aquele que, sem destruir ou diminuir o bem — interesse penalmente protegido —, representa, todavia, uma ponderável ameaça ou turbação à existência ou segurança de ditos bens ou interesses, com relevante possibilidade de dano.

O tipo de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores ao ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto.

A este respeito, Faria Costa expressa:

«Assim, os crimes de perigo concreto representam a figura de um ilícito-típico em que o perigo é, justamente, elemento desse mesmo ilícito-típico, enquanto nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, mas tão-só da motivação do legislador. (…) o perigo, enquanto constituens jurídico-penalmente relevante de uma análise dogmática consequente, só nos aparece nos chamados crimes de perigo concreto. Todavia, a discursividade dogmática, referente aos crimes de perigo abstrato, faz apelo a uma valoração – não negamos, por certo, que nela não entre o perigo – que é, fundamentalmente, ponderação que pertence à vertente legiferante; que pertence ao reino da política criminal ou mesmo ao domínio mais profundo da legitimidade punitiva.» (11 )

Na verdade, os crimes de perigo abstrato supõem, em comum com os delitos qualificados como de perigo concreto, uma antecipação da tutela a um ponto anterior à lesão, bastando-se com a probabilidade da mesma, mas diferenciando-se daqueles na medida em que bastam-se com a mera ação, genericamente perigosa do agente, adequada a, abstratamente e mercê de um juízo ex ante de perigosidade (ao contrário dos delitos de perigo concreto, baseados em uma racionalidade ex post), provocar uma possível lesão do bem protegido pela norma. Daí que, por não se exigir qualquer resultado material, se diga frequentemente serem delitos de mera atividade ou de infração de um dever objetivo de cuidado (12 ).

O tópico central do discurso do risco é a existência de algo que não existe ainda, algo que não aconteceu, mas pode vir a acontecer se continuarmos a seguir pelo mesmo trilho (13 ).

Ora, na esteira do ilustre penalista da Escola de Coimbra acima referido, também a nós se nos afigura que os crimes de perigo abstrato uma vez definidos com rigor não contrariam os princípios da intervenção mínima e da legalidade.

Como bem realça Faria Costa (14 ):

«Assim, temos para nós que a Constituição desenvolve, neste particular como em tantos outros, uma função sistemática e uma função de orientação que ninguém ousa contestar; mas daí a admitir, como o faz alguma doutrina italiana, que só é legítima a incriminação de comportamentos lesivos de bens jurídicos com relevo constitucional, é coisa que consideramos como manifestamente errada. Seria atribuir, sem fundamento, não só uma natureza estática aos bens jurídicos, como também considerar a Constituição como o seu catálogo mais representativo ou mesmo único».

Na verdade, neste crime são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção inilidível de perigo e, por isso, a conduta é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efetivo para o bem jurídico, podendo afirmar-se que nesta espécie de crimes, o perigo é presumido iuris et de iure pela lei.

Na realidade, nos crimes de perigo abstrato o legislador descreve certa conduta presumindo, inilidivelmente, que ela é perigosa. Há uma presunção juris et de jure de perigo.

Assim o facto-consequência (facto desconhecido) que como ilação se infere/deduz do facto-base (facto conhecido) tem de ser aceite necessariamente. Na verdade, neste campo o facto-base e o facto-consequência andam normalmente associados entre si, visto haver entre eles certo nexo lógico ou psicológico de ligação.

Neste caso, no que aqui interessa, estamos perante comportamentos em que o perigo funciona como simples pressuposto ou motivo da incriminação, em que a lei não exige que ocorra concretamente perigo de lesão, em que basta a mera atividade do agente, não se tornando necessário que sejam colocadas em perigo as situações do tipo.

Na verdade, os crimes de perigo apresentam-se como factos que põem em perigo a ofensa de certos interesses, criam situações em que é possível a lesão de bens penalmente protegidos. São crimes que se consumam independentemente da efetiva lesão do bem jurídico. Para a sua consumação basta a criação de um perigo, não sendo necessário que se verifique a lesão. Contrapõe-se aos crimes de dano, ou de resultado, em que há efetiva lesão de bens.

Na realidade, no que aqui releva, pune-se a atividade ilícita geradora de um risco presumido, sendo indiferente a sua real verificação, assentando a punição no eventual perigo desde que consumada uma das condutas.

In casu, independentemente de o edifício conhecido por “.....” se encontrar a ser ocupado ativamente por serviços militares ou não, continua a poder ser considerado infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço. Assim, não obstante desocupado na altura dos factos aqui em causa (16-jul.-2020), não deixa de ser edifício pertença do Ministério da Defesa inserido numa base militar ativa, tendo por isso inalterável vocação para uso militar, reaproveitável a qualquer altura.

Ora, como é público e notório a Base Aérea ... n.º 11 em ... está operacional (15) e deve manter níveis de segurança que obstem à circulação de civis em estruturas que se encontram no interior do seu perímetro de segurança.

Em face de tudo o que dito fica, mostrando-se in casu inoperante qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa a materialidade fáctica provada e fixada supra — verificados em concreto os elementos constitutivos do “tipo” — integra a prática pelo arguido AA, em autoria material de 1 (um) crime de entrada ou permanência ilegítimas, da previsão da alínea a) do n.º 3 do art. 70.º, por referência ao n.º 3 do art. 6.º, conjugados com os n.ºs 1 e 2 do art. 1.º, todos do Código de Justiça Militar.

Porque assim se nos afigura ser, o presente recurso quanto a este segmento vai a Bom Porto.»

Apreciação

14. O Código de Justiça Militar («CJM»), aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, aplica-se aos crimes de natureza estritamente militar (artigo 1.º, n.º 1).

Nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do CJM constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.

O arguido vem condenado pela prática de um crime estritamente militar de «entrada ou permanência ilegítimas» p. e p. pelo artigo 70.º, n.º 3, al. a), do Código de Justiça Militar, que, inserido no respetivo Capítulo IV, sob a epígrafe «Crimes contra a segurança das Forças Armadas», do Título II (Parte Especial), dispõe nos seguintes termos:

«Artigo 70.º

(Entrada ou permanência ilegítimas)

(…)

3 - Aquele que, em qualquer tempo:

a) Sem motivo justificado, entrar ou permanecer em força ou instalação militares;

(…)

é punido com pena de prisão de 1 mês a 2 anos.»

15. O direito penal militar é um direito que tutela bens jurídicos especiais inerentes à função militar de defesa nacional. Como se sublinhou na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 97/IX16, que esteve na origem do atual Código de Justiça Militar (CJM), citando Figueiredo Dias – «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão»17– e no acórdão n.º 432/99 de 3 de dezembro do Tribunal Constitucional – «entre o direito penal geral e o direito penal cujo objeto está associado à atividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas». «Daí que o novo Código considere crime estritamente militar “o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado por lei”», conclui-se na Exposição de Motivos.

O mesmo princípio fundador do novo sistema de justiça militar, em rutura com o anterior, foi reafirmado na apresentação e discussão na generalidade do Projeto no plenário da Assembleia da República: «Os bens subjacentes à tipificação própria da justiça militar, isto é, os bens que tal tipificação procura proteger são os bens que servem os interesses militares. (…) É a superior dignidade e o carácter vital destes interesses que justifica, ainda hoje, uma ramificação especial do direito penal, o direito penal militar. Não um direito penal que parta de uma concepção de relações especais de poder. Sim um direito penal militar de raiz plenamente democrática, baseado na necessidade de lidar especificamente com um núcleo material de ilícitos gravemente lesivos de interesses e bens de toda a coletividade.»18.

16. O interesse militar protegido pela norma incriminadora, que qualifica o facto como estritamente militar, é, pois, o da segurança das Forças Armadas – às quais incumbe a defesa militar da República [artigos 275.º da Constituição e 1.º, 2.º e 4.º da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas («LOBOFA»), aprovada pela Lei n.º 2/2021, de 9 de agosto] –, enquanto interesse da defesa nacional que constitucionalmente lhes é atribuída.

A defesa nacional tem por objetivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas (artigo 273.º da Constituição).

A estrutura das Forças Armadas compreende os três ramos das Forças Armadas – Marinha, Exército e Força Aérea (artigos 8.º e 15.º da LOBOFA).

A Força Aérea tem por missão principal participar, de forma integrada, na defesa militar da República, nos termos da Constituição e da lei, sendo fundamentalmente vocacionada para a geração, preparação e sustentação de forças e meios da componente operacional do sistema de forças (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 187/2014, de 29 de dezembro, que aprova a Lei Orgânica da Força Aérea («LOFA»).

A Força Aérea é parte integrante do sistema de forças. Nas componentes do sistema de forças inserem-se: a) na componente operacional, os comandos, as forças, os meios e as unidades operacionais; b) na componente fixa, o conjunto dos comandos, unidades, estabelecimentos, órgãos e serviços essenciais à organização e apoio geral da Força Aérea (artigo 3.º do mesmo diploma).

17. A estrutura orgânica da Força Aérea, definida no Decreto-Lei n.º 187/2014, de 29 de dezembro (LOFA), compreende o «comando de componente aérea», designado por Comando Aéreo (CA) – artigo 6.º, al. c) –, que tem por missão apoiar o exercício do comando por parte do CEMFA, tendo em vista (artigo 17.º, n.º 1):

a) A preparação, o aprontamento e a sustentação das forças e meios da componente operacional do sistema de forças;

b) O cumprimento das missões reguladas por legislação própria e de outras missões de natureza operacional que sejam atribuídas à Força Aérea;

c) O planeamento e o comando e controlo da atividade aérea;

d) A administração e direção das unidades e órgãos da componente fixa, colocados na sua direta dependência;

e) O planeamento, a direção e o controlo da segurança militar das unidades e órgãos da Força Aérea.

Os elementos da componente operacional do sistema de forças [artigo 17.º, n.º 1, al. a)] são as forças e os meios da Força Aérea destinados ao cumprimento das missões de natureza operacional (artigo 28.º, n.º 1).

Constituem elementos da componente operacional do sistema de forças, as seguintes forças e meios da Força Aérea (artigo 28.º, n.º 2): a) as unidades aéreas operacionais, que se constituem como conjuntos integrados de pessoal, de aeronaves, de material e de equipamentos, organizados sob o comando de um comandante para a execução de missões, tarefas e ações operacionais; b) as unidades de intervenção antiaérea, que têm por missão garantir a defesa antiaérea das unidades e órgãos da Força Aérea, de forças e meios destacados e de outras áreas e pontos sensíveis.

Na estrutura orgânica da Força Aérea incluem-se as bases aéreas, que dependem do Comando Aéreo (CA) – artigo 17.º, n.º 6, al. b), do Decreto-Lei n.º 187/2014, e 35.º, n.º 2, al. b), do Decreto Regulamentar (DReg) n.º 12/2015, de 31 de julho (recentemente alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 2/2023, de 6 de junho) – sob autoridade do Comandante Aéreo (artigo 36.º, n.º 1, do DReg 12/2015).

Nos termos do artigo 60.º (Bases aéreas) do Decreto Regulamentar n.º 12/2015, as bases aéreas constituem «órgãos de base» da Força Aérea e têm por missão garantir a prontidão das unidades aéreas e o apoio logístico-administrativo de unidades e órgãos nelas sediadas ou destacadas, bem como a segurança militar e a defesa imediata (n.º 1), sendo dotadas de aeródromo, com unidades aéreas sediadas ou destinadas a acolher e apoiar destacamentos de longa duração de aeronaves (n.º 2).

O n.º 3 deste preceito indica as bases aéreas que se encontram na dependência hierárquica do Comandante Aéreo, aí se incluindo a Base ....

A base Aérea n.º 11 foi constituída pela Portaria n.º 20856, de 21 de outubro de 1964, a partir de 1 de janeiro de 1965, para funcionar como base operacional na dependência do Comando da 1.ª Região Aérea.

O Decreto-lei 46165, de 20 de janeiro de 1965, confiou à Comissão Administrativa das Novas Instalações para as Forças Armadas (C. A. N. I. F. A.), como serviço especial e extraordinário, a realização do bairro residencial da base aérea n.º 11, compreendendo a elaboração dos estudos e projetos, a aquisição e urbanização dos terrenos e a construção das instalações necessárias. As obras indispensáveis à realização do bairro residencial foram consideradas «de interesse para a defesa nacional», nos termos do § único do artigo 1.º deste diploma.

18. Em síntese, o quadro normativo, institucional e organizacional acabado de descrever carateriza, assim, uma «base aérea» como um órgão de base da Força Aérea dotado de aeródromo, com unidade aérea sediada ou destinada a acolher e apoiar destacamentos de longa duração de aeronaves, que garante a prontidão dessa unidade aérea, enquanto conjunto integrado de pessoal, de aeronaves, de material e de equipamentos, organizados sob o comando de um comandante para a execução de missões, tarefas e ações operacionais.

O que, no que agora interessa, permite afirmar que o bairro residencial do pessoal da base aérea n.º 11, construído para a realização de «interesse para a defesa nacional», é um dos elementos deste conjunto que constituem a «unidade aérea», afeto à realização das suas finalidades e ao cumprimento da sua missão como componente operacional da Força Aérea.

19. A definição típica do crime de «entrada ou permanência ilegítimas» visa, como se viu, a proteção da segurança da função ou serviço militar em determinados locais que a lei designa como «instalações militares». O artigo 70.º do CJM – que, como se viu, protege um interesse de defesa nacional, de segurança das Forças Armadas – pune a entrada ou permanência de qualquer pessoa (“aquele que”, diz o preceito, podendo, assim, classificar-se este crime como sendo um «crime estritamente militar comum»)19, sem motive que o justifique, em «força ou instalação militares».

O que remete para as definições do artigo 6.º do CJM sob a epígrafe «Local de serviço», dando evidência à ideia de que a «instalação militar» se define pelo serviço e pela função a que está afeto: é um local onde os militares prestam serviço ou onde exercem uma função militar. Aí se incluindo as «bases» militares.

Diz o artigo 6.º, n.º 1, que se considera local de serviço «qualquer instalação militar» (ou «plataforma de força militar, área ocupada por força militar ou onde decorram exercícios, manobras ou operações militares ou cuja defesa, proteção ou guarda esteja atribuída a militares ou forças militares», o que agora não releva), entendendo-se por «instalação militar» o «quartel-general, quartel, base, posto, órgão, estabelecimento, centro, depósito, parque, perímetro defensivo, ponto sensível ou qualquer outra área ou infraestrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar» (n.º 3 do mesmo preceito).

20. O que vem de ser dito identifica os aspetos essenciais da resposta à questão (de direito) que se coloca no presente recurso – saber se o arguido, nas circunstâncias descritas nos factos provados, entrou e permaneceu, sem motivo que o justificasse, numa «base» militar da Força Aérea, cuja segurança é penalmente protegida.

A divergência do tribunal da Relação relativamente ao decidido na 1.ª instância radica nas seguintes circunstâncias: “não deverá ser exigido (…) que o local militar que foi alvo de entrada ou permanência ilegítimas, pertencente às Forças Armadas, se encontre ativo, ocupado ou mesmo em funcionamento”; o “tipo legal de crime, para o que ora releva, não faz depender a sua aplicação da circunstância do local se encontrar ou não ocupado ou ativo”; “o prédio em causa pertencente ao Ministério da Defesa Nacional tinha como função a residência dos militares da força aérea e respetivas famílias”, assim “tem uma função militar”; “encontrava-se desocupado, à data da prática dos factos”; “não se pode pôr em crise a propriedade do mesmo ( ), pertença do Ministério da Defesa Nacional, a decisão de o desocupar, assim como a decisão de colocar os cadeados na porta principal (cf. foto 8 de fls. 66 dos presentes autos), impedindo a entrada de estranhos naquele local”; “não se pode interpretar o facto de o prédio em causa: “.....” do Bairro … da Base ... de ..., pertença das Forças Armadas se encontrar, na altura dos factos (16-jul.-2020), desocupado e encerrado, deixasse de ter natureza militar e, consequentemente, não pudesse estar em causa a segurança das Forças Armadas.”

Importa ter presente que, como resulta da matéria de facto provada e da fundamentação de decisão, o edifício em questão, com sessenta apartamentos, de alojamentos de sargentos e trânsito «do Bairro … da base aérea», onde se insere, está fechado desde 2014, com alguns sinais de degradação, que o bairro residencial não se encontra vedado, sendo livre para quem circula nas vias de circulação automóvel e pedonal ali existentes, existindo na respetiva zona oeste um sinal informativo com a menção de que aquelas instalações pertencem ao Ministério da Defesa Nacional e que o acesso é «restrito» (embora não se especifique em que consiste esta «restrição»). Consta do relatório de inspeção de fls. 62, e das fotos anexas, que serviram de fundamento à decisão em matéria de facto, que o «Bairro Residencial da Força Aérea» foi construído com a chegada das Unidades de instrução da Força Aérea alemã, tem um total de 330 habitações, é uma zona residencial ampla, composta de arruamentos, parques de estacionamento e zonas verdes, e que a partir de 1993 e com a saída dos militares alemães o bairro passou a ser propriedade da Força Aérea Portuguesa e ficou sob a administração direta do Comando da Base ..., sujeita, portanto, à autoridade do respetivo Comandante Aéreo (supra, 17).

21. Da matéria de facto provada extrai-se que o edifício onde o arguido entrou se integra num bairro residencial de militares que prestam serviço na base aérea.

Independentemente do seu estado de conservação e do facto de estar ou não ocupado, encontra-se implantado na área do bairro … residencial da base aérea, assim se podendo dizer que se integra na base aérea, estando afeto à finalidade, à função que esta desempenha.

Assim sendo, deve concluir-se que é parte de uma «instalação militar», na aceção do n.º 3 do artigo 6.º, isto é, que constitui um «local de serviço» militar (n.º 1 do mesmo preceito). Neste sentido se alinham decisivamente os elementos histórico, lógico e sistemático de interpretação das normas legais anteriormente convocadas, teleologicamente orientados.

O facto de outras pessoas poderem terem acesso ao espaço do bairro …, sinalizado como propriedade do Ministério da Defesa Nacional, de acesso restrito, não estabelece “uma conexão acidental com a instituição militar”, como pretende o recorrente (conclusão 16), nem lhe retira a natureza e a função de instalação militar que lhe é legalmente atribuída. E que é a que releva para efeitos de definição do tipo de crime do artigo 70.º, n.º 3, al. a), do CJM, o qual, como se viu, pune a entrada e permanência, o acesso não autorizado ao interior da base, aí se incluindo as construções que se encontram no bairro …, por serem parte de uma «instalação militar».

22. Importa notar a este propósito que parte do que vem alegado pelo recorrente não corresponde à matéria de facto provada e que, como tal, incidindo o recurso sobre matéria de direito (supra, 9), não pode ser considerada.

Aqui se incluem as afirmações de que “o edifício denominado T.... está localizado dentro da cidade de ..., no Bairro Residencial da Base ..., destinado alojar militares e civis da Base ... e pessoal militar em trânsito, mediante o pagamento de uma “renda e pagamento diário de uma quantia consoante se for militar ou familiar, respectivamente”, cujas responsabilidades são similares entre senhorio e inquilinos” (conclusão 5); “é uma área que não está vedada, com várias entradas com acesso a veículos automóveis e que serve de passagem à população em geral sem qualquer tipo de restrição” (conclusão 6); “além do mais, tem um infantário, denominado “avião” para filhos de militares e para civis em geral, tem um parque infantil e, ainda, um bar e restaurante (conclusão 7); “qualquer pessoa pode deambular livremente, sem qualquer tipo de restrições, pois, não põe em causa a segurança militar, pois, é um bairro como tantos outros existentes na cidade de ...” (conclusão 8).

23. Para além disso, como bem demonstra o acórdão recorrido, não é necessário ao preenchimento do tipo de ilícito em questão que a entrada e permanência nessa instalação ponha em perigo a segurança das Forças Armadas. Sendo o crime de «entrada e permanência ilegítimas» da previsão do artigo 70.º, n.º 3, al. a), do CJM um crime de perigo abstrato, o perigo para a segurança não constitui elemento do tipo de crime – como se exigiria no caso se tratar de um crime de perigo concreto –, mas apenas a justificação para a incriminação.

Citando Figueiredo Dias, “atendendo à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente (o bem jurídico, dizemos, não o mero «objeto da ação») distingue-se entre crimes de dano e crimes de perigo. (…) Nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em perigo do bem jurídico. Aqui distingue-se entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. Nos crimes de perigo concreto o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo. (…) Nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. (…) a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não perigo efetivo para o bem jurídico.”20

24. Estando provado que o arguido, sem autorização, entrou num local cuja construção se justificou pela finalidade de realização de um interesse de defesa nacional e que é parte de uma instalação militar, mostram-se, pois, preenchidos os elementos objetivos constitutivos do tipo de crime.

Assim se dando resposta à questão suscitada no recurso.

Pelo que, assim sendo, se conclui no sentido de que o acórdão recorrido não merece censura, devendo ser confirmado.

Nesta conformidade, se julga o recurso improcedente.

Quanto a custas

25. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.

Por força da alteração à al. e), parte final, do n.º 1 do artigo 400.º introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, não se identificando motivo que justifique a não tributação, deve agora, por identidade de razão e coerência sistemática, incluir-se na previsão do artigo 513.º a condenação, em recurso, pelo tribunal da relação em caso de absolvição em 1.ª instância.

A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

26. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com 5 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de outubro de 2023.

José Luís Lopes da Mota

(juiz conselheiro relator)

Ernesto Vaz Pereira

(juiz conselheiro adjunto)

José Alberto Fangueiro da Mata

(Tenente-General, juiz militar)

Nuno António Gonçalves

(Presidente da Secção)

Vencido, conforme declaração junta

DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Voto vencido porque, discordando da posição que vez vencimento, entendo, - pela fundamentação adiante sumariamente exposta -, que a factualidade cometida pelo arguido, constante dos factos julgados provados, não preenche os elementos constitutivos do crime estritamente militar pelo qual vem condenado e o vertente acórdão confirmou confirma. Preenchendo, isso sim, o crime de introdução em lugar vedado ao público tipificado no Código Penal.

Neste conspecto e porque foi apresentado denúncia nos autos, decidiria: -------

a) absolver o arguido AA da prática do crime estritamente militar de entrada ilegítima em instalações militares previsto e punido pelo art.º 70º n.º 3 al.ª a) do Código de Justiça Militar pelo qual o tribunal da Relação, em recurso, revertendo a decisão de absolutória da 1ª instância, o condenou na pena de 2 (dois) meses de prisão, substituída por 60 (sessenta) dias de multa, à taxa de €5,00 (cinco) euros, perfazendo a multa de €300,00 (trezentos euros); mas ---

b) convolando a imputação jurídico criminal dos mesmos factos condenava o arguido AA pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público previsto e punido pelo art.º 191º do Código Penal, na medida tutelar de admoestação, em resultada da aplicação do regime penal dos jovens – art. 5º n.º 1 do DL n.º 401/82 de 23 de setembro e arts.º 4º n.º 1 al.ª a) e 9º da Lei n.º 169/99 de 14 de setembro.

2. Antes de avançar mais, pela estranheza e anormalidade que entranha, nota-se, embora sem relevância para a decisão deste recurso, que a acusação foi deduzida contra três arguidos, o referido AA, mas também contra BB e ainda contra CC imputando-lhes a prática, em coautoria de um crime de entrada ilegítima em instalações militares p. e p. pelo art.º 70.º n.º 3 al.ª a) citado.

O tribunal criminal de 1ª instância decidiu absolver os três arguidos.

O Ministério Público recorreu, impugnando somente a condenação do arguido AA.

O Tribunal da Relação, na procedência do recurso, condenou este arguido, que é o mais jovem (na data dos factos com a idade de 16 anos).

Resulta, assim que os dois restantes coarguidos ficaram definitivamente absolvidos, apesar de constar dos factos provados.

3. Motivando a discordância jurídico-substantiva relativamente à decisão que fez vencimento salienta-se que a Lei Constitucional n.º 1/97, alterando o art.º 213º da Constituição da República, introduziu o conceito jus constitucional, mais exigente, de “crimes de natureza estritamente militar” (até então estava em voga o conceito de “crimes essencialmente militares”).

Na sequência, foi apresentada na Assembleia da República a Proposta de Lei 97/IX que resultou na aprovação do vigente Código de Justiça Militar.

Na exposição de motivos da referida Proposta de lei afirma-se que “a que caracteriza o crime estritamente militar são a exclusividade ou prevalência do bem militar em causa e que este se apura com referência às funções atribuídas às forças armadas pela Constituição: garantir a independência nacional, a integridade do território, a liberdade e a segurança das populações contra agressões ou ameaças externas, bem como satisfazer os compromissos internacionais do Estado português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte.

Acrescenta-se aí que “já dizia Figueiredo Dias que «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão».

Rematando-se que “os crimes estritamente militares definem-se, assim, por conexão estreita com os valores da instituição militar constitucionalmente afirmados, os que se recortam na estrutura e funcionalidade dessa instituição em ordem àqueles valores.”

Reafirmando “a ideia de que o punctum saliens dos «crimes essencialmente militares» se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares – cfr. Acórdão nº 271/97 -, alinhado com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, entendo que “o legislador não poderá … definir como tais crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (como, por exemplo, o lugar da sua prática)”.

Implicando tal que não possam ser considerados crimes estritamente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no locus delicti, isto é, do facto de serem cometidos em instalações militares ou por militar, sem que a sua prática se conexione, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas.

É que, para que uma conduta possa ser qualificada como crime estritamente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional.

Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade militar, ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar, conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como [estritamente] militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militares».

Conforme afirmado no Acórdão n.º 47/99, com especial acuidade para o caso, “... o bem jurídico tutelado não é (ou não é apenas) o património militar …” – cfr acórdão n.º 337/03.

Efetivamente, a tipificação do crime de entrada ilegítima em instalações militares, inserido sistematicamente no Capítulo IV que trata dos “Crimes contra a segurança das Forças Armadas”, está enformada por uma carga valorativa própria que permita considerá-lo como elemento essencial para a existência de uma indissolúvel conexão com a segurança da instituição militar, e, consequentemente, para que exista uma violação de bens jurídicos específicos da instituição militar, justificativa da qualificação como crime estritamente militar. Sumariamente, exige-se que essa conduta em casa atente ou faça perigar a segurança das forças armadas.

O que não se verifica no caso.

Para concluir que assim basta reler os factos julgados provado, cometidos por um adolescente de 16 anos e que são, esconsamente, os seguintes (com sublinhados nossos):

«[1.] No dia 16 de julho de 2020, entre as 2h00 e as 3h30, o decidiu introduzir-se no interior do Edifício de Alojamentos de Sargentos e Trânsito, mais conhecido por “.....”, do Bairro … da Base ..., em ....

«[2.] Para o efeito, (…) entrou por uma das janelas situadas no r/c do edifício.

«[3.] No Bairro residencial da Base ..., onde se insere o edifício em causa, encontra-se aposto um sinal informativo na zona oeste, com a menção que aquelas instalações pertencem ao Ministério da Defesa Nacional e que o acesso é restrito.

[4.] Porém, o referido Bairro não se encontra vedado, sendo de livre para quem circula nas vias de circulação automóvel e pedonal ali existentes; acresce que o edifício “.....”, composto por sessenta apartamentos, está desabitado desde 2014 e apresenta já alguma degradação visível ao nível de algumas janelas.

«[5.] O arguido não tinha autorização para entrar no interior do edifício denominado “.....”, o que bem sabia.

«[6.] (…) agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que não se encontrava autorizado a entrar no edifício.

Como é pacificamente entendido, no direito criminal, os factos que podem preencher os elementos constitutivos do crime, incluindo, evidentemente, o respetivo elemento subjetivo do tipo, não se presumem.

Conforme se sublinhou, o edifício que vem identificado como “.....”, do denominado Bairro … da Base Aérea de..., que não está vedado, só tem uma placa informativa na zona oeste, sendo de livre circulação por quem transita a pé ou de automóvel nas vias aí existentes, é propriedade doo Ministério da Defesa Nacional, está desabitado desde 2014 e apresenta algum nível de degradação visível ao nível de algumas janelas.

Não encontramos suporte algum na facticidade provada que permita concluir que o arguido, á data adolescente de 16 anos de idade, tendo entrada no referido edifício que outrora terá servido de alojamento para sargentos e trânsito, mas que está sem utilização alguma desde 2014 (desde há 6 anos por referência à data dos factos), tenha resultado qualquer perigo real ou potencial para a segurança das Forças Armadas a quem incumbe, constitucionalmente, a defesa militar da integridade nacional.

Para que a entrada ilegítima na “.....” em referência, mesmo que classificado como edifício do Ministério da Defesa, preencha o tipo de ilícito em causa nos autos indispensável seria que com tal conduta do arguido resultassem ou pudessem afetados ou tivessem sido colocados em perigo específicos bens jurídicos estritamente militares, concretamente a segurança das forças armadas.

Não podemos conceber que o legislador ordinário, desrespeitando a concetualização constitucional, tenha erigido em critério decisivo da incriminação de uma conduta como crime estritamente militar o local do respetivo cometimento porque a conceber-se assim, bastaria o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afeto à instituição militar para permitir que a lei qualificasse qualquer crime comum como crime estritamente militar.

Refugia-se o acórdão recorrido, com adesão da decisão que ora venceu, em que o crime em questão é um crime de perigo comum. Todavia, deve salientar-se que, mesmo a admitir-se que estamos perante um crime de perigo abstrato, em que o está em causa é a mera probabilidade de um dano por efeito da existência de um comportamento potencialmente perigoso (no caso, a entrada sem autorização em edifício que foi residencial de pessoal da força aérea, mas que está sem qualquer utilização desde 2014), a questão da eficácia ou idoneidade da introdução para colocar em perigo a segurança das forças armadas constituiria um elemento do tipo legal de crime, de tal modo que se essa qualidade não existir, em concreto, não ocorre também o perigo que constitui o motivo da punição. E de facto ela não existe nem poderia atribuir-se a um edifício construído para residência de militares, mas que nenhuma utilização tem há já 9 anos, que, ademais se encontra em plena cidade de ..., de ruas livremente transitáveis por qualquer pessoa.

E, de todo o modo, sempre seria indispensável, (tal qual sucede na generalidade dos crimes de perigo, de que um bom exemplo é o crime de incêndio florestal), que dos factos provados constasse a enunciação do perigo criado ou que poderá ter gerado na segurança das forças armadas a entrada do arguido - à data da ocorrência um adolescente de 16 anos -, na aludida “.....” que terá sido residencial, até 2014, mas que agora está desabitada e degradada, situada em Bairro da cidade de ..., em que as vias são livremente transitáveis por pessoas e veículos.

Não constando da facticidade assente dados de facto que comprovem que a entrada no arguido na aludida “t....” residencial, fez perigar ou causou perigo potencial para a segurança das forças armadas, nó pode concluir-se que com essa conduta cometeu o crime estritamente militar tipificado no art.º 70º n.º 3 al.ª a) do Código de Justiça Militar.

Em conformidade, entendo que se impunha reverter o acórdão condenatório, decidindo-se absolver o arguido da prática do referido crime.

Contudo, não é de absolver pura e simplesmente, mas, por convolação da imputação jurídico-criminal seria de condenar o arguido AA pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, porque, isso, sim, com aquela sua atuação violou o bem jurídico tutelado pela incriminação da entrada, sem consentimento, em espaço vedado pertencente a outrem. E, desta forma, sempre resultaria salvaguardada a privacidade da integridade da reserva do espaço fechado da aludida “.....” e , no fim de contas, da integridade da utilização e acesso à propriedade daquele edifício do Ministério da Defesa Nacional.

Atenta a sua muito jovem idade e porque não causou danos, mas, decisivamente, porque confessou integralmente os factos, assumindo-os e ainda porque contribuiu para a identificação e perseguição criminal dos coautores, ademais de que atualmente é militar ao serviço das forças armadas, aplicaria o regime penal dos jovens, condenando-o na medida tutelar de admoestação.

Nuno A. Gonçalves

(Presidente da 3ª secção criminal)

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1. Que nada tem a ver com a noção de crimes essencialmente militares, que era utilizada no Código de Justiça Militar de 1977 (cf. neste sentido o decidido por este TRL em decisão monocrática de 11-dez.-2009 (Pulido Garcia), no âmbito da decisão de conflito Recurso Penal n.º12719/04.TDLSB-F.L1-5, disponível em:. Acedido em 28-mar.-2023.

2. Cf., neste sentido e CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 5.ª ed. 2014, p. 571 nota (VIII)

3. ( ) Cf. autores citados, op. cit., nota (VIII) pp. 571-572.

  Neste particular, a lição da história diz-nos que Roma já conhecia o crime propriamente militar, expresso na L. 2, D. 49-16: «proprium militare est delictum, quod quis uiti miles admitii». Essa espécie do delito dizia respeito à vida militar, considerada no conjunto da qualidade funcional do agente, da materialidade especial da infração e da natureza peculiar do objeto danificado, que devia ser o serviço, a disciplina, a administração ou a economia militar.

4. Cf. CANAS, Vitalino PINTO, Ana Luísa, LEITÃO, Alexandra, 2004, Porto Editora, in Código de Justiça Militar anotado, p. 17 e ss..

5. Vitalino Canas et alii, op. cit. p. 17.

6. ( ) Cf. neste mesmo sentido PRATA, Vítor M. Gil, “A justiça Militar e a defesa Nacional”, 2012, p. 86.

7. Sendo que, com alta probabilidade, entre os motivos podem estar em causa e serem operantes razões de segurança.

8. Na verdade, “a essência da propriedade reside na sua aptidão para abarcar a generalidade dos poderes que permite o total aproveitamento da utilidade de uma coisa, o que lhe dá caráter de exclusividade.” E “não deixa de haver propriedade ainda quando alguns poderes são atribuídos a outrem” (Cf., neste preciso sentido, FERNANDES, Carvalho, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 2009, pp. 333-334.

9. Na realidade, cumpre aqui ter presente que, por imperativo constitucional (cf. art. 275.º da Constituição da República Portuguesa) “as autoridades das Força Armadas têm poderes meramente executivos ou de direção técnica, cabendo os poderes de direção e orientação aos órgãos de soberania” (Cf. neste sentido CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, op. cit., p. 871, nota III).

10. O património em causa pertence ao Ministério da Defesa Nacional, logo cabe no âmbito dos poderes do proprietário, estando sob administração militar. Sendo certo que a essência da propriedade reside na sua aptidão para abarcar a generalidades dos poderes que permitem ao dono total aproveitamento da utilidade da coisa (jus utendi, jus fruendi e jus disponendi).

11. COSTA, José Francisco de Faria, O Perigo em Direito Penal, Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, reeditado em 2000, p. 620.

12. Cf., neste preciso sentido, FERNANDES, Paulo Silva, Globalização, sociedade de risco e o futuro do direito penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001, p. 33.

13. Cf. FERNANDES, Paulo Silva, op. cit. p. 21.

14. COSTA, José Francisco de Faria, op. cit., pp. 98-99.

15. ( ) Para maiores informações vide: . Acedido em 28-mar.-2023.

16. Projeto de Lei n.º 97/IX (PS), publicado no DAR II Série-A, n.º 19, de 06.07.2002, pp. 607ss. O texto do CJM resultou do texto final da Comissão de Defesa Nacional em apreciação na especialidade deste Projeto de Lei e dos Projetos de Lei n.º 156/IX (PCP) e 259/IX (PPD/PSD), publicado no DAR II Série-A, n.º 5, de 04.10.2003, pp. 22ss.

17. Transcrição da intervenção no colóquio parlamentar organizado pela Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, em 16 de maio de 1994, no contexto da apreciação de legislação relacionada com a justiça militar, incluindo o Projeto do novo Código de Justiça Militar. A intervenção encontra-se publicada em “Justiça Militar, Colóquio Parlamentar”, edição da Assembleia da República, Comissão de Defesa Nacional, 1995, p. 26.

18. Intervenção do Deputado Vitalino Canas, um dos subscritores do Projeto de Lei n.º 97/IX, in DAR I Série, n.º 107, de 3.4.2003, pp. 4497ss. Assim, também, do mesmo autor e outros, Código de Justiça Militar, Comentário Geral, Coimbra Editora, 2004, pp. 14ss)

19. Assim, Vitalino Canas, Ana Luísa Pinto e Alexandra Leitão, Código de Justiça Militar Anotado, Coimbra Editora, 2004, pp. 18-19.

20. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª ed. GestLegal, Coimbra, 2019, p. 359-360.