Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
144/22.8GAPMS.C1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O fundamento de revisão de sentença previsto na aI. c) do n.º 1 do art. 449.º do CPP contém dois pressupostos, de verificação cumulativa: por um lado, a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença e, por outro, que dessa oposição resultem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

II. O fundamento do recurso diz respeito a matéria de facto, isto é, à circunstância de os «factos que servirem de fundamento à condenação» serem «inconciliáveis com os [factos] dados como provados noutra sentença e da oposição» entre esses factos «resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação», e, da matéria de facto, a lei apenas elege os factos relativos à determinação da culpabilidade que fundamentam a «condenação», ou seja, os factos que constituem ou se compreendem no âmbito do objeto do processo, definido pela acusação (artigo 283.º do CPP) ou pela pronúncia (artigo 308.º do CPP) e que justificam a aplicação da pena. O que releva são os factos relativos à «questão da culpabilidade» (artigo 368.º do CPP – nomeadamente os factos relacionados com o preenchimento do tipo de crime, com a participação do arguido na sua prática e com a questão da culpa), não os factos relativos à «questão da determinação da sanção» (artigo 369.º do CPP – factos relevantes para a determinação da espécie e da medida da pena).

III. O presente recurso não se dirige nem põe em causa factos relativos à condenação (à questão da culpabilidade), limitando-se a comparar critérios de decisão relacionados com a relevância de circunstâncias tidas em conta no acórdão recorrido e noutros acórdãos da Relação para determinação da medida da sanção acessória; ao incidir sobre o acórdão da Relação, que alterou a medida da sanção acessória e nada decidiu em matéria de facto, o recurso sempre careceria de objeto, pois que tal factualidade não foi decidida no acórdão da Relação, mas sim na sentença da 1.ª instância, da qual o Ministério Público interpôs recurso apenas na parte relativa à determinação da sanção acessória. Ou seja, o acórdão do tribunal da relação, agora recorrido, apenas emitiu pronúncia em matéria de direito, não em matéria de facto.

IV. Por outro lado, o recurso funda-se também em alegadas divergências entre acórdãos relacionadas com matéria de direito, exprimindo a sua discordância quanto à medida da sanção, por comparação com sanções aplicadas por idênticas infrações.

V. O recurso não convoca, não se dirige, nem se fundamenta em nenhum dos pressupostos da revisão da sentença da al. c) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, de verificação cumulativa, pelo que, sendo manifesta a falta de fundamento, é denegada a revisão. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguida, com identificação nos autos, interpõe recurso extraordinário de revisão do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2022, transitado em julgado em 11.01.2023, que, conhecendo de um recurso interposto pelo Ministério Público da sentença do Juízo Local Criminal de ... – que a condenou pela prática de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos 69.º, n.º 1, alínea a) e 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir por um período de 3 (três) meses –, alterou a condenação nesta pena acessória, fixando-a em 6 (seis) meses.

2. Apresenta requerimento com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«I. A Recorrente foi constituída arguida, atento o facto de, em 8 de maio de 2022, pelas 7H02, se encontrar a conduzir o veículo ligeiro de passageiros com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de, pelo menos, 1,784 g/L.

II. Sequencialmente, houve agendamento de audiência de discussão e julgamento no âmbito do presente processo sumário, tendo lugar em 25 de maio de 2022.

III. Após ter sido lida a Acusação Pública deduzida contra a Recorrente, a Recorrente prestou declarações, demonstrando arrependimento e a interiorização do desvalor da sua conduta ao ter conduzido um veículo sob efeito de álcool.

IV. A Recorrente foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de multa de 60 (sessenta) dias, devendo ser descontado um dia por força da detenção, à razão diária de seis euros.

V. Condenar a Recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 3 (três) meses.

VI. O Douto Ministério Público veio interpor Recurso da sentença proferida nos presentes autos relativamente à medida da pena acessória fixada pelo Tribunal de 1ª Instância, pois, considerou que a sanção acessória de proibição de condução por 3 (três) meses foi benevolente para o caso em apreço.

VII. Em Resposta ao Recurso do Ministério Público, a Recorrente/Arguida explana as razões pelo qual concorda com a Sentença proferida em 1ª Instância, considerando que, a condenação em pena acessória superior a 3 (três) meses é injusto e desproporcional às necessidades punitivas.

VIII. Ora, em 14 de dezembro de 2022, a Recorrente foi notificada do Acórdão da Relação de Coimbra, que julgou procedente o recurso do Ministério Público, revogando a sentença recorrida quanto à sanção de inibição de condução, fixando em 6 (seis) meses o quantum da pena acessória.

IX. Muito além do requerido pelo Ministério Público, que tinha indicado a aplicação do quantum da pena acessória em tempo não inferior a 4 (quatro) meses.

X. Os Srs. Drs. Juízes do Tribunal da Relação consideram que, dada a taxa de alcoolémia em causa – 1,784 g/L -, a pena aplicada fica aquém do que a lei exige nestas situações, reivindicando uma pena acessória mais elevada.

XI. Dentro da moldura abstrata consagrada e observados os fatores referentes à culpa e as considerações do tipo preventivo, deverá ser encontrado um quantum concreto conforme as exigências de prevenção, preservação da pessoa no livre desenvolvimento da sua personalidade e da censurabilidade da ordem jurídica.

XII. No caso concreto, como foi dado como provado, a Recorrente conduzia um veículo com TAS de 1,784 g/L, situando-se logo acima do limite mínimo a partir do qual a conduta integra a prática de crime (TAS 1,2 g/L), excedendo 0,584 g/L.

XIII. Ora, para decidir o quantum da sanção acessória, deverá atender-se o sentido de equilíbrio e de justiça relativa, que deve permanecer nos casos similares apreciados e julgados.

XIV. No entanto, a justiça relativa nem sempre se verifica, sendo aplicado quantum de sanção acessória de inibição aproximados daquele aplicado à Recorrente, em que os arguidos são primários e fizeram a confissão integral e sem reservas dos factos, no entanto, apresentam uma TAS superior a 2,00 g/L.

XV. Devemo-nos debruçar sobre o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de dezembro de 2018, no âmbito do Processo n.º 132/18.9PFBRR.L1-3.

XVI. O aí Arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, por ter conduzido veículo apresentando uma TAS de 2,24 g/L, a qual se apresenta em grau mais elevado do que a aqui Recorrente.

XVII. O Tribunal da Relação de Lisboa, após exaustiva fundamentação sobre o quantum da pena acessória, decidiu manter a sentença recorrida relativamente à sanção de inibição de condução, reiterando que terá de cumprir 5 (cinco) meses sem carta de condução.

XVIII. Ora, questiona-se se, efetivamente, existe justiça relativa: a aqui Recorrente apresenta uma TAS inferior em 0,456 g/L; não tem qualquer antecedente criminal ou contraordenacional; procedeu à confissão livre, integral e sem reservas dos factos imputados; demonstrou claro arrependimento; encontra-se social, laboral e familiarmente integrada e não foi interveniente em qualquer sinistro rodoviário.

XIX. Nesta senda, embora haja uma moldura penal abstrata de 3 (três) meses a 3 (três) anos, compete ao Douto Tribunal, através das exigências de prevenção especial e lançando mão às regras de experiência, aplicar uma moldura concreta adaptada ao caso concreto.

XX. A Sra. Dra. Juiz da 1ª Instância, olhando para os elementos concretos, decidiu pela aplicação depena acessória de proibição de condução de veículos por 3 (três) meses, uma vez que, é a primeira vez que a Recorrente se encontra em situação de julgamento e nada faz prever que irá incorrer na prática do mesmo crime.

XXI. O próprio Ministério Público, no Recurso interposto, vem solicitar a aplicação de sanção de inibição de condução em período não inferior a 4 (quatro) meses… no entanto, indica os 4 (quatro) meses por considerar ser suficiente para cumprir as finalidades da punição.

XXII. Não se concorda, claramente, com a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que vem aumentar o tempo de inibição de condução para 6 (seis) meses.

XXIII. Ora, 6 (seis) meses de inibição de condução de veículos parece-nos excessivo e proporcional para o caso concreto!

XXIV. Veja-se que, o Arguido do Processo n.º 132/18.9PFBRR.L1-3 foi condenado em 5 (cinco) meses de inibição de condução de veículos motorizados, com TAS de 2,24 g/L!!

XXV. A justiça relativa é inexistente no caso em apreço.

XXVI. O Recurso de Revisão é um recurso extraordinário cuja tramitação obedece aos precisos termos legais processualmente previstos e é abrangido pelas garantias de defesa de consagração constitucional, conforme artigo 29º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa.

XXVII. Portanto, a Recorrente funda o pedido de revisão no disposto na alínea c) contém dois pressupostos, de verificação cumulativa: 1) inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença; 2) que dessa oposição resultem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

XXVIII. Ora, se no processo n.º 132/18.9PFBRR.L1-3, consideraram como provado que o Arguido se encontrava a circular com o veículo sob efeito de uma TAS de 2,24 g/L.

XXIX. No entanto, também deram como provados factos que garantiram a aplicação de sanção acessória de inibição de 5 (cinco) meses, por considerarem, que o Arguido agiu sob arrependimento, confessando os factos e não apresentava qualquer antecedente criminal.

XXX. Contudo, no presente processo, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que, tais circunstâncias (existir confissão; estar arrependida e não ter antecedentes) não devem ser relevadas para a boa decisão da causa.

XXXI. Aliás, excede-se ao mencionar que “(…) devia ter pensado que é por comportamentos sociais adequados e não por pedidos de desculpa e compreensão que deve nortear a sua vida em sociedade (…).”.

XXXII. Portanto, o facto de não se olhar para as circunstâncias de vida da Recorrente e prosseguir com o aumento da sanção acessória de inibição de condução, demonstra a falta de justiça relativa entre vários casos de condução sob efeito de álcool.

XXXIII. Enquanto no Proc. n.º 132/18.9PFBRR.L1-3, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou provado que o arguido se demonstrou arrependido, procedendo à confissão dos factos e sendo primário, considerando tais circunstâncias para o quantum da pena acessória, tendo mantido os 5 (cinco) meses.

XXXIV. Não pode a Recorrente aceitar tal circunstância, pois, a pena acessória aplicada aproxima-se das penas acessórias aplicadas a arguidos com TAS superior a 2 g/L, não existindo qualquer critério de decisão e não verificamos uma verdadeira justiça relativa.

XXXV. Confrontando com decisões do Tribunal da Relação em casos semelhantes, parece-nos que, não houve justiça na condenação, tendo em conta as circunstâncias.

XXXVI. Aliás, refere-se também o processo n.º 10888/2008-5, em que o arguido foi condenado pela condução de veículo sob efeito de álcool, em que apresentava TAS de 2,11 g/L, primário e que fez a confissão integral e sem reservas dos factos.

XXXVII. Não pode a Recorrente deixar de sentir injustiçada, por existirem vários casos semelhantes, com TAS superior e com aplicação de sanção acessória de condução inferior à aplicada no seu caso.

XXXVIII. O ser humano não é apenas um número, a aqui Recorrente está bem inserido em sociedade e não deve ser por esta excluído, sem qualquer salvaguarda relativa às circunstâncias que deram causa ao ilícito, que o mesmo confessou, demonstrando toda a sua boa vontade e noção de que teve responsabilidade.

XXXIX. Nesta senda, apresenta-se o presente Recurso de Revisão, por considerar que estão verificados os requisitos, nomeadamente, 1) inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença; 2) que dessa oposição resultem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

XL. Ora, por se encontrar em causa a entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória, contudo, encontra-se apresentado o Recurso de Revisão, deverá promover-se a suspensão do cumprimento da pena acessória até que seja notificada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

Nestes termos e nos melhores de direito,

a) Deve o presente Recurso de Revisão seguir os devidos trâmites legais, sendo proferida a autorização de revisão, e,

b) promover-se a suspensão do cumprimento da pena acessória até que seja notificada a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.»

3. O Ministério Público, pelo senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra, responde concluindo nos seguintes termos:

«i. A recorrente não concorda com o acórdão proferido por este V. TRC, transitado em julgado, que lhe aplicou uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses;

ii. Alega que se sente injustiçada face a casos semelhantes em que o V. TRL aplicou penas acessórias mais leves;

iii. Contudo, tal não constitui fundamento para que o recurso de revisão requerido ao abrigo do disposto no art.º 449.º do CPP possa ter acolhimento, designadamente por não se enquadrar na invocada alínea c) do nº 1 desse preceito, atentas as respetivas exigências e o que a doutrina e a jurisprudência vem entendendo sobre a sua aplicação prática;

iv. Em suma, deve ser liminarmente denegado o pedido de revisão efetuado pela recorrente, com as legais consequências.»

4. O processo foi remetido a este Tribunal acompanhado de informação da Senhora Juíza do processo, nos termos do artigo 454.º do CPP, do seguinte teor:

«Nos termos do artigo 454.º, cumpre informar que consideramos que o recurso não deverá merecer provimento uma vez que não integra qualquer um dos fundamentos do artigo 449.º.»

5. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 455.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido o seguinte parecer:

«Decisão revidenda.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2022, proferida no Processo 144/22.8GAPMS.C1, do Tribunal da Relação de Coimbra, por cujos termos a arguida, a ora recorrente, foi condenada, em recurso, com trânsito em julgado em 11.01.2023:

Pela prática, em autoria material, de um crime de “condução em estado de embriaguez”, p. e p. nas disposições dos arts. 69.º/1-a) e 292.º do Código Penal, além do mais, na sanção acessória de 06 meses de proibição de conduzir, agravando-a (17.02.2023, 10677998).

Fundamento da Revisão.

Disposição do art. 449º/1-c) do Código de Processo Penal: [transcrição] […]

Mérito do recurso.

1. Resulta da jurisprudência comum do STJ a concepção de que o recurso extraordinário de revisão se constitui, na sua etiologia, como um meio extraordinário de reacção contra sentenças (ou despachos) transitadas em julgado nas situações em que a virtual imodificabilidade do decidido daria cobertura a erro ou injustiça clamorosos, ético-socialmente inaceitáveis – porque contra a “consciência axiológica geral”.

2. O instituto do caso julgado – não sendo um fim em si mesmo, mas gozando de um suporte teleológico (como toda a juridicidade, decorrente de princípios ou de normas positivadas) – tem, pois, por escopo conceder estabilidade à decisão judicial, em nome do valor da segurança jurídica, que, no entanto, não é um bem absoluto (o Direito é avesso ao Absoluto), pois que há-de coexistir, numa equação de “concordância prática”, com o valor da Justiça, e perante o qual há-de ceder se o âmago da sua realização resultar intoleravelmente afectado.

3. Nesse pressuposto, a disposição do art. 449.º/1 do Código de Processo Penal, precipitado lógico-positivado em sede ordinária do preceito do art. 29.º/6 da Constituição da República, consagra, nomeadamente, que: [transcrição]

4. É este, precisamente, o fundamento de revisão formalmente invocado pela recorrente: […]

5. Diz o Ministério Público:

Com todo o respeito, o presente recurso é manifestamente improcedente, constituindo, mesmo, um caso de completa inaptidão do meio perante o fim processual visado, vista a respectiva causa de pedir.

Vejamos.

[…]

6. […] A ora recorrente lançou mão de um expediente que, claramente, se revela votado ao fracasso, pois que em vez de invocar uma determinada realidade de facto – judicialmente fixada num outro processo – contraditória com a apurada na decisão revidenda, traz à colação um alegado divergente tratamento jurídico dessa realidade, procurando sustentar um juízo de injustiça relativa.

7. Donde:

Não se revela (nem é invocado) o juízo de inconciliabilidade factual que está na base da matriz jurídico-processual (e etiológica) do recurso de revisão na modalidade esgrimida, que possa fazer lançar dúvidas sérias sobre a justiça da condenação da arguida:

Pretende, isso-sim, a recorrente – mantendo incólumes os factos – discutir os pressupostos jurídicos da condenação, concretamente a medida da sanção acessória aplicada, objecto típico de recurso ordinário.

8. Isto é:

Da inconciliabilidade fáctica, nem sinal.

9. Veja-se, nesta matéria:

O Ac. do STJ de 14.05.2015, P-44/12.0IDFUN-A.S1:

I - A inconciliabilidade das decisões a que se refere a al. c) do n.º 1 do art. 449.º do CPP não se reportando às soluções de direito acolhidas em uma e outra das decisões, há-de, antes, tem de materializar-se num antagonismo existente entre os factos que serviram de base à condenação e os factos dados como provados numa outra sentença, de sorte que, do confronto que se faça entre uns e outros, decorram graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

II - Por outro lado, as decisões inconciliáveis, não se tratando das decisões proferidas no mesmo processo, sobre o mesmo objecto, hão-de ser as decisões que, prolatadas em processos distintos, possuam eficácia executiva autónoma, que lhes advém do caso julgado que sobre elas se formou. Significa isto que a inconciliabilidade dos factos que fundamentaram a condenação e os dados como provados numa outra sentença pressupõe a existência de uma sentença externa, alheia e autónoma ao processo onde foi proferida a decisão revidenda. […]

III. Em síntese:

Não constitui fundamento de revisão a alegação de divergente tratamento jurídico duma concreta realidade que constituiu objecto de outro processo, procurando sustentar um juízo de injustiça relativa.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que deverá:

Ser julgado manifestamente improcedente o presente recurso, com denegação da revisão.»

6. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP), este tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP) e nada obsta ao conhecimento do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Factos – sentença recorrida

7. A sentença condenatória do Juízo Local de ... julgou provado que:

«1. No dia 08-05-2022, cerca das 07h02m, no IC2, ao Km 115, em ..., a arguida AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-AQ-.., apresentando uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,784 g/l.

2. Ao agir como descrito, a arguida actuou em livre manifestação de vontade, com o propósito concretizado de conduzir um veículo motorizado na via pública, influenciada por um estado de alcoolemia superior ao limite máximo permitido por lei para o exercício da condução de veículos na via pública, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida penalmente.

3. A arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.

4. A arguida confessou livre, integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusada.

5. A arguida exerce actualmente funções como técnica de qualidade por conta de uma empresa, auferindo o vencimento mensal de cerca de € 700,00 a € 800,00.

6. A arguida vive sozinha, num apartamento, que adquiriu o ano passado, pagando a prestação bancária mensal de cerca de € 300,00.

7. A arguida percorre uma distância entre a sua residência e o local de trabalho de 16 Km

8. E o seu irmão encontra-se a viver no estrangeiro.

9. A sua mãe não tem carta de condução.

10. E o seu pai também tem os seus horários de trabalho.

11. A arguida trabalha por turnos, incluindo, nocturnos, com excepção do fimde-semana.

12. A arguida não tem antecedentes criminais.

13. A arguida nunca beneficiou da suspensão provisória em processo crime.

14. E a arguida não tem antecedentes contraordenacionais rodoviários.»

Pelo que a condenou na pena acessória de proibição de conduzir por um período de 3 (três) meses.

8. Por entender que a condenação na pena acessória «peca[va] por defeito, o Ministério Público recorreu para a relação de Coimbra, alegando que «no apuramento do seu quantum, não foram tidas em conta as normas relativas à determinação concreta da sua medida», em violação do «disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 40.º, 69.º, n.º 1, alínea a), 70.º e 71.º, todos do Código Penal».

Concluindo e pedindo que a sentença fosse «substituída por outra, nesta parte, que conden[asse] a arguida AA como autora material de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, alínea a) e 292.º, n.º 1, todos do Código Penal, numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período não inferior a 4 (quatro) meses», pediu, a final que a arguida fosse condenada «numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor mais elevada.»

9. Apreciando o recurso, concluiu o Tribunal da Relação que «tomando em consideração os critérios do artigo 71º e ponderando a questão no sentido de que “dentro do limite da culpa, [a pena acessória de proibição de conduzir] desempenha um efeito de prevenção geral de intimidação e um efeito de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano, cumprindo, assim, (…) uma função preventiva adjuvante da pena principal” […] e de que a conduta em causa revela um elevado “grau de perigosidade relativamente aos valores de segurança rodoviária”, o que “não só inviabiliza o controlo pelas autoridades policiais das condições em que os condutores (…) se encontram” como também impossibilita “a detecção e neutralização dos comportamentos perigosos e situações de perigo” e inviabiliza “a realização da disciplina rodoviária”, para além de revelar “o perigo de uma condução não submetida às regras de segurança rodoviária no futuro” […] teremos de concluir que o quantum da pena acessória peca efectivamente por defeito.»

Assim, «ponderando o grau de culpa e as elevadíssimas exigências de prevenção geral e as medianas de prevenção especial, sopesando ainda ao forte efeito dissuasor que esta pena acessória em si encerra e que o grau de ilicitude já algo elevado (reflectido na TAS de, pelo menos, 1,784 g/l), que o dolo é directo, que, sem qualquer relevância probatória, confessou os factos e que é primária e que nenhum sentido faz a sua afirmação de que necessita da carta de condução para se deslocar para o trabalho – dependendo a recorrente da carta de condução para se deslocar para o trabalho, era-lhe exigível um especial cuidado e acerto no cumprimento das regras estradais e não ter comportamentos que lhe prejudicassem directamente a vida, ou seja, devia ter pensado que é por comportamentos sociais adequados e não por pedidos de desculpa e compreensão que deve nortear a sua vida em sociedade —, teremos de concluir que o quantum da pena acessória se mostra demasiado generoso.

Pelo que decidiu: «[…] julgar procedente o recurso e, revogando a sentença recorrida neste ponto, fixa[r] em 6 (seis) meses o quantum da pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados

Do recurso de revisão

10. O direito à revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, o qual dispõe que «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.»

O direito à revisão, que se efectiva por via de recurso extraordinário que a autorize (art.º 449ss do CPP), possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei. A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento das vias processuais de recurso ordinário ou do decurso do prazo para esse efeito, enquanto componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), estabelece-se, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações transitadas em julgado que se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, por virtude da demonstração dos fundamentos contidos no numerus clausus definido na lei, que justifica a realização de novo julgamento, sobrepõe-se, assim, à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

11. A lei enumera os fundamentos e dispõe sobre admissibilidade da revisão no artigo 449.º do CPP, revisto em 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que adicionou três novos fundamentos – os das al. e), f) e g) do n.º 1). Estabelece este preceito:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a. Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b. Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c. Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d. Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e. Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f. Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g. Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.»

No caso presente, funda a recorrente a sua pretensão na al. c) do n.º 1 desta disposição legal, havendo, pois, que averiguar se existem fundamentos para concluir que os factos que serviram de fundamento à condenação são inconciliáveis com os factos dados como provados noutra sentença e se da oposição entre as duas sentenças resultam graves dúvidas sobre a justiça da condenação, para que possa ser autorizada a revisão.

12. Como se evidencia da formulação do texto desta disposição legal, o fundamento do recurso diz respeito a matéria de facto (assim, Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2022, anotação ao artigo 449.º) – isto é, à circunstância de os «factos que servirem de fundamento à condenação» serem «inconciliáveis com os [factos] dados como provados noutra sentença e da oposição» entre esses factos «resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação».

Da matéria de facto, a lei apenas elege os factos relativos à determinação da culpabilidade que fundamentam a «condenação», ou seja, os factos que constituem ou se compreendem no âmbito do objeto do processo, definido pela acusação (artigo 283.º do CPP) ou pela pronúncia (artigo 308.º do CPP) e que justificam a aplicação da pena. O que, neste caso, releva são os factos relativos à «questão da culpabilidade» (artigo 368.º do CPP – nomeadamente os factos relacionados com o preenchimento do tipo de crime, com a participação do arguido na sua prática e com a questão da culpa), não os factos relativos à «questão da determinação da sanção» (artigo 369.º do CPP – factos relevantes para a determinação da espécie e da medida da pena). Neste sentido, Conde Correia, O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão «Propter Nova», Coimbra Editora, 2010, pp. 292-293: «O núcleo dos factos elegíveis deverá ser considerado em função, quer da matéria, quer dos fins pretendidos: só são incluídos os factos compreendidos no âmbito do objeto que determina a condenação judicial e os factos suscetíveis de determinar a absolvição do condenado […]» [assim, por todos o recente acórdão de 06.04.2022 (Ana Brito), Proc. 1118/17.6PHSNT-A.S1, em www.dgsis.pt].

O fundamento da revisão da sentença previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, como tem sublinhado a jurisprudência reiterada e uniforme deste tribunal, contém dois pressupostos, de verificação cumulativa: (1) por um lado, a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os factos dados como provados noutra sentença e, (2) por outro, que dessa oposição resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação [assim, o anterior acórdão do mesmo relator de 04.07.2019, Proc. n. º 47/13.5IDSTR-A.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada].

Requer-se, pois, que entre os factos dados como provados na sentença proferida no processo da condenação e os dados como provados noutra sentença se estabeleça uma relação de incompatibilidade ou de oposição, de tal modo que, verificada a impossibilidade de se conciliarem entre si, é fundado concluir pela existência de grave dúvida sobre a justiça da condenação do recorrente. «A inconciliabilidade pressuposta na lei é apenas e só a que resulta de factos provados numa e noutra sentença, e não quaisquer outros», tem assinalado a jurisprudência [Pereira Madeira, loc. cit. Cfr., por exemplo, os acórdãos de 13-01-2021 (Nuno Gonçalves), Proc. n.º 757/18.2T9ESP-A.S1, e de 11-03-2020 (Manuel A. Matos), ECLI:PT:STJ:2020:3.19.1PFBRG.A.S1].

Apreciação

13. Em síntese, invocando a al. c) do n.º 1 do artigo 449.º, a recorrente alega que:

• Os factos provados no acórdão recorrido são inconciliáveis com os dados como provados no processo n.º 132/18.9PFBRR.L1-3;

Isto porque:

• Nesse processo «consideraram como provado que o Arguido se encontrava a circular com o veículo sob efeito de uma TAS de 2,24 g/L»; «no entanto, também deram como provados factos que garantiram a aplicação de sanção acessória de inibição de 5 (cinco) meses, por considerarem, que o Arguido agiu sob arrependimento, confessando os factos e não apresentava qualquer antecedente criminal.» (conclusões XXVIII e XXIX);

«Contudo, no presente processo, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que, tais circunstâncias (existir confissão; estar arrependida e não ter antecedentes) não devem ser relevadas para a boa decisão da causa (conclusão XXX);

• Neste processo, «o facto de não se olhar para as circunstâncias de vida da Recorrente e prosseguir com o aumento da sanção acessória de inibição de condução, demonstra a falta de justiça relativa entre vários casos de condução sob efeito de álcool (conclusão XXXII);

• Mas, «no Proc. n.º 132/18.9PFBRR.L1-3, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou provado que o arguido se demonstrou arrependido, procedendo à confissão dos factos e sendo primário, considerando tais circunstâncias para o quantum da pena acessória, tendo mantido os 5 (cinco) meses» (conclusão XXXIII);

• Conclui que não existe «critério de decisão», que não se verifica «uma verdadeira justiça relativa», que «confrontando com decisões do Tribunal da Relação em casos semelhantes (…), não houve justiça na condenação, tendo em conta as circunstâncias», e citando o processo n.º 10888/2008-5, finaliza dizendo que «não pode a Recorrente deixar de sentir injustiçada, por existirem vários casos semelhantes, com TAS superior e com aplicação de sanção acessória de condução inferior à aplicada no seu caso».

14. Resulta assim, por um lado, que o recurso não se dirige nem põe em causa factos relativos à condenação – à questão da culpabilidade, que justifica a aplicação da sanção –, limitando-se a comparar critérios de decisão relacionados com a consideração da relevância de circunstâncias tidas em conta no acórdão recorrido e noutros acórdãos da Relação para determinação da medida da sanção acessória. Desta perspetiva sempre se deveria concluir que, ao incidir sobre o acórdão da Relação, que nada decidiu em matéria de facto, o recurso sempre careceria de objeto, pois que tal factualidade não foi decidida no acórdão da Relação, mas sim na sentença da 1.ª instância, da qual o Ministério Público interpôs recurso apenas na parte relativa à determinação da sanção acessória, por aplicação do respetivo regime legal. Ou seja, o acórdão do tribunal da relação, agora recorrido, apenas emitiu pronúncia em matéria de direito, não em matéria de facto.

Por outro lado, o recurso da arguida funda-se, também ele, em alegadas divergências entre acórdãos relacionadas com matéria de direito, exprimindo a sua discordância quanto à medida da sanção, por comparação com sanções aplicadas por idênticas infrações.

15. Ou seja, o recurso não convoca, não se dirige, nem se fundamenta em nenhum dos pressupostos da revisão da sentença previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, de verificação cumulativa: a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os factos dados como provados noutra sentença e as graves dúvidas sobre a justiça da condenação resultantes dessa oposição.

Pelo que, sendo manifesta a falta de fundamento, deve ser denegada a revisão.

Quanto a custas

16. Nos termos do disposto no artigo 456.º do CPP, se o Supremo Tribunal de Justiça negar a revisão pedida pelo assistente, pelo condenado ou por qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 450.º, condena o requerente em custas e ainda, se considerar o pedido manifestamente infundado, no pagamento de uma quantia entre 6 UC a 30 UC. De acordo com o artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III em anexo, a taxa de justiça é fixada entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do processo.

Em conformidade com estas disposições, considera-se adequada a fixação da taxa de justiça em 2 UC e, por o recurso ser manifestamente infundado, deve o recorrente ser condenado no pagamento de uma quantia que se fixa em 8 UC.

III. Decisão

17. Termos em que, nos termos do artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, se decide em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

a. Denegar a revisão da sentença condenatória requerida pela condenada AA.

b. Julgar o pedido de revisão manifestamente infundado.

c. Condenar os recorrentes em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC,

d. Condenar a recorrente na quantia de 8 UC, por o pedido de revisão ser manifestamente infundado.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de novembro de 2023.

José Luís Lopes da Mota (Juiz conselheiro relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza conselheira adjunta)

Sénio Manuel dos Reis Alves (Juiz conselheiro adjunto)

Nuno A. Gonçalves (Presidente da Secção)