Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
636/20.3T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ALEGAÇÕES DE RECURSO
ÓNUS DE CONCLUIR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
O ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC é de considerar preenchido quando o recorrente especifica no corpo da alegação os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e nas conclusões declara que impugna a matéria de facto provada e não provada, e pede a alteração da decisão com base na reapreciação da prova gravada e na demais prova junta aos autos, conforme devidamente indicado, ponto por ponto, no corpo da alegação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


Oreco Portugal, Unipessoal, Lda, com sede na Rua ..., ...,..., propôs acção declarativa com processo comum contra Meridiano Adiante, Lda, com sede na Urbanização ..., ..., pedindo se julgasse plenamente válida e eficaz a resolução do contrato promovida por ela, autora, e, em consequência, se condenasse a ré a pagar a quantia de € 79.768,41, sobre a qual incidem os respectivos juros moratórios, calculados à taxa legal desde a data da resolução do contrato até efectivo e integral pagamento, assim discriminada:

1. A quantia de € 23.750,00, correspondente ao ressarcimento da quantia liquidada em excesso face ao valor dos trabalhos efectivamente realizados pela ré (€ 45.250,00 - € 21.500,00), conforme indicado nos itens 58.º a 61.º da petição;

2. A quantia de € 1.118,00, correspondente aos encargos e prejuízos que ela, autora, suportou decorrentes da deficiente execução de alguns trabalhos da responsabilidade da ré, conforme indicado nos itens 17º a 24º da petição;

3. A quantia de € 44.993,03 correspondente à diferença entre o valor adjudicado inicialmente à ré., deduzido do valor de € 21.500,00 relativo aos trabalhos já realizados, e o valor que a autora pagou ao novo subempreiteiro pela execução dos restantes trabalhos que a ré não executou, dentro dos prazos contratualmente fixados com o dono da obra para o efeito;

4. A quantia de € 8.907,38, correspondente ao custo do estaleiro desde o abandono da obra pela ré (ocorrido a .../08/2019) até à entrada em obra do novo subempreiteiro (ocorrida a .../09/2019), num total de 11 dias, suportada pela autora.;

5. A quantia de € 1.000,00, a título de danos não patrimoniais, face à factualidade constante dos itens 68.º a 72.º da petição;

A autora pediu ainda a condenação da ré a ressarci-la pelas multas contratualmente fixadas por violação dos prazos estabelecidos, que ela, autora, viesse a suportar perante o dono de obra, concretamente a multa diária de 2‰ do valor da adjudicação por cada dia de atraso face ao prazo fixado, conforme alegado nos artigos 67.º, 79.º, 80.º e 81.º da petição, a apurar mediante incidente de liquidação de sentença.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que lhe foi adjudicada a realização de uma empreitada (construção do bloco operatório da Santa Casa da Misericórdia de ...);

• Que, no âmbito da execução da referida obra, subcontratou à ré a execução de vários trabalhos;

• Que a ré incumpriu sucessiva e reiteradamente as suas obrigações contratuais;

• Que o incumprimento, pela sua gravidade, reiteração e consequências, levou a autora a proceder à resolução do contrato;

• Que, em consequência da resolução, são-lhe devidos: os valores pagos em excesso e a título de adiantamentos, face ao último auto de medição efectivo; as despesas suportadas por ela, autora, com a reparação dos trabalhos executados defeituosamente pela ré; os custos de manutenção do estaleiro, desde o abandono da obra pela ré até à entrada do novo empreiteiro; o custo acrescido da contratação de um novo empreiteiro; a indemnização dos prejuízos que ela, autora, venha a suportar junto do dono de obra, inerentes a multas contratualmente fixadas pela violação dos prazos estabelecidos, concretamente a multa diária de 2‰ do valor da adjudicação por cada dia de atraso face ao prazo fixado; e o prejuízo para a imagem e o bom nome comercial dela autora.

A ré contestou e deduziu reconvenção. Na sua defesa começou por invocar a incompetência territorial do tribunal onde foi proposta a acção. De seguida, alegou, em síntese, que a autora era a única responsável pelos atrasos nas obras e pelos restantes prejuízos alegados. Pediu, em consequência, se julgasse procedente a excepção de incompetência territorial e que a acção fosse julgada improcedente, com a absolvição dela, ré, de todos os pedidos apresentados contra si.

Em sede de reconvenção, pediu:

1. A condenação da autora no pagamento de todos os serviços efectivamente executados, conforme enumerados no ponto 284 da contestação, no valor global de 81.467, 00€;

2. A condenação da autora no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 6.000, 00€;

3. A condenação da autora no pagamento de juros de mora vincendos, até ao efectivo e integral pagamento dos valores identificados.

A autora respondeu, pedindo se julgasse improcedente a reconvenção.

Findos os articulados, foi proferido despacho a julgar improcedente a excepção de incompetência territorial.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção, decidiu:

1. Condenar a ré a pagar à autora a quantia global de € 68.563,03 (sessenta e oito mil, quinhentos e sessenta e três euros e três cêntimos), à qual acresciam juros de mora, à taxa legal anual de 4%, contados desde o dia 4 de Setembro de 2019, sobre o montante parcial de € 23.500,00, e contados desde a citação da ré, sobre o valor parcial de € 44.993,03, em ambos os casos até ao efectivo e integral pagamento;

2. Absolver a ré da parte restante do pedido contra ela formulado;

3. Absolver a autora do pedido reconvencional.

Recurso de apelação:

A não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo se revogasse e substituísse a sentença recorrida por decisão que determinasse a improcedência total do pedido formulado pela autora e a procedência do pedido reconvencional.

Por acórdão proferido em 22-05-2023, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente o recurso de apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Recurso de revista:

A ré, apelante, não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista excepcional, nos termos dos artigos 671.º, n.º 3, e 672º, n.º 1, al. c), ambos do Código de Processo Civil, pedindo se revogasse o acórdão quanto à rejeição do recurso da matéria de facto e se proferisse outra decisão em seu lugar.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. É objecto deste recurso a douta decisão, de que se discorda, proferida nos autos acima identificados e que decidiu pela rejeição do recurso sobre a matéria de facto, mantendo a decisão de direito proferida pela 1.ª instância.

2. O Tribunal considerou não se encontrarem verificados os requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, uma vez que a recorrente não indicou, especificamente, nas conclusões, os exactos pontos da matéria de facto fixada com os quais discordava.

3. O douto Tribunal desconsiderou a remissão efectuada pela recorrente na conclusão IX, na qual remetia especificamente, para os pontos da matéria de facto provada e não provada que pretendia impugnar, quais os meios de prova que sustentavam a sua pretensão e qual a decisão que pretendia obter com a alteração da matéria de facto.

4. Ao decidir como decidiu, o douto Tribunal colocou em causa a letra da lei, fazendo uma interpretação desajustada do preceito em questão, com consequências gravíssimas para a recorrente.

5. A interpretação defendida pelo douto Tribunal impõe um ónus inexistente à recorrente, desconsiderando que a mesma, no articulado apresentado, delimitou claramente o objecto do recurso e não colocou em causa o direito a contraditório da parte contrária.

6. A decisão em apreço está em directa contradição o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 1879/20.5T8FAR.E1 em 02/03/2023.

7. Assim sendo, impõe-se a revogação do acórdão na parte relativa à rejeição do recurso da matéria de facto, ordenando-se a reapreciação da mesma.

8. Face ao exposto, o douto Tribunal não andou bem quando tomou a decisão ora contestada, devendo o acórdão ser revogado e substituído por outro transcreva o exposto supra, como é de direito e justiça

A apelada não respondeu ao recurso.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se o acórdão sob recurso errou ao rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e, em caso de resposta afirmativa, se o acórdão é de substituir por decisão que determine o conhecimento da impugnação.


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Factos relevantes para a decisão do recurso:

A. O teor das alegações apresentadas pela apelante.

B. A seguinte discriminação dos factos provados e não provados feitos na sentença proferida em 1.º instância:

Provados:

1. A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade de construção e engenharia civil, incluindo a realização de obras de todo o tipo, assim como a reforma e restauração de locais comerciais.

2. A Ré dedica-se, igualmente, entre o mais, à prossecução de actividades de construção civil e obras públicas.

3. No exercício da sua actividade, foi adjudicada à Autora, pela Santa Casa da Misericórdia de ... a empreitada de “Construção de Bloco Operatório da Santa Casa da Misericórdia de ...”, a realizar na Avenida ..., ..., junto à Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) Senhora de ..., a qual se rege pelos termos constantes do contrato junto a fls. 14 segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. No âmbito da execução da referida obra, a Autora subcontratou à Ré a execução dos trabalhos de moldagem e colocação de armaduras de aço para estrutura de betão armado; colocação de cofragem para estrutura de betão armado e de colocação de betão para estrutura de betão armado, melhor discriminados nos autos de adjudicação juntos a fls. 19 vs., 20 e 20v e 21, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5. Foi acordado entre Autora e Ré que os trabalhos teriam o seu início em 30 de Junho de 2018 e o seu termo em 30 de Agosto do mesmo ano.

6. Durante o período acordado para realizar os trabalhos pela Ré não foi possível concluir betonagens, porquanto se verificaram cofragens e descofragens por terminar, bem como falta de trabalhadores da Ré.

7. Em data não concretamente determinadas do mês de Agosto de 2019, após terem chegado à obra, os trabalhadores da Ré deixaram a mesma alegando falta de pagamento dos seus vencimentos, situação que provocou atrasos nas betonagens agendadas.

8. Num outro dia do mesmo mês de Agosto, os trabalhadores da Ré geraram desacatos alegando falta de pagamento de salários, o que motivou a deslocação da PSP ao local.

9. Na sequência desses acontecimentos, após contacto da Autora com o legal representante da Ré este comprometeu-se a regularizar tais problemas e recuperar os atrasos, apresentando mais trabalhadores em obra até ao dia 19 de Agosto.

10. No dia 21 de Agosto de 2019, a Ré fez comparecer na obra pelo menos oito trabalhadores estrangeiros, sem documentação válida cuja entrada ao serviço foi, por isso, recusada pela fiscalização da obra.

11. A partir desse dia, não mais a Ré apresentou qualquer trabalhador na obra, não mais realizando qualquer trabalho.

12. E no dia 22 de Agosto de 2019, sem qualquer aviso prévio ou motivo justificativo, abandonou a obra, retirando todos os seus materiais e ferramentas.

13. Através de carta registada com aviso de recepção, datada de 3/09/2019 – cuja cópia está junta a fls. 23 vs. e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – a Autora comunicou à Ré a resolução do contrato de subempreitada e solicitou a devolução de todos os valores pagos em excesso e a título de adiantamentos, face ao último auto de medição efectuado, mais a informando que lhe iria imputar todos os prejuízos que suportou, designadamente, as reparações ou trabalhos que se viu obrigada a efectuar, em consequência dos erros de execução da Ré.

14. Até ao dia 22 de Agosto de 2019, a produção efectiva de trabalhos realizados pela Ré correspondeia a cerca de 20% dos trabalhos contratados, o que se traduzia num valor pecuniário não superior a €21.500,00.

15. A Autora procedeu aos seguintes pagamentos à Ré: - Factura 1 (FT 2019/4) – € 19.500,00 (correspondentes ao adiantamento de 25% do valor do Auto Adj. 07 R03 – documento n.º 2); Factura 2 (FA 2019/3) – € 21.500,00 (€ 14.000,00 relativos ao Auto Adj 08 + € 6.500,00 a título de adiantamento para cofragem de tecto do R/C + € 1.000,00 a título de encargos com o gruísta, sob o compromisso de a R. avançar com os pilares do R/C); - Factura 3 (FA 2019/4) – € 4.250,00 (correspondente a 50% do valor total desta factura, ou seja, € 8.500,00), relativo ao adiantamento para cofragem do tecto do R/C, com o compromisso de avançar com os pilares do RC, nos termos do acordo estabelecido entre a Ré e o legal representante da Autora.

16. A Autora contratou outro subempreiteiro a execução dos trabalhos que deveriam ser efetuados pela Ré, pelos quais pagou o montante de €113.493,03€.

17. A Autora também adjudicou à Ré os trabalhos constantes do Auto 18 – junto a fls. 57 vs. e 58 - correspondentes ao trabalho do operador de grua.

18. Na sequência de uma reunião mantida entre as partes no dia 30 de Julho de 2019, o prazo para a conclusão total da obra alargado para a semana de 19 a 27 de Setembro de 2019, com o compromisso assumido pela Ré de concluir as fases a seguir discriminadas nas seguintes datas: FASE 1 09-08-2019 – pilares exteriores RC; FASE 2 19-08-2019 – pilares interiores RC; FASE 3 29-08-2019 – tecto RC; FASE 4 09-09-2019 – pilares 1º andar; FASE 5 19-09-2019 – tecto 1º andar; FASE 6 27-08-2019 – folga para terminar os trabalhos.

19. No dia 23 de agosto de 2020, não estavam concluídos os pilares do R/C, nem tampouco o piso do R/C estava concluído, existindo ainda ferro por moldar em obra.

Não provados:

a. Que no dia 6 de Agosto de 2019, verificavam-se vícios e deficiências na cofragem no muro das escadas que, por não terem sido corrigidos, provocaram a “abertura” da cofragem no muro das “escadas 2” abriu devido às pressões na base.

b. Que, para tentar reparar a situação e aproveitar o betão encomendado já encomendado à central, a Autora, conjuntamente com a Ré, procurou reparar a cofragem, não tendo, contudo, sido possível betonar o que estava previsto.

c. Que, por isso, o último carro de betão regressou à central com 5,00 m3 de betão, cujo custo foi suportado pela Autora.

d. Que, no dia 8 de Agosto de 2019, os trabalhadores da Ré apenas chegaram à obra para início da jornada de trabalho às 9:45h, quando deveriam ter entrado às 7:00 horas, sem que tivessem oferecido qualquer aviso prévio ou justificação para tal entrada tardia aos trabalhos.

e. Que, ainda no mesmo dia 8 de Agosto, os trabalhadores da Ré foram alertados inúmeras vezes pela Autora para a deficiente vibração do betão.

f. Que após descofragem dos elementos betonados dos muros, verificou-se que os muros continham vazios significativos no betão, tendo sido necessário proceder à sua reparação, o que foi feito pela Autora suportando o respectivo custo.

g. Que, no dia 12 de Agosto de 2019, foi detectado pela Autora que as vigas de fundação foram armadas com mais 5 cm de altura, comparativamente ao que constava do projecto, tendo sido necessário proceder à sua reparação, o que foi feito pela Autora.

h. Que as situações aludidas em c), f) e g) determinaram que a Autora suportasse custos acrescidos no valor de no montante total de € 1.118,00.

i. Que a Autora suportou custos de manutenção do estaleiro desde o abandono da obra pela Ré (ocorrido a 22/08/2019) até à entrada em obra do novo subempreiteiro (ocorrida a 02/09/2019), num total de 11 dias, com um custo diário de € 809,76, período durante o qual a obra esteve literalmente parada em virtude do abandono da Ré, sem qualquer produção.

j. Que a Autora terá de pagar à dona da obra as multas contratuais previstas no contrato de empreitada pelos atrasos provocados pela actuação da Ré.

k. Que a imagem comercial e bom nome da Autora saíram comprometidos, como consequência directa e necessária dos erros de execução da Ré e incumprimento dos termos e prazos contratados para execução da obra.

l. Que a Ré executou, por conta da Autora, trabalhos extra, não contemplados nos autos de adjudicação acima indicados.

m. Que a Autora atrasou a preparação do terreno para a Ré trabalhar – isto é, a Autora não preparou o solo devidamente para que a Ré trabalhasse.

n. Que a não execução da rede sanitária pela Autora prejudicou a realização dos trabalhos de estrutura adjudicados à Ré.

o. Que a Ré foi impedida de realizar trabalhos de cofragem pelo facto de a Autora não ter realizado a betonagem ciclópica de limpeza e aberturas de valas para sapatas.

p. E ainda porque se verificava insuficiência de máquinas a escavar (minigiratória) a cargo da Autora, bem como a avaria da escavadeira grande que estavam a cargo da Autora.

q. Que sem a disponibilidade da máquina escavadeira grande necessária para a construção do de uma Rede Sanitária / Caixa a mais de 2,50 mts de profundidade e sem a Escavadeira Grande, nessa zona não foi possível a abertura de sapatas e edificação do pilar de fundação do prédio.

r. Que no dia 12/07/2019, a Autora começou a fazer as primeiras escavações, sendo que nessa altura a Ré já tinha o ferro todo preparado.

s. Que a Autora não procedeu atempadamente à delimitação do perímetro de trabalho.

t. Que o betão fornecido pela Autora chegava constantemente à obra após terminar o horário de trabalho, obrigando a que os trabalhadores da Ré tivessem de fazer horas extraordinárias.

u. Que a Autora nunca facultou ou disponibilizou a Ré um estaleiro, razão pela qual esta guardava os seus materiais numa carrinha própria.

v. Que no dia 21/09/2019 a Ré apresentou 9 trabalhadores na obra, todos documentados, tendo a sua entrada na obra sido impedida porque a Autora não tinha no seu quadro pessoal com a capacidade suficiente para ministrar o curso de segurança necessário para o acesso à obra.

w. Que desde Julho de 2019 que a Autora se encontrava em incumprimento dos pagamentos que havia acordado com a Ré.

x. Que era essa a razão pela qual a Ré suspendeu os trabalhos acordados com a Autora;

y. Que nos finais de Julho, a maquinaria pesada de construção circulava no meio dos trabalhadores da Ré dificultando o normal desenvolvimento dos trabalhos a cargo desta.

z. Que no dia 23/08/2019, ainda faltavam escavar 4 buracos para as sapatas em falta.

aa. Que quando da celebração do contrato, a Autora não informou a Ré que o solo no local da obra não era estável, pelo que teria de ser aplicado betão ciclópico na base das sapatas.

bb. Que verificaram-se erros de medições pelas empresas de escavação e que conduziram à necessidade de os trabalhadores da Ré aumentarem manualmente os buracos das sapatas.

cc. Que verificaram-se atrasos na chegada do betão ao local da obra.

dd. Que verificaram-se situações de assédio aos trabalhadores da Ré por parte de responsáveis da Autora o que conduziu a que um dos trabalhadores se despedisse.

ee. Que em 22 de Agosto, a Ré havia realizado os trabalhos constantes do relatório de obra junto a fls. 199 vs. e segs..

ff. Que a Ré entregou à Autora este relatório, no qual lhe comunicava que os trabalhos ficariam suspensos até ao pagamento dos seguintes valores em dívida: i) Remanescente do mês de Julho; ii) Trabalhos extra não adjudicados formalmente, mas solicitados; iii) Material da Ré destruído pela Autora sem razão aparente; iv) Aluguer de maquinaria; v) Trabalhos realizados no mês de Agosto.

gg. Que o betão ciclópico foi incorrectamente colocado pelos funcionários da Autora, comprometendo a estabilidade de todo o edifício.

hh. Que a Autora abriu buracos pequenos para a sapatas contratadas pelo que os trabalhadores da Ré tiveram de escavar os buracos manualmente.

ii. Que os erros de medição dos buracos das sapatas, da responsabilidade da Autora, conduziram ao chumbo de algumas sapatas pela fiscalização, uma vez que, por terem sido remetidas medidas erradas, os buracos eram pequenos demais para o material de cofragem preparado.

jj. O que obrigou a que a cofragem fosse montada e desmontada várias vezes, com os custos inerentes a esse trabalho.

kk. Que verificaram-se erros de medição do terreno que determinaram a alteração da localização dos pilares.

ll. Que a Autora não pintou todas as sapatas com um hidrófugo por forma a evitar que a humidade não prejudicasse a integridade das mesmas.

mm. Que a Ré realizou os trabalhos mencionados como não pagos constantes do relatório de obra aludido em ee), pelos valores ali constantes que não foram pagos pela Autora, num total de 81.467,00€.

nn. Que independentemente dos trabalhos “oficialmente” adjudicados, a Autora tinha um modus operandis especifíco – primeiro pedia para fazer e, depois de feito, adjudicava, sendo que a Ré, acreditando na boa fé da Autora aceitou trabalhar assim.

oo. Que a ré, no decorrer da sua actividade, trabalha com o auxílio a créditos bancários e linhas de crédito que permitem ter o fundo de maneio necessário ao desenvolvimento das obras, sem que tenha de recorrer a capitais próprios.

pp. Que por causa da pendência da ressente acção, está em risco de ver as suas linhas de crédito bancário encerradas:

qq. Situação que afecta a sua imagem e bom nome da mesma.

rr. Que entre a data em que a Ré retirou os seus trabalhadores da obra e a data e que o novo subempreiteiro recomeçou os trabalhos, a Autora manteve em permanência na obra, pelo menos, um encarregado, dois engenheiros, um técnico de higiene e segurança, um topógrafo e um electricista, contando com os respectivos ajudantes


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Resolução das questões:

Antes de passarmos à resolução das questões suscitadas pela revista, importa dizer que, apesar de a recorrente ter designado o recurso por si interposto como revista excepcional, nos termos dos artigos 671.º, n.º 3, e 672º, n.º 1, al. c), ambos do Código de Processo Civil, o ora relator entendeu, no despacho inicial, que o recurso era admissível ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º do CPC.

Posto isto, entremos na resolução das questões suscitadas pelo recurso.

O objecto da presente revista é constituído exclusivamente pelo segmento do acórdão da Relação que rejeitou a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Embora tenha afirmado que se inferia da alegação que a apelante tinha a intenção de impugnar a decisão relativa à matéria de facto, o acórdão rejeitou o conhecimento da impugnação com base nos seguintes fundamentos:

• Era exigível que figurassem nas conclusões, de forma clara, quais os pontos de facto que o recorrente considerava incorrectamente julgados, sob pena de rejeição do objecto do recurso nessa parte, podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo das alegações. Citou em abono desta interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC as seguintes decisões: o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 7-04-2016, no processo n.º 4247/10.3TJVNF.G1; o acórdão do STJ proferido em 1-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1; o acórdão do STJ proferido em 29-10-2015, no processo nº 233/09.4TBVNC.G1.S1; o acórdão do STJ proferido em 06-12-2016 no processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1; o acórdão do STJ proferido em 27-09-2018 no processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1; o acórdão do STJ proferido em 21-03-2019, no processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2; o acórdão do STJ proferido em 17-11-2020, no processo n.º 846/19.6T8PNF.P1.S1; o acórdão do STJ proferido em 9-02-2021, no processo n.º 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1; o acórdão do STJ proferido em 25-03-2021, no processo n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1; o acórdão do STJ proferido em 27-04-2023, no processo n.º 4696/15.0T8BRG.G1.S1, todos publicados em www.dgsi. Citou ainda, em abono de tal interpretação, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil.

• Analisadas as conclusões de recurso, resultava claro que das mesmas não constavam indicados os concretos pontos da decisão de facto que foram alvo de impugnação.

A recorrente não põe em causa a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, segundo a qual quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, nas conclusões da alegação, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Com o que ela não concorda é com o entendimento de que tal indicação não figurava nas conclusões do recurso de apelação.

A resposta à questão suscitada pela revista remete-nos, antes de mais, para a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, mais concretamente para a questão de saber se o cumprimento do ónus nela prevista – especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados - se basta com a especificação, no corpo da alegação, de tais pontos de facto ou se tal cumprimento exige que tal especificação figure também nas conclusões.

Como dá conta o acórdão recorrido, na interpretação da citada alínea, o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que o cumprimento do ónus nela previsto exige que o recorrente indique, nas conclusões da alegação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Com efeito, uma vez que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que está subjacente à impugnação matéria de facto, não implica a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida, mas visa concretos erros de julgamento, cabe ao recorrente o ónus de delimitar o objecto da sua impugnação. Visto que as conclusões servem para delimitar o objecto do recurso, como resulta do n.º 4 do artigo 635.º do CPC, nelas devem figurar os segmentos da decisão de facto impugnados.

Importa, no entanto, ter presente, como o afirma de modo constante o Supremo Tribunal de Justiça, que a verificação do cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC tem de ser realizada à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem substancial do que aos de ordem formal. Citam-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos do STJ: acórdão do STJ proferido em 29-10-2015, no processo n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1., acórdão do STJ proferido em 28-04-2016, no processo n.º 1006/12.TBPRD.P1.S1; acórdão do STJ proferido em 8-02-2018, no processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1, acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 13 4116/13.2YIPRT.E1; acórdão do STJ proferido em 4-07-2023, no processo n.º 7997/20.2T8SNT.L1.S1 e o acórdão do STJ proferido em 14-09-2023, no processo n.º 1175/20.2T8SNT.L1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt.

Interpretada a alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, cabe agora responder à questão de saber se, como se afirma no acórdão recorrido, resultava claro que das conclusões não constavam indicados os concretos pontos da decisão de facto que foram alvo de impugnação, ou se, como sustenta o recorrente, o acórdão desconsiderou a remissão efectuada na conclusão IX para os pontos da matéria de facto impugnados.

Sobre esta questão cabe dizer o seguinte.

É exacta a afirmação do tribunal a quo, segundo a qual a recorrente não indicou expressamente nas conclusões os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados. Com efeito, tendo o tribunal de 1.ª instância discriminado os factos provados através de números e indicado os não provados mediante letras, a indicação expressa dos pontos de facto que a recorrente considerava incorrectamente julgados pressupunha a indicação deles, nas conclusões, por referência aos números ou letras por que foram, respectivamente, julgados provados ou não provados, ou a sua transcrição A recorrente não fez nem uma coisa nem outra.

Se o acabado de expor é exacto, também é certo o seguinte.

Em primeiro lugar, a ré apelante indicou expressamente no corpo da alegação os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, concretamente: 1) os pontos números 6, 7, 8, 10, 11, 12, 14, 16 e 18 dos factos julgados provados; 2) as alíneas l), m), v), w), x), y), aa), ff) e mm) da matéria julgada não provada. O que se acaba de afirmar é atestado pelos seguintes passos do corpo da alegação:

“Nesse sentido, a ré considera que deverão ser alterados os seguintes factos considerados provados:

6) Durante o período acordado para realizar os trabalhos pela Ré não foi possível concluir betonagens, porquanto se verificaram cofragens e descofragens por terminar, bem como falta de trabalhadores da Ré;

Devendo este facto ser alterado no sentido de, de acordo com a prova gravada do depoimento do director de obra, engenheiro AA, vertido no ponto 29 do presente requerimento, que o estudo quanto à capacidade do solo ocorreu no decorrer das obras e não em data anterior. Assim o ponto seis dos factos provados deverá ler: 6) Durante o período acordado para realizar os trabalhos pela Ré não foi possível concluir betonagens, porquanto se verificou que o solo não tinha a capacidade de resistência necessária para a colocação do betão conforme acordado, de acordo com o estudo do solo efectuado no decorrer da obra;

137. A ré considera ainda, que deverão ser aditados os seguintes factos provados:

a) A Ré executou, por conta da Autora, trabalhos extra, não contemplados nos autos de adjudicação acima indicados;

b) No dia 21/09/2019 a Ré apresentou 9 trabalhadores na obra, todos documentados, tendo a sua entrada na obra sido impedida porque a Autora não tinha no seu quadro pessoal com a capacidade suficiente para ministrar o curso de segurança necessário para o acesso à obra;

- Desde Julho de 2019 que a Autora se encontrava em incumprimento dos pagamentos que havia acordado com a Ré, sendo essa a razão pela qual a Ré suspendeu os trabalhos acordados com a Autora;

- Nos finais de Julho, a maquinaria pesada de construção circulava no meio dos trabalhadores da Ré dificultando o normal desenvolvimento dos trabalhos a cargo desta;

- Aquando da celebração do contrato, a Autora não informou a Ré que o solo no local da obra não era estável, pelo que teria de ser aplicado betão ciclópico na base das sapatas;

- A Ré entregou à Autora este relatório, no qual lhe comunicava que os trabalhos ficariam suspensos até ao pagamento dos seguintes valores em dívida: i) Remanescente do mês de Julho; ii) Trabalhos extra não adjudicados formalmente, mas solicitados; iii) Material da Ré destruído pela Autora sem razão aparente; iv) Aluguer de maquinaria; v) Trabalhos realizados no mês de Agosto; gg) O betão ciclópico foi incorrectamente colocado pelos funcionários da Autora, comprometendo a estabilidade de todo o edifício;

- A Ré realizou os trabalhos mencionados como não pagos constantes do relatório de obra apresentados pelos valores ali constantes que não foram pagos pela Autora, num total de 81.467,00€;

138. Por outro lado, parece-nos resultar do exposto anteriormente, bem como de toda a prova produzida nos autos, que a matéria de facto considerada não provada deverá ser alterada sendo aditados ou retirados factos ao elenco apresentado;

139. Assim, deverão ser retirados os factos elencados sentença com as alíneas l), m), v), w), x), y), aa), ff) e mm), porquanto foram os mesmos aditados à matéria de facto considerada provados, conforme explicado supra;

140. Por outro lado, deverão ser aditados aos factos não provados os factos elencados na sentença com os números 7), 8), 10) 11), 12), 12), 14), 16) e 18), porquanto não resulta dos autos qualquer prova nesse sentido”.

Em segundo lugar, a apelante manifestou, nas conclusões, o propósito de impugnar a decisão relativa à matéria de facto nos seguintes termos: “Neste sentido, propõe-se uma nova redação da matéria de facto, impugnando-se a matéria de facto provada e não provada, alterando-se a decisão com base na reapreciação da prova gravada e na demais prova junta aos autos, conforme devidamente indicado supra, ponto por ponto” (conclusão IX).

Ao alegar nesta conclusão que impugnava a matéria de facto provada e não provada, “conforme devidamente indicado supra, ponto por ponto”, a recorrente indicou, de forma indirecta, é certo, mas com suficiente clareza, os pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados.

Pode, assim, dizer-se que a fórmula remissiva usada na conclusão acima transcrita, conjugada com o corpo da alegação, satisfazia os fins visados com a imposição à recorrente do ónus de indicar nas conclusões os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, concretamente, a delimitação do objecto do recurso em termos que permitiam ao tribunal aperceber-se das questões de facto sobre que devia pronunciar-se e à parte contrária exercer contraditório.

Assim sendo, ao desconsiderar a remissão da nona conclusão para o corpo da alegação, onde estavam identificados claramente os segmentos da decisão de facto impugnados, e ao afirmar que não resultava claro das conclusões quais os concretos pontos da decisão de facto que foram alvo de impugnação, o acórdão recorrido não verificou o cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, com observância do princípio da proporcionalidade e fez prevalecer a forma sobre a substância, com consequências prejudiciais para a recorrente, no caso, a rejeição do recurso relativo à matéria de facto.

É, pois, de concluir que, ao rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a decisão recorrida violou a alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, devendo ser substituída por decisão que determine o conhecimento de tal impugnação.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que o tribunal a quo conheça da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e profira nova decisão.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a autora, recorrida, ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma no pagamento das respectivas custas.


Lisboa, 2 de Novembro de 2023

Emídio Santos (relator)

Fernando Baptista de Oliveira

Ana Paula Lobo