Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
835/15.0T8LRA.C4.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ATO INÚTIL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
ÓNUS DO RECORRENTE
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

I- O julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC [sem prejuízo das circunstâncias particulares contempladas nas alíneas a) a c) deste mesmo nº 2].


II- Se determinados pontos não foram alegados pelas partes, nem constam do elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença da primeira instância, eles são insuscetíveis de constituir o objeto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada.


III- Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto.


IV- De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte.


V- Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio.


VI- Na parte em que na revista se visa (em última análise) que a Relação adite à matéria de facto determinados pontos que são insuscetíveis de influir na decisão da causa (à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito), o recurso é inútil, o que obsta ao conhecimento do respetivo objeto.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 835/15.0T8LRA.C4.S1


MBM/RP/DM


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra ROCA – CERÂMICA E COMÉRCIO, S.A., para efetivação de direitos resultantes de doença profissional.


2. A ação foi julgada improcedente na primeira instância.


3. Interposto recurso de apelação (de facto e de direito), o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) manteve a sentença recorrida (quanto à matéria de facto, a apelante requereu, nomeadamente, o aditamento de determinados factos, sob os nºs 6-A,16-A, 41-A, 41-B e 49-A, sendo que a Relação julgou o recurso improcedente quanto ao primeiro destes factos e não conheceu do recurso quanto aos demais, invocando o incumprimento dos ónus que sobre o impugnante da matéria de facto impendem, nos termos do art. 640.º, do CPC1).


4. Novamente inconformada, a A. interpôs recurso de revista, nos termos gerais, quanto ao decidido sobre a impugnação da matéria de facto e, cumulativamente, revista excecional.


5. A R. contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso.


6. No despacho liminar, foi decidido:

a. Quanto à decisão relativa à impugnação da matéria de facto, admitir apenas parcialmente a revista, nos termos gerais, por se ter entendido existir dupla conformidade quanto ao pretendido aditamento aos factos provados, sob o nº 6-A), do seguinte ponto: “Existindo acrescidos perigos e riscos para esses trabalhadores em resultado da inalação de pós e concretamente sílica cristalina livre, causadores de doenças como a de que padece a Autora (pneumoconiose por silicatos)”. 2

b. No mais, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista excecional, pelo que foi determinada a oportuna remessa do processo à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, junto desta Secção Social (doravante apenas designada por Formação).


7. No tocante ao segmento em que foi admitido a revista nos termos gerais (não conhecimento pelo TRC do peticionado aditamento de determinados factos), por alegada violação da lei processual, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.


8. Relativamente à parte que lhe foi desfavorável, a A. reclamou para a conferência da decisão mencionada em supra nº 6, a).


9. A Formação não admitiu o recurso de revista excecional.


II.


10.1. Para cabal compreensão dos termos do litígio existente entre as partes, refira-se que pelas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:


“[…]


4) [A] Autora desempenhava as funções inerentes à categoria profissional de “acabadora de 1ª”, competindo-lhe acabar peças cerâmicas à máquina ou à mão, em cru ou cozidas, podendo compô-las e, no que respeita às loiças sanitárias, competia-lhe acabar as peças de sanitário provenientes de fabrico semiautomático, preparando-as para serem vidradas […].


5) A Autora polia as loiças sanitárias, esfregando o barro em cru, desempenhando a sua atividade, desde a data da celebração do contrato de trabalho e até à sua cessação, na vidragem das loiças sanitárias, denominada “secção de carrocel”.


6) Nessa secção desempenhavam funções cerca de 15 trabalhadores, na qual, depois de as peças de olaria serem trazidas e carregadas para o carrocel, havia quatro tarefas distintas: a raspagem, o polimento à mão e o polimento à máquina, o sopro das peças pelo pote, após o qual a peça era inspecionada por duas trabalhadoras para ser vidrada, antes de ser descarregada para ir cozer no forno.


7) Quando começou a desempenhar a sua atividade a Autora polia as peças à mão, tendo passado a trabalhar, em finais de 2006, com uma máquina polidora.


8) A Ré comunicou à Autora, quando esta começou a desempenhar a sua atividade, que devia usar sempre máscara, em face dos perigos com a inalação dos pós.


9) Tendo dado formação para o seu uso […]


[…]


12) A Ré adotou serviços internos de segurança e saúde no trabalho.


13) A Autora fazia regularmente os exames de saúde nos serviços de segurança e saúde da Ré.


14) No início de 2007 ao efetuar uma raio-x, numa das consultas, o médico do trabalho da Ré comunicou-lhe a existência de uma mancha nos pulmões.


15) Até essa data a Autora apenas sentia cansaço e falta de ar quando fazia grandes esforços.


16) A Autora e a Ré cessaram o contrato de trabalho por mútuo acordo em 31/12/2008.


17) Em Fevereiro de 2009 a Autora efetuou uma biópsia pulmonar cirúrgica, para cuja realização esteve internada durante cinco dias, e da qual resultou que a mesma padece da doença denominada pneumoconiose por silicatos.


18) Os principais sintomas desta doença são: tosse persistente; dispneia persistente que se agrava com o esforço; alterações do estado geral e cansaço fácil; dificuldades respiratórias.


19) Depois da cirurgia a Autora ficou com muitas dores e, atualmente, ainda sofre uma dor estranha, denominada dor fantasma.


20) Com o resultado da biópsia dirigiu-se à Ré, a qual preencheu o requerimento de proteção na doença profissional e a remeteu ao Centro Nacional de Doenças Profissionais, em Junho de 2009.


21) A doença da Autora foi identificada como doença profissional em 16 de Março de 2012.


22) Tendo-lhe sido reconhecida uma incapacidade permanente parcial de 5%, à qual correspondia uma pensão no valor mensal de € 16,73.


23) Como resultado da doença a Autora apresenta sequelas “macro” derivadas dos antecedentes de pneumotórax e da intervenção cirúrgica com fins diagnósticos que efetuou, bem como sequelas “micro” por atingimento do interstício pulmonar e que têm um efeito direto sobre as trocas gasosas, levando à hipoxemia (baixa do oxigénio do sangue) progressiva e à dessaturação arterial para mínimos esforços e que conduzirá progressivamente à perda de autonomia para as atividades da vida diária.


24) A patologia que a Autora apresenta aumenta o risco de tuberculose e outras infeções, doenças autoimunes (como a artrite reumatoide), DPOC ou cancro do pulmão, podendo contrair facilmente gripes, apresentando-se como provável a sua morte precoce.


25) A doença da Autora tenderá a agravar-se, sendo altamente provável a sua perda de autonomia.


26) A Autora desempenhou atividade no Centro Social e Paroquial de ... entre 2010 e 2012, tendo cessado esta atividade por não aguentar com o esforço. 27) A Autora está impedida de desempenhar qualquer atividade profissional que implique esforço, podendo, durante algum tempo, executar uma atividade de secretária, que não implique atendimento ao público.


28) Se andar mais depressa ou com algum peso, a Autora sente dificuldade em respirar.


29) A Autora contrai facilmente gripes e tosse com frequência.


30) A Autora cansa-se facilmente quando executa alguma tarefa doméstica, tendo de fazer devagar e com intervalos.


31) Assusta-se com a dispneia e sofre com a preocupação que o marido e as filhas sentem.


32) Por força da doença tem de usar, com frequência, um inalador. 33) Teve de abandonar a capoeira onde tinha galinhas.


34) Tem que comparecer em consultas de acompanhamento, quer pelo seu médico de família, quer ainda pelo Centro Hospitalar de ....


35) Já teve de efetuar várias TAC’s, broncofibroscopias, análises bioquímicas, radiologias, ECG’s, provas de função respiratória, ecocardiografias, tomografias e ressonâncias magnéticas.


36) O local onde a Autora laborava tratava-se de um espaço aberto.


37) Nas instalações da Ré encontram-se permanentemente dois técnicos eletricistas, que asseguram diariamente o funcionamento dos equipamentos, nomeadamente do sistema de aspiração e extração de poeiras.


38) No posto de trabalho da Autora existia e existe um chefe de equipa para cada carrossel e um encarregado, os quais supervisionam os equipamentos e os funcionários.


39) A aquisição da máquina polidora teve em vista minimizar o esforço inerente aos movimentos repetitivos que os trabalhadores tinham de fazer com o polimento à mão.


40) A máquina polidora permitia efetuar menos movimentos repetitivos em esforço.


41) Com a sua introdução a Ré procurou minimizar a ocorrência de outras doenças profissionais, como as tendinites.


42) A Ré procede regularmente a uma avaliação da exposição dos trabalhadores a poeiras, sejam totais, respiráveis ou sílica cristalina livre.


43) A Ré requer, anualmente, a uma entidade externa a avaliação das poeiras, nomeadamente no posto de trabalho da Autora.


44) Em 2006 e 2007 o Centro Tecnológico da Cerâmica e do Vidro (CTCV) efetuou essa avaliação tendo em vista a determinação de teores de poeiras em locais de trabalho.


45) Concluindo-se, no relatório datado de 13/06/2006, com base nas amostragens de 15 e 16 de Setembro de 2015, de 23 de Janeiro e 29 de Março de 2006, que não foi detetado teor de sílica livre cristalina, nomeadamente nos carroceis.


46) Por forma a reduzir o teor de poeiras na empresa o CTCV recomendou à Ré, nomeadamente as seguintes medidas: “- nas operações de limpeza, os trabalhadores devem evitar varrer pois desta forma origina-se um elevado teor de partículas no ambiente de trabalho; - melhorar o sistema de captação de poeiras nomeadamente nos carroceis (zona de raspagem e vidragem de peças); - evitar operações de sopragem de peças, se possível recorrendo à aspiração; - distribuir aos trabalhadores dos postos de trabalho com elevados níveis de poeiras, nomeadamente aquando operações como sopragem de moldes, equipamentos de protecção individual (EPI’s) (máscaras de proteção para as vias respiratórias com filtros do tipo P2 – de acordo com a EN 149:2001) enquanto os sistemas de captação de poeiras não forem colocados ou otimizados.”


47) Concluindo-se, no relatório datado de 10/05/2007, com base nas amostragens de 19, 20, 23, 30 e 31 de Outubro e 7 de Dezembro de 2006, que foram apresentados teores de sílica livre cristalina nalguns postos de trabalho, tendo sido recomendada nova medição no posto de trabalho Carrocel 2 L2 porquanto os teores medidos de partículas insolúveis – fração respirável e de sílica livre cristalina eram elevados.


48) Em 2007, a Ré indicou como Equipamento de Proteção Individual obrigatório para o posto de trabalho da Autora a máscara de proteção com filtros do tipo FFP2, máscara que a Autora usava.


49) Em 2006, 2007 e 2008 a Ré adotou um sistema de captação de poeiras com aspiração localizada (sistema de extração) e cortinas de água.


50) À medida que era avaliado o grau de exposição e de risco a Ré avaliava e adotava sistemas de proteção dos trabalhadores, quer de forma coletiva, quer de forma individual.


51) A Ré tem vindo a acompanhar a atualização dos limites de exposição, adotando medidas mais eficazes no controlo e risco de exposição a poeiras, nomeadamente uma máscara motorizada filtrante, com capuz, mais recente, e que reduz o risco de exposição às poeiras.


52) Além de manter o seu serviço de medicina no trabalho, providenciando a realização de consultas de medicina no trabalho, providencia pela realização de exames auxiliares de diagnóstico, nomeadamente espirometrias em todos os exames de medicina no trabalho.


53) E efetua raio-x torácico, de dois em dois anos, como sucedia com a Autora, enquanto trabalhou na Ré.


54) Os encarregados e chefes de equipa faziam e continuam a fazer um acompanhamento diário da utilização dos EPI’s pelos trabalhadores, assegurando a obrigatoriedade da sua utilização.


10.2. E como não provados:


a) A Ré nunca explicou os riscos para a saúde da inalação das poeiras.


b) Quando a Autora passou a trabalhar com a máquina polidora, em 2006, foi colocada numa cabine, fechada dos lados.


c) O extrator existente não puxava o ar e havia alturas em que nem sequer funcionava.


d) A Autora mal conseguia ver o que fazia, apalpando com a mão para ver se a peça tinha defeitos.


e) A Autora chegou a comunicar à Ré o referido em c) e d).


f) A verificação periódica do extrator não era efetuada e só quando deixava de funcionar é que chamavam os eletricistas.


g) Ninguém conseguia ver a Autora no meio da poeira.


h) Quando havia visitas inspetivas da ACT, o Engenheiro mandava não utilizar a máquina polidora e fazerem o polimento à mão, como antigamente.


i) A Ré nunca explicou exatamente o tipo de pó que era libertado com a polição das peças, nem os riscos e perigos da sua inalação para a saúde.


j) O médico do trabalho referiu à Autora que a mancha detetada nos pulmões da Autora se devia à exposição às poeiras libertadas com a polição das peças.


k) E comunicou-lhe que não era caso para baixa médica e que devia continuar a trabalhar até ser chamada pelo médico do seguro da empresa.


l) Na ação de formação referida em 10) a Ré informou a Autora especificamente da possibilidade das poeiras conterem “sílica cristalina livre”.


III.

Questão prévia:


11. Constata-se que o interposto recurso de revista “normal” é manifestamente infundado (pelo que poderia ter sido objeto de decisão sumária, nos termos do art. 656º), por razões que, em termos lógico-jurídicos, têm precedência relativamente à problemática da dupla conformidade suscitada no processo e que, por isso, prejudicam a apreciação da sobredita reclamação para a conferência.


Com efeito.


12. Está em causa o decidido pela Relação relativamente ao peticionado aditamento aos factos provados dos seguintes pontos:


– 6-A) Existindo acrescidos perigos e riscos para esses trabalhadores em resultado da inalação de pós e concretamente sílica cristalina livre, causadores de doenças como a de que padece a Autora (pneumoconiose por silicatos).


– 16-A) Após ser detetada à Autora a “mancha nos pulmões” (FACTO PROVADO 14), a Ré não adotou quaisquer medidas quanto à Autora no seu posto de trabalho, nomeadamente as medidas que habitualmente eram “imediatamente adotadas” e só foi submetida a exame médico em 2008/10/01, de que resultou “ficha de aptidão” com indicação de “apto condicionalmente” com recomendação de: "Não deve executar tarefas que impliquem esforços físicos intensos, sobrecarga mental e exposição a substâncias inaláveis de natureza física e química. Uso de EPIs ”.


– 41-A) A utilização da máquina polidora fazia mais “poeira” do que o polimento à mão.


– 41-B) A Ré não mediu os níveis de poeira e concretamente de sílica livre inalável gerados pela utilização da máquina polidora por comparação com os gerados pelo polimento manual (desconhecendo-se se resultam aumentados ante o aumento de “poeira”).


– 49-A) Face às recomendações constantes desses Relatórios (factos provados 46) e 47) a Ré não adotou então nenhum procedimento e nem tomou medidas acrescidas de modo a diminuir ou evitar os riscos para os trabalhadores que ocupavam tais postos de trabalho (incluindo a Autora), em especial para “melhorar o sistema de captação de poeiras nomeadamente nos carroceis (zona de raspagem e vidragem de peças)” e “evitar operações de sopragem de peças, se possível recorrendo à aspiração”, em especial não colocou diferentes ou otimizou os sistemas de captação de poeiras.


13. Ora, lendo, e relendo, a petição inicial, conclui-se que nenhum destes factos foi alegado pela A., sendo certo, que, naturalmente, o julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do art. 5º, nº 2 [sem prejuízo das circunstâncias particulares contempladas nas alíneas a) a c) deste mesmo nº 2, que nunca foram suscitadas nos autos].


Desde logo por esta razão, nunca poderiam tais pontos integrar a matéria de facto, nem, consequentemente, constituir o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


14. É certo que os pontos 6-A e 41-A poderão, eventualmente, considerar-se implicitamente alegados nos arts. 24 e 26 e 13, 21 e 22 da petição inicial, respetivamente.


Todavia:


Os arts. 13, 21 e 22 da petição inicial foram objeto de expressa pronúncia pelo tribunal, que os considerou não provados [cfr. alíneas d), g) e h) dos factos não provados]. Não tendo a recorrente questionado tal decisão, nunca poderia peticionar um aditamento (ponto 41-A) que estaria em flagrante contradição com tais segmentos decisórios.


Por outro lado, o alegado no art. 24º da petição inicial consta do nº 8 da matéria de facto (“A Ré comunicou à Autora, quando esta começou a desempenhar a sua atividade, que devia usar sempre máscara, em face dos perigos com a inalação dos pós”) e o núcleo essencial do art. 26 consta da alínea a) dos factos não provados (“A Ré nunca explicou os riscos para a saúde da inalação das poeiras”). Sem impugnar quele facto, também nunca a R. poderia ver incluído na factualidade assente este último, que é contraditório com aquele.


15. Relativamente a estes dois pontos (6-A e 41-A), ainda outra razão sempre implicaria a (manifesta) improcedência do recurso.


Com efeito:


Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto.


Com efeito, de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte (cfr. arts. 6.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, e 130.º, do CPC).


Neste sentido, v.g., os Acs. do STJ de 19.05.2021, Proc. n.º 1429/18.3T8VLG.P1.S1 (desta 4.ª Secção), de 09.02.2021, Proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1 (1.ª Secção), de 30.06.20, Proc. n.º 4420/18.6T8GMR-B.G2.S1 (6.ª Secção), de 28.01.2020, Proc. nº 287/11.3TYVNG-G.P1.S1 (6.ª Secção), de 22.03.2018, Proc. n.º 992/14.2TVLSB.L1.S1 (7.ª Secção) e de 10.10.2017, Proc. n.º 8519/12.4TBCSC-A.L1.S1 (1.ª Secção).


Vale por dizer que o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar todos os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final (cfr. o citado aresto de 09.02.2021).


Ora, toda a lógica subjacente ao acórdão recorrido assenta no pressuposto (e no reconhecimento) de que efetivamente os trabalhadores estavam sujeitos a um risco acrescido, tendo sido precisamente por isso que a R. impôs a utilização de máscara no posto de trabalho da A. e efetuava controlos de segurança quanto às poeiras e respetiva extração.


Também a alteração pretendida com o aditamento do ponto 41-A seria absolutamente irrelevante, pois, independentemente de saber se a máquina provocava mais poeiras ou não, o que interessava era determinar se a R. cumpriu as suas obrigações ao nível de segurança, já que ficou claro demonstrado que a A. padece uma doença profissional.


Na parte em que na revista se visa (em última análise) que a Relação adite à matéria de facto determinados pontos que são insuscetíveis de influir na decisão da causa (à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito) o recurso é inútil, o que, só por si, sempre determinaria a impossibilidade de se conhecer do seu objeto quanto aos correspondentes segmentos.


IV.


16. Em face do exposto, julgando o recurso de revista manifestamente infundado, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido, embora com diversa fundamentação, com prejuízo da sobredita reclamação para a conferência.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 3 de novembro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos Morais





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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

2. Quanto a este ponto, é a seguinte a deliberação do TRC:

«Pretende ainda a recorrente que seja aditado aos factos provados sob o nº 6-A) a seguinte matéria: “Existindo acrescidos perigos e riscos para esses trabalhadores em resultado da inalação de pós e concretamente sílica cristalina livre, causadores de doenças como a de que padece a Autora (pneumoconiose por silicatos)”.

No caso em apreciação importa saber se a doença que afetou a autora se deveu à inalação de sílica cristalina, ou melhor, se essa inalação resultou (ou não) de uma conduta omissiva da ré ao não assegurar no local de trabalho os meios próprios a evitar essa inalação, violando regras legais sobre higiene e segurança no trabalho.

Configurado deste modo o thema decidendu afigura-se-nos conclusivo, por encerrar um juízo de valor, dar como provado “existirem acrescidos perigos e riscos para …”, perigos e riscos estes que deverão resultar da alegação e prova de outra materialidade.

Deste modo, a matéria que se pretende ver aditada não deverá a constar dos factos provados, o que se decide.»

Na sentença da 1ª instância, logo após o elenco dos factos provados e não provados, consignou-se: “Quanto aos restantes artigos dos articulados das partes, não se responde aos mesmos por não corresponderem a matéria de facto controvertida, mas antes a matéria de direito, conclusiva, irrelevante ou repetitiva, pelo que o Tribunal não se pronuncia nesta sede sobre os mesmos”.

Foi no pressuposto de que a matéria correspondente ao pretendido aditamento à matéria de facto sob o número 6-A fora alegada, caso em que implicitamente teria sido julgado que a mesma carecia de conteúdo factual, que no despacho liminar se entendeu existir nesta parte dupla conformidade (alegação que, contudo, não ocorreu, como se esclarece em infra nº 13 e 14).↩︎