Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19749/19.8T8LSB-D.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I - É aplicável às decisões interlocutórias, no âmbito insolvencial, o regime geral recursório previsto no n.º2 do artigo 672.º do CPC, em que a admissibilidade do recurso de revista se cinge, tão só, às situações contempladas nas alíneas a) e b) do citado preceito.


II – Contudo, o artigo 671.º, n.º2, do CPC, ao consubstanciar, em si mesmo, uma norma que condiciona e limita o acesso ao STJ, constitui, por isso, um dos casos com assento na previsão do artigo 629.º, n.º2, alínea d), do CPC, que expressamente faz excluir as situações em que não caiba recurso “por motivo estranho à alçada do tribunal”.


III - A contradição relevante de acórdãos impõe a identidade da questão essencial objecto de apreciação nos acórdãos em confronto.


IV - Constitui pressuposto do conceito de identidade da questão que a subsunção jurídica efectuada por cada uma dessas decisões decorra do mesmo núcleo central factual.


V – Não se verifica a necessária identidade fáctica para a exigida contradição de acórdãos (tendo por questão a decidir a (in)viabilidade do prosseguimento do processo de insolvência em face da inexistência de outros credores), se no acórdão fundamento estava em causa o pedido de prosseguimento da insolvência requerido apenas pelo credor titular de crédito litigioso; no acórdão recorrido, o indeferimento para pagamento fraccionado da dívida por parte de um credor dos Devedores, que manifestou a sua oposição ao encerramento do processo de insolvência.

Decisão Texto Integral:

Acordam (em conferência) na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório


1. Nos autos de insolvência relativos a AA e BB (declarados insolventes por sentença de sentença de 02-11-2019), vieram os Devedores recorrer do acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Lisboa que, em Conferência, indeferiu a reclamação apresentada por aqueles e avocou a decisão sumária proferida pela Exma. Desembargadora-relatora, confirmativa do despacho de 1.ª instância, que indeferiu o pedido de encerramento do processo de insolvência e determinou o prosseguimento do mesmo.


Fundamentaram o recurso nas disposições conjugadas dos artigos 14.º e 17.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), e 672.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil (doravante CPC), indicando como acórdão fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 21-03-2013, no âmbito do Processo n.º 1620/11.3TYLSB.L1-2, cuja cópia juntaram


2. Não foram apresentadas contra-alegações.


3. A Exma. Desembargadora-Relatora determinou a remessa dos autos para este tribunal com fundamento nos artigos 671.º e 672.º, n.º3, do CPC.


4. Tendo sido entendido que o conhecimento do objecto do recurso se encontrava comprometido por a situação em causa não assumir cabimento no artigo 14.º, do CIRE, nem em qualquer das situações em que a revista é sempre admissível, foi cumprida a notificação ao abrigo do artigo 655.º, do CPC.


5. Os Recorrentes vieram reiterar a admissibilidade da revista invocando:


- que o regime específico do recurso de revista consagrado no artigo 14.º, n.º 1 do CIRE, não afasta a recorribilidade de decisões de questões interlocutórias;


- que a admissibilidade do recurso de decisões interlocutórias em sede insolvencial encontra ainda apoio no artigo 671.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPC ex vi do artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, sendo o caso integrável na alínea a) do citado artigo 671.º, n.º 2, al. a) ex vi artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC, ex vi artigo 17.º, do CIRE, face à existência de contradição de julgados, uma vez que o acórdão recorrido se encontra em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 21-03-2013, no âmbito do Processo n.º 1620/11.3TYLSB.L1-2, porquanto:


i) verifica-se uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e a questão de direito apreciada no acórdão fundamento;


ii) a situação factual subjacente num e noutro acórdão mostra-se similar no que respeita à questão relevante.


Alegaram para o efeito:


(…) Nos presentes autos de insolvência, foram reconhecidos apenas três credores: Banco Santander Totta, S.A., NOS Comunicações S.A., e Autoridade Tributária e Aduaneira (…). E, no decurso do processo, os Recorrentes procederam à liquidação tanto da dívida do credor NOS Comunicações S.A., como da dívida do credor Banco Santander Totta, S.A. (…). O que significa que o presente processo de insolvência, que assentou inicialmente na existência de uma pluralidade de credores concorrentes e concursais, passou a contemplar apenas um único credor: a Autoridade Tributária e Aduaneira.


(…) Não obstante, apesar do deferimento do pedido de pagamento prestacional, a Autoridade Tributária e Aduaneira opôs-se ao encerramento do processo de insolvência (…). E o Tribunal de Primeira Instância julgou que a lei não fazia depender o encerramento do processo da existência de qualquer acordo de pagamento em prestações, mas antes apenas e tão só do consentimento dos credores e perante a pretensa ausência de consentimento da Autoridade Tributária e Aduaneira para o encerramento, indeferiu o pedido de encerramento do processo apresentado pelos Recorrentes (…). O Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, ao confirmar a decisão recorrida, adotou um entendimento divergente do entendimento subjacente ao acórdão fundamento (…) entendeu, grosso modo, que o processo de insolvência não deve prosseguir quando se venha a verificar que o insolvente tem apenas um só credor (…). O argumento subjacente ao entendimento do acórdão fundamento tem plena aplicação nos presentes autos, pois prende-se com o facto de, nos casos em que existe apenas um credor, o processo de insolvência deixar de corresponder à sua função social para passar a consistir num mero processo de cobrança privada de dívidas – convolação, esta, que não tem qualquer cabimento legal!”


6. O Ministério Público pronuncia-se no sentido do não conhecimento do objecto da revista, defendendo estar em causa o recurso para o STJ de uma decisão interlocutória (que não conheceu do mérito da causa nem pôs termo ao processo), cuja admissibilidade apenas encontra cabimento na alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, em que a oposição de acórdãos terá de incidir, necessariamente, sobre um acórdão proferido pelo STJ.


Refere também o Ministério Público que, ainda que se entendesse que a contradição relevante de julgados também se alcançaria entre acórdãos da Relação, nos termos do n.º 1 do art.º 14.º do CIRE, no ocorria, no caso, a indispensável oposição de julgados por inexistência da necessária identidade fáctica subjacente ao conceito de “mesma questão fundamental de direito” caracterizadora da contradição de julgados.


7. Proferida decisão singular de não conhecimento do objecto do recurso por inadmissibilidade da revista, vêm os Recorrentes reclamar para a conferência, concluindo (transcrição):


“1. A decisão singular, ora reclamada, nos termos da qual se decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso de revista interposto pelos Reclamantes consubstancia erro sobre a verificação dos pressupostos legais para a admissão do referido recurso.


2. Contrariamente ao que foi entendido pelo Exmo. Juiz Conselheiro relator, os Reclamantes consideram que a admissibilidade do presente recurso de revista encontra apoio no artigo 671.º, n.º 2, al. a) ex vi artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE e, ainda, no artigo 672.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.


3. Entendem ainda os Reclamantes que, em última análise, a admissibilidade do recurso de revista sempre decorreria do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do CIRE, bastando, para o efeito, a demonstração de contradição de julgados entre acórdão recorrido e outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, inexistindo jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça conforme ao acórdão recorrido.


4. Por isso, os Reclamantes invocaram a oposição do acórdão recorrido com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 21/03/2013, no âmbito do processo n.º 1620/11.3TYLSB.L1-2 (acórdão fundamento).


5. Entendem os Reclamantes existir uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e a questão de direito apreciada no acórdão fundamento, mostrando-se a situação factual subjacente num e noutro acórdão similar no que respeita à questão relevante.


6. Nos presentes autos de insolvência, foram reconhecidos apenas três credores – Banco Santander Totta, S.A., NOS Comunicações S.A., e Autoridade Tributária e Aduaneira –, sendo que, no decurso do processo, os Reclamantes procederam à liquidação da dívida dos dois primeiros, o que fez com que o processo de insolvência, que assentou inicialmente na existência de uma pluralidade de credores concorrentes e concursais, passasse a contemplar apenas um único credor: a Autoridade Tributária e Aduaneira.


7. Como os Reclamantes apresentaram um pedido de pagamento em prestações junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e juntaram aos autos documento comprovativo do deferimento do referido pedido, requereram, a final, o encerramento dos autos de insolvência, visto que a satisfação do crédito do único credor que ainda subsistia iria ter lugar fora do processo de insolvência através do plano de pagamento prestacional celebrado diretamente com a credora.


8. Não obstante, a Autoridade Tributária e Aduaneira opôs-se ao encerramento do processo de insolvência, e o Tribunal de Primeira Instância julgou que a lei não fazia depender o encerramento do processo da existência de qualquer acordo de pagamento em prestações, mas antes apenas e tão só do consentimento dos credores e perante a pretensa ausência de consentimento da Autoridade Tributária e Aduaneira para o encerramento, indeferiu o pedido de encerramento do processo apresentado pelos Reclamantes.


9. Acontece que, o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, ao confirmar a decisão recorrida, adotou um entendimento divergente do entendimento subjacente ao acórdão fundamento, uma vez que, no acórdão fundamento, o Tribunal da Relação entendeu, grosso modo, que o processo de insolvência não deve prosseguir quando se venha a verificar que o insolvente tem apenas um só credor.


10. O argumento subjacente ao entendimento do acórdão fundamento tem plena aplicação nos presentes autos, pois prende-se com o facto de, nos casos em que existe apenas um credor, o processo de insolvência deixar de corresponder à sua função social para passar a consistir num mero processo de cobrança privada de dívidas – convolação, esta, que não tem qualquer cabimento legal.


11. Conclui-se no acórdão fundamento que tais processos de insolvência deixam de fazer sentido, devendo-se ter como improcedentes (cfr. excerto do acórdão fundamento, acima transcrito).


12. A transposição do entendimento vertido no acórdão fundamento para o caso dos presentes autos deveria traduzir-se numa decisão de encerramento do processo, como requerido pelos Reclamantes.


13. Foi levada a cabo uma ponderação diferente relativamente ao sentido e ao alcance dos factos essenciais subjacentes.


14. As oposições acima mencionadas revelaram-se essenciais na determinação do resultado, que foi oposto num e noutro acórdão, uma vez que, no acórdão recorrido, o Tribunal indeferiu o pedido de encerramento do processo de insolvência.


15. Por fim, ainda que este douto Tribunal entendesse não existir contradição de julgados – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio –, estando em causa o encerramento ou não do processo de insolvência e, portanto, a liquidação ou não da casa de morada de família dos Reclamantes, sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica (capaz de influir na decisão da causa), seria claramente necessária para uma melhor aplicaç”ão do direito, donde decorreria, igualmente, a admissibilidade da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE”.


6. A decisão objecto de reclamação, que considerou inviabilizada a pretendida revista tem o seguinte teor:


“ - constitui entendimento pacífico deste tribunal, designadamente da Formação a que alude o n.º3 do artigo 673.º do CPC, que o regime de recurso de revista excepcional não é aplicável em sede insolvencial e acções conexas, por, nestes casos, ser aplicável o regime especial previsto no artigo 14.º, n.º1, do CIRE, independentemente de se verificar ou não uma dupla conformidade decisória;


- tem vindo a ser posição dominante nesta 6.ª secção, o entendimento de que o artigo 14.º, do CIRE, não se aplica às situações de recorribilidade das decisões interlocutórias, reportando-se apenas às finais (que conheçam de mérito ou que ponham termo à causa), porquanto, tratando-se de um regime especial restritivo condicionado pela oposição de acórdãos, tem apenas subjacente as decisões em que a revista normal seria admissível, ou seja, de acordo com o disposto no n.º1 do artigo 671.º do CPC, “acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo”.


Nesta ordem de ideias, para uns, maioritariamente, o regime de recurso previsto do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, enquanto regime especialíssimo, afasta o regime geral recursivo, incluindo, não só o da revista excepcional, mas também as impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, do CPC, pelo que a viabilidade recursória das decisões interlocutórias mostra-se confinada ao caso previsto no artigo 671.º, nº. 2, alínea b), do CPC, numa “lógica de consumpção ou absorção”.


Neste entendimento, como se mostra explicitado no acórdão de 07-07-2021, “não se poderá admitir que o recurso de revista respeitante a uma decisão interlocutória em matéria de insolvência pudesse ter um âmbito de admissibilidade mais amplo do que teria caso fosse disciplinada pelas normas gerais dos recursos, previstas no art. 671º do CPC. Consequentemente, o recurso de revista, respeitante a decisões interlocutórias, em matéria de insolvência, apenas seria admissível na hipótese prevista no art. 671º, nº. 2, alínea b) do CPC [ex vi do art. 17º do CIRE], ou seja, quando se invoque oposição do acórdão recorrido com um acórdão fundamento proferido pelo STJ.”.


Numa linha equivalente de raciocínio, temos por adequada a interpretação que, assentando na conjugação do regime especial do artigo 14.º, do CIRE, com o regime geral do artigo 671.º, n.º2, do CPC (ex vi do artigo 17.º, do CIRE),1 considera ser aplicável às decisões interlocutórias no âmbito insolvencial o regime geral recursório previsto no n.º2 do artigo 672.º do CPC, não restringido à alínea b), ou seja, aplicando-se-lhe, também, a alínea a), que remete para o artigo 629.º, n.º2, do CPC (situações em que o recurso é sempre admissível), exceptuando, porém, a alínea d).


Na verdade, considerando que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico e presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º, n.ºs 1 a 3, do Código Civil), somos de considerar que o artigo 671.º, n.º2, do CPC, consubstancia, em si mesmo, uma norma que condiciona e limita o acesso ao STJ, constituindo, por isso, um dos casos com assento na previsão do artigo 629.º, n.º2, alínea d), do CPC, que expressamente faz excluir as situações em que não caiba recurso “por motivo estranho à alçada do tribunal”.


E se é certo que a expressão “por motivo estranho à alçada do tribunal” ínsita na referida norma se mostra usualmente imputada em função de certo tipo de processos, cremos que o preceito não afasta a possibilidade desse motivo estranho ser reportado à natureza da decisão. Consequentemente, no caso das decisões interlocutórias, a lei quis restringir a admissibilidade de acesso ao STJ, condicionando a admissibilidade da revista apenas às situações de contradição com acórdão do STJ – alínea b) do n.º1 do artigo 671.º do CPC.


Conforme refere o acórdão deste STJ de 30-04-2020 (Processo n.º 7459/16.2T8LSB-A.L1.S1) “(…) por razões de coerência interna do regime de recursos para o STJ, deve entender-se que a norma da al. a), do nº 2, do art. 671º, do CPC não abrange a situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do mesmo Código, sob pena de os requisitos de admissibilidade do recurso para o STJ de uma decisão intercalar serem mais amplos do que o recurso que viesse a ser interposto de uma decisão final.”.


Por conseguinte, pretendem os Recorrentes recorrer de revista do acórdão que apreciou decisão interlocutória da 1ª instância a poder ser unicamente subsumível no n.º2 do artigo 671.º do CPC, em que a admissibilidade do recurso de revista se cinge, tão só, às situações contempladas nas alíneas a) e b) do citado preceito. A saber:


- nos casos em que o recurso é sempre admissível (acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias, se integrem nas previsões contempladas nas alíneas a) a c) do n.º2 do artigo 629.º do CPC, porquanto a alínea d) não tem aplicação quanto ao recurso das decisões interlocutórias –).


- quando o acórdão da Relação se encontre em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sem que a divergência jurisprudencial se encontre resolvida por acórdão uniformizador de jurisprudência.


Conforme se evidencia do requerimento de interposição de recurso, os Recorrentes escoram a admissibilidade da revista em oposição de acórdãos invocando como acórdão fundamento um aresto proferido pelo tribunal da Relação.


De acordo com o entendimento que defendemos e acima explanado, a contradição de acórdãos invocada pelos Recorrentes não assume aplicação nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, por não ser aplicável ao caso a alínea d) do n.º2 do artigo 629.º do CPC.


2. Ainda que assim não se entendesse, se partilhássemos o entendimento defendido pelos Recorrentes (quer no sentido da impugnação da decisão em causa assumir cabimento no artigo 14.º, do CIRE, quer no artigo 671.º, n.º2, alínea a) e 629.º, n.º2, alínea d), ambos do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE), relevando em termos de contradição de julgados um acórdão proferido pelo tribunal da Relação, contrariamente ao asseverado pelos Recorrentes, inexiste, no caso sob apreciação, a condição necessária de admissibilidade do recurso para este supremo: a oposição de acórdãos.


Como tem sido reiteradamente entendido por este Tribunal (para efeitos do artigo 14.º, do CIRE, e do artigo 629.º, n.º2, alínea d), do CPC), a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.


Por conseguinte, a contradição de acórdãos impõe a identidade da questão essencial objecto de apreciação nos acórdãos em confronto, constituindo pressuposto do conceito de identidade da questão que a subsunção jurídica efectuada por cada uma dessas decisões decorra do mesmo núcleo central factual. 2


Conforme passaremos a explicitar, ao invés do defendido pelos Recorrentes, não ocorre a invocada oposição de acórdãos porquanto não se verifica identidade da questão essencial apreciada em função das diferenças de contexto fáctico com base nas quais cada um dos acórdãos fez assentar as respectivas decisões.


Vejamos.


Invocam os Recorrentes como acórdão fundamento o proferido pelo tribunal da Relação de Lisboa em 21-03-2013, no Processo n.º 1620/11.3TYLSB.L1-2, alegando que a contradição dos julgados mostra-se justificada por a questão fundamental de direito em ambos os arestos consistir em saber se o processo de insolvência deve ou não prosseguir quando se venha a verificar que o insolvente tem apenas um só credor porque, nesses casos, o processo deixa de corresponder à sua função social para passar a consistir num mero processo de cobrança privada de dívidas.


Na argumentação tecida pelos Recorrentes, a identidade da situação factual relevante que atribuem aos acórdãos consiste, pois, em estar em causa processo de insolvência com um só credor, tendo cada um dos acórdãos alegadamente em confronto, decidido em sentido oposto: o acórdão recorrido, pelo prosseguimento do processo de insolvência, o acórdão-fundamento, pela extinção da instância isnolvencial.


Não podemos partilhar de tal entendimento porquanto os Recorrentes não têm em consideração o concreto contexto factual subjacente a cada uma das decisões que consideram em confronto, descurando o que integra a ratio decidendi no âmbito dos referidos acórdãos.


No acórdão fundamento a questão a decidir reportava-se à (in)viabilidade do prosseguimento do processo de insolvência requerido pelo credor titular de crédito litigioso, verificando-se a inexistência de outros credores.


No caso dos autos, a questão a decidir quanto à verificação dos pressupostos de encerramento do processo de insolvência tem subjacente um quadro fáctico diverso reconduzido ao indeferimento para pagamento fraccionado por parte de um credor dos Devedores, a Autoridade Tributária, que manifestou a sua oposição ao encerramento do processo de insolvência.”


II - Apreciando


1. Cremos que o entendimento da decisão proferida não pode deixar de ser reiterado, uma vez que os argumentos que os Reclamantes invocam, nesta sede, foram tidos em conta na decisão singular, consubstanciando a presente reclamação um reiterar da posição que os Recorrentes assumiram na resposta que apresentaram, quando notificados nos termos do artigo 655.º, do CPC.


Assim sendo, renovando os fundamentos que alicerçaram a decisão objecto de reclamação, impõe-se-nos evidenciar as seguintes premissas do raciocínio jurídico, que sustentam a decisão de não conhecimento do objecto do recurso:


1. Quanto à aplicação do regime de recurso e da não relevância do fundamento de contradição de acórdãos:


i) Estando em causa nos autos o recurso do acórdão proferido pelo tribunal da Relação, que confirmou decisão interlocutória,3 proferida em 1.ª instância, no âmbito de um processo de insolvência, a revista não tem cabimento no artigo 14.º, do CIRE, mas no domínio das normas gerais dos recursos, apenas passível de ser admitida ao abrigo do artigo 671.º, nº. 2, do CPC, ex vi do artigo 17.º, do CIRE4;


ii) O regime de recurso de revista excepcional não é aplicável em sede insolvencial e acções conexas, por, nestes casos, ser aplicável o regime especial previsto no artigo 14.º, n.º1, do CIRE, independentemente de se verificar, ou não, uma dupla conformidade decisória5;


iii) Considera-se adequado o entendimento, maioritário nesta 6.ª Secção, de que o artigo 14.º, do CIRE, apenas se reporta às decisões finais (que conheçam de mérito ou que ponham termo à causa), não tendo aplicação nas situações de recorribilidade das decisões interlocutórias6;


iv) Partilhamos, igualmente, do entendimento (maioritário), que defende que o regime de recurso previsto do artigo 14.º, do CIRE, enquanto regime especialíssimo, afasta o regime geral recursivo, isto é, o da revista excepcional, mas também as impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC; nessa medida, a viabilidade recursória das decisões interlocutórias com fundamento em contradição de acórdãos fica confinada ao caso previsto no artigo 671.º, nº. 2, alínea b), do CPC, numa “lógica de consumpção ou absorção7;


v) É, todavia, aplicável às decisões interlocutórias, proferidas no âmbito insolvencial, o regime geral recursório previsto no n.º2 do artigo 672.º do CPC, não restringido à alínea b), ou seja, aplicando-se-lhe, também, a alínea a), que remete para o artigo 629.º, n.º2, do CPC (situações em que o recurso é sempre admissível), exceptuando, porém, a alínea d)8/.9;


Assim, tendo os Recorrentes invocado como acórdão fundamento um aresto proferido pelo tribunal da Relação, a contradição de acórdãos em que se estribam não assume aplicação nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, por não ser aplicável ao caso a alínea d) do n.º2 do artigo 629.º do CPC.


2. Quanto à inexistência de oposição de acórdãos enquanto requisito específico da admissibilidade da revista (caso se entendesse que a revista tinha cabimento no regime do artigo 14.º, do CIRE ou no artigo 671.º, n.º2, alínea a) e 629.º, n.º2, alínea d), ambos do CPC)


i) Para efeitos do artigo 14.º, do CIRE, e do artigo 629.º, n.º2, alínea d), do CPC), a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação;


ii) A contradição de acórdãos impõe a identidade da questão essencial objecto de apreciação nos acórdãos em confronto, constituindo pressuposto do conceito de identidade da questão que a subsunção jurídica efectuada, por cada uma dessas decisões, decorra do mesmo núcleo central factual 10;


iii) Não ocorre, no caso, oposição de acórdãos (entre o acórdão recorrido e o proferido pelo tribunal da Relação de Lisboa em 21-03-2013, no Processo n.º 1620/11.3TYLSB.L1-2), por ausência de identidade da questão essencial, que se mostra apreciada em função das diferenças de contexto fáctico com base nas quais cada um dos acórdãos fez assentar as respectivas decisões.


Relativamente a este aspecto, os Recorrentes identificam a questão fundamental de direito em saber se o processo de insolvência deve ou não prosseguir quando se verifique que o insolvente tem apenas um só credor. Pugnam que, nestes casos, tal como decidiu o acórdão-fundamento, o processo deixa de corresponder à sua função social para passar a consistir num mero processo de cobrança privada de dívidas.


Na caracterização da questão fundamental de direito os Reclamantes alegam que a identidade da situação factual relevante que atribuem aos acórdãos consiste, pois, em estar em causa processo de insolvência com um só credor, tendo cada um dos acórdãos, alegadamente em confronto, decidido em sentido oposto: o acórdão recorrido, pelo prosseguimento do processo de insolvência; o acórdão-fundamento, pela extinção da instância insolvencial.


Todavia, tal como se encontra justificado na decisão singular, os Recorrentes não têm em consideração o concreto contexto factual subjacente a cada uma das decisões que consideram em confronto, descurando o que, efectivamente, integra a ratio decidendi no âmbito dos referidos acórdãos. A saber:


- no acórdão fundamento, a questão a decidir reportava-se à (in)viabilidade do prosseguimento do processo de insolvência requerido pelo credor titular de crédito litigioso, verificando-se a inexistência de outros credores;


- no caso dos autos, a questão a decidir quanto à verificação dos pressupostos de encerramento do processo de insolvência tem subjacente um quadro fáctico diverso reconduzido, não ao prosseguimento dos autos requerido por credor de um direito de crédito litigioso, mas estando em causa o indeferimento do pagamento fraccionado da dívida por parte de um credor dos Devedores, a Autoridade Tributária, que manifestou a sua oposição ao encerramento do processo de insolvência.


Assim sendo, cabe concluir que ocorre a ausência de conflito jurisprudencial por inexistir a necessária identidade fáctica para a exigida contradição de acórdãos.


Improcede, pois, a reclamação.


III - Decisão


Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a presente reclamação pelo que, não se mostrando admissível o recurso de revista interposto pela Recorrente, não se conhece do seu objecto.


Custas pelos Recorrentes, fixando-se em 2 Uc´s a taxa de justiça.


Lisboa, 2 de Novembro de 2023


Graça Amaral (Relatora)


Maria Olinda Garcia


Ricardo Costa


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1. Numa interligação e valoração onde assumem intervenção os elementos lógicos, de ordem sistemática e racional ou teleológica↩︎

2. Cfr. Acórdão do STJ de 02-06-2015, n.º 1453/13.2TBFIG-B.C1.S1.↩︎

3. Os Requerentes pretendem recorrer de revista do acórdão (em conferência) do tribunal da Relação de Lisboa que, confirmando a decisão singular da Exma. Desembargadora relatora, que confirmou o despacho de indeferimento do pedido de encerramento do processo de insolvência, determinando o prosseguimento dos autos. Trata-se, por isso de uma decisão não final (que é aquela que, em termos gerais, põe termo à causa ainda que não conheça de mérito).↩︎

4. Cfr. acórdão de 26-05-2021 (Processo n.º 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1), acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

5. Acórdãos de 17-01-2017 (Revista excepcional n.º 283/14.9TYLSB.L1.S1), de 09-03-2021 (Processo n.º 4359/19.8T8VNF.G1.S1), de 26-05-2021 (Processo n.º 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1) e de 09-11-2022 (Processo n.º 13509/20.0T8SNT-D.L1.S1), estes últimos, acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

6. O artigo 14.º, do CIRE constitui um regime especial restritivo de acesso ao STJ, condicionado pela oposição de acórdãos, que apenas se justifica relativamente às decisões em que a revista normal seria admissível, ou seja, de acordo com o disposto no n.º1 do artigo 671.º do CPC, “acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo”- Acórdão de 10-12-2019 (Processo n.º 2386/17.9T8VFX-A.L1.S1), acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

7. Acórdão de 10-12-2019 (Processo n.º 2386/17.9T8VFX-A.L1.S1), acessível através das Bases Documentais do ITIJ. Nesta linha de raciocínio, refere o acórdão de 07-07-2021 “não se poderá admitir que o recurso de revista respeitante a uma decisão interlocutória em matéria de insolvência pudesse ter um âmbito de admissibilidade mais amplo do que teria caso fosse disciplinada pelas normas gerais dos recursos, previstas no art. 671º do CPC. Consequentemente, o recurso de revista, respeitante a decisões interlocutórias, em matéria de insolvência, apenas seria admissível na hipótese prevista no art. 671º, nº. 2, alínea b) do CPC [ex vi do art. 17º do CIRE], ou seja, quando se invoque oposição do acórdão recorrido com um acórdão fundamento proferido pelo STJ.” - Processo n.º 3384/19.3T8STS-A.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

8. O artigo 671.º, n.º2, do CPC, consubstancia, em si mesmo, uma norma que condiciona e limita o acesso ao STJ, constituindo, por isso, um dos casos com assento na previsão do artigo 629.º, n.º2, alínea d), do CPC, que expressamente faz excluir as situações em que não caiba recurso “por motivo estranho à alçada do tribunal”. De notar que embora a expressão seja usualmente imputada em função de certo tipo de processos, nela pode ser incluída a natureza das decisões.↩︎

9. Refere o acórdão deste STJ de 30-04-2020 (Processo n.º 7459/16.2T8LSB-A.L1.S1): “(…) por razões de coerência interna do regime de recursos para o STJ, deve entender-se que a norma da al. a), do nº 2, do art. 671º, do CPC não abrange a situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do mesmo Código, sob pena de os requisitos de admissibilidade do recurso para o STJ de uma decisão intercalar serem mais amplos do que o recurso que viesse a ser interposto de uma decisão final.”↩︎

10. Cfr. Acórdão do STJ de 02-06-2015, n.º 1453/13.2TBFIG-B.C1.S1.↩︎

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Processo n.º 19749/19.8T8LSB-D.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Declaração de Voto


Sem prejuízo de subscrever o resultado decisório de não conhecimento do objecto do recurso, confirmando-se a decisão singular reclamada, votei parcialmente vencido quanto à fundamentação do ponto 1. da apreciação de direito, em coerência com a construção interpretativa sustentada, essencialmente, nos Acs. proferidos em 10/12/2019 (proc. 2386/17) e 15/3/2022 (823/21), para os quais remeto (aplicação restritivo-teleológica do art. 671º, 2, à al. b), do CPC relativamente à impugnação das decisões interlocutórias insolvenciais, em sede de sindicação geral da admissibilidade da revista interposta ao abrigo do art. 14º, 1, do CIRE).


STJ/Lisboa, 2/11/2023


O 2.º Adjunto


Ricardo Costa