Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5/22.0T1ABF.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. No artigo 25.º (tráfico de menor gravidade) do DL 15/93, de 22.01, prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, «por referência à ilicitude pressuposta no art. 21.º, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com suscetibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada.»

II. De todo o modo, convém ter presente, que no art. 21.º (tráfico e outras atividades ilícitas) do cit. DL 15/93, tanto se pode incluir o grande, como o médio, tal como o pequeno tráfico de estupefacientes, desde que, neste último caso, não exista um quadro de acentuada diminuição da ilicitude e, portanto, não esteja abrangido no art. 25.º do mesmo diploma legal.

III. Perante a factualidade apurada (olhando para a imagem global dos factos apurados, as circunstâncias em que cometeu o crime em questão, diferente natureza dos estupefacientes vendidos, quantidade (peso liquido total de 255,96 gramas de estupefacientes destinados à venda, correspondentes ao total de 274 embalagens, sendo 164 embalagens de heroína com o peso liquido total de 195,407 gramas e as restantes 110 embalagens de cocaína com o peso líquido global de 60,553 gramas) e qualidade de estupefacientes apreendidos em poder do arguido, destinados à venda, lucros obtidos (1.343,37 euros) com a venda de estupefacientes, modo de atuação e meios utilizados nessa atividade (utilizando os 3 telemóveis que lhe foram apreendidos, bem assim como os cartões SIM, quando fazia contactos com terceiros, para a venda de estupefacientes, utilizando os demais objetos apreendidos, em particular as balanças de precisão, isqueiros, recortes plásticos, embalagens plásticas, liquidificador, tesoura e embalagens de “Redrate”, na concretização da atividade de venda de produto estupefaciente, nomeadamente, na sua preparação, pesagem e embalamento, além do veiculo automóvel), que já revela uma certa organização, período de tempo da sua atividade (entre data não apurada do início de 2022 até 29.04.2022) é manifesto que não se pode concluir que exista uma acentuada diminuição da ilicitude, mostrando-se adequado o enquadramento no tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93.

IV. A medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido um ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

V. É ajustada, adequada e proporcionada a pena de 6 anos de prisão aplicada ao arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, por si cometido, perante o circunstancialismo fáctico apurado (ação concreta em questão nos autos, por si praticada, que se prolongou no período de tempo apurado, visando apenas o lucro, uma vez que não era consumidor, mostrando a sua indiferença pelos malefícios para a saúde dos consumidores, desenvolvendo a sua atividade delituosa com uma certa organização, sem trabalhar, sendo elevada a ilicitude dessa sua conduta e as exigências de prevenção geral, apesar de ser primário e jovem de 23 anos), mesmo considerando todo o circunstancialismo atenuativo igualmente ponderado pelo Coletivo (v.g. confissão parcial, condições pessoais de vida, trabalhar no EP, apoio familiar).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

I. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 5/22.0T1ABF do Juízo Central Criminal de ..., J... ., comarca de Faro, por acórdão de 11.07.2023, além do mais, o arguido AA, nascido em....10.1998, foi (no que aqui interessa) condenado pela prática, em autoria e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22.01, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

II. Inconformado com o acórdão da 1ª instância, recorreu o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

1. O recorrente não concorda com a decisão proferida em primeira instância que o condenou na pena de (06) seis anos de prisão, pela prática em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º do DL 15/93 de 22 de janeiro.

2. O recorrente não concorda com a qualificação jurídica dos factos julgados provados, considerando a sua conduta ser enquadrável no tipo do art.º 25.º do DL 15/93 de 22 de janeiro, tráfico de menor gravidade.

3. Porquanto, da factualidade julgada provada apenas se alcança, vendas a três compradores/consumidores;

4. O período de atividade é inferior a três meses – vide facto provado n.º 8 do acórdão recorrido;

5. Porquanto a informação da Segurança Social de fls. 659, dá nota que o arguido no mês de janeiro de 2022 esteve a trabalhar, pelo que, a atividade de venda considerada pelo Tribunal somente se poderá reportar a datas não concretas a partir de fevereiro a 29 de abril de 2022 data de detenção e prisão preventiva do arguido.

6. O número de vendas a cada um dos compradores mencionado no facto 08 dos factos julgados provados no acórdão recorrido, não está concretizado nos factos julgados provados, na medida em refere por mais do que uma vez.

7. Contudo, da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente das declarações do arguido e das declarações da testemunha BB resultou que o arguido vendeu duas vezes droga a BB, uma no dia da detenção do arguido e outra na semana anterior data em que a testemunha conheceu o arguido, conforme também adiante o Tribunal recorrido na sua motivação da decisão de facto.

8. A consumidora CC, aponta dez compras de produto estupefaciente ao arguido;

9. DD, num depoimento inédito, mas ainda assim valorizado pelo Tribunal, não foi capaz de referir, nem por aproximação o número de vezes que terá comprado droga ao arguido, tão somente referiu que sim, que lhe havia comprado.

10. Portanto o número de vendas realizadas pelo arguido é reduzido, a estes três consumidores.

11. O produto estupefaciente apreendido no quarto onde o arguido pernoitava, só foi apreendido com a colaboração do arguido.

12. Foi o arguido quem disse aos Agentes da PSP que no quarto existia produto estupefaciente, indicou a morada e facultou as chaves para entrar;

13. Conforme referido pelas testemunhas agentes da PSP inquiridas em audiência de julgamento, o arguido colaborou, e em bom rigor contribuiu para que se apurasse a verdade;

14. Não fosse o arguido a colaborar com as autoridades o produto estupefaciente não teria sido apreendido.

15. Pelo que, salvo melhor opinião, a atividade de venda de estupefaciente pelo Arguido poderá ser qualificada de diminuta, impondo-se a revogação da decisão recorrida.

16. Assim, deverá considerar-se que:

17. No que se reporta à atividade de tráfico e a forma como foi desenvolvida que a mesma foi exercida por contacto direto do recorrente com quem consome (três consumidores), portanto sem recurso a intermediários, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem contacto pessoal e telefónico;

18. Resultou evidente os rudimentares meios utilizados para empreender a venda do estupefaciente, não tendo qualquer sofisticação e os demais meios utilizados, designadamente o meio de transporte;

19. O recorrente não obteve qualquer lucro com a atividade, porquanto o produto da venda, € 1343,37, foi apreendido, ademais não é valor relevante.

20. O produto estupefaciente foi apreendido, pelo que não existiu disseminação de grandes quantidades de droga pelo arguido.

21. O recorrente, tem um nível de vida modesto, disso dá nota a factualidade julgada provada e o extrato bancário de fls. 192;

22. A circunscrição geográfica de atuação do recorrente, foi na cidade de ....

23. Assim sobretudo por razões de ordem comparativa, o arguido ora recorrente não será um grande traficante.

24. Respeitando as orientações desse Colendo Tribunal, Acórdão STJ Processo n.º 127/09.3PEFUN.S1, de 23-11-2011, às quais de resto apelou o Tribunal a quo sem que fizesse uma correta apreciação das mesmas, a conduta do recorrente é enquadrável na previsão do tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art.º 25.º do DL 15/93 de 22 de janeiro.

25. Em face de todo o circunstancialismo fáctico julgado provado, entendemos ser de concluir por uma imagem global dos factos menos negativa, justificativa de uma considerável diminuição da ilicitude, razão pela qual nos parece defensável, o seu enquadramento jurídico como tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

26. A factualidade julgada provada integra uma situação de menor gravidade, devendo o arguido ser condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), do DL 15/93, com absolvição do crime p. e p. pelo art.º 21.º do mesmo diploma pelo qual se encontra condenado, revogando-se a decisão recorrida.

Tal ilícito é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos.

27. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. (art. 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal).

28. A proteção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).

29. No que às necessidades de prevenção geral respeita, ainda que se considere que a problemática do tráfico de droga na circunscrição judicial de ... tem relevo, as exigências de prevenção geral são médias, comparativamente a Lisboa e subúrbios e outras zonas do país.

30. No que às necessidades de prevenção especial respeita, a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, porém, sem olvidar a reintegração do agente na sociedade.

31. Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2 do Código Penal), designadamente por razões de prevenção.

32. Em face das condições pessoais do arguido, que decorrem do relatório social, cujos factos foram julgados provados, e em obediência aos critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no art.º 71.º do Código Penal, haveremos de reconhecer, desde logo, que o arguido agiu com dolo direto, de alguma intensidade é o grau de ilicitude dos factos.

33. O recorrente é muito jovem, é de modesta condição social, mostra-se familiar e socialmente inserido conforme resulta dos factos julgados provados e resulta do relatório social;

34. O recorrente tem hábitos de trabalho conforme dá nota o extrato de renumerações da segurança social e o relatório social, e também trabalha no Estabelecimento Prisional;

35. O recorrente não possui antecedentes criminais;

36. O recorrente mostrou-se honestamente arrependido, consciente da gravidade dos seus atos e justificou o desespero que o levou a escolher o caminha errado.

37. Pelo que, devia o Tribunal a quo ter dado maior relevo ao facto de o recorrente não ter antecedentes criminais, ao facto de ter uma vida familiar estável, ter hábitos de trabalho, revelar boa integração e bom comportamento em meio prisional, e ter demostrado arrependimento e consciência da gravidade da sua conduta.

38. Todas estas circunstâncias legitimam a convicção e a forte expectativa que a condição de preso preventivo há mais de um ano lhe permitiu meditar nos atos ilícitos que cometeu e ponderará pôr em prática um projeto de vida adequado à vida em sociedade, nesse sentido concluindo o relatório social;

39. Visando a aplicação das penas a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º nº 1 do Código Penal) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º nº 2), deverá a pena aplicada ao recorrente ser fixada no meio da moldura abstrata da pena em 2 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93.

40. Caso assim não se entenda, A título subsidiário, por mera cautela e dever de patrocínio,

41. Decidindo-se pela manutenção da qualificação jurídica dos factos vertida no acórdão recorrido, condenação do arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º do DL 15/93.

42. A pena de prisão, efetiva, aplicada ao recorrente, um cidadão que, reunindo manifestas condições para a suspensão da execução da pena, que merece a confiança da justiça, sem antecedentes criminais, com família, só pode comprometer a sua ressocialização em virtude dos nefastos efeitos da reclusão.

43. Não se discutindo a existência de elementos que apontam no sentido da condenação do recorrente, pelo presente recurso pretende-se fazer notar que constam dos autos circunstâncias cuja análise é imposta pelos artigos 40º e 71º do CP, e que apontam no sentido de a medida da pena determinada pelo Tribunal a quo ser excessiva.

44. Decorre assim dos contornos do caso concreto, das normas jurídicas aplicáveis e da Jurisprudência dos Tribunais Superiores que a pena de prisão a aplicar ao ora recorrente, terá de acontecer sempre numa medida próxima da pena mínima abstratamente aplicável, não podendo em caso algum ultrapassar os 4 anos de prisão, tendo o Acórdão recorrido violado o disposto nos artigos 40º e 71º do CP, pelo que o mesmo deve ser alterado em conformidade, pois a pena aplicada é injusta, excessiva, e viola grosseiramente as finalidades das penas.

45. A justiça feita pelo Tribunal recorrido, nada tem de justo, e viola o princípio da igualdade.

46. Aplicou uma pena ao recorrente pesada, seis anos de prisão.

47. Prevalecem as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades das penas já enunciadas.

48. A privação da liberdade, e a sua duração deverá dar primazia à reinserção do agente do crime, a decisão de aplicação de penas de prisão com uma duração de vários anos, entre outras coisas, afasta os agentes da sociedade e não permite a sua fácil inserção, bem como afasta o recorrente dos seus familiares e do mercado de trabalho.

49. Por tudo o exposto, privar o recorrente da sua liberdade, com a aplicação de uma pena de prisão superior a quatro anos não alcançará os fins primordiais das penas, a reinserção social do agente do crime.

50. Pelo que, deverá revogar-se a decisão recorrida, aplicando-se uma pena nunca superior ao mínimo legal, 4 anos de prisão, medida que respeita os critérios legais enunciados, e está conforme com a necessidade de tutela do bem jurídico violado (finalidade de prevenção geral de integração), mostra-se ajustada à culpa do recorrente pelos factos praticados, que é elevada, e responde às necessidades de prevenção especial de socialização.

51. Termos em que, deverá esse Colendo Tribunal alterar a medida da pena aplicada ao recorrente, sendo a pena aplicada reduzida, revogando a decisão recorrida.

52. A moldura penal abstrata inclui uma multiplicidade de condutas, e, a não se considerar verificado o ilícito de menor gravidade, (o que não se aceita), excessiva, face aos factos provados, será toda a pena superior ao mínimo legal (4 anos), sempre se impondo em qualquer das situações a suspensão da execução da pena, por verificados os pressupostos legais para o efeito enunciados no art.º 50.º, n.º 1 do Código Penal.

53. Considerando o grau de ilicitude dos factos praticados, a idade do arguido, que é ainda muito jovem, a ausência de antecedentes criminais, o arguido apresenta hábitos de trabalho, em meio prisional apresenta boa integração, comportamento adequado e trabalha conforme dá nota o relatório social, tem apoio de familiares;

54. Poderá o arguido/recorrente beneficiar da suspensão da execução da pena, pois é possível formular um juízo de prognose favorável à sua reinserção social junto da sua família, aliado ao facto de que a medida de coação que já sofreu, mais de um ano de prisão preventiva, e a ameaça constituirão para ele séria advertência para não voltar a delinquir e satisfaz as exigências de prevenção, sobretudo prevenção geral que o caso exige.

55. Por tudo o exposto o recorrente tem boas condições para se ressocializar em liberdade sendo que, o tempo que passou na prisão e a ameaça da pena satisfazem, as exigências de prevenção e a salvaguarda dos bens jurídicos protegidos pela norma pela qual foi incriminado e condenado, neste sentido deve a pena ser reduzida e suspensa na sua execução.

56. A simples ameaça da execução da pena será suficiente para dissuadir o recorrente de futuros crimes, evitará a repetição de comportamentos delituosos, dando-se crédito ao seu sentido de responsabilidade e à capacidade de resposta nos próximos anos.

57. Privilegiando a ressocialização do recorrente, perante todo a matéria de facto provada, bastará a ameaça do cumprimento de pena, havendo, por isso, que reduzir a pena a aplicar, ao recorrente, nos moldes modestamente propostos, suspendendo-se na sua execução a pena, por se verificarem os legais pressupostos, em face da ausência de antecedentes criminais e do teor globalmente favorável do relatório social, ainda que sujeita a regime prova e ou a injunções, acautelando desta forma as necessidades de prevenção especial que se fazem sentir, o que se espera, em sede de recurso, que, cremos, merece integral provimento, havendo, por isso, que revogar o douto Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que decida nos termos referidos supra, como é de elementar Justiça.

58. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 21.º e 25.º do DL 15/93, de 22/01, art.º 40.º, 50.º, 70.º, 71.º do Código Penal, art.º 18.º, 32.º 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Termina pedindo a reparação do douto Acórdão de acordo com o supra exposta.

III. Na resposta ao recurso o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:

1. Por Acórdão de 11/07/2023, proferido nos autos à margem supra referenciados, foi decidido pelo Tribunal Colectivo condenar o arguido AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n,º 15/93, de 22.01, na pena de 6 anos de prisão.

2. Relativamente ao enquadramento jurídico da factualidade apurada, o Tribunal a quo qualificou a mesma de uma forma correcta, já que, considerando essencialmente a quantidade e a natureza da droga em causa e também o elevado grau de pureza da cocaína apreendida, não se podia entender que a conduta do arguido se reconduzia ao tráfico de menor gravidade, devendo antes a mesma ser considerada como consubstanciando a prática do crime de que vinha acusado.

3. Além de que na determinação daquela pena, o Tribunal Coletivo valorou todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra o arguido ora recorrente.

4. Pelo que, o douto Acórdão objeto do presente recurso não merece qualquer censura na apreciação que fez das circunstâncias relevantes para a determinação da medida da pena de 6 anos de prisão que acabou por aplicar ao ora recorrente.

5. Além disso, atendendo a esses e a outros motivos que são elencados na própria decisão, não existiam suficientes elementos que habilitassem o Tribunal Coletivo a formular um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido de considerar que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão seriam suficientes para afastar o ora recorrente da criminalidade.

6. Motivo pelo qual o douto Acórdão objeto do presente recurso não merece qualquer censura quando determinou a aplicação ao arguido ora recorrente de uma pena efetiva de prisão.

7. Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos.

IV. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu Parecer, no qual, em resumo, sustenta que os factos dados como provados não permitem o enquadramento na previsão do art. 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, mas quanto “à medida da pena”, considerando a sua “situação pessoal e familiar (apresenta hábitos de trabalho e conta com apoio familiar) e ao comportamento prisional do arguido (tem correspondido às regras do sistema penitenciário e vem exercendo funções de faxina)”, bem como o facto de ser “delinquente primário (factos provados 17 a 24), e ao período de privação de liberdade que o mesmo já sofreu (quase um ano e cinco meses à data deste parecer), uma pena de 5 anos de prisão, suspensa na execução com regime de prova por igual período de tempo, numa moldura penal que vai dos 4 aos 12 anos de prisão, mostra-se mais equilibrada e consentânea com as diretrizes estabelecidas nos arts. 40.º e 71.º e 50.º e 53.º, todos do Código Penal, e com os princípios da necessidade e proporcionalidade subjacentes ao art. 18.º, n.º 2, da Constituição”, concluindo pelo parcial provimento do recurso.

V. Não foi apresentada Resposta ao Parecer do Sr. PGA.

VI. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

VII. As questões suscitadas no recurso em apreciação prendem-se, por um lado, com a qualificação jurídico-penal do crime pelo qual o arguido foi condenado (que o arguido pretende que seja alterada para tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL 15/93) e, por outro lado, com a medida da pena aplicada (que o arguido pretende que seja reduzida para 2 anos e 6 meses ou, subsidiariamente, mantendo-se a qualificação pelo crime do art. 21.º do DL 15/93, pena nunca superior a 4 anos, mas de todo o modo em qualquer caso suspensa na sua execução).

Fundamentação

VIII. Resulta do acórdão da 1ª instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto com interesse para o conhecimento do presente recurso:

A. Factos provados

1. No dia 29 de Abril de 2022, cerca das 20h e 24m, o Arguido AA conduzia a viatura Renault Twingo, de cor cinzenta, com a matrícula ..-SU-.., tendo parado junto à “Churrasqueira G........”, sita na Rua ..., em ..., onde era aguardado por BB.

2. Nessas circunstâncias, BB entrou na sobredita viatura, tendo o Arguido iniciado a marcha em direcção ao Café F... .. ........, também em ....

3. Durante o percurso de aproximadamente 1 minuto, o Arguido AA entregou a BB, a troco de € 38,00, uma “mucha” contendo heroína, com o peso líquido de 0,970 gramas, e uma saqueta contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 0,415 gramas, substâncias essas abrangidas, respectivamente, pelas tabelas I-A e I-B, anexas ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01.

4. Nessas circunstâncias, o Arguido AA e BB, foram interceptados por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), que aprenderam as mencionadas embalagens de estupefaciente.

5. Na sequência da abordagem ao Arguido AA, este tinha na sua posse e transportava no referido veículo, os seguintes produtos, artigos e valores, que lhe foram apreendidos, a saber:

- no banco do condutor, entre as pernas do Arguido, uma embalagem plástica em forma de ovo, que tinha no seu interior 21 embrulhos, que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 8,995 gramas, equivalente a 16 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- dissimulado na parte inferior do banco do condutor, um saco com 22 embrulhos plásticos, que continham heroína com o peso líquido de 18,987 gramas, equivalente a 16 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- na consola central da viatura, um telemóvel da marca Alcatel de cor preta, com o IMEI 1: .............46 e IMEI 2: .............53 que tinha introduzido um cartão SIM ..........00 da operadora NOS;

- um telemóvel da marca Samsung;

- numa bolsa a tiracolo de cor preta, a quantia monetária de € 128,00 (cento e vinte e oito euros), em numerário do Banco Central Europeu, dividida por 4 notas de 20 Euros, 4 notas de 10 Euros e 8 moedas de 1 Euro.

6. Nesta sequência, cerca das 22h desse mesmo dia 29.04.2022, foi efectuada, por agentes da PSP, uma busca ao quarto onde, à data, vivia e pernoitava o Arguido AA, sito na Rua ..., 1º frente, em ..., ali tendo sido encontrados e apreendidos, além do mais, os seguintes produtos, artigos e valores, todos pertencentes ao Arguido AA, a saber:

- em cima da cama, € 1.215,37 (mil duzentos e quinze euros e trinta e sete cêntimos) em numerário do Banco Central Europeu, compostos, por 3 notas de 50 Euros, 32 notas de 20 Euros, 30 Notas de 10 Euros, 14 notas de 5 Euros e 55,37 Euros em Moedas;

- também em cima da cama, um saco com 18 embrulhos no seu interior, que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7,566 gramas, equivalente a 13 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda em cima da cama, dois rolos de sacos de plástico e uma tesoura;

- em cima da televisão, 2 balanças de precisão digitais, 3 isqueiros e vários recortes plásticos de forma circular, habitualmente usados para acondicionar o produto estupefaciente em pacotes/”muchas”;

- ao lado da cama, 1 liquidificador da marca “Kunft”, contendo vestígios de pó castanho;

- numa gaveta do móvel da televisão, um saco com heroína em pó no seu interior, com o peso líquido de 117,652 gramas, equivalente a 102 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- também no móvel da televisão, um saco de plástico, com 72 embrulhos no seu interior, contendo heroína com o peso líquido de 58,891 gramas, equivalente a 46 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda no móvel da televisão, um embrulho em forma de bola, envolto em fita-cola, com 100 embrulhos plásticos no seu interior, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 44,121 gramas, equivalente a 81 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda no móvel da televisão, uma balança de precisão digital, de cor preta e cinza;

- debaixo da cama, dentro de um saco plástico de compras, 11 caixas de REDRATE, produto normalmente utilizado para o “corte” de produtos estupefacientes;

- numa mesa redonda e no armário atrás da porta de entrada, 1 cartão informativo de um cartão SIM com o número .................00, 1 telemóvel da marca Alcatel de cor preta com o IMEI .............70 e 1 telemóvel da marca Samsung de cor preta com o IMEI .............97 que continha no seu interior um cartão SIM com o n.º ..........92.

7. O Arguido AA destinava a cocaína e a heroína que lhe foram aprendidas à venda a terceiros que o procurassem ou contactassem telefonicamente, revertendo para si o produto da venda.

8. Com efeito, desde data não apurada do início do ano de 2022 e até ao dia 29.04.2022, o Arguido AA, que também era conhecido/tratado por “Puto”, vendeu heroína e cocaína em diversos locais de ... e arredores, por mais de uma vez, ao preço de € 20,00 por cada dose individual, vulgarmente designada por “mucha”, de € 35,00, caso se tratassem de duas doses, ou de € 50,00, na eventualidade de serem três doses, nomeadamente, a BB, CC e DD.

9. As quantias monetárias apreendidas ao Arguido AA resultaram da venda de produto estupefaciente de, pelo menos, igual natureza ao apreendido.

10. Os telemóveis e cartões SIM apreendidos, destinavam-se aos contactos do Arguido com terceiros, para a venda de estupefacientes.

11. Os demais objectos apreendidos, em particular as balanças de precisão, isqueiros, recortes plásticos, embalagens plásticas, liquidificador, tesoura e embalagens de “Redrate”, foram utilizados pelo Arguido na concretização da actividade de venda de produto estupefaciente, nomeadamente, na sua preparação, pesagem e embalamento.

12. O Arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de deter, transportar, distribuir, ceder e vender a terceiros cocaína e heroína, não obstante conhecer a natureza, características e efeitos de tais substâncias, com o intuito de obter proveitos económicos decorrentes das vendas efectuadas.

13. O Arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

14. O Arguido AA é nacional de ....

15. Não regista rendimentos desde Janeiro de 2022 e mudou o seu centro de vida da zona de ... para o ..., fixando residência em ..., pernoitando num quarto, apenas com o intuito de aqui se dedicar à venda de estupefacientes.

16. Acresce que com a actuação descrita, o Arguido AA revelou total desrespeito pela vida e dignidade humanas, sendo insensível à degradação que toda a toxicodependência cria.

Mais se apurou que

17. À data da prisão, o Arguido integrava o agregado familiar monoparental materno, na morada indicada acima. Vivia sozinho com a mãe, que trabalha como ajudante de acção directa no apoio domiciliário a idosos. AA mantinha-se também profissionalmente activo, como servente de carpinteiro de cofragem. Encontrava-se em fase de organização de condições de vida independente, junto à namorada que mantinha há quatro anos, EE, a qual é empregada de limpezas a particulares. A localização do Arguido em ... é assinalada como ocasional.

18. Correia é natural de... – ..., onde cresceu junto da família natural, embora com os pais a efectuar movimentos migratórios. É o mais novo e único rapaz de uma fratria de três. Aos 11 anos juntou-se em definitivo o agregado nuclear (pais e irmãs) em Portugal, com residência fixa na margem sul da periferia de Lisboa. É possuidor de título de residência regular.

19. No país de origem frequentou a escola até ao nível do 6º ano, depois prosseguiu até ao 9º ano regular, seguido da frequência de um curso de técnico de manutenção industrial na Escola Profissional de Almada, mas não concluiu, optando por começar a trabalhar. Entretanto, dá-se a morte inesperada do pai, vítima de AVC, cerca dos 15 anos do Arguido.

20. AA teve experiências de trabalho primeiro na hotelaria, como copeiro e a partir dos 20 anos regular no ramo da construção civil.

21. É descrito como um jovem de fácil trato na família e sem aparentes problemas de ordem transgressiva ou ofensiva no exterior. Não há referência a antecedentes de hábitos de consumo de drogas ou abuso de álcool.

22. Ao nível da família restrita, são estranhos problemas de natureza criminal. Este envolvimento do Arguido com o sistema de administração da justiça foi encarado como inesperado.

23. Em meio prisional, é cumpridor das regras do sistema e ajustado no trato. Encontra-se activo, em funções de faxina. Conta com apoio familiar efectivo, traduzido nas visitas possíveis da família, mãe, irmãs e namorada. Os projectos de futuro do Arguido passam por reatar a vida anterior na zona de ....

24. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido nada consta.

1 C. Motivação da Decisão de Facto

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade.

Assim, o Arguido declara que o seu contrato de trabalho terminou em Janeiro de 2022, sendo que a sua namorada estava grávida, pelo que procurou novo emprego, o que não conseguiu. Mais diz que, nessa sequência, aceitou a proposta de um primo (cujo nome refere ser FF) para vir para o Algarve no início de Abril de 2022, tendo o carro sido alugado em seu nome porque tinha carta de condução.

De resto, apenas aceita que colaborava com o mencionado primo, a quem pertencia toda a droga, dinheiro e parafernália encontrados na habitação referida em 6. do despacho acusatório (para onde remete o despacho de pronúncia), sendo aquele mesmo primo quem recebia as chamadas telefónicas dos consumidores, limitando-se o ora Arguido a acompanhá-lo nas entregas do que supõe serem os “pacotes”. Porém e perguntado directamente, acaba por responder saber o que estava a ser entregue e confrontado com os factos referentes ao dia 29.04.2022 (em que foi abordado pela polícia após ter feito uma venda a um consumidor), responde que o seu primo foi encontrar-se com a namorada, pedindo-lhe que fizesse a entrega caso ligassem.

Também não podendo negar a sua posse, o Arguido diz que a cocaína que se encontrava no meio das suas pernas quando abordado pela polícia havia lhe sido entregue pelo referido primo, negando a existência de qualquer outro produto. Assim e questionado sobre a heroína que se encontrava debaixo do banco do condutor da viatura por si conduzida, acaba por responder que também lhe foi entregue pelo primo.

Confrontado com a quantidade de produto estupefaciente que tinha consigo na viatura que conduzia, refere que nesse dia foram feitas 3 ou 4 entregas com o primo, tendo apenas feito uma entrega sozinho (nas circunstâncias em que foi abordado pela polícia). Quanto ao dinheiro que tinha consigo nessa situação, diz que € 100,00 pertenciam-lhe e € 20,00 eram da heroína que tinha acabado de entregar ao consumidor que estava consigo no carro.

Reconhece que faziam 5 a 7 entregas de produtos estupefacientes por dia, que o telemóvel da marca Samsung que se encontrava na viatura era seu e o telemóvel da marca Alcatel foi-lhe entregue pelo primo para receber chamadas dos consumidores.

Mais responde que o seu primo saiu do país, que as muchas já estavam todas preparadas quando chegou havia duas semanas antes, que o preço de uma dose era € 20,00 e duas doses eram € 40,00 e que iria receber cerca de € 2.000,00 por mês.

Por seu turno, as testemunhas GG e HH, agentes da PSP, relatam, de forma consentânea, as circunstâncias em que observaram BB, conhecido por ser consumidor de produtos estupefacientes, a entrar na viatura conduzida pelo ora Arguido, que circulou poucos metros, saindo aquele logo de seguida, momento em que foi abordado com o produto estupefaciente que havia adquirido a AA (cfr. Auto de Apreensão de fls. 10).

Mais explicam que o Arguido tinha um ovo no meio das suas pernas contendo cocaína e um saco de heroína debaixo do banco do condutor e que foi indicado pelo próprio (cfr. Auto de Apreensão de fls. 12/13).

Esclarecem também que foi o Arguido a indicar-lhes a sua residência, especificando qual era seu quarto, o que foi confirmado por duas outras pessoas que residiam na mesma casa e que AA tinha consigo todas as chaves. Do depoimento destas testemunhas decorre igualmente os produtos, objectos e quantias monetárias aí encontrados (confirmando o Auto de Busca e Apreensão de fls. 18 a 20 e a Reportagem Fotográfica de fls. 32 e ss.).

GG e HH esclarecem ainda não existir nesse quarto qualquer indício de aí viver outra pessoa, encontrando-se apenas bens pertencentes ao ora Arguido, o qual revelou conhecer a localização de tudo o que aí estava, sem que tivesse feito qualquer menção a um primo.

Estas testemunhas revelaram-se sérias e isentas, não se detectando qualquer esforço em implicar o Arguido em factos que não tenha observado ou em tornar a sua participação mais intensa, respondendo, designadamente, que o mesmo foi colaborante desde o início.

Considerando ainda as fotografias de fls. 32 e ss. temos que o quarto em questão é exíguo, com uma cama de solteiro, sem qualquer manta nem grande espaço para dormir no chão como aventado pelo Arguido.

As testemunhas II, JJ, KK, LL e MM afirmam não conhecer o Arguido, embora os seus contatos telefónicos encontrem-se registado no telemóvel (cujo relatório de interpretação consta de fls. 417 a 462) supostamente apreendido ao Arguido, sendo que as três primeiras admitem que não existe qualquer motivo para tal que não a aquisição de produto estupefaciente.

Ora, resulta dos Autos de Apreensão de fls. 12/13 e 18/20 que foram apreendidos ao ora Arguido:

- na viatura por si conduzida, um telemóvel da marca Alcatel, Modelo 5033F, de cor preta, com o IMEI 1: .............46 e IMEI 2: .............53 e um telemóvel da marca Samsung, Modelo SM-A515F_DS Galaxy A51, com o IMEI .............14 (identificados como Item A.1 e Item A.2, respectivamente no Relatório de Exame Forense a fls. 396); e

- no quarto onde pernoitava, um telemóvel da marca Alcatel, Modelo 1066D, de cor preta com o IMEI .............70 e um telemóvel da marca Samsung, Modelo SM-J500F Galaxy J5, de cor preta com o IMEI .............97 (identificados como Item A.3 e Item A.4, respectivamente no Relatório de Exame Forense a fls. 396).

Nesse mesmo Relatório e em sede de “CONCLUSÃO”, são indicados como:

- Item A.1 - Telemóvel, Samsung SM-A515F_DS Galaxy A51, IMEI: .............14

- Item A.2 - Telemóvel, Samsung SM-J610FN_DS, IMEI: .............00

- Item A.3 - Telemóvel, Alcatel 1066D, IMEI: .............70 e

- Item A.4 - Telemóvel, Samsung, SM-J500F Galaxy J5, IMEI: .............97.

Verifica-se, pois e deste logo, uma disparidade na identificação dos Itens A.1 e A.2, sendo que o Item indicado inicialmente como A.2 passou a A.1 e o Item inicialmente indicado como A.1 (da marca Alcatel) deixou de figurar nas “CONCLUSÕES” onde se passa a indicar um outro telemóvel da marca Samsung que nada tem a ver com os presentes autos.

Por seu turno e não obstante se possa considerar que o Relatório de Interpretação de Telemóvel de fls. 417, ao referir-se aos “telemóveis apreendidos ao arguido NN” contém mero lapso de escrita na identificação do Arguido, o certo é que também refere dizer respeito ao “telemóvel mencionado em Item A.1 (Samsung GT-E1205Y9)”, diverso de qualquer telemóvel apreendido nos presentes autos.

Face às várias apontadas disparidades, não é possível a este Tribunal afirmar com a necessária certeza de que o Relatório de Interpretação de Telemóvel de fls. 417 e ss., donde se extraem os contactos telefónicos das testemunhas consumidoras de produtos estupefacientes, diz efectivamente respeito a qualquer um dos telemóveis apreendidos ao ora Arguido.

Assim e face ao depoimento prestado pelas testemunhas II, JJ, KK, LL e MM, bem como à circunstância de não se ter logrado inquirir as testemunhas OO e PP, também não nos é possível concluir com segurança que o Arguido AA vendeu aos mesmos produtos estupefacientes.

Por seu lado, a testemunha inquirida por videoconferência, nos termos dos artigos 1.º, n.ºs 1, 4 e 5, 2.º, alíneas a), b) e c), 5.º, 6.º e 7.º e ss., da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, confirmou o seu número de telemóvel e declarou ter adquirido produtos estupefacientes ao ora Arguido, talvez no último semestre de há dois anos e princípio do ano passado.

Questionado sobre as características da pessoa a que se refere, afirma ser mais baixa que a ora testemunha que mede 1,75, tendo identificado o Arguido por fotografia que lhe foi exibida pela Polícia.

Não olvidamos as dificuldades na identificação de pessoas e as normais disparidades na sua descrição. Porém, no caso concreto, de acordo com a fotocópia do passaporte que a Defesa juntou aos autos e conforme pode ser constatado pelo Tribunal, AA é mais alto que a ora testemunha que, ao visualizar aquele em sede de audiência de julgamento, admitiu tratar-se de pessoa um pouco diferente daquela que identificou por fotografia.

Considerando-se, deste modo, a referida dissemelhança, bem como o lapso de tempo em que afirma ter comprado produtos estupefacientes à pessoa que julga ser o ora Arguido e que não é referido por qualquer outra testemunha (há dois anos) não é possível concluir com a segurança exigível que a pessoa que esta testemunha refere ter-lhe vendido produtos estupefacientes é efectivamente AA.

Resulta, pois, como não provado o facto vertido em b).

Já a testemunha CC é assertiva ao afirmar ter adquirido heroína e cocaína ao Arguido, no mínimo por dez vezes, em Março/Abril do ano passado, pagando € 50,00 por duas doses de cocaína e uma de heroína. É igualmente peremptória ao declarar que conhecia AA como “Puto”, não obstante outros usarem a mesma alcunha.

DD, embora inicialmente sem a certeza, acaba por reconhecer o Arguido como pessoa a quem adquiria heroína e cocaína, em período situado entre o Inverno e a Primavera do ano passado, pagando € 35,00 pelas duas drogas.

Não obstante o discurso lento (correspondente a um esforço de memória e não devido a uma incapacidade mental ou psíquica que lhe retirasse condições para depor), a referida testemunha revela-se coerente, não se denotando qualquer esforço em agravar a actuação do Arguido ou interesse secundário.

Com efeito, DD respondeu de forma objectiva às perguntas que lhe foram colocadas, especificando, por exemplo, que o número que telemóvel que lhe foi lido foi seu até Novembro de 2022, pelo que em Dezembro já não o tinha; que comprou produtos estupefacientes ao Arguido no ano passado até “esta altura” (referindo-se ao mês de Abril) e que quando aquele não atendia às suas chamadas ligava para outro vendedor.

Por fim, BB, que adquiriu produtos estupefacientes ao ora Arguido, na ocasião em que foi interceptado pela PSP no dia 29.04.2022, atesta que pagava € 20,00 por saqueta, tendo-o conhecido nesse mesmo ano. Refere ainda que antes dessa ocasião havia comprado droga ao Arguido uma vez.

Ora, considerando os depoimentos das testemunhas consumidoras de produtos estupefacientes CC, DD e BB, concatenado com os depoimentos dos agentes da PSP GG e HH, resulta sem qualquer margem de dúvidas, actos de venda por parte do Arguido e a posse de quantidades relevantes de heroína e cocaína.

Veja-se ainda que da informação bancária junta a fls. 192 e ss. resultam movimentos na conta do Arguido na Praia ... e ..., nos meses de Fevereiro e Março de 2022, firmando a ideia de que se encontrava em ... também nessas alturas e não apenas duas semanas antes da sua detenção.

De resto e não obstante o Arguido afirmar que € 100,00 que lhe foram apreendidos são seus, não colhe o convencimento deste Tribunal, atendendo a que a sua actividade não se limitou a uma mera colaboração com um alegado primo como quer fazer crer, nem o mesmo era alheio aos produtos estupefacientes, quantias monetárias e demais objectos relacionados com a preparação do referido produto para venda e que foram apreendidos no quarto onde pernoitava.

Assim, da conjugação de toda a prova acima indicada (apreciada do modo supra explanado), com o Auto de Notícia de fls. 3/6, os Autos de Apreensão e de Busca e Apreensão de fls. 10 a 29, o Termo de Autorização de fls. 21, as Reportagens Fotográficas de fls. 32 e ss. e 293 e ss., a Informação da Segurança Social de fls. 53 e os Exames Periciais de fls. 378/389 e 524/525, bem como com as regras da experiência comum, não subsistem dúvidas quanto aos factos que se dão como provados em 1. a 11..

Atendendo à forma de actuar dada como provada e nada resultando que o Arguido padeça de qualquer incapacidade cognitiva e/ou de decisão, resultam igualmente das regras da experiência comum a intenção com que actuou e o conhecimento do mesmo quanto à proibição das suas condutas (factos provados 12. e 13., 15. e 16.).

O facto que se dá como provado em 14. resulta dos documentos juntos aos autos.

Relativamente aos demais factos dados como não provados, não se fez qualquer prova (facto não provado em a)) ou prova suficiente da sua verificação (factos não provados em d) e e)). Considerando ainda as informações da AT de fls. 232 e ss., a Informação da Segurança Social de fls. 659, os documentos de fls. 133 a 141 e o Relatório Social elaborado não se pode concluir pelo facto vertido em c)).

A convicção do Tribunal quanto à situação pessoal do Arguido assentou no Relatório Social elaborado em tudo o que não foi contrariado pela demais prova produzida apreciada nos termos supra explanados.

O Tribunal atentou ainda nos demais documentos juntos aos autos, designadamente, no Certificado de Registo Criminal do Arguido.

Direito

IX. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisado o recurso do arguido, verifica-se que as questões que coloca relacionam-se, por um lado, com uma alegada errada interpretação na subsunção dos factos ao direito (na perspetiva do recorrente os factos respetivos dados como provados integram a prática de um crime de tráfico de menor gravidade previsto no art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22.01 e não o previsto no artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, pelo qual foi condenado) e, por outro lado, com a medida da pena aplicada (pretendendo que seja reduzida para 2 anos e 6 meses considerando a alteração da qualificação jurídico-penal que propõe ou, subsidiariamente, mantendo-se a qualificação pelo crime do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, pena nunca superior a 4 anos, mas de todo o modo em qualquer caso suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova e/ou a injunções).

Vamos então analisar as questões suscitadas pelo recorrente, tendo presente que, tal como resulta do texto da decisão recorrida, não ocorrendo quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do art. 410º, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual nessa parte se mostra devidamente sustentada e fundamentada.

Pois bem.

1ª questão (enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados)

Consta do acórdão impugnado o seguinte quanto a esta questão colocada pelo recorrente:

D. Enquadramento Jurídico-Penal

Vem o Arguido pronunciado da prática de um crime de Tráfico de Estupefaciente, previsto e punível pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Estatui tal norma que "Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos".

O legislador recorreu, pois, a uma formulação com uma amplitude que traduz a natureza deste tipo como um crime de perigo comum abstracto. Nesta sequência, não se exige para a sua consumação a efectiva lesão dos bens jurídicos em causa, porquanto a protecção legal se efectiva num momento anterior: aquele em que o perigo envolve o bem ou bens jurídicos protegidos com a incriminação.

Tal bem se compreende, atendendo à danosidade individual e social que o tráfico ilícito de estupefacientes inevitavelmente causa e justifica, por parte da lei penal, uma acção particularmente gravosa.

Compulsada a factualidade apurada nos presentes autos, verifica-se que, no dia 29 de Abril de 2022, o Arguido vendeu, uma “mucha” contendo heroína, com o peso líquido de 0,970 gramas, e uma saqueta contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 0,415 gramas, substâncias essas abrangidas, respectivamente, pelas tabelas I-A e I-B, anexas ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01, a troco de € 38,00.

Nessas mesmas circunstâncias, o Arguido tinha ainda na sua posse 21 embrulhos, que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 8,995 gramas (equivalente a 16 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01) e 22 embrulhos plásticos, que continham heroína com o peso líquido de 18,987 gramas (equivalente a 16 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01).

Mais se apurou que o Arguido tinha ainda no quarto onde pernoitava:

- em cima da cama, € 1.215,37 (mil duzentos e quinze euros e trinta e sete cêntimos) em numerário do Banco Central Europeu, compostos, por 3 notas de 50 Euros, 32 notas de 20 Euros, 30 Notas de 10 Euros, 14 notas de 5 Euros e 55,37 Euros em Moedas;

- também em cima da cama, um saco com 18 embrulhos no seu interior, que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7,566 gramas, equivalente a 13 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda em cima da cama, dois rolos de sacos de plástico e uma tesoura;

- em cima da televisão, 2 balanças de precisão digitais, 3 isqueiros e vários recortes plásticos de forma circular, habitualmente usados para acondicionar o produto estupefaciente em pacotes/”muchas”;

- ao lado da cama, 1 liquidificador da marca “Kunft”, contendo vestígios de pó castanho;

- numa gaveta do móvel da televisão, um saco com heroína em pó no seu interior, com o peso líquido de 117,652 gramas, equivalente a 102 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- também no móvel da televisão, um saco de plástico, com 72 embrulhos no seu interior, contendo heroína com o peso líquido de 58,891 gramas, equivalente a 46 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda no móvel da televisão, um embrulho em forma de bola, envolto em fita-cola, com 100 embrulhos plásticos no seu interior, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 44,121 gramas, equivalente a 81 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;

- ainda no móvel da televisão, uma balança de precisão digital, de cor preta e cinza;

- debaixo da cama, dentro de um saco plástico de compras, 11 caixas de REDRATE, produto normalmente utilizado para o “corte” de produtos estupefacientes;

- numa mesa redonda e no armário atrás da porta de entrada, 1 cartão informativo de um cartão SIM com o número .................00, 1 telemóvel da marca Alcatel de cor preta com o IMEI .............70 e 1 telemóvel da marca Samsung de cor preta com o IMEI .............97 que continha no seu interior um cartão SIM com o n.º ..........92.

Resultou também que o Arguido AA destinava a cocaína e a heroína que lhe foram aprendidas à venda a terceiros que o procurassem ou contactassem telefonicamente, revertendo para si o produto da venda, o que fez desde data não apurada do início do ano de 2022 e até ao dia 29.04.2022, ao preço de € 20,00 por cada dose individual, vulgarmente designada por “mucha”, de € 35,00, caso se tratassem de duas doses, ou de € 50,00, na eventualidade de serem três doses, nomeadamente, a BB, CC e DD.

Assim e tendo o Arguido agido livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de deter, transportar, distribuir, ceder e vender a terceiros cocaína e heroína, não obstante conhecer a natureza, características e efeitos de tais substâncias, com o intuito de obter proveitos económicos decorrentes das vendas efectuadas, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, mostram-se preenchidos todos os elementos do crime de Tráfico de Estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma.


*


Cumprirá ainda analisar se a conduta de AA integrará o ilícito previsto artigo 25º do mesmo diploma legal, o qual dispõe que

“Se, nos casos do artigo 21º (...), a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”

Trata-se do tráfico de menor gravidade, o qual constitui um crime de tráfico privilegiado.

O privilégio, que para o agente do crime se traduz principalmente na medida da pena, assenta, para o jurista, num pressuposto dogmático fundamental: a ilicitude consideravelmente diminuída do facto.

São capazes de revelar uma ilicitude consideravelmente diminuída diversos factores, tais como:

os "meios utilizados", os quais revelam do grau de organização e da logística do agente;

a "qualidade", que deve ser ponderada pelo seu poder adictivo ou viciante, a gravidade dos síndromes de privação e abstencial, os riscos de intoxicação aguda, potencialidade criminógena, etc.;

a "quantidade", que se afere, obviamente pelo peso de produto estupefaciente em causa, ponderado à luz de critérios sistemáticos, tais como a relação peso/quantidade para o consumo médio individual durante dez dias.

A este respeito, explica-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05.02.2013, disponível na Internet in www.dgsi.pt que «A prática do crime não decorre apenas da quantidade que, em determinado momento, é apreendida, não sendo, até, decisiva a verificação de apreensões, em razão da natureza do tipo de ilícito, de perigo abstracto, manifestado por diversificadas e múltiplas formas de acção, havido como crime de trato sucessivo e de execução permanente, comummente caracterizado como crime exaurido (delito de empreendimento, na terminologia alemã), com o sentido de que, para a sua perfeição, se basta com um só acto, que até pode não corresponder a uma execução completa, gerador do resultado típico e a que, por isso, outros actos, por via da resolução inicial que os precede, são unificados (entre outros, os acórdãos do STJ de 16.06.2010, no proc. n.º 273/08.0JELSB-B.E1-A.S1, e de 01.06.2011, no proc. n.º 6196/91.3DLSB-G.S1, in www.dgsi.pt).

Diga-se, ainda, que não é de descurar, para o efeito, a concreta situação pessoal do recorrente, sobretudo, a relativa à sua anterior condenação, a qual não opera apenas ao nível da culpa, mas também como agravando a ilicitude dos factos agora praticados.

Neste aspecto, acompanha-se Figueiredo Dias, in “Direito Penal – Sumários das Lições”, Universidade de Coimbra, 1975, págs. 147 e seg.: a necessidade de reconhecer que, em muitos tipos-incriminadores – segundo as investigações de MEZGER e seus adeptos isso aconteceria até em grande percentagem de tipos-incriminadores -, existem elementos subjectivos, referentes a intenções, tendências, atitudes pessoais, etc., que interessam apenas ou primariamente à valoração da ilicitude parece-nos indiscutível. De outra forma, a valoração da ilicitude não poderia adequar-se às diferenças axiológicas existentes entre os comportamentos e arriscar-se-ia a abarcar muitos comportamentos penalmente irrelevantes, lícitos, quando não mesmo com um sentido positivo de valor jurídico-penal.»

No caso em apreço, a natureza dos produtos estupefacientes detidos pelo Arguido (heroína e cocaína), a quantidade de produto estupefaciente que tinha na sua posse e que destinava à venda a consumidores (num total de cerca de 110 doses de cocaína e de 164 doses de heroína) e as quantias monetárias resultantes de tal actividade e que lhe foram apreendidas (num total de € 1.343,37), não nos permitem, de modo algum, concluir por uma ilicitude consideravelmente diminuída.

Assim e não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude do facto ou excluam a culpa do agente, impõe-se a condenação do Arguido pela prática, em autoria material, do crime de Tráfico de Estupefacientes de que vem pronunciado.

Pois bem.

Argumenta o recorrente que, perante a factualidade provada, considerando o número reduzido de vendas que efetuou, o curto período de tempo em que desenvolveu a atividade de venda, o facto de antes trabalhar, a circunstância da apreensão do produto estupefaciente no quarto apenas ter sido conseguida com a sua colaboração, não ter havido a sua disseminação, o lucro da atividade de venda não ser relevante, e os meios utilizados, considerando a área da sua atuação, serem rudimentares, não tendo qualquer sofisticação, evidenciam uma imagem global a justificar uma considerável diminuição da ilicitude, merecendo o enquadramento da factualidade apurado no tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL 15/93.

Vejamos.

Dispõe o nº 1 do art. 21º (tráfico e outras atividades ilícitas) do DL nº 15/93, de 22.1:

1. Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer titulo receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. (…)

Por seu turno, estabelece a alínea a) do art. 25º (tráfico de menor gravidade) do cit. DL 15/93:

Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; (…).

A heroína e a cocaína estão incluídas respetivamente nas tabelas I-A e I-B anexas ao referido diploma legal.

Como sabido, o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime exaurido ou crime executido (também chamado delito de empreendimento no direito alemão) visto que fica perfeito com a comissão de um só ato gerador do resultado típico, admitindo uma aplicação unitária e unificadora da sua previsão aos diferentes atos múltiplos da mesma natureza praticados pelo agente, em virtude de tal previsão respeitar a um conceito genérico e abstrato.

Relativamente a estes crimes, os diversos atos constitutivos de infrações independentes e potencialmente autónomas podem, em diversas circunstâncias, ser tratadas como se constituíssem um só crime, por forma a que aqueles atos individuais fiquem consumidos e absorvidos por uma só realidade criminal.

Cada atuação do agente traduz-se na comissão do tipo criminal, mas o conjunto das múltiplas atuações do mesmo agente reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é tratada unificadamente pela lei e pela jurisprudência como correspondente a um só crime.

O STJ tem entendido que no crime de tráfico de estupefacientes deve ter-se em atenção a quantidade global traficada no período considerado como o dessa atividade2.

Para além disso tem defendido que, no crime de tráfico de estupefacientes, para se concluir no sentido de que a ilicitude do facto, para efeito de integração da conduta no tráfico de menor gravidade, está consideravelmente diminuída, é necessário avaliar globalmente a conduta do agente e olhar a «imagem» do arguido que resulta da ponderação do conjunto de factos que são dados como provados.

Assim, tipo legal fundamental (ou tipo matricial) previsto no citado DL nº 15/93, é, entre outros, no que agora importa analisar, o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º.

E é a partir desse tipo fundamental que a lei, por um lado, edifica as circunstâncias agravantes (qualificando o tipo, nos casos indicados no artigo 24.º) e, por outro lado, «privilegia» o tipo fundamental, quando concebe «o preceito do art. 25.º como um mecanismo que funciona como “válvula de segurança” do sistema», com o fim de acautelar que «situações efetivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial».

No que respeita ao artigo 25.º do cit. DL 15/93, prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, «por referência à ilicitude pressuposta no art. 21.º, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com suscetibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada.»

Esse artigo 25.º, tem na sua base “o reconhecimento de que a intensidade das circunstâncias pertinentes à ilicitude do facto não encontra na moldura penal normal do art. 21.º, nº 1, pela sua gravidade diminuta, acolhimento justo, equitativo, proporcional»3.

Também o STJ tem sustentado que, «a conduta prevista no artigo 26.º [do mesmo diploma legal], embora envolvendo tráfico, refere-se, antes de tudo, à personalidade do agente e às suas motivações, o que justifica a epígrafe dirigida exatamente ao agente (traficante-consumidor) e não ao tráfico».

De todo o modo, convém ter presente, que no art. 21.º do DL 15/93, tanto se pode incluir o grande, como o médio, tal como o pequeno tráfico de estupefacientes, desde que, neste último caso, não exista um quadro de acentuada diminuição da ilicitude e, portanto, não esteja abrangido no art. 25.º do mesmo diploma legal4.

Daí que seja errada a dedução (implícita no recurso) de que não sendo o arguido um “grande traficante” não estaria incluído no art. 21.º, pressupondo, assim, que no referido tipo legal apenas caberiam os grandes traficantes ou os agentes que vendessem com uma certa organização, fazendo uso de meios sofisticados ou que tivessem sofrido condenação anterior.

Terá de ser caso a caso, perante a análise global da matéria de facto apurada, tendo em atenção os critérios legais, que poderá fazer-se a respetiva subsunção dos factos ao direito.

Ora, compulsando a matéria de facto dada como provada temos de concordar com a 1ª instância quando concluiu estarem preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual o recorrente foi condenado, apesar da sua idade e de não ter antecedentes criminais (ao contrário do que, a dado passo, se referia na sentença, ainda que a propósito de discussão teórica, mas de forma ambígua, sobre a existência de condenação anterior).

Com efeito, o arguido fixou residência em ..., apenas com o intuito de ali se dedicar à venda de estupefacientes, tendo exercido essa atividade de venda em vários locais de ... e arredores, entre data não apurada do início de 2022 até 29.04.2022, vendendo heroína e cocaína por mais de uma vez, ao preço de € 20,00 por cada dose individual, vulgarmente designada por “mucha”, de € 35,00, caso se tratassem de duas doses, ou de € 50,00, na eventualidade de serem três doses, nomeadamente, a BB, CC e DD, utilizando os 3 telemóveis que lhe foram apreendidos, bem assim como os cartões SIM, quando fazia contactos com terceiros, para a venda de estupefacientes, utilizando os demais objetos apreendidos, em particular as balanças de precisão, isqueiros, recortes plásticos, embalagens plásticas, liquidificador, tesoura e embalagens de “Redrate”, na concretização da atividade de venda de produto estupefaciente, nomeadamente, na sua preparação, pesagem e embalamento, tendo-lhe sido apreendido em 29.04.2022, quando foi intercetado pela PSP, quer no veículo automóvel, quer depois no quarto, a quantidade total de 255,96 gramas (peso liquido) de estupefacientes destinados à venda, correspondentes ao total de 274 embalagens (sendo de 164 embalagens de heroína com o peso liquido total de 195,407 gramas e as restantes 110 embalagens de cocaína com o peso líquido global de 60,553 gramas) e, bem assim, a quantia total de 1.343,37 euros proveniente da venda de estupefacientes (o que considerando o preço da venda das doses que praticava, poderia corresponder a cerca de 67 embalagens de estupefacientes).

Ora, sendo conhecida a elevada perigosidade e grande danosidade, desde logo, da cocaína e da heroína vendidas e que as vendas foram significativas, quer considerando os lucros obtidos, quer os estupefacientes destinados à venda, apreendidos, olhando para os factos apurados (tendo em atenção todas as possíveis perspetivas) é manifesto que é insustentável defender (como o faz o recorrente de forma interessada, mas sem apoio nos factos dados como provados) que a respetiva conduta se poderia enquadrar no crime de tráfico de menor gravidade.

Perante a factualidade apurada (olhando para a imagem global dos factos apurados, as circunstâncias em que cometeu o crime em questão, diferente natureza dos estupefacientes vendidos, quantidade e qualidade de estupefacientes apreendidos em poder do arguido, destinados à venda, lucros obtidos com a venda de estupefacientes, modo de atuação e meios utilizados nessa atividade, que já revelam uma certa organização, período de tempo da sua atividade) é manifesto que não se pode concluir que exista uma acentuada diminuição da ilicitude.

Efetivamente considerada na globalidade a sua atuação dolosa que ocorreu nos moldes apurados e, também olhando a «imagem» do arguido/recorrente (que resulta igualmente da ponderação do conjunto dos factos provados e do seu posicionamento perante a sua prática), podemos concluir que nada justifica a alteração da qualificação jurídico-penal feita pela 1ª instância.

Considerando a forma (acima apontada) como cometeu o crime aqui em apreço é igualmente evidente que dos factos apurados relativos à situação pessoal, condição económica e sócio-cultural do recorrente não se consegue concluir que fosse menor a ilicitude da sua conduta.

Também a circunstância de ter nascido em ....10.1998 e, portanto, ter à data dos factos 23 anos e não ter antecedentes criminais, não releva para efeitos de alteração de qualificação jurídico-penal, perante o que se apurou, acima descrito.

Por isso, não temos quaisquer dúvidas em enquadrar os factos apurados no tipo legal previsto no art. 21.º, n.º 1, do cit. DL n.º 15/93.

Improcede, pois, nessa parte a argumentação do recorrente.

2ª questão (redução da pena concreta imposta e suspensão da sua execução, com regime de prova e/ou a injunções)

Depois de, no acórdão impugnado se ter qualificada a conduta do arguido/recorrente como constituindo a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, escreveu-se na mesma decisão, sobre as consequências do crime, o seguinte:

E. Da Medida da Pena

Ao crime pelo qual vai o Arguido ora condenado, cabe uma moldura penal abstracta de prisão de 4 a 12 anos.

Dispõe o artigo 40º, do Código Penal, onde o legislador fornece critérios gerais quanto à punição, que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, acrescentando o n.º 2 que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Consagrou, desta forma, o legislador, como critérios fundamentais para a aplicação de uma pena a chamada teoria da prevenção geral positiva ou de integração, sob a forma de protecção de bens jurídicos, nos termos da qual importa, através da punição, proceder à reafirmação contrafáctica da validade da norma no seio da comunidade em que foi violada, assim se conseguindo a indispensável pacificação social.

Neste seguimento, o artigo 71º, nº 1, do Código Penal diz-nos que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

A pena deverá, ainda, tomar como critério a necessidade de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial de ressocialização), sempre sem ultrapassar a culpa deste.

Segundo o modelo consagrado no artigo 40º do Código Penal, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida.

Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo).

Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo elas que vão determinar, em último termo, a medida da pena. (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 478 e ss. e, ainda, a título meramente exemplificativo, o acórdão do S.T.J., de 10.04..96, CJSTJ, ano IV, t. 2, p. 168).

Tendo presente o modelo adoptado e acima referido, importa de seguida eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena referidos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.

Assim, será de considerar o seguinte:

As exigências de prevenção de futuros crimes são prementes atentas as proporções do flagelo da droga do ponto de vista do tráfico, com todas as consequências que daí advêm. Como se refere no Ac. da 3ª Secção do STJ, de 26.02.97, proferido no proc. nº 926/96 (inédito) e relatado pelo Juiz Conselheiro Pires Salpico, "o crime de tráfico de estupefacientes é daqueles que causam no Povo Português e a mais viva repulsa, pelos enormíssimos danos, tragédias pessoais, familiares e sociais (...) que têm afectado a sociedade de forma absolutamente intolerável (...)".

Há que considerar ainda a natureza dos produtos estupefacientes comercializados pelo Arguido, heroína e cocaína, incluída entre as chamadas “drogas duras” – vide Relatório da Comissão de Inquérito Parlamentar (Parlamento Europeu), datado de 22 de Novembro de 1989, in Sub Judice, T. III de 1992.

O dolo é intenso, agindo o Arguido de forma livre e deliberada com o propósito concretizado de deter e vender produto estupefaciente a consumidores (dolo directo) e o grau de ilicitude dos factos é muito elevado, atendendo, nomeadamente, à qualidade e quantidade dos produtos estupefacientes na posse do Arguido (equivalente a cerca dum total de 110 doses de cocaína e de 164 doses de heroína) e às quantias monetárias encontradas na sua posse (num total de € 1.343,37).

A seu abono, pesa a idade do Arguido e a ausência de antecedentes criminais, embora seja de referir que o esperado de qualquer cidadão é que mantenha uma conduta conforme o Direito. Por outro lado e embora admita os factos, apenas o faz de forma parcial e na parte em que, de todo o modo, não teria como o negar face às provas contundentes.

Ao nível pessoal, temos que o Arguido é descendente de imigrantes caboverdianos, a quem se juntou no início da adolescência, mantendo-se num contexto familiar aparentemente funcional, não havendo notícia de problemas comportamentais. Apresenta competências de trabalho e apoio familiar, embora tais circunstâncias não o tenham afastado da prática dos factos ilícitos em apreço.

Tudo ponderado, julga-se adequado aplicar ao Arguido AA a pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática do crime de Tráfico de Estupefaciente pelo qual vai condenado.

Vejamos então.

Argumenta o recorrente que o tribunal a quo deveria ter dado maior relevo ao circunstancialismo atenuativo apurado (relacionado com a ausência de antecedentes criminais, com ter uma vida familiar estável, contar com o apoio familiar, revelar boa integração e bom comportamento em meio prisional onde trabalha, já antes do crime ser pessoa trabalhadora, ter confessado grande parte dos factos, explicando o seu desespero, mostrando-se arrependido, estando a refletir nos atos ilícitos que praticou desde que está preso preventivamente, há mais de um ano, estando também a preparar-se para por em prática um projeto de vida adequado à sociedade, sendo as razões de prevenção geral médias), propondo a pena de 2 anos e 6 meses de prisão no caso de se enquadrar a sua conduta no crime previsto no art. 25.º, al. a), do DL 15/93 ou, subsidiariamente, a pena de 4 anos de prisão no caso de se manter a qualificação pelo crime previsto no art. 21.º do DL 15/93, mas em qualquer dos casos devendo beneficiar da suspensão da execução da pena, ainda que sujeita a regime de prova e/ou a injunções, uma vez que tem boas condições para alcançar a sua ressocialização em liberdade e assim melhor se satisfazer as finalidades da pena, favorecendo-se a sua ressocialização.

Pois bem.

Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade5.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida6.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias7, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente8, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor9 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Uma vez determinada a pena concreta, pode ainda impor-se, consoante os casos, que o tribunal pondere se a deve substituir por outra pena, dentro do leque das respetivas penas de substituição previstas na lei.

Feitas estas resumidas considerações teóricas, importa apreciar a questão colocada pelo recorrente.

Como sabido a medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

Perante os factos apurados e o que deles se pode deduzir, como veremos, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pela 1ª instância, quanto à determinação da medida da pena individual que foi imposta ao recorrente, acima já transcritas, considerando a moldura abstrata (pena de prisão de 4 anos a 12 anos) do crime de tráfico de estupefacientes por si cometido.

Assim, havia que considerar que o arguido/recorrente agiu com dolo (direto) e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada, que se prolongou no período referido nos factos provados (desde data não apurada do início do ano de 2022 até 29.04.2022), sendo que desde janeiro de 2022 o arguido não registava rendimentos, tendo fixado residência propositadamente em ... (sendo que antes vivia em ...), passando a pernoitar num quarto, apenas com o intuito de ali se dedicar à venda de estupefacientes.

Como bem diz o Coletivo, quer considerando o seu modo de atuação, visto o circunstancialismo apurado e tendo em atenção, a diferente natureza (heroína e cocaína) e quantidade dos estupefacientes (110 embalagens de cocaína com o peso total liquido de 60,553 gramas e 164 doses de heroína com o peso total liquido de 195,407 gramas, que são dos piores por causarem maior danosidade), que detinha e vendia, bem como lucros (total de € 1.343,37) que obtinha para si, não sendo consumidor, é manifesto que é muito elevada a ilicitude da sua conduta, mostrando bem a sua indiferença pelos malefícios para a vida e para a saúde dos consumidores (o que é evidenciado até com a atitude que teve de mudar de residência de ... para ... apenas para se dedicar à venda de estupefacientes).

Aliás, essa atitude de mudar de residência com esse propósito, quando antes tinha condições de vida e apoio familiar em ..., desperdiçando essa oportunidade, para ir de propósito cometer um crime de tráfico de estupefacientes para outra localidade bem longe (...), mostra também uma personalidade adequada aos factos que cometeu, que não se deixou influenciar por aqueles que lhe eram próximos e lhe queriam bem (além de revelar ter atuado motivado pela obtenção de dinheiro fácil e indiferente às consequências dos seus atos).

O facto do arguido gozar de apoio familiar nos termos dados como provados em nada altera a apreciação feita pelo Coletivo, tanto mais que essa situação já existia antes de cometer o crime aqui em apreço, não tendo constituído motivo para o afastar da criminalidade.

Portanto, a sua integração familiar e profissional, não o impediu de cometer o crime em apreciação, o que revela bem a sua personalidade avessa ao direito.

São também elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (genérica e primacialmente a saúde pública) no crime de tráfico de estupefacientes, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

Ou seja, ao contrário do alegado pelo recorrente, o grau de ilicitude dos factos foi muito elevado como acima se referiu, assim como são elevadas as razões de prevenção geral positiva.

O facto do arguido ser um jovem (nasceu em ....10.1998) à data dos factos com 23 anos de idade, sem antecedentes criminais, é o que é de esperar do comum dos cidadãos, nomeadamente da sua idade.

Nem sequer do facto de ser primário ou de no EP cumprir as regras normativas se pode retirar a ilação de que goza de bom comportamento antes ou depois do crime cometido, porque não ter antecedentes criminais é o que se espera de qualquer cidadão, assim como que cumpra as regras normativas quer em liberdade, quer dentro de qualquer instituição, incluindo aqueles que estão recluídos em estabelecimentos prisionais ou instituições equiparadas (ou seja, o desrespeito das regras ou normas é a exceção).

Ao contrário do que alega o recorrente, não se vê que haja qualquer exagero na ponderação feita pelo Coletivo.

O valor dado à confissão parcial dos factos, na parte em que não podia negar, até perante as provas produzidas, como bem esclarece o Coletivo, não merece censura.

O alegado pelo recorrente que extravasa o que se extrai dos factos dados como provados não pode ser atendido (v.g. o circunstancialismo em que foi feita a confissão, desespero manifestado que o levou a escolher o caminho errado, arrependimento demonstrado, meditação que está a fazer no EP sobre os atos ilícitos que praticou e sobre o pôr em prática um projeto de vida adequado à vida em sociedade).

Igualmente se deverá atender a que no EP trabalha como faxina, o que é positivo, revelando alguma sensibilidade positiva à pena a aplicar, com reflexo favorável no juízo de prognose sobre a necessidade e a probabilidade da sua reinserção social.

Também positivo é, continuar a ter apoio familiar, recebendo visitas, tendo o projeto de reatar a vida anterior na zona de ..., o que considerando a sua jovem idade, poderá criar a expectativa de que irá mudar o seu rumo de vida.

Assim, tudo ponderado, considerando o efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 6 anos de prisão que lhe foi imposta pela 1ª instância, a qual favorece a sua reinserção social.

Na perspetiva do direito penal preventivo, a pena de prisão que lhe foi aplicada mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à gravidade dos factos cometidos e carência de socialização do recorrente (evidenciada pela personalidade adequada aos factos que cometeu), satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade da norma incriminadora violada, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta.

Assim, perante a pena que lhe foi aplicada (6 anos de prisão), afastada está a possibilidade de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º do CP), improcedendo, igualmente, nessa parte, o requerido pelo recorrente.

Improcede, pois, totalmente a argumentação do recorrente, não tendo sido violados os princípios e normas por ele citados.


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Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 11.10.2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Pedro Manuel Branquinho Dias (Adjunto)


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1. B. Factos Não Provados

  Não se provou que:

  O Arguido AA, que também era conhecido/tratado por “AA”, “AA” e “AA”

  O Arguido AA vendeu heroína e cocaína a II, JJ, KK, OO, LL, MM, QQ e PP.

  O Arguido não tem, em Portugal uma actividade laboral consolidada ou uma vida familiar estruturada e estável.

O Arguido vivia em ... em condições precárias.

  É de esperar, atentas as circunstâncias do caso e a personalidade evidenciada pelo Arguido, que, enquanto em território português, não saberá conduzir a sua vida de modo responsável, sem cometer crimes.

2. Ver, entre outros, Ac. de 23/1/91, BMJ 403/161 e Ac. de 13/2/91, BMJ 404/188.

3. Assim, entre outros, Ac. STJ de 12.07.2000, BMJ n.º 499/117 ss. e Ac. STJ de 23.0302006, CJ Ac. do STJ 2006, I, 219 e 220.

4. Neste sentido, entre outros, acórdãos do STJ de 23.02.2005 e de 17.04.2008, relatados por Henriques Gaspar.

5. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

6. Neste sentido, v.g. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.

7. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

8. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

9. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.