Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
151/14.4T3GDL.E2.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PROIBIÇÃO E IMPOSIÇÃO DE CONDUTAS
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I. Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam o cúmulo jurídico de penas.

II. O condenado tem direito à pena única, resultante da soma jurídica das penas parcelares correspondentes aos vários crimes por si cometidos, desde que estes crimes concorram efectivamente entre si e todas as penas correspondam a crimes cometidos antes do trânsito em julgado da primeira condenação.

III. E assim é, independentemente de o concurso ser conhecido num mesmo ou em vários processos, tudo devendo passar-se como se a pena (única) fixada no primeiro momento tivesse logo englobado (podido englobar) todas as parcelares em concurso que indevidamente ficaram fora do cúmulo.

IV. Sem prejuízo de se considerar que inexistem regras matemáticas na determinação da pena do concurso, pois o critério legal é o do art. 77.º do CP, em caso de cúmulo superveniente de penas uma elevação do “factor de compressão” – no caso, de 1/3 (observável no primeiro cúmulo) para 1/2 (utilizado no acórdão do cúmulo superveniente) - tem de ser factual e expressamente explicada na fundamentação do acórdão que reformulou o cúmulo jurídico.

V. Justifica-se a intervenção correctiva do Supremo na pena do cúmulo superveniente quando, inexistindo factos novos que justifiquem a elevação do factor de compressão, num primeiro cúmulo se fixara a pena única em 4 anos e 9 meses de prisão efectiva (aglutinadora de três penas de prisão, de 3 anos e 6 meses, de 2 anos e de 2 anos) e no segundo cúmulo em que se procedeu apenas ao aditamento de uma pena de 2 anos e 9 meses de prisão, se elevou a pena única para 6 anos e 6 meses de prisão.

VI. Esta elevação tão expressiva e infundamentada do “factor de compressão”, na reavaliação de todos os factos em conjunto com a personalidade do arguido, fica por compreender, devendo a pena do cúmulo superveniente ser antes fixada em 5 anos e 9 meses de prisão, medida ainda adequada à satisfação das exigências de prevenção geral e especial, e à tutela do bem jurídico.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 151/14.4T3GDL, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de ... - Juiz 3, foi proferido acórdão a decidir:

“I) Operar o cúmulo jurídico, de harmonia com os ditames dos arts. 77.º e 78.º do Código Penal, das penas parcelares aplicadas nos presentes autos e no processo n.º 206/12.0... e condenar o arguido AA na pena única que se fixa em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

II) Determinar, à luz do normativo do artigo 43.º, n.º 1, al. b) do Código Penal que o arguido AA cumpra o remanescente de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal ( sendo levado à operação de desconto a pena de 4 anos e 9 meses que integralmente expiou) em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, condicionada a avaliação por parte da DGRSP das condições para a instalação de meios de controlo à distância, que que solicitará.

III) Execução que se cumula com a proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores – n.º 4, als. d) e e) do citado normativo.

IV) Mantém em tudo o mais, o decidido nos processos identificados em i).”

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso (para o Tribunal da Relação de Évora, que, em decisão sumária de declaração de incompetência material, procedeu à remessa para o Supremo Tribunal de Justiça, onde foi aceite), concluindo:

“A) O arguido não pode conformar-se com a pena única determinada no acórdão cumulatório que lhe foi notificado e que fixou uma pena de 6 anos e 6 meses de prisão, pela prática de 4 crimes de abuso sexual de criança, com as penas parcelares de 3 anos e 6 meses, 2 anos, 2 anos e 2 anos e 9 meses.

B) A pena única determinada no cúmulo, resultante de concurso superveniente realizado a pedido do arguido, peca por manifestamente excessiva e desproporcionada ao caso concreto e à realidade do arguido a todos os níveis.

C) Tendo presente a base abstracta em que se balizava o Tribunal a quo para a realização do cúmulo – que ia desde uma pena mínima de 3 anos e 6 meses até uma pena máxima de 10 anos e 3 meses – o factor de compressão utilizado pelo Tribunal foi desproporcional ao caso.

D) De notar que no cúmulo inicial realizado pelo Tribunal no âmbito do processo 206/12, (cuja pena única determinada foi de 4 anos e 9 meses para penas parcelares de 3 anos e 6 meses, 2 anos e 2 anos) foi utilizado um factor de compressão de menos de 1/3, sendo certo que à data não militavam a favor dos arguidos nem metade das circunstâncias que hoje se verificam e que o Tribunal a quo dá como provados no acórdão.

E) Contudo, no acórdão cumulatório ora sindicado o factor de compressão utilizado, em lugar de mais favorável ao arguido, foi na verdade bem mais gravoso, aproximando-se do 1/2 de valoração das penas parcelares.

F) Não foram devidamente considerados pelo Tribunal a quo, nomeadamente, i) a inexistência de antecedentes criminais do arguido antes dos factos provados; ii) o facto do último dos actos praticados com relevância criminal datar de há mais de 12 anos sem que até à data tenha sido cometido qualquer outro crime ou haver notícia do 27/32 cometimento de qualquer outro ilícito; iii) o facto de o arguido ter cumprido integralmente uma pena de prisão no EP de 4 anos e 9 meses, de forma ininterrupta, sem gozo de uma única medida de flexibilização da pena; iv) o facto de o arguido estar em liberdade desde Maio de 2020 sem que desde então tenha cometido qualquer ilícito, mesmo em pela liberdade; v) o facto de o arguido ter encontrado nova ocupação profissional distinta da Advocacia, sendo que os actos pelos quais foi condenado surgiram no exercício dessa referida profissão.

G) Assim, deveria o Acórdão recorrido ter considerado que as razões de prevenção especial positivas aplicáveis ao caso seriam meramente residuais e não medianas como erradamente valorou, até porque considerou que acredita que o mesmo não voltará a cometer os ilícitos pelos quais foi aqui julgado e que o não exercício das funções de ... demonstrar o menor risco de repetição destas condutas por ter sido o contexto em que antes ocorreram. Ao decidir contra os factos dados como provados e a própria convicção manifestada no texto do Acórdão, ocorreu também aqui um crasso erro de julgamento que se impõe corrigir.

H) Mais, ao nível da prevenção geral, tampouco está correcta a consideração pelo Acórdão de que estamos perante exigências elevadas. Na verdade, a prevenção geral positiva imposta pelo art.º 40.º do CP impõe que se passe à comunidade um sinal de funcionamento da instituição Justiça perante o caso concreto, o que manifestamente aconteceu neste caso com o cumprimento pelo arguido de uma pena de prisão de 4 anos e 9 meses.

I) Ainda para mais quando tal prisão foi publicamente noticiada no meio pequeno que é a comunidade do arguido (...) e mais ainda quando o mesmo era uma figura pública ao nível da política local (concelhia do PS de ...) e ..., o que tudo deixou de ser em consequência destes processos. O sinal passado, pois, é o de que a Justiça funcionou, mesmo perante os “poderosos”, por queixa de pessoas humildes e algumas delas de condição económica muito modesta.

J) Adicionalmente, não podemos ignorar a muito recente jurisprudência deste mesmo Venerando TRE, a propósito de uma situação de abuso sexual de crianças consistente em toques/carícias por cima da roupa, que no acórdão proferido no processo 95/17.8JASTB.E2 de 24/05/2022 foram consideradas integradoras de um crime de importunação sexual e já não de abuso sexual (assim não configurando acto sexual de relevo), exactamente o que o arguido defendeu neste mesmo TRE e foi desconsiderado.

K) O surgimento deste douto acórdão é também ele um factor que deve sopesar na análise da prevenção geral, pois que a gravidade deste tipo de condutas não tem a magnitude

que o Tribunal a quo lhe pretende conferir, nem assim o impacto na comunidade é tão grande quanto aquele que se pretende dar a entender, o que não pode deixar de ser considerado no cúmulo a realizar - art.º 71.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CP.

L) Haveria, assim, o acórdão de ter considerado que também as razões de prevenção geral que cumpriria acautelar no caso em apreço eram residuais e não elevadas como entendeu erradamente, também aqui incorrendo em erro de julgamento quanto à realidade do arguido e o impacto do processo na comunidade considerando a realidade do mesmo.

M) De tudo quanto acima se expôs resulta que as regras para a realização do cúmulo de penas foram violadas pelo acórdão recorrido, designadamente as previstas nos artigos 71.º, nºs 1 e 2; 77.º, nºs 1 e 2; 78.º, n.º 1 e 40.º nºs 1 e 2 do CP, impondo-se a sua anulação e substituição por outra decisão que valore adequadamente a realidade do arguido, face aos factos dados como provados, efectuando um cúmulo que corresponda ao tempo de pena de prisão já cumprido pelo arguido, de 4 anos e 9 meses, conforme peticionado.

Por outro lado,

N) A decisão recorrida é, também, ilegal na medida em que aplica uma proibição de contacto do arguido com menores de 16 anos durante o período do seu cumprimento de pena remanescente, “mormente” no âmbito do exercício das funções que ora exerce de terapias naturais, estendendo assim esta proibição a uma categoria geral e abstracta de pessoas, fora do âmbito do contexto em que ocorreram os factos provados, o que a Lei e a Constituição não consentem.

O) Inexiste qualquer fundamento atendível, fáctico ou jurídico, que permita ao Tribunal a quo estender esta proibição de contactos do arguido com menores de 16 anos fora do contexto do exercício de funções profissionais que é o que acontece quando acrescenta a palavra “mormente” que perpassa a ideia de mera exemplificação/não taxatividade das situações em que a proibição de contactos opera.

P) A norma invocada pelo Tribunal a quo para sustento deste segmento decisório [artigo 43.º, n.º 4 alínea e)] não tem qualquer aplicação ao caso em apreço, pois tal norma pressupõe a proibição de contactos com pessoas individualizadas, o que em regra é dirigido às próprias vítimas das condutas criminosas apuradas. Assim, o Tribunal fez uma aplicação errada da norma jurídica em causa, carecendo de sustento legal para determinação desta proibição generalizada e abstracta de contacto do arguido com quaisquer menores de 16 anos que não sejam seus familiares.

Q) Entendemos, pois, que a norma aludida, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, atenta contra o art.º 25.º, n.º 2; 26.º, nºs 1, 2 e 4; 29.º, nºs 3 e 4; 30.º, nºs 4 e 5; 45.º n.º 1, todos da CRP, inconstitucionalidade que ora expressamente se invoca, para todos os legais efeitos, designadamente para efeitos de eventual recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no art.º 72.º, n.º 2 da “LTC”.

Finalmente,

R) A aplicação ao arguido de uma pena de 6 anos e 6 meses, em regime de permanência na habitação, conforme pedido por si, não pode – como resulta do acórdão recorrido – consubstanciar uma tolerância do Tribunal para com o arguido para não cortar um processo de ressocialização em curso e, simultaneamente, um castigo mais gravoso do que aquele que resultaria do cumprimento desse remanescente da pena em reclusão num EP.

S) E a verdade é que a decisão recorrida incorre na violação do disposto no art.º 61.º, n.º 4 do CP quando refere, ao transcrever o art.º 43.º, n.º 5 do CP, que quando a pena de prisão é aplicada em regime de prisão domiciliária, não há lugar a liberdade condicional.

T) Desde logo a norma contida no actual n.º 5 do art.º 43.º do CP não tem aplicação ao caso em apreço porquanto surge com a entrada em vigor da Lei n.º 94/2017, de 23/08 a qual, salvo melhor opinião, não deve ter aplicação ao caso concreto, cujos factos são muito anteriores à entrada em vigência da referida Lei (art.º 2.º, n.º 4 do CP).

U) Mas de qualquer modo, também não pode a referida norma ter aplicação ao caso em apreço – desconsiderando a questão da aplicação da lei no tempo – por a sua ratio legis nada ter que ver com a situação deste processo.

V) Manifestamente que a norma em causa não está pensada para ser aplicada aos casos em que o arguido já cumpriu pena de prisão prolongada – neste caso 4 anos e 9 meses ininterruptamente – e que por via do desconto previsto no artigo 80.º do CP apenas lhe resta cumprir uma pena de até 2 anos, mas de uma pena global neste caso de 6 anos e 6 meses agora imposta.

W) Uma tal interpretação redundaria numa penalização manifestamente desproporcionada ao arguido para que pudesse beneficiar de uma forma de cumprimento da pena que é um direito seu, obrigando-o a cumprir em permanência na habitação muito mais tempo de reclusão que aquele que teria de cumprir caso fosse preso em EP, pois nesse caso obrigatoriamente teria de ser colocado em liberdade aos 5/6 da pena atento o disposto 31/32 no art.º 61.º, n.º 4 do CP, diferença essa que seria de cumprimento de 8 meses de prisão em cadeia ou 1 ano e 9 meses de permanência na habitação.

X) Ora, esta limitação constitui na verdade um entrave muito maior no seu processo de ressocialização do que o mero cumprimento de 8 meses de prisão num EP e subsequente saída em gozo de liberdade condicional sem restrições de liberdade de circulação.

Y) Entendemos, pois, que a norma contida no art.º 43.º, n.º 5 articulada com o art.º 61.º, n.º 4 do CP é inconstitucional quando interpretada no sentido de que é aplicável aos casos em que a pena global aplicada ao arguido lhe permitiria gozar do direito de ser colocado obrigatoriamente em liberdade condicional aos 5/6 da pena, por violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1; 18.º, nºs 1, 2 e 3 e 29.º, nºs 1, 2 , 3 e 4, todos da CRP, inconstitucionalidade que ora expressamente se invoca, para todos os legais efeitos, designadamente para efeitos de eventual recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no art.º 72.º, n.º 2 da “LTC”.

Por todo o exposto, deve o presente recurso ser julgado integralmente provido e, em consequência, ser anulado o acórdão cumulatório proferido e substituído por outro que refaça o cúmulo, de tal forma que seja aplicada uma pena única de 4 anos e 9 meses ou, subsidiariamente, que se aplique um factor de compressão das penas parcelares mais benevolente que o encontrado no cúmulo ora sindicado (e bem assim no anterior, realizado no processo 206/12), tudo sem prejuízo de se manter o regime de permanência na habitação já consentido e requerido pelo arguido para cumprimento do putativo remanescente de pena que haja de ser cumprida a final, descontado o cumprimento dos 4 anos e 9 meses em reclusão. Mais deve o acórdão a proferir revogar a proibição de contacto com menores de 16 anos estabelecida de forma abstracta e, no limite, reduzi-la apenas ao contexto do exercício profissional do arguido no âmbito da actividade ora exercida de terapias naturais, com o que se fará a costumada.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“Interpôs o arguido AA recurso do douto acórdão cumulatório prolatado a fls. 1681-1695 dos autos supra epigrafados, que, operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas no supra epigrafado Processo n.º 151/14.4T3GDL e no Processo n.º 206/12.0..., condenou aquele na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, mais tendo determinado o cumprimento do remanescente de prisão, resultante do desconto da pena de 4 anos e 9 meses de prisão que o mesmo sujeito processual integralmente expiou (à ordem daqueles últimos autos), em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (condicionada a avaliação por parte da DGRSP das condições para a instalação de tais meios), execução essa cumulada «com a proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores»;

2. Pugna aquele arguido, a final, no sentido de dever ser-lhe aplicada uma pena única de 4 anos e 9 meses de prisão ou, pelo menos, inferior àquela em que foi in casu condenado, sem prejuízo de se manter o regime de permanência na habitação para efeitos de eventual cumprimento do remanescente de pena, descontado o período de 4 anos e 9 meses já cumprido em reclusão, mais devendo ser revogada a proibição de contacto com menores de 16 anos estabelecida de forma genérica ou, no limite, reduzi-la apenas ao contexto da actividade profissional na área das terapias naturais que o mesmo sujeito processual exerce actualmente;

3. Estará aqui em causa, no essencial e no que ora interessa relativamente ao douto acórdão recorrido, aquilatar da justeza da pena única de prisão aplicada, designadamente, da sua correspondência, ou não, à medida da culpa do arguido AA, bem assim, tendo sido determinado que este cumpra o remanescente de prisão (decorrente do desconto da pena já expiada) em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, da possibilidade legal e do acerto da subordinação desse regime ao cumprimento das regras de conduta in casu impostas;

4. Entende o recorrente que «[a] pena única determinada no cúmulo, resultante de concurso superveniente realizado a pedido do arguido, peca por manifestamente excessiva e desproporcionada ao caso concreto e à realidade do arguido a todos os níveis», sendo que «no cúmulo inicial realizado pelo Tribunal no âmbito do processo 206/12 (…) foi utilizado um factor de compressão de menos de 1/3» e «no acórdão cumulatório ora sindicado o factor de compressão utilizado, em lugar de mais favorável ao arguido, foi na verdade bem mais gravoso, aproximando-se do 1/2 de valoração das penas parcelares»;

5. Constatando-se ter no cúmulo jurídico a que se procedeu no âmbito do Processo n.º 206/12.0... sido considerado um factor de compressão de 31,3% das penas parcelares menos graves fixadas e naqueloutro cúmulo aqui controvertido realizado no âmbito do Processo n.º 151/14.4T3GDL e ao qual se reporta o recurso ora interposto sido esse factor de compressão de 44,4%, entendemos, porém, existirem motivos válidos para tal, designadamente, aqueles explicitados no acima mencionado douto acórdão cumulatório de fls. 1681-1695;

6. Sendo, designadamente, desde logo, certo que, com reporte ao cúmulo jurídico anterior, foram agora considerados múltiplos factos novos consubstanciadores da prática, em trato sucessivo, de mais um crime de abuso sexual de crianças, cometido sobre outra menor, mostrando-se, do mesmo passo, significativamente dilatado o período temporal em que o arguido AA desenvolveu semelhante actividade criminosa (factos de 2006 a 2008 passam de 2006 a 2010), tal tendo reflexos directos na concreta “gravidade do ilícito global”, para além de tornar muito mais evidente, no dizer do tribunal a quo, que a «personalidade do agente» espelha «uma particular tendência para a prática de ilícitos criminais» em face da qual «será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta»;

7. Entendendo o recorrente existirem aspectos que «[n]ão foram devidamente considerados pelo Tribunal a quo», cumpre salientar, com reporte à condenação em pena única, que, nos termos do disposto no art.º 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal, «[n]a medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente», pelo que a invocada existência nunca poderá ter a virtualidade de per se fazer relativizar semelhante binómio legal plasmado em matéria de regras da punição do concurso de crimes, sendo, assim, certo que o sopesar no seu conjunto de todos os factores ou circunstâncias in casu atendíveis, em grande parte desfavoráveis àquele sujeito processual, desde logo em face da já referenciada “gravidade do ilícito global”, torna absolutamente congruente a fixação da pena única nos termos decididos pelo tribunal a quo;

8. Mais entende o recorrente que «deveria o Acórdão recorrido ter considerado que as razões de prevenção especial positivas aplicáveis ao caso seriam meramente residuais e não medianas como erradamente valorou», bem assim que, «ao nível da prevenção geral, tampouco está correcta a consideração pelo Acórdão de que estamos perante exigências elevadas», aqui aludindo à «prevenção geral positiva imposta pelo art.º 40.º do CP»;

9. Em obediência ao art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida de qualquer pena terá sempre como pressuposto inicial o objectivo estrutural de qualquer sistema jurídico-penal democrático: a finalidade da pena. E esta decompõe-se numa dupla perspectiva: a prevenção geral positiva, traduzindo a ideia de que a pena aplicada ao agente deve manter e reforçar a confiança da comunidade de paz na validade e eficácia das normas jurídico-penais como instrumentos de tutela dos bens jurídicos; e a prevenção especial positiva como reintegração do agente na sociedade, através da sua adesão aos valores e princípios da comunidade;

10. Ora, afigura-se-nos não assistir razão ao aqui recorrente, sendo, antes, certo que se concorda com o entendimento sufragado pelo tribunal a quo, designadamente, de que «[a]s exigências de prevenção especial revelam-se a nosso ver medianas (acreditando-se que o arguido, não repita comportamentos que ditaram a sua condenação e o cumprimento da pena de prisão e que estas na sua integralidade ocorreram no desempenho da atividade de advocacia que o arguido deixou de exercer), sendo as exigências de prevenção geral elevadas face ao forte alarme social sempre associado a crimes da natureza das condenações, como se ponderou na determinação das penas parcelares»;

11. Efectivamente, se, por um lado, as exigências de prevenção geral são sempre, em face dos padrões éticos vigentes na comunidade, bastante elevadas em matéria de crimes de abuso sexual de crianças, também, por outro lado, é de aceitar, não obstante a personalidade do arguido revele, conforme espelhado nos factos objecto de condenação, uma particular tendência para a prática de ilícitos criminais de semelhante natureza, que algumas mudanças entretanto ocorridas na vida do mesmo sujeito processual possam ter feito diminuir aquelas que seriam exigências de prevenção especial igualmente elevadas para “meramente” medianas;

12. Importa, todavia, frisar, em sentido dissonante do que resulta expendido em sede de recurso, que a passagem, em termos de actividade profissional, da advocacia para a área das terapias naturais não faz per se minguar de modo relativamente significativo as exigências de prevenção especial, sendo certo que não só aquela primeira actividade não implica a prática de actos que pela sua própria natureza sejam facilitadores ou propiciadores do cometimento de crimes como os que estão aqui em causa (veja-se que os factos referentes à menor BB tiveram lugar numa casa sita no ... e não no escritório do arguido), como também as mencionadas terapias naturais permitem um contacto próximo com pessoas em ambiente de alguma intimidade que não faz arredar totalmente o risco de reincidência na prática de novos factos criminalmente relevantes;

13. Aludindo o recorrente ao facto de que «a prevenção geral positiva (…) impõe que se passe à comunidade um sinal de funcionamento da instituição Justiça perante o caso concreto», dir-se-á, neste ponto, que, pugnando o primeiro no sentido de que lhe seja agora «aplicada uma pena única de 4 anos e 9 meses» (já totalmente expiada no âmbito do Processo n.º 206/12.0...), seria, aí sim, em semelhante hipótese, absolutamente incompreensível para a mesma sociedade que viessem os actos de natureza pedófila, manifestamente repugnantes, objecto de condenação no Processo n.º 151/14.4T3GDL a ficar in totum impunes (sempre mais se assinalando que, em conformidade com o que é peticionado em sede de recurso, corresponderia aquela medida da pena única a lançar-se in casu mão de um factor de compressão “ridiculamente” baixo de 18,5%);

14. Entende ainda o recorrente não poder «ignorar a muito recente jurisprudência deste mesmo Venerando TRE, a propósito de uma situação de abuso sexual de crianças consistente em toques/carícias por cima da roupa, que no acórdão proferido no processo 95/17.8JASTB.E2 de 24/05/2022 foram consideradas integradoras de um crime de importunação sexual e já não de abuso sexual (assim não configurando acto sexual de relevo), exactamente o que o arguido defendeu neste mesmo TRE e foi desconsiderado», sendo que tal «deve sopesar na análise da prevenção geral, pois que a gravidade deste tipo de condutas não tem a magnitude que o Tribunal a quo lhe pretende conferir, nem assim o impacto na comunidade é tão grande quanto aquele que se pretende dar a entender, o que não pode deixar de ser considerado no cúmulo a realizar - art.º 71.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CP»;

15. Refere tal douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.05.2022: «O comportamento do Arguido com as suas alunas (…), que envolveu a introdução uma das suas mãos por dentro da roupa das menores e, em contacto com a pele destas, o toque, a carícia, a massagem no pescoço, peito/tronco, mamilos e barriga, é absolutamente desajustado em ambiente escolar, entre professor e aluna e entre adulto e criança que não tenham relacionamento familiar muito próximo. E tem cariz sexual, pelas zonas que o Arguido escolheu para tal “contacto” e pela forma como o estabeleceu – com a pele das crianças, por baixo da roupa que envergavam. Dito de outra forma, não é um contacto com o que está à vista [mãos, braços, cabeça], mas é um contacto com o que não está à vista, perfeitamente calculado, que exige esforço e revela busca de intimidade. Mas não tem o relevo exigido pelo n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal – (i) porque ocorreu apenas uma vez, com cada uma das referidas crianças, (ii) porque ocorreu em público e (ii) porque, como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito»;

16. Ora, tendo em conta os factos dissemelhantes a que respeitam os crimes objecto de condenação no âmbito dos Processos n.ºs 206/12.0... e 151/14.4T3GDL e sendo desde logo certo que não se verificarão in casu, com reporte a semelhante factualidade, os pressupostos cumulativos de que aquele acórdão do Tribunal da Relação de Évora fez depender o afastamento da ocorrência de crimes de abuso sexual de crianças, sempre se concluirá no sentido de não se mostrar beliscado todo o expendido no douto acórdão recorrido, designadamente, no que conduziu à determinação da pena única que veio a ser fixada;

17. Relativamente à questão ora apreciada, refira-se, por último, que, no mais, mantemos o entendimento já explicitado nas nossas alegações orais no sentido de ser de adoptar, porquanto manifestamente razoável e ponderado, e, como tal, acertado, o seguinte critério enunciado por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, em anotação ao art.º 77.º do mesmo diploma legal, que temos como considerador da personalidade do agente em conexão com a globalidade dos factos: «Em regra, a ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade é feita nos seguintes termos: tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave metade (ou, em casos excepcionais, dois terços) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excepcionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso»;

18. Ora, considerando todos os aspectos já sobejamente expendidos supra e sendo certo que, in casu, segundo entendemos, aplicou o tribunal a quo pena única de prisão não excessivamente severa, que assim sempre se deverá ter como justa – mais tendo determinado o cumprimento do remanescente de prisão, resultante do desconto da pena já expiada com reporte a crimes integrantes do cúmulo jurídico aqui controvertido, em regime de permanência na habitação –, é, pois, de sufragar, in totum, quanto à questão neste momento controvertida, alusiva ao quantum da pena única aplicada ao arguido AA, o constante do douto acórdão recorrido;

19. Entende o recorrente que «[a] decisão recorrida é, também, ilegal na medida em que aplica uma proibição de contacto do arguido com menores de 16 anos durante o período do seu cumprimento de pena remanescente, “mormente” no âmbito do exercício das funções que ora exercer de terapias naturais, estendendo assim esta proibição a uma categoria geral e abstracta de pessoas, fora do âmbito do contexto em que ocorreram os factos provados», sendo que «[i]nexiste qualquer fundamento atendível, fáctico ou jurídico, que permita ao Tribunal a quo estender esta proibição de contactos do arguido com menores de 16 anos fora do contexto do exercício de funções profissionais que é o que acontece quando acrescenta a palavra “mormente” que perpassa a ideia de mera exemplificação/não taxatividade das situações em que a proibição de contactos opera», sucedendo que «[a] norma invocada pelo Tribunal a quo para sustento deste segmento decisório [artigo 43.º, n.º 4 alínea e)] não tem qualquer aplicação ao caso em apreço, pois tal norma pressupõe a proibição de contactos com pessoas individualizadas, o que em regra é dirigido às próprias vítimas das condutas criminosas apuradas»;

20. Comece-se por relembrar o que foi precisamente decidido nessa parte pelo tribunal a quo: «(…) proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores – n.º 4, als. d) e e) do citado normativo»; ora, nos termos do disposto no art.º 43.º, n.º 4, proémio, do Código Penal, «[o] tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: (…)»;

21. Antes de mais, cumpre referir que temos, assim, como certo, a saber, em face da utilização do termo «nomeadamente», que, fazendo apelo a palavras usadas pelo próprio recorrente, a previsão legal constante das diversas alíneas do mencionado n.º 4 constitui «mera exemplificação/não taxatividade» das regras de conduta a cujo cumprimento pode o tribunal subordinar o regime de permanência na habitação, nos termos e com as finalidades a que alude semelhante preceituado, desde que essas mesmas regras «representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir»;

22. Sendo certo que o art.º 52.º do Código Penal consubstancia preceituado legal de natureza idêntica, in casu, em matéria de regras de conduta a cuja observância pode o tribunal subordinar a suspensão da execução da pena de prisão, não sendo, igualmente, taxativas as hipóteses ali previstas, veja-se, a título meramente exemplificativo, o que se refere, a esse propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.07.2015, Processo n.º 129/14.8GAVLC.P1, Relatora: Maria Dolores da Silva e Sousa, acessível in www.dgsi.pt;

23. Ora, dúvidas não temos de que o decidido pelo tribunal a quo no que tange à aplicação do disposto no art.º 43.º, n.º 4, als. d) e e), do Código Penal está intimamente relacionado, em termos globais, com os fins preventivos almejados no caso concreto, sendo que cumpre o desiderato legal de afastar o delinquente da prática de futuros crimes, ao mesmo tempo que se verifica total exigibilidade de semelhante cumulação com a execução em regime de permanência na habitação pois que o determinado no douto acórdão recorrido encontra-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os aludidos fins;

24. Entende ainda o recorrente que «a decisão recorrida incorre na violação do disposto no art.º 61.º, n.º 4 do CP quando refere, ao transcrever o art.º 43.º, n.º 5 do CP, que quando a pena de prisão é aplicada em regime de prisão domiciliária, não há lugar a liberdade condicional»; ora, dispensando-nos aqui de mais alongadas e desnecessárias considerações, verifica-se que consta, efectivamente, do douto acórdão recorrido uma transcrição do art.º 43.º do Código Penal, sucedendo, porém, desde logo, que tal incluiu números e alíneas sem qualquer relevo para o caso sub judice; ora, é, por demais, manifesto que nada, absolutamente nada, foi apreciado com reporte à questão da liberdade condicional (nem poderia, logicamente, sê-lo, no âmbito do acórdão aqui controvertido), ou seja, semelhante questão não foi objecto de decisão ou fundamento do decidido, pelo que sempre será de desconsiderar, ab initio, qualquer pretensão nessa parte aduzida pelo arguido AA.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, acompanhando a resposta ao recurso e dizendo, designadamente:

“(…) Tentando reduzir ao que há a apreciar, temos que a questão da impossibilidade de concessão da liberdade condicional que decorre expressamente do conteúdo do artº 43º, nº 5, do Código Penal não tem aqui de ser apreciada.

Na verdade, se bem que se possa duvidar da bondade daquela disposição - veja-se o parecer da Procuradoria-Geral da República emitido a propósito do Projeto de Lei que conduziu à atual redação do preceito em questão, quando ali se refere o perigo de violação do princípio da igualdade, sendo que quanto maior a pena a cumprir maior será o desequilíbrio em termos de privação de liberdade entre quem cumpre pena de prisão (que tem sempre período de liberdade condicional) e de quem a cumpre a pena em permanência na habitação (em que inexiste liberdade condicional), e embora, por outro lado, exista jurisprudência que afasta a verificação de tal violação do princípio da igualdade (por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.9.2021, no processo 1266/20.5TXLSB-C.L1-3) [Relator João Lee Ferreira]--, o certo é que essa norma não pode ser objeto de apreciação no presente recurso, simplesmente porque não foi aplicada, muito menos em termos de (in)constitucionalidade, como pretendido pelo recorrente.

Também nenhuma apreciação merece a alegação efetuada quanto à divergência de entendimentos relativamente à qualificação jurídica dos factos pelos quais foi condenado.

Na verdade, a circunstância de alegar que, num caso que o recorrente qualifica como semelhante, apreciado pelo Tribunal da Relação de Évora, ter sido entendido estar-se perante diverso tipo de crime, punível com pena menos grave, não tem qualquer relevância aqui, pois que se reporta a decisão anterior já transitada em julgado, não podendo ser alterada neste recurso (aliás, o recorrente anuncia estar a ponderar interpor recurso para uniformização de jurisprudência).

O que releva para o caso é a pena concreta achada em sede de cúmulo e a abrangência da proibição de contactos estabelecida.

Ora, quanto a estas – e tal como referido na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público no Tribunal de Setúbal que se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos, concordando-se em absoluto com o seu conteúdo, forma muito completa e bem fundamentada como se mostra elaborada – não entendemos as mesmas como merecendo qualquer censura.

- Quanto à pena concreta obtida em sede de cúmulo:

Contesta o recorrente a pena, alegando, entre o mais, que «o factor de compressão utilizado pelo Tribunal foi desproporcional ao caso», para tal referindo que esse “fator de compressão” foi mais favorável no anterior cúmulo e que não foram tidos em conta, no acórdão sob censura, «i) a inexistência de antecedentes criminais do arguido antes dos factos provados; ii) o facto do último dos actos praticados com relevância criminal datar de há mais de 12 anos sem que até à data tenha sido cometido qualquer outro crime ou haver notícia do cometimento de qualquer outro ilícito; iii) o facto de o arguido ter cumprido integralmente uma pena de prisão no EP de 4 anos e 9 meses, de forma ininterrupta, sem gozo de uma única medida de flexibilização da pena; iv) o facto de o arguido estar em liberdade desde Maio de 2020 sem que desde então tenha cometido qualquer ilícito, mesmo em pela liberdade; v) o facto de o arguido ter encontrado nova ocupação profissional distinta da Advocacia, sendo que os actos pelos quais foi condenado surgiram no exercício dessa referida profissão».

Ora, todos esses aspetos foram tidos em conta pela decisão recorrida, motivos que terão levado a que pena obtida ficasse distante do máximo aplicável (10 anos e 3 meses de prisão) antes ficando mais próxima do mínimo (3 anos e 6 meses de prisão), mas sendo ainda que, como refere o MP em 1ª instância, se por um lado as exigências de prevenção geral são sempre, em face dos padrões éticos vigentes na comunidade, bastante elevadas em matéria de crimes de abuso sexual de crianças, também, por outro lado, é de aceitar, não obstante a personalidade do arguido revele, conforme espelhado nos factos objeto de condenação, uma particular tendência para a prática de ilícitos criminais de semelhante natureza, que algumas mudanças entretanto ocorridas na vida do mesmo sujeito processual possam ter feito diminuir aquelas que seriam exigências de prevenção especial igualmente elevadas para ‘meramente’ medianas.

E – mais uma vez como referido pelo MP em 1ª instância – importa frisar, em sentido dissonante do que resulta expendido em sede de recurso, que a passagem, em termos de atividade profissional, da advocacia para a área das terapias naturais, não faz per si minguar de modo relativamente significativo as exigências de prevenção especial, sendo certo que não só aquela primeira atividade não implica a prática de atos que pela sua natureza sejam facilitadoras ou propiciadoras do cometimento de crimes como os que estão aqui em causa, como também as mencionadas terapias naturais permitem um contacto próximo com pessoas em ambiente de alguma intimidade que não faz arredar totalmente o risco de reincidência na prática de novos factos criminalmente relevantes.

- Daqui que, em termos de pena aplicada – para mais quando o cumprimento ocorrerá em regime de permanência na habitação, como requerido pelo próprio arguido/recorrente – se entenda nada haver a criticar ao decidido, devendo o recurso ser julgado improcedente.

Quanto à regra de conduta - limitação de contactos:

Mais uma vez estamos em completa concordância com o entendimento expresso pelo MP junto do tribunal recorrido, quando refere pela adequação da regra de conduta imposta ao arguido, por estar a mesma, não só aplicada em obediência às exigências legais, como, especialmente, por a limitação de contactos visar um dos objetivos pretendidos pelo ordenamento jurídico penal: a prevenção.

Com efeito, atentos os factos praticados pelo arguido e que levaram às suas condenações, há que tentar por todos os meios afastá-lo da prática de novos crimes, sendo aquela medida uma das que nesse sentido se poderá mostrar mais eficaz. Assim, também aqui se aplica e se segue o entendimento de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244 ), quando o mesmo refere que «A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena», integrando-se nesta ‘medida da pena’ a regra de conduta aqui em questão, por a mesma visar aquele mesmo fim ressocializador.

Recorde-se que a medida não se aplica, como não podia deixar de ser, aos filhos e que é para vigorar enquanto o arguido se mantiver em regime de permanência na habitação, ou seja, enquanto estiver privado de completa liberdade, sendo uma das consequências admissíveis nessa situação. O utilizar-se, na decisão recorrida, a expressão «mormente» com a qual o arguido não concorda, por traduzir uma ideia de proibição generalizada, não importa qualquer ilegalidade, devendo mesmo entender-se como pretendendo dizer aquilo que o arguido entendeu: a proibição de contactos com todos os menores de 16 anos de idade (bem como com todos os demais menores, como ficou decidido).

Na verdade, o artº 43º, nº 4, do Código Penal é claro ao indicar meros exemplos de regras de conduta a aplicar nestes casos, sendo até que – ao contrário do alegado – se pode entender que o decidido cai na previsão da sua alínea e), quando ali se refere o não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas, sendo estas as que tiverem idade igual ou inferior a 16 anos de idade.

- E daqui que, também quanto a este aspeto, não mereça crítica o decidido, devendo manter-se na íntegra a decisão recorrida.”

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, é o seguinte:

“1.1. Factos Provados

a) Nos presentes autos, o arguido foi condenado pela prática em autoria material, em trato sucessivo, de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, por acórdão de 11 de Marco de 2019, transitado em julgado em 05 de Janeiro de 2022:

São os seguintes factos que para o efeito se consideram:

(…) 10.º - Em datas não concretamente determinadas, entre os anos de 2007 e 2010, o arguido, quando se encontrava a sós, no seu gabinete, com a menor CC, por diversas vezes, com as mãos, tocava-a nas pernas, bem assim na zona genital, por baixo da roupa que tinha vestida, cheirando, depois, algumas vezes, os seus próprios dedos.

11.º - Costumando a menor CC ir ao escritório do arguido usando calças, este desabotoava-as, introduzia as mãos por dentro das mesmas e mexia então na zona genital daquela.

12.º - Nessas ocasiões o arguido dava à menor canetas ou lápis de cor e folhas brancas para fazer desenhos e sentava-se ao lado da mesma.

13.º - Os períodos de tempo em que se encontravam sozinhos, tinham a duração, em média, de cerca de meia hora.

14.º - Tendo corrido termos no Tribunal de Família e Menores de Sines relativamente à menor CC o Processo de Promoção e Proteção com o n.º 510/06.6..., veio o arguido a ser nomeado patrono à referida DD com vista a representá-la em juízo no dirimir de questões a tal atinentes.

15.º - Enquanto a menor estava no gabinete do arguido nas circunstâncias supra descritas, a DD ficava na sala de espera.

16.º - Nesse período, em data não concretamente determinada, arguido ofereceu um telemóvel à menor.

17.º- O arguido foi defensor oficioso da EE (mãe da menor CC) em meados do ano de 1996, num processo de divórcio da mesma com o seu ex-marido de apelido FF.

18º - Posteriormente manteve contatos vários com a referida EE, designadamente devido a problemas vários em casa de EE com os seus filhos menores (filhos de EE e irmãos de CC) e fruto de sinalização da família pela CPCJ, nomeadamente o irmão mais velho de CC, de nome GG) veio a ser desencadeado um processo de promoção e proteção (PPP) com o n.º 510/06.6..., relativamente ao filho GG

19.º A EE voltou então (anos depois do divórcio) ao contacto do arguido pedindo-lhe que representasse o filho GG no âmbito de alguns processos tutelares educativos.

20.º - Em meados de 2006 o arguido assumiu a representação do menor GG, enquanto defensor oficioso indicado pela mãe (EE).

21.º - Paralelamente foi desencadeado um processo de promoção e proteção relativamente a esse menor, por a CPCJ ter sinalizado o mesmo e a sua família como apresentando uma situação de risco.

22.º - Nesse contexto que nos anos de 2006/2007, a EE foi por diversas vezes ao escritório do arguido para se aconselhar acerca da situação do seu filho GG e do processo de PPP.

23.º - Sendo que, em algumas dessas vezes, levou consigo os seus filhos GG e CC.

24.º - Os quais, enquanto a EE conferenciava com o arguido na sala deste, aguardavam no corredor do escritório.

25.º - Ao atuar da forma supra descrita, quis o arguido praticar sobre as menores HH e CC atos de natureza e conteúdo sexual, tocando em zonas do corpo daquelas que constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade das mesmas menores, o que logrou concretizar.

26.º - Agiu o arguido com o propósito de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais e com a vontade de dominar a liberdade de autodeterminação sexual das referidas menores, tendo então perfeito conhecimento da idade destas, bem assim de que, em razão de tal idade, não possuía a mesma a capacidade e o discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente.

27.º - Mais sabia o arguido que, com as suas condutas, molestava a integridade psicológica e emocional e ofendia os sentimentos de pudor e intimidade daquelas menores, prejudicando, como tal, gravemente, o livre e são desenvolvimento da consciência sexual das mesmas.

28.º - Quanto à menor CC o arguido persistiu naquele propósito, sucessivamente renovado, durante todo o período em que foi concretizando os atos supra referidos, aproveitando-se do fácil contacto que conseguia manter com ela.

29.º - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


*


b) No processo n.º 206/12.0... do Juízo Central Criminal desta Comarca – J1 – foi o arguido condenado por acórdão de 14 de Julho de 2014, transitado em julgado em 04 de Março de 2015 pela prática, em autoria material e na forma consumada, na pessoa de II, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; pela prática, em autoria material e na forma consumada, na pessoa de JJ, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; pela prática, em autoria material e na forma consumada, na pessoa de BB, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

E operando o cúmulo jurídico das penas referidas, nos termos do art.º 77.º, n.º 1, do Código Penal, na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;

A matéria de facto que ali se julgou provada é a seguinte:

1. Em dia e mês concretamente não apurado, mas no Verão do ano de 2006, sob o pretexto de ir abrir um ginásio para crianças desfavorecidas que necessitassem de exercício físico, AA convenceu KK a levar a filha dela, II, nascida a ... de ... de 1998, então com 8 anos de idade, ao seu escritório;

2. Acreditando no que AA lhe dissera, KK levou, nesse mesmo dia, a sua filha II ao referido escritório, tendo aquele lhe dito que pretendia falar a sós com a II;

3. Nesta sequência, KK deixou a sua filha II com AA e saiu para o exterior do escritório;

4. Acto contínuo, no corredor do escritório, AA sentou-se numa secretária com computador, em frente deste, e perguntou a II o que ela pretendia visualizar no mesmo;

5. Depois de II responder, AA pediu à mesma que se sentasse ao seu colo;

6. Inicialmente II recusou-se, mas, decorrido algum tempo, acabou por se colocar de joelhos sobre o colo de AA, a fim de ficar de frente para o monitor;

7. Após breves instantes, AA levantou a saia de II e colocou as mãos no rabo da menor, sobre as cuecas, acariciando-o;

8. Entretanto, a menor começou a chorar, tendo AA dito à mesma que não lhe iria fazer mal, tendo saído de ao pé da menor a fim de ir buscar uma folha de papel para que a mesma fizesse desenhos;

9. No ano de 2008, LL estava a divorciar-se de MM;

10. AA, ... que se encontrava a tratar da documentação necessária à concretização do divórcio, contactou LL, solicitando a comparência desta no seu escritório, sito na Rua ..., em ..., no dia 9 de Abril de 2008 e que levasse os filhos;

11. No referido dia, depois de uma curta reunião, AA disse a LL que pretendia falar sozinho com cada um dos filhos dela, a fim de apurar como os mesmos se encontravam;

12. Apesar de ter estranhado o pedido, LL consentiu que os seus filhos falassem sozinhos com AA;

13. Depois de conversar com NN, nascida a ... de ... de 1999, OO, nascida a ... de Agosto de 2001, entrou no gabinete para conversar com AA;

14. No interior do gabinete, AA pediu à menor JJ que escrevesse o nome dela;

15. Nesse momento, AA encontrava-se sentado à sua secretária, estando JJ de pé, em frente da mesma;

16. A determinada altura, AA levantou-se e posicionou-se de pé, atrás de JJ, colocando uma das mãos sobre o rabo da mesma, assim obtendo prazer;

17. Enquanto a menor JJ escreveu o nome, AA manteve a mão no rabo da mesma;

18. Após, AA deu um beijo na cara da menor JJ e despediu-se da mesma;

19. Ainda no ano de 2008, AA conversou com PP perguntando-lhe se não se importava que a sua filha, BB, nascida a ... de ... de 2000, passasse um fim-de-semana com ele e com os seus filhos no ..., ao que aquela respondeu afirmativamente;

20. Nesta sequência, no fim-de-semana de 21 e ... de ... de 2008, AA levou BB com ele para o ...;

21. Chegados ao ..., não se encontravam os filhos de AA, tendo este optado por ficar durante o fim-de-semana com a menor BB;

22. No sábado, dia ... de junho de 2008, AA e BB almoçaram no “M.........., após o que foram às "compras", tendo AA comprado um biquíni, uma saia e uma mala de maquilhagem para BB e, depois, foram à praia;

23. Na noite de 21 para 22 de Junho o arguido deixou a BB dormir no beliche existente num dos quartos e foi dormir para a cama existente noutro quarto;

24. Porém, durante essa mesma noite, AA dirigiu-se ao beliche onde a BB se encontrava deitada, e, durante algum tempo, acariciou com as mãos as mamas e a vagina da BB, num primeiro momento sobre as roupas de cama e, depois, sob as mesmas roupas, obtendo desse modo prazer;

25. Ao actuar da forma descrita, em três ocasiões, com consciência de que JJ, BB e II tinham menos de catorze anos de idade, AA agiu com o propósito concretizado de obter prazer sexual;

26. AA tinha consciência de que as zonas do corpo das menores em que tocou constituem património íntimo e uma reserva pessoal da sexualidade delas, que punha em causa os seus sãos desenvolvimentos da consciência sexual e de que ofendia os respectivos sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, o que também pretendeu e fez;

27. AA actuou de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas;


*


c. Mais se provou:

Natural de ..., o arguido AA, nasceu integrado numa fratria de dois elementos. O arguido é o último, por ordem de nascimento, tendo decorrido o processo de crescimento e desenvolvimento junto do agregado familiar de origem, dentro de um contexto normativo e sem problemáticas relevantes associadas. A condição económica foi-nos referida como confortável, dado que o progenitor era funcionário da C...... e a progenitora exercia atividade como costureira em casa.

Frequentou o ensino em idade própria e com 19 anos de idade ingressou no ensino superior, no Curso de Direito, deslocando a sua residência para ..., de forma a garantir o prosseguimento de estudos, onde se manteve durante cinco anos, até à conclusão do mesmo. Após concluir o curso, cumpriu o Serviço Militar Obrigatório, como oficial do exército.

Aos 25 anos de idade contraiu matrimónio e desta relação possui dois filhos, atualmente com ... e ... anos de idade respetivamente. Inicialmente, residiu cerca de três anos na zona de ..., tendo regressado a ... com a esposa e o filho mais velho.

Este segundo filho, apresenta problemáticas a nível clínico, tendo sido diagnosticado, ainda em criança, inicialmente com autismo e posteriormente com ..., situação que se encontra agravada com o isolamento de que é vítima e a dependência dos progenitores dada a dificuldade de estabelecer relacionamento social.

Pouco tempo depois do nascimento deste, deu-se a separação conjugal, tendo a sua ex-mulher e filhos regressado para ..., onde mantêm residência na atualidade e o arguido permanecido em ....

O arguido manteve sempre bom relacionamento com a ex-mulher e com os filhos.

Em 2006, conheceu a atual esposa, QQ, de nacionalidade brasileira e em 2007, reorganizou-se familiarmente, contraindo matrimónio com esta, tendo o casal permanecido a viver em ....

Em 2010, a esposa, ..., regressou ao Brasil, alegadamente por questões laborais e por lá permanece até à data atual.

Desta relação possui um filho de 7 anos de idade, que apenas conheceu após a sua reclusão.

Entre o ano 2007 e 2010, o arguido manteve cargo político, como Presidente da Comissão Política Concelhia do Partido ... de ..., mantendo nesse período forte ligação tanto com o partido como com a vida política.

O arguido teve o primeiro contacto com o Sistema Prisional, em ... . ....2014, à ordem do processo 206/12.0..., tendo cumprido a totalidade a pena de 4 anos e 9 meses de prisão, sem ter beneficiado de medidas de flexibilização da mesma, tendo sido libertado em ........2020.

Restituído à liberdade, ficou a viver em ..., na casa de família, sozinho, mas contando com o apoio incondicional da irmã, que reside muito próximo do mesmo, até agosto desse ano (2020), altura em que foi para o Brasil, ..., para junto da esposa e do filho, de forma a recuperar os laços familiares, nomeadamente a reaproximação do casal, e possibilitar o encontro com o filho de ambos para conhecer este pessoalmente.

No Brasil, o arguido realizou Formação a nível de Terapias Naturais, nomeadamente na ... e na ..., desenvolvendo atualmente atividade profissional, como trabalhador independente nesta área, quer em Portugal, quer no Brasil, concomitantemente com a atividade de Consultor Jurídico, tendo suspendido inscrição da função de ... na O.... ... ......... no ano 2018.

Aquando da prática dos factos por que veio a ser condenado, o arguido encontrava-se a residir em habitação propriedade da família e exercia a atividade de ....

À data atual, encontra-se a residir em ..., sozinho, dado a esposa e o filho de ambos se encontrarem a residir no Brasil, a expandir a sua atividade profissional no ramo das terapias naturais, deslocando-se muitas vezes para a zona de ..., onde aluga espaço para exercer essa atividade.

A sua ex-mulher apresenta, neste momento, situação clínica fragilizada, por doença do foro oncológico e necessita de efetuar tratamentos de quimioterapia/radioterapia, pelo que o arguido se afigura como principal cuidador do filho, prestando os cuidados necessários a este, devido ao Síndrome de Asperger que padece e que o torna dependente na realização de algumas atividades da vida diárias, não aceitando o apoio de outras pessoas para além dos familiares, devido ao comportamento antissocial, característico da sua problemática de saúde.

O arguido apresenta problemas a nível cardíaco e hipertensão, sendo acompanhado na consulta da especialidade, no Hospital ... e Hospital ..., em ... e na Clínica ..., na ....

O arguido ocupa ainda os tempos, nas áreas dos Mercados Financeiros, Direito Comercial e na área das Medicinas Alternativas/ Naturais.

Em termos futuros perspetiva, a possibilidade de organizar eventos/viagens entre Portugal e Brasil, para proporcionar aos clientes experiências a nível de lazer e a nível medicinal/terapêutico, ponderando viver entre estes dois países.

Durante o cumprimento da pena de prisão, o arguido esteve sujeito a dois processos disciplinares.

Em meio prisional o arguido optou por investir no ensino, em Unidades de Formação de Curta Duração de Animação Sociocultural e de Teatro. Frequentou também o ginásio do Estabelecimento Prisional e grupos de voluntariado.

Durante o percurso prisional contou com o apoio emocional da esposa, que apesar da distância, dado encontrar-se a viver no Brasil, mantinha contacto via telefone com regularidade e da irmã, beneficiando regularmente de visitas desta última, de outros familiares e de amigos.

O arguido não regista outros antecedentes criminais.

(…)

1.4 – Do Direito

a) - Do cúmulo jurídico de penas.

Estipula o art.º 77.º, n.º 1 do Código Penal que: “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena (…)”.

Por sua vez, determina o art.º 78.º n.º 1 do mesmo diploma que “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”

Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que o disposto no n.º 1 só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.

E ainda no seu n.º 3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores, sendo as penas acessórias e as medidas de segurança sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis – n.º 4.

Com efeito, a exigência de realização de cúmulo jurídico em caso de conhecimento superveniente de concurso obedece às mesmas regras que se encontram estabelecidas para o cúmulo jurídico a realizar no momento da condenação por uma pluralidade de crimes e consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Conforme refere o Acórdão do S.T.J. de 15.3.2007, acessível em www.dgsi.pt «1 – O momento decisivo para a verificação da ocorrência de um concurso de crimes a sujeitar a uma pena única, segundo as regras fixadas pelo art. 77.º, n.ºs 1 e 2, aplicáveis também ao conhecimento posterior de um crime que deva ser incluído nesse concurso, por força do art. 78.º, n.º 1, é o trânsito em julgado da primeira condenação. 2 – Os crimes cometidos posteriormente a essa decisão transitada, constituindo assim uma solene advertência que o arguido não respeitou, não estão em relação de concurso, devendo ser punidos de forma autónoma, com cumprimento sucessivo das respetivas penas. 3 – Orientação diversa, consagrando o chamado cúmulo por arrastamento, como já foi advogado por jurisprudência também deste STJ, sobretudo em período anterior a 1997 não se coaduna com a teleologia e a coerência internas do ordenamento jurídico-penal, criando a confusão entre as figuras do concurso de crimes e da reincidência.» (in ww.dgsi.pt) (neste sentido, Acórdãos do STJ de 7/2/2002, in www.dgsi.pt, de 17/3/2004, in CJ-Acs. STJ T. 1.º 2004, p. 229 e segs, que faz uma recensão crítica da jurisprudência deste Tribunal, de 19.12.2007 e Acórdão da Relação de Coimbra de 13.6.2012, in www.dgsi.pt).

Por isso, o trânsito em julgado de uma condenação é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois. Por outro lado, vimos acompanhando o entendimento referido no Acórdão do STJ de 15.4.2010 (Processo n.º852/03.2PASNT.L1.S1 – 3ª secção), segundo o qual a «A alteração legislativa dada pela Lei 59/2007, de 04-09, ao n.º 1 do art. 78.º do CP, foi inquestionavelmente no sentido de incluir no cúmulo as penas cumpridas, que serão descontadas na pena única, como expressamente se dispõe no texto legal. Por força desse desconto, a inclusão dessas penas não envolve nenhum prejuízo para o condenado, podendo, ao invés, representar um significativo benefício. II – Mas a situação é diferente relativamente às penas prescritas ou extintas. Embora a letra da lei aparentemente consinta a inclusão, essas penas devem ser excluídas. É que, se elas entrassem no cúmulo, interviriam como factor de dilatação da pena única, sem qualquer compensação para o condenado, por não haver nenhum desconto a realizar. III – Ora, se essas penas foram apagadas da ordem jurídico-penal, por renúncia do Estado à sua execução, renúncia essa definitiva, recuperar tais penas, por via do concurso superveniente, seria subverter o carácter definitivo dessa renúncia. Seria, afinal, condenar outra vez o agente pelos mesmos factos, seria violar frontalmente o princípio non bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP. Consequentemente, há que excluir da pena conjunta as penas prescritas e extintas que entraram no concurso» (in www.stj.pt).

Por fim, e no que respeita à punição do concurso de crimes, o legislador português optou pelo sistema da pena única, ou pena do concurso, dogmaticamente justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do arguido (cfr. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1ª Edição, 1993, pág. 280, Jorge de Figueiredo Dias). Com efeito, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes praticados pelo arguido é, justamente, a sua personalidade, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário (cfr. Código Penal Anotado, I vol., Editora Rei dos Livros, 2ª Edição, 1997, pág. 610, Manuel Leal-Henriques, Manuel Simas Santos).

Por conseguinte, a pena do concurso deverá resultar do enquadramento geral dos factos, como se a sua análise nos fornecesse, na expressão do Prof. Figueiredo Dias, a gravidade do ilícito global.

No que respeita à personalidade do agente, atender-se-á, sobretudo, ao facto de as condutas por si empreendidas resultarem de uma particular tendência para a prática de ilícitos criminais ou, pelo contrário, resultarem de condutas ocasionais ou que não revelem uma personalidade propensa à prática de crimes, com particular dificuldade em pautar-se de acordo com a ordem jurídica, “maxime”, a ordem jurídico-penal. (cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 291.) Só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (neste sentido, cf. Ac. STJ de 28.4.2010, in www.stj.pt) e pela sua fundamentalidade que na formação da pena conjunta seja refletida a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade».

A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares.

Como assim é, é de levar em conta que na operação de formação da pena única se parte da pena mais elevada, adicionando-se uma parcela da soma das restantes, de acordo com um determinado fator de compressão.

Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

Na determinação da pena única, ter-se-á mais uma vez presente que as finalidades de aplicação de uma pena residem, em 1ª linha, na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do arguido na comunidade; por outro lado, não se esquecerá que a pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

De acordo com disposto no art. 40.º, n.º 1 e 2 do C. Penal a aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, a qual em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa.

Desta forma, a pena há-de ser determinada (dentro dos limites mínimo e máximo fixados na lei) mediante critérios legais, quais sejam, em primeiro lugar, o da culpa do agente que fixa o limite máximo inultrapassável da pena, intervindo depois (ao mesmo nível) as exigências de prevenção, especial e geral (a chamada margem de liberdade) (Ac. STJ, 24/5/95, CJSTJ, T.II, p.210 e Ac. RC, 17/1/96, CJ, T. I, p.40).

O limite mínimo da pena há-de ser dado pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, sendo a prevenção especial de socialização que a vai determinar, em último termo (cf. Ac. STJ, 24/5/95, CJSTJ, T.II, p.210).

Definidos todos estes parâmetros, a necessidade da pena única a impor ao arguido AA a respeitar a referida proporcionalidade constitui exigência que resulta, além do mais, do princípio que decorre desse art. 18.º, n.º 2, da CRP.

E, ponderando os fatores referidos no art. 71.º do Código Penal, temos do cotejo dos factos que se deram por apurados:

- que os mesmos ocorreram em datas dos anos de 2006, 2007 de 2007 a 2010 (repetição de comportamentos que se subsumiram sempre ao mesmo tipo de ilícito) ou seja, desde o último facto, volvidos 12 anos;

O arguido encontrou nova motivação profissional, deixou o exercício da advocacia, tem o apoio da família, sendo ponto de apoio da sua ex-mulher e dos filhos com quem mantém boa relação e dispõe no Brasil do apoio da sua esposa e é lá que vive o filho mais novo.

Em meio prisional o seu percurso foi o do sentido de se integrar e de continuar a se auto-formar, dedicando-se a atividades que o ocuparam e que continua a cultivar.

O arguido evidencia o desejo de mudança no sentido de padrão de vida normativo, em que se formou, em torno do trabalho nas áreas das terapias naturais e da consolidação dos relacionamentos familiares que mantém.

As exigências de prevenção especial revelam-se a nosso ver medianas (acreditando-se que o arguido, não repita comportamentos que ditaram a sua condenação e o cumprimento da pena de prisão e que estas na sua integralidade ocorreram no desempenho da atividade de advocacia que o arguido deixou de exercer), sendo as exigências de prevenção geral elevadas face ao forte alarme social sempre associado a crimes da natureza das condenações, como se ponderou na determinação das penas parcelares.

Desta forma e justamente tendo presentes os sobreditos critérios, atendendo às regras previstas para a elaboração do cúmulo jurídico, num limite mínimo de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e no limite máximo de 10 (dez) anos e 3 (três) meses de prisão, entende este Tribunal como adequada, a aplicação ao arguido AA, da pena única que se fixa em 6 (seis) anos de prisão e 6 (seis) meses de prisão, medida que se obtém pela consideração de um fator de compressão próximo da metade (1/2) das penas parcelares fixadas que se adicionam à mais elevada.


*


Requer o arguido que no cúmulo a realizar, e a aplicar-se uma pena única que implique o cumprimento de alguns meses de prisão pelo arguido, deve ser sempre ponderada (e dada primazia) à possibilidade de cumprimento do remanescente da pena que ainda haja a cumprir, nos termos do disposto no art.º 43.º, n.º 1, alínea b), ex vi art.º 81.º, ambos do CP.

Invoca, por um lado, motivos de ressocialização, mas também motivos de saúde, pois que o arguido é seguido em cardiologia e padece de doença cardíaca.

Vejamos.

O artigo 43.º do Código Penal, que estabelece o regime de permanência na habitação, diz-nos que:

1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;

b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;

(…)

2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.

3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.

4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:

a) Frequentar certos programas ou atividades;

b) Cumprir determinadas obrigações;

c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;

d) Não exercer determinadas profissões;

e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;

f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.

5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.

Como vemos, o regime de permanência na habitação, como forma de cumprimento da pena de prisão, introduzido pelo artº 2 da Lei 94/2017, exige para a sua aplicação, para além do requisito substancial que o tribunal conclua que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, os requisitos formais traduzidos no consentimento do condenado, e a pena de prisão não seja superior a dois anos, e requisitos que podemos apelidar de instrumentais, traduzidos na possibilidade de instalação dos meios técnicos de controlo à distância.

Verificados tais requisitos ou em vista da sua verificação o condenado pode requerer a sua aplicação, para o que a lei não determina nenhum prazo para o fazer, o que pressupõe que o pode fazer em qualquer momento, obviamente desde que ainda ocorra a execução da pena ou seja esta não esteja já extinta.

Perscrutando a factualidade que se deu por apurada respeitante à sua trajetória pessoal e sabendo-se que dos seis anos e seis meses de prisão, que corresponde à pena única agora concretamente determinada o arguido expiou já integralmente os 4 anos e 9 meses de prisão, é de formular a conclusão que o cumprimento do remanescente no domicilio com sujeição a vigilância eletrónica realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de execução da pena, tanto mais quanto o arguido padece de doença cardíaca para a qual se encontra sujeito a tratamento e presta auxilio à sua ex-mulher atualmente doente, perante a condição de que padece o seu filho mais velho.

O regresso do arguido a meio prisional seria, em nossa perspetiva, contraproducente e visaria diretamente as expetativas de ressocialização do arguido condenado.

Assim, tendo em conta a verificação do requisito substancial, que o arguido requereu expressamente o cumprimento do remanescente da pena em regime de permanência na habitação, que esta possui as condições para que sejam instalados os meios de fiscalização e bem assim que, nada obsta, a nosso ver à execução da prisão em regime de permanência de habitação, na presente operação, dado constituir uma forma de execução da pena de prisão já decidida ou concomitantemente decidida, o Tribunal decide, à luz do supra citado normativo (artigo 43.º, n.º 1, al. b) do Código Penal) que o arguido AA executará em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, o remanescente de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal e que se cumula com a proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores – n.º 4, als. d) e e) do citado normativo.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam a: (a) medida da pena única e (b) medida de proibição de contactos com menores de 16 anos de idade.

Consigna-se que o objecto do recurso assim definido sofreu necessariamente a compressão decorrente das fronteiras de conhecimento decorrentes da própria decisão recorrida e das matérias efectivamente tratadas no acórdão.

Precisando, fica fora do objecto de conhecimento em recurso toda a temática respeitante a liberdade condicional. O recurso incide sobre a decisão impugnada, ou seja, o acórdão cumulatório. E assim, só é passível de impugnação a matéria que foi realmente tratada e conhecida no acórdão cumulatório, tanto mais que inexiste nele qualquer omissão de pronúncia, que em momento algum do recurso foi sequer invocada.

2.(a) Da medida da pena única

O arguido está condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, que procedeu à aglutinação das penas parcelares de 3 anos e 6 meses, 2 anos, 2 anos e 2 anos e 9 meses de prisão, penas estas correspondentes a quatro crimes de abuso sexual de criança, de que foi autor. Os factos delituosos ocorreram em 2006 e 2007 e de 2007 a 2010.

Num cúmulo jurídico anterior, que englobara todas as mencionadas parcelares (prisão de 3 anos e 6 meses, de 2 anos e de 2 anos) à excepção dos 2 anos e 9 meses de prisão aplicados nos autos e agora aditados, fora o recorrente condenado numa pena única de 4 anos e 9 meses de prisão efectiva, que cumpriu integralmente.

Assim, numa primeira observação, constata-se que a adição da nova parcelar de 2 anos e 9 meses de prisão se traduziu agora numa elevação da pena única anterior, de 4 anos e 9 meses de prisão (efectiva), para 6 anos e 6 meses de prisão (necessariamente efectiva).

E constata-se que foi ainda determinado o cumprimento do remanescente da prisão (descontada a prisão que o arguido havia cumprido) em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, cumulada com a “proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores”.

Argumenta o recorrente que a medida da pena única determinada no cúmulo superveniente é manifestamente excessiva e desproporcionada ao caso e à realidade do arguido; que na moldura abstracta de 3 anos e 6 meses a 10 anos e 3 meses de prisão o factor de compressão utilizado pelo Tribunal foi desproporcional; que no cúmulo inicial fora utilizado um factor de compressão de menos de 1/3, quando não militavam a favor dos arguidos nem metade das circunstâncias que hoje se verificam e estão provadas no acórdão; que no acórdão recorrido o factor de compressão, em lugar de mais favorável, aproximou-se do 1/2 de valoração das penas parcelares; que não foram devidamente considerados a inexistência de antecedentes criminais do arguido antes dos factos provados, o decurso de doze anos sem cometimento de outro ilícito, o cumprimento integral de 4 anos e 9 meses de prisão no EP, de forma ininterrupta e sem gozo de medidas de flexibilização da pena, o facto de o arguido estar em liberdade desde Maio de 2020 mantendo boa conduta, o facto de ter encontrado ocupação profissional distinta da advocacia, sendo que os actos das condenações surgiram no exercício dessa profissão.

Conclui peticionando a redução da pena única para 4 anos e 9 meses de prisão, ou seja, para a mesma pena aplicada no anterior cúmulo e já cumprida.

O Ministério Público, na resposta e no parecer, pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão recorrida, contrapondo que os motivos que terão levado a que pena obtida ficasse distante do máximo aplicável e mais próxima do mínimo são aquelas que o arguido refere em recurso, que as exigências de prevenção geral são bastante elevadas em matéria de crimes de abuso sexual de crianças, aceitando no entanto que “algumas mudanças entretanto ocorridas na vida do arguido possam ter feito diminuir as exigências de prevenção especial igualmente elevadas para meramente medianas”.

Da análise dos factos e da decisão, no confronto da argumentação desenvolvida no recurso, adianta-se que inexiste razão que possa justificar, em concreto, a manutenção da pena única na mesma medida da pena única precedentemente aplicada. A situação sub judice não convoca a necessidade de uma ponderação de qualquer eventual efeito “neutralizador” sobre a pena agora aditada, no novo cúmulo jurídico, pois das circunstâncias de facto nada se retira nesse sentido.

Inexistindo norma penal que o proíba, e não sendo embora o peticionado pelo recorrente, recorde-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a propósito da inviabilidade da descida da nova pena única em resultado de uma reformulação de cúmulo jurídico para aditamento de parcelar(es) devido a conhecimento superveniente do concurso de crimes. As razões da inviabilidade dessa descida convergem também no sentido da excepcionalidade – se bem que não impossibilidade - da manutenção da nova pena única na mesma medida da pena anteriormente aplicada.

Veja-se o acórdão do STJ de 15-12-2021 (Rel. Nuno Gonçalves) em cujo sumário pode ler-se: “do conhecimento posterior de um concurso de infrações que inclui outro ou outros crimes pelos quais o agente foi condenado em outra ou outras penas de prisão não deve resultar a diminuição da pena única aplicada em anterior cúmulo jurídico”. E na fundamentação, justificou-se: “Pena inferior à que foi aplicada em anterior cúmulo jurídico, representaria forte incentivo à criminalidade. O arguido resultava “premiado” com a redução da pena única anteriormente aplicada em razão de ter cometido mais crimes pela anódina circunstância de somente se descobrirem depois. Estando assente que o cúmulo jurídico de penas de prisão em caso de concurso de crimes de conhecimento superveniente deixa sem efeito, inutiliza a pena única anteriormente aplicada pelo cometimento de uma parte dos crimes do mesmo concurso, certo é também que, no novo cúmulo jurídico não é possível alterar os factos e a sua qualificação jurídica, a condenação, a medida de cada pena singular, nem tampouco fazer intervir o instituto da atenuação especial da pena (atenuação especial de moldura do concurso). Como se disse, não fora o conhecimento tardio de que o concurso incluía mais crimes cuja pena não foi considerada no anterior cúmulo jurídico e, dúvidas não subsistem que a consequência jurídico-penal da responsabilidade do arguido não seria inferior ao quantum da pena única ali estabelecida, fixada já por aplicação do critério especial do artigo 77º n.º 1 (parte final) do Código Penal. Se a anterior pena única é irrelevante para a moldura penal do concurso de crimes, se o condenado não deve ser prejudicado por se descobrir depois que no mesmo concurso de infrações se incluíam mais crimes que os que foram considerados na condenação de um primeiro cúmulo jurídico das penas parcelares de uma parte dos delitos dessa unidade jurídica, também não deverá resultar beneficiado. Como se disse, o tribunal que em anterior cúmulo jurídico fixou a medida da pena conjunta englobando somente parte da multiplicidade dos crimes do concurso, se tivesse conhecido dos restantes crimes, logicamente, racionalmente e também juridicamente, não aplicaria pena única inferior.”

A argumentação serve também aqui para justificar a necessidade de uma explicação acrescida, solidamente consistente no que à base factual respeita, para uma eventual opção de manter a mesma pena única anteriormente fixada, como peticiona o recorrente, na reformulação do cúmulo superveniente que procede a adição de pena(s). E essa justificação solidamente consistente não se descortina aqui.

Inexiste base factual que permita fixar a nova pena única no ponto peticionado pelo recorrente, ou seja, na medida já fixada no cúmulo anterior. No entanto, a pena fixada no acórdão consentirá alguma redução, pelas razões que se passam a explicar.

Procede-se então à sindicância da medida da pena única tendo em conta todas as parcelares que correctamente integraram a adição jurídica de penas, integração que não se mostra impugnada no recurso. E sendo certo que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena, e que a sindicabilidade da medida concreta da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197), há que reconhecer que a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão se apresenta algo excessiva e desproporcionada. E adianta-se que uma pena de 5 anos e 9 meses de prisão satisfaz ainda plenamente as exigências de prevenção geral e especial, mostrando-se mais adequada ao grau de culpa do arguido.

Deve por isso ser a aplicada.

Retira-se dos factos provados do acórdão que no cúmulo jurídico anterior, que englobara todas as mencionadas parcelares à excepção dos 2 anos e 9 meses de prisão aplicados nos autos e agora aditados, o recorrente fora condenado na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão efectiva (que englobou as parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão, 2 anos de prisão e 2 anos de prisão), pena que cumpriu integralmente. E que a adição da nova parcelar de 2 anos e 9 meses de prisão a todas as demais referidas se traduziu numa elevação da pena única anterior, de 4 anos e 9 meses de prisão efectiva para 6 anos e 6 meses de prisão. É esta elevação tão acentuada que fica agora por explicar.

É certo que a reformulação de um cúmulo jurídico implica sempre o apagamento da pena única anteriormente fixada, pois o caso julgado cobre apenas a medida das penas parcelares. E mesmo sem prejuízo de se considerar que inexistem regras matemáticas na determinação da pena do concurso, pois o critério legal é o do art. 77.º do CP, no presente caso, e como o recorrente refere, constata-se que houve efectivamente uma elevação do “factor de compressão de menos de 1/3”, observável no primeiro cúmulo, para o “factor de compressão de 1/2” utilizado no acórdão recorrido.

E esta elevação tão expressiva do tal “factor de compressão” na pena única reformulada para aditamento de uma parcelar de 2 anos e 9 meses de prisão, na reavaliação de todos os factos em conjunto com a personalidade do arguido, fica por compreender. Tanto mais que resultou provado a inexistência de outros antecedentes criminais do arguido, o decurso de doze anos sobre todos os factos sem cometimento de mais crimes, o cumprimento integral dos 4 anos e 9 meses de prisão no EP, a manutenção de boa conduta desde a restituição à liberdade, em Maio de 2020. Tudo isto não descurando, é certo, o elevado grau de culpa do arguido, designadamente atenta a sua profissão de advogado à data dos factos, sendo-lhe socialmente ainda mais exigível uma conduta social cumpridora e conforme ao direito.

De tudo resulta que os factos provados, e as próprias considerações do tribunal plasmadas no acórdão, permitem ponderar uma pena inferior à aplicada, considerando-se preferível a de 5 anos e 6 meses de prisão, por se revelar mais proporcional e justa e ainda adequada ao cumprimento das finalidades da punição.

Dá nota Figueiredo Dias que “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280). E ensina que a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).

Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam o cúmulo de penas. E lembra Cavaleiro de Ferreira que o cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como nunca o foi por nenhum dos códigos penais precedentes (Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156).

O condenado tem direito à pena única, resultante da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que estes concorram efectivamente entre si. Assim é, independentemente de o concurso ser conhecido num mesmo ou em vários processos, desde que todas as penas correspondam a crimes cometidos antes do trânsito em julgado da primeira condenação. A pena única determina-se dentro de uma moldura penal de cúmulo, casuisticamente encontrada após fixação de todas as penas parcelares integrantes de uma certa adição jurídica. E na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes a todos os crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1, do CP), o que exige uma especial fundamentação na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na avaliação do ilícito global perpetrado, na ponderação da conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, e a sua relação com a personalidade do arguido, reconhece-se que o conjunto dos factos – o grande facto – evidencia aqui um ilícito global bastante desvalioso. E a personalidade do arguido revelada nos factos, agora no facto global, demonstra um grau de culpa elevado, como se disse. Mas no demais contexto exposto, a pena de 5 anos e 9 meses de prisão é ainda consistentemente robusta para a satisfação das exigências de prevenção, quer geral, quer especial, assegurando adequadamente a tutela do bem jurídico.

Em suma, a prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, e ela permanecerá em concreto assegurada; a prevenção especial positiva, que não pode pôr em causa (e aqui não põe) a pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, mostra-se igualmente assegurada com a pena única de 5 anos e 9 meses de prisão, que deve por isso ser a aplicada.

2.(b) Da medida de proibição de contactos com menores de 16 anos de idade

No acórdão determinou-se que “à luz do normativo do art. 43.º, n.º 1, al. b) do CP o arguido cumpra o remanescente de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do CP ( sendo levado à operação de desconto a pena de 4 anos e 9 meses que integralmente expiou) em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, condicionada a avaliação por parte da DGRSP das condições para a instalação de meios de controlo à distância, que que solicitará”.

Esta forma de execução do remanescente da pena de prisão não foi impugnada no recurso, devendo considerar-se consolidada a decisão nesta parte.

Impugnada encontra-se, sim, a “cumulação com a proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, actividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores – n.º 4, als. d) e e) do citado normativo”, aplicada no acórdão.

E o recurso merecerá provimento nesta parte, embora por razões diversas das invocadas pelo recorrente.

Refere o arguido que a decisão recorrida “é ilegal na medida em que aplica uma proibição de contacto do arguido com menores de 16 anos durante o período do seu cumprimento de pena remanescente, “mormente” no âmbito do exercício das funções que ora exerce de terapias naturais, estendendo assim esta proibição a uma categoria geral e abstracta de pessoas, fora do âmbito do contexto em que ocorreram os factos provados, o que a Lei e a Constituição não consentem”. Mas a apreciação sobre a legalidade e a constitucionalidade da medida ficam prejudicadas pelas razões que se passam a enunciar.

Da redução da medida da pena única resultou que o remanescente da pena de prisão efectiva que o arguido tem agora a cumprir não excede um ano.

Sucede que todos os factos delituosos ocorreram em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 94/2017, que, entre outros, procedeu à alteração da redacção do então art. 44.º do CP (“regime de permanência na habitação”).

Na redacção do art. 44.º em vigor à data dos factos, podia ser executado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, “o remanescente não superior a um ano da pena de prisão efectiva (…)” - n.º 1, al. b), do então art. 44.º do CP. E ao tempo dos factos, a lei penal não previa a possibilidade de subordinação do regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta (previsão que se encontra no actual n.º 4, do art. 43.º do CP).

Com as alterações operadas pela Lei n.º 94/2017, entre outras, foi alargada para dois anos a prisão que admite execução em regime de permanência na habitação e foi prevista a subordinação a regras de conduta.

De tudo resulta que, agora, a lei nova deixou de se revelar concretamente mais favorável ao arguido, pois à data dos factos este podia já beneficiar do regime de permanência na habitação, atento o remanescente da pena que tem agora a cumprir, regime que não admitia então subordinação ao cumprimento de regras de conduta.

Assim, decorre do princípio da legalidade que a lei vigente no momento da prática do facto deve ser a aplicada (art. 2.º, n.º 1, do CP), e logo não pode haver lugar a subordinação do regime de permanência na habitação ao cumprimento da regra de conduta imposta no acórdão.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se a pena única para 5 anos e 9 meses de prisão, revogando-se a proibição de contactos imposta no acórdão, mantendo-se no mais a decisão.

Sem custas.


Lisboa, 25.10.2023 (os autos foram-me distribuídos em 10.10.2023)

Ana Barata Brito, relatora

Maria Teresa Féria de Almeida, adjunta, com voto de vencida

Sénio dos Reis Alves, adjunto


Voto de Vencida

Voto vencida a redução do “quantum” da pena única aplicada ao recorrente, que a meu ver deveria ser mantida, por considerar inconsistentes e injustificados os motivos em que assentam.

Entendo que a ausência de antecedentes criminais, e mesmo uma boa inserção social e familiar, são caraterísticas próprias de quem comete crimes de abusos sexuais de crianças, justamente porque utiliza esse "capital social" para conquistar a confiança das futuras vítimas, e como tal não deveria relevar para estes efeitos.

Do mesmo passo considero que o facto de o recorrente ter passado a ter uma ocupação profissional distinta da advocacia, não é pertinente, para estes efeitos, pois o que importa não é a profissão em si mesmo considerada, mas a possibilidade dos encontros privados" que esta pode proporcionar, circunstância que se mantém na nova profissão abraçada.

E ainda que o decurso de 12 anos sem cometimento de outro ilícito, ou melhor dizendo de 12 anos menos os 4 anos e 9 meses que esteve encarcerado, e a manutenção de uma boa conduta desde que se encontra em liberdade – maio de 2020 - tão pouco releva para estes efeitos, pois mais não representa do que aquilo que é socialmente exigível a qualquer cidadã ou cidadão.

Acresce ainda que a situação invocada pelo recorrente de a sua "punição" ter tido muito impacto social, num meio pequeno no qual assume uma posição social de relevo, determina necessariamente que qualquer redução de uma pena de prisão tenha uma repercussão social muito mais forte e impactante que a que possa ocorrer com um qualquer cidadão anónimo, sobretudo em crimes como o dos Autos, por transmitir à sociedade uma ideia desculpabilizadora e “branqueadora” dos crimes praticados.

Maria Teresa Féria de Almeida