Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS ÓNUS DE ALEGAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ERRO DE JULGAMENTO LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PRESUNÇÃO JUDICIAL | ||
Data do Acordão: | 07/04/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I - Nos termos do n.º 1 do art. 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”. II - Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art. 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. III - Se a Relação admitir a impugnação de decisão de facto que não satisfaça os requisitos referidos em II, não comete nulidade, mas erro de julgamento. IV - À Relação, como tribunal de segunda instância e em caso de impugnação da matéria de facto, caberá formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 2, e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC. IV - O STJ apenas interferirá nesse juízo se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogicidade ou assente em factos não provados. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB. O A. alegou, em síntese, que era cotitular juntamente com a R., sua irmã, de duas contas bancárias, que identificou. Uma delas, no Banco BPI, em 25.07.2011 apresentava um saldo à ordem de € 22.060,80. A outra, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., no dia 24.06.2011 tinha um saldo à ordem no valor de € 9.100,05. Sucede que, naquelas datas, a R., sem o conhecimento, consentimento ou autorização do A., transferiu os saldos das referidas contas para outras às quais o A. não tem acesso, fazendo seus os correspondentes montantes. Apesar de as contas serem cotituladas por ambos, a verdade é que os saldos nelas depositados pertenciam exclusivamente ao A., já que foram provisionadas com dinheiro próprio seu, resultando os demais depósitos do exclusivo produto das suas poupanças e do rendimento do seu trabalho, bem assim de um subsídio que era pago ao seu filho. Pugnou por fim o A. que, caso não fosse este o entendimento do Tribunal, dever-lhe-ia ser reconhecido o direito a haver da R. metade do valor aí depositado, por força da presunção prevista no art.º 516.º do Código Civil. O A. terminou pedindo a condenação da R. nos seguintes termos: “a) Ser declarado que as quantias que constituíram os saldos das contas bancárias identificadas no art.1º da petição inicial e que a ré transferiu, no valor global de €31.160,85 (trinta e um mil cento e sessenta euros e oitenta e cinco cêntimos), cotituladas pelo autor e pela ré, pertencem exclusivamente ao autor; b) Ser a ré condenada a restituir imediatamente ao autor as quantias que transferiu de tais contas para outras contas não tituladas pelo autor, no valor global de €31.160,85 (trinta e um mil cento e sessenta euros e oitenta e cinco cêntimos); c) Ser a ré condenada a pagar ao autor juros vencidos e vincendos, à taxa legal, sobre as quantias transferidas de € 22.060,80 e 9.100,05, desde as suas respetivas datas (25/07/2011 e 24/06/2011) e até integral e efetiva restituição. Subsidiariamente e caso assim se não entenda: 1) Ser declarado que o autor tem direito a metade do valor das quantias que constituíram os saldos das contas bancárias identificadas no art. 1º da petição e que a ré transferiu na íntegra, no valor global de € 15.580,42, cotituladas pelo autor e pela ré, por força da presunção estabelecida no artigo 516º do CC; 2) Ser a ré condenada a restituir imediatamente ao autor o citado montante de € 15.580,42; 3) Ser a ré condenada a pagar ao autor juros vencidos e vincendos, à taxa legal, sobre a quantia transferida de € 11.030,40 e € 4.550,02, desde as suas respetivas datas (25/07/2011 e 24/06/2011) e até integral e efetiva restituição.” 2. A R. contestou, alegando ter sido a própria que abriu as contas bancárias em apreço, com dinheiro exclusivamente seu, fruto do seu trabalho e das suas poupanças, tendo colocado o A. como cotitular das mesmas apenas por uma questão de segurança. Mais deduziu pedido reconvencional, peticionando a condenação do A. no pagamento de € 800,00 por este ter efetuado, indevidamente e sem a autorização da R., levantamentos dessas contas bancárias. 3. O A. replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção e reiterando o peticionado. 4. A reconvenção foi admitida e os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido realizada audiência final. 5. Foi proferida sentença, que: I. Julgou a ação parcialmente procedente, em consequência do que: a) Declarou que as quantias que constituíram os saldos das contas bancárias identificadas no artigo 1.º da petição inicial e que a R. transferiu, no valor global de € 31.160,85 (trinta e um mil cento e sessenta euros e oitenta e cinco cêntimos), cotituladas pelo A. e pela R., pertencem a A. e R. em partes iguais, como seja, na proporção de metade; b) Condenou a R. a restituir ao A. o valor correspondente a metade da quantia de € 15.580,42; c) Condenou a R. a pagar ao A. os juros vencidos e vincendos, à taxa legal civil de 4%, sem prejuízo de outras que venham a vigorar, sobre as quantias de € 11.030,40 e € 4.550,02 desde as respetivas datas, 25/07/2011 e 24/06/2011, até integral restituição. II. Julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional, em consequência do que: d) Condenou o A. a restituir à R. a quantia de € 400,00, fazendo operar a compensação entre este e o valor indicado em I. b) e, assim, a R. fica obrigada a restituir ao A. o valor global de € 15.180,42. 8. A R. apelou da sentença e em 13.07.2022 o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão que concluiu com o seguinte dispositivo: “Face ao exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar o presente recurso de apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, julgando agora: a) A acção totalmente improcedente por não provada, determinando-se que as quantias que constituíram os saldos das contas identificadas no ponto 2 da matéria de facto provada e que a ré transferiu, no valor global de € 31.160,85 (trinta e um mil cento e sessenta euros e oitenta e cinco cêntimos), co-tituladas pelo autor e pela ré, pertencem exclusivamente a esta última. b) O pedido reconvencional totalmente procedente, condenando o autor a restituir à ré a quantia de € 800,00. Custas da acção, da reconvenção e da apelação pelo autor, atento o seu decaimento total”. 9. O A. interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegação em que formulou conclusões que, em virtude de dificuldade técnica, aqui não se transcrevem, mas se sintetizam no seguinte: a) A Relação não deveria ter admitido a impugnação da decisão de facto apresentada pela apelante, pois esta não cumpriu o ónus que sobre si impendia de indicação dos concretos meios probatórios constantes do processo que, com relação a cada facto impugnado, impunham decisão diversa da recorrida. Assim, a Relação violou o preceituado no disposto nos n.ºs 1-b) e 2-a) do art.º 640.º do CPC, o que acarreta a nulidade do aresto recorrido; b) Daqui decorre também que a Relação, ao conhecer da impugnação da decisão de facto, conheceu de factos cujo julgamento lhe estava vedado e apreciou questões que lhe estava vedado conhecer, pelo que cometeu a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC; c) Por outro lado, o acórdão recorrido não esclarece as razões que o levaram à modificação da decisão de facto, o que equivale a nulidade por falta de fundamentação, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC; d) Acresce que a prova constante dos autos contraria o dado como provado pela Relação, pelo que o acórdão padece de nulidade por contradição entre a decisão e os seus fundamentos, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC; e) Foi junta aos autos documentação que, não tendo sido impugnada, tem força probatória plena dos factos nela constantes, o que obstaria a que a ação fosse julgada totalmente improcedente; f) A Relação deu como provados factos recorrendo a ilações inadmissíveis, por não se suportarem em factos provados. O recorrente terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e em consequência o acórdão recorrido fosse revogado em conformidade com o acima expendido. 10. A R. contra-alegou, pugnando pela total improcedência da revista e consequente manutenção da decisão recorrida. 11. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. As questões suscitadas pelo recorrente e que constituem o objeto deste recurso são as seguintes: inadmissibilidade da impugnação da decisão de facto; nulidades do acórdão recorrido; modificação da decisão de facto e consequente procedência parcial da ação. 2. Primeira questão (inadmissibilidade da impugnação da decisão de facto) 2.1. A primeira instância deu como provada a seguinte Matéria de facto 1. Autor e ré são irmãos. 2. Autor e ré abriram as seguintes contas bancárias: a) conta bancária no Banco BPI, S.A., balcão de ..., com o número ...19, inicialmente aberta no Banco Borges & Irmão, balcão de ..., este que integrou aquele, conta esta que no dia 25/07/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 22.060,80, constituindo um depósito solidário. b) conta de depósito à ordem na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., com o número ...74, que, no dia 24/06/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 9.100,05, constituindo uma conta mista. 3. A conta referida em b), tratando-se de conta mista, admitia o regime de movimentação “mista”, tendo sido estabelecido como critério de movimentação que o 2º titular só podia movimentar após morte do 1º titular. 4. Nessa conta o autor figura como 2º titular. 5. A 25.07.2011, a ré, sem o conhecimento do autor, procedeu à transferência bancária do saldo da conta mencionada em a) supra para conta bancária a que o autor não tem acesso, fazendo seu esse montante. 6. No dia 24.06.2011, a ré, sem o conhecimento do autor procedeu à transferência do saldo da conta mencionada em b) supra para conta com o número ...47, a que o autor não tem acesso. 7. Assim, a ré procedeu à transferência da quantia global de €31.160,85. 8. O autor procedeu ao levantamento da quantia de €800,00, sem o conhecimento da ré. Na sentença enunciaram-se os seguintes FACTOS NÃO PROVADOS i. Os saldos das contas referidas em 2) pertencem na sua totalidade ao autor, por terem sido aprovisionadas, na data de abertura das mesmas, com dinheiro do autor, fruto das suas poupanças, do seu salário, de outras poupanças resultantes de um subsídio que era paga ao seu filho. ii. A Ré desde há muitos anos a esta parte abriu uma conta no Banco Borges e Irmão, actual BPI, e na Caixa de Crédito Agrícola, ambos balcões de ..., sendo ela própria a única titular. iii. Em data que não sabe precisar, por sugestão do autor, a ré chegou a colocar as suas poupanças em nome do sobrinho, filho do autor, nessa data ainda menor. iv. Mais tarde o autor sugeriu que, com a maioridade do filho, passasse a ser o próprio autor o co-titular das contas da ré, ao que esta acedeu por confiar no autor. v. Então, por sugestão dos funcionários bancários a ré, para colocar o autor como co-titular das suas contas, encerrou aquelas que tinha apenas em seu nome e abriu novas contas que passaram a ter como primeira titular a ré e como segundo titular o autor. vi. A conta referida em 2.b) supra foi aberta no dia 12.02.2008 com o montante de €4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia, cuja única titular era a ré. vii. Todos os depósitos feitos a partir dessa data na conta em apreço resultaram dos rendimentos provenientes do trabalho da ré. viii. A conta referida em 2.a) supra estava aprovisionada com dinheiro pertencente exclusivamente à ré, fruto do seu trabalho e das suas poupanças, bem como, fruto de subscrição de fundos e obrigações que foi fazendo ao longo dos anos. ix. O autor pedia dinheiro emprestado à ré. x. O autor foi pagando parte dessas quantias mas nunca pagava a totalidade do dinheiro que lhe era emprestado pela ré. xi. No início do ano de 2011, a ré disse ao autor que não voltaria a emprestar-lhe dinheiro. xii. Mediante tal decisão, o réu, junto do Banco BPI, pediu um cartão de multibanco e fez diversos levantamentos para substituir esses levantamentos pelos empréstimos que a ré lhe vinha fazendo até essa data. xiii. Devido a este comportamento do autor e com a intenção de proteger o seu dinheiro, a ré procedeu ao levantamento das quantias referidas em 5 e 6 supra. 2.2. O Direito Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Na contra-alegação à apelação o A./recorrido pugnou pela rejeição da impugnação da decisão de facto apresentada pela apelante, por entender que a recorrente não havia cumprido os ónus a que o impugnante da decisão de facto está sujeito: indicação dos factos impugnados e sentido em que o tribunal deveria decidir; indicação concreta dos meios de prova que sustentam tal juízo. A Relação considerou que a impugnação da decisão de facto cumpria os aludidos ónus, nestes termos: “In casu, para além dos factos não provados que a recorrente impugna na conclusão nº 23, identifica ainda uma outra concreta factualidade na conclusão nº 34, que, em seu entender, deve ser aditada à matéria de facto provada e que, conduzirá a uma outra solução jurídica, designadamente pela não aplicação da presunção do artº 516º do CCivil. Ora, pese embora, o recorrido entenda que a recorrente não cumpre relativamente à matéria impugnada, os ónus de impugnação a que alude o artº 640º nº1 al. b) e nº 2 al. a) e b) do CPCivil, discordamos desse entendimento, porquanto no corpo das alegações e nas conclusões de recurso, a ré/recorrente identifica concretamente nas conclusões 23) e 34) qual a matéria que pretende ver reapreciada, os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida - a qual identifica - indica quer a prova testemunhal (refere com exactidão as passagens da gravação do depoimento de parte do autor, transcrevendo os excertos que considera mais relevantes) quer a documental, pelo que, consideramos cumpridos, no essencial tais ónus, o que determina a requerida reapreciação da matéria de facto. De qualquer modo, o Tribunal da Relação na reapreciação da prova goza da mesma amplitude de poderes do Tribunal de 1.ª instância e, tendo em vista garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. Por isso, a prova deve ser apreciada no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência”. Pensamos que a Relação ajuizou corretamente. Com efeito, a apelante identificou os pontos de facto alvo do seu desacordo (factos não provados vi e viii, devendo dar-se como provado o que consta nas conclusões 34, 55, 56 e 58), pugnando pela sua prova, assim como identificou os meios de prova em que se sustentava (declarações do A., cuja localização no tempo da gravação identificou, assim como procedeu à transcrição das passagens que julgou relevantes; documentos, que identificou; ilações a retirar dos documentos e de factos dados como provados, que explicitou). Contrariamente ao aduzido pelo apelado, que se focou mais na falta de indicação dos concretos meios de prova respeitantes à pretendida prova do facto não provado viii, mesmo quanto a este facto a apelante apresentou fundamentação probatória que se nos afigura suficiente para autorizar a reapreciação da decisão de facto. Veja-se o a este respeito exarado pela apelante (mantém-se os negritos, itálicos e sublinhados constantes no texto transcrito): “B) Da decisão da matéria de facto quanto ao ponto viii) No ponto viii) foi dado como não provado que conta referida em 2.a) supra estava aprovisionada com dinheiro pertencente exclusivamente à ré, fruto do seu trabalho e das suas poupanças, bem como, fruto de subscrição de fundos e obrigações que foi fazendo ao longo dos anos. Repare-se que o autor que instaurou a presente ação pedindo que fosse reconhecido que o dinheiro existente nas contas no Banco BPI, S.A., balcão de ..., com o número ...19, inicialmente aberta no Banco Borges & Irmão, balcão de ..., e conta bancária na Caixa de Crédito Agrícola Mutuo de ..., com o número ...74, lhe pertencia na totalidade, já que proveniente das suas poupanças,… … ou, caso assim se não entendesse, lhe fosse reconhecido o direito a metade daquele dinheiro por força da presunção estabelecida no artigo 516º do C.Civil. Não tendo o Autor logrado provar que era dono exclusivo de todo o dinheiro, ao abrigo da presunção estabelecida no artigo 516º do C.Civil, o tribunal “a quo” reconheceu-lhe o direito a metade. Para ver naufragar a pretensão do Autor, a Ré teria de provar factos dos quais o tribunal pudesse inferir que daquele dinheiro, nenhuma parte era pertença do Autor. Não tendo o A. provado, como lhe competia, que todo esse dinheiro, ou sequer parte dele, lhe pertencia ou sequer que tivesse, no todo ou em parte, por si sido depositado, e o facto de a Ré não provar que o dinheiro lhe pertencia na totalidade não implica que fique impossibilitada de provar factos que demonstrem que o dinheiro ou parte dele não é nem nunca foi pertença do Autor. Daí não poder, in casu, funcionar a presunção legal inserta no artº 516º do CC. Obviamente que provando ser dona exclusiva do dinheiro, automaticamente fica excluída a pertença do autor. Refere, e bem, a douta sentença a mera junção de extractos bancários com menção ao nome da ré, em contas de natureza solidária, não assume a virtualidade de demonstrar que o dinheiro nelas depositado era, exclusivamente, da propriedade da ré. E o mesmo sucede com os documentos de depósito de quantias assinados pela ré. Efetivamente, tratando-se de contas solidárias, qualquer um dos seus titulares pode efetuar depósitos, levantamentos, movimentações sem necessidade de intervenção dos restantes titulares. In casu, ficou demonstrado que todos os depósitos, movimentos , levantamentos, transferências, correspondência recebida, foram feitas única e exclusivamente pela Recorrente. A possibilidade de prova directa da pertença exclusiva do dinheiro depositado em conta bancária solidária é difícil. Mais difícil ainda no caso da Ré. Prestadora de serviços de limpeza por conta de outrem e agricultora por conta própria, os seus rendimentos, não eram por regra objeto de um processamento documental que espelhasse a origem e destino do ganho. Por outro lado, a existência de prova testemunhal dificilmente se consegue. Ninguém apregoa que vai efectuar um depósito bancário, exibindo documento que comprove a origem do dinheiro. E o facto de ir depositar e assinar o documento do depósito não significa, como refere a douta sentença, que o depositante seja dono do dinheiro. A realidade de facto vertida nos presentes é muito comum no país, sobretudo em certas zonas. Pessoas há que, por razões de locomoção, fazem constar como titular da conta outra pessoa com poderes para a movimentar. Outras há que, sem descendentes ou ascendentes, fazem constar da conta bancária a pessoa a quem pretendem deixar o dinheiro após a sua morte. É notoriamente consabido que em tais situações, diversos são os casos de pessoas tantas vezes abusadas na sua boa fé e traídas na sua confiança depositada. O que tem merecido particular atenção por parte dos tribunais. À míngua de prova directa, sempre difícil nestes casos, tudo aconselha o recurso à presunção judicial regulada nos artigos 349º a 351º do C.Civil. Com o devido respeito que é muito, a Mª Juiz do tribunal “a quo”, apesar de consciente da dificuldade de prova, faz tábua rasa, de todos os documentos juntos aos autos, assim como da prova indiciaria e das regras de experiencia e pela via mais simplista descurou o recurso à presunção judicial. É lícito, contudo, à 2ª instância reequacionar a decisão da matéria de facto recorrendo à presunção judicial, nos precisos termos em que o poderia ser feito pelo tribunal de 1ª instância, cfr artigos 607º nº 4 e 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil. Neste sentido, ac. STJ de 18.05.2017 (www.dgsi.pt – processo nº 4305/15.8T8SNT.L1.S1 - 4ª secção / descritores; reapreciação da matéria de facto / poderes dos tribunais da Relação) I - O princípio da livre apreciação da prova, plasmado no n.º 5 do art. 607.º do CPC, vigora para a 1.ª instância e, de igual modo, para a Relação, quando é chamada a reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto. II - Em tal circunstância, compete ao Tribunal da Relação reapreciar todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos e, de acordo com a convicção própria que com base neles forme, consignar os factos que julga provados, coincidam eles, ou não, com o juízo alcançado pela 1.ª instância, pois só assim actuando está, efectivamente, a exercitar os poderes que nesse âmbito lhe são legalmente conferidos. Tem sido apanágio dos Supremo Tribunal, a decisão, com impressionante uniformidade, que «As chamadas presunções naturais, judiciais ou de facto constituem meios de prova mediata cuja força probatória é apreciada livremente pelas instâncias. Através delas o julgador retira ilações lógicas de certos factos conhecidos para chegar ao conhecimento de outros desconhecidos, guiado por regras práticas e da experiência. O Tribunal da Relação pode lançar mão de presunções tirando conclusões da matéria de facto, desde que tais conclusões se limitem a desenvolvê-la, não a contrariando. É dado da experiência comum, que as pessoas na situação da Ré escolhem em vida a pessoa que lhes vai suceder, e por regra fazem constar essa pessoa como titular da conta bancária onde tem ou deposita o seu dinheiro. E dos presentes autos resulta provados factos concretos dos quais o julgador pode, com recurso a um juízo inferencial assente em critérios de normalidade, concluir com segurança, não só, que o Autor nunca foi dono de qualquer dinheiro existente na conta no BPI, e por maioria de razão na conta da Caixa Agrícola, e que o seu nome constava nas contas bancárias por virtude de a Ré naquele momento pretender que à sua morte o dinheiro ficasse para o Autor. Vejamos: No artigo 21º da sua contestação Ré alegou que: “Em Dezembro 2010, a Ré subscreveu um seguro de capitalização em que indicou como beneficiário por morte AA, o ora Autor, sendo que este jamais poderia movimentar aquele valor enquanto a Re fosse viva, demonstrando-se, mais uma vez assim a propriedade dos saldo da conta serem da Re. (Doc nº 22 ) “ E no artigo 22º alegou : “As declarações para efeitos fiscais, referentes ao registo de valores mobiliários ou aplicações de PPR`s foram emitidas pelo BPI apenas e só em nome da Ré, por ter sido quem subscreveu os supra mencionados PPR, bem como a aquisição de obrigações e por serem sua propriedade, ( docs nº 14 a 21)“ A alegação de tais factos foi instruída com documentos emitidos pelo próprio banco, cuja veracidade o Autor não impugnou limitando-se apenas a impugnar o seu teor, não por serem falsos, mas por não possuírem o alcance e a virtualidade que a Ré lhes pretende atribuir. Estes factos devem ser levados ao elenco dos factos provados. Sobretudo que na aplicação financeira designada por BPI REFORMA AFORRO PPR – Seguros da Capitalização associada à conta, a Ré era a beneficiária em vida e o Autor beneficiário à sua morte daquela. (vd. doc. 22 junto com a contestação) Estes factos concretos permitem, num juízo inferencial assente em dados da experiência comum, firmar com segurança o facto presumido, isto é, que o dinheiro existente na conta do BPI não é pertença do Autora, antes o é da Ré. Não cabe na compreensão do senso comum, escapando a qualquer critério de razoabilidade e racionalidade que o Autor faça com as suas economias uma aplicação financeira em nome da Ré, ficando esta como beneficiária em vida e ele como beneficiário depois da morte dela. Só por absurdo é que alguém se institua ou seja instituído herdeiro do que lhe pertence. Por outro lado, e na mesma linha de raciocínio, não cabe na compreensão do senso comum, que se estipule o regime de movimentação estabelecido como critério de movimentação fosse a possibilidade do autor movimentar a conta da caixa de credito agrícola apos a morte da recorrente (facto 3 dos factos provados) se o dinheiro fosse também propriedade do autor. As regras da experiência comum também não permitem firmar que alguém, sendo dono do dinheiro aplicado num produto financeiro, não beneficie das vantagens fiscais ou não se sobrecarregue com a responsabilidade tributária. A estes factos, que só por si, permitem dar como provado que a dona do dinheiro é Ré, ou pelo menos, que não é do Autor, acrescem outros factos circunstâncias resultantes da instrução da prova que, num juízo de normalidade, permitem a mesma conclusão. Decorre da prova produzida exatamente o oposto do que foi dado como não provado. A Ré, divorciada, não tem descendentes nem ascendentes (1 Assento de nascimento 2885/12 da conservatória de ...). Por seu lado, o Autor separou-se em 2010 e com refere em declarações ao minuto 6.38’, seguiu-se os tramites e divorciou-se em 16/12/2013 tendo dois filhos do casamento (2 Assento de Nascimento 1763/2021 da conservatória de ...). À míngua de explicação plausível, não alegada sequer, o senso comum não abarca como possível que um homem com mulher e filhos deposite o seu dinheiro em contas bancárias tituladas pela irmã. Em boa verdade, em nenhum momento ao autor foi capaz de trazer junto do tribunal a quo qualquer prova que sustente a sua versão dos fatos, muito pelo contrário. Muito embora o artigo 516º do código civil deixe presumir que titulares das contas solidarias comparticipam nos saldos em montantes iguais, tal presunção ilidível, por força do mesmo preceito, podendo concluir-se que as respetivas partes são diferentes, ou ate mesmo ou até mesmo que só um dos titulares deva beneficiar do credito. Com efeito, o meio para ilidir a presunção é a prova da exclusão dos pressupostos dos depósitos não terem sido efetuados pelo autor . In casu os indicadores e a prova trazida para os autos, ainda que não diretamente são a prova cabal disso. As máximas da experiência, os juízos correntes de probabilidade, os princípios da lógica ou os próprios dados da intuição humana, ao invés de permitir extrair a ilação de que o dinheiro pertencia , por força da presunção legal na proporção de metade para cada um dos irmãos, impõem-se que não se ignore os 25 anos de anos em que o autor nunca se preocupou em conhecer os saldos da contas, em usufruir do benefícios fiscais decorrentes dos PPR ou mesmo , ainda que com a necessidade que invoca para apoiar o seu filho deficiente, fosse movimentar as contas. E não o fez porque no caso da conta da CCA só a podia movimentar apos a morte da sua irmã e na conta do BPI não faz qualquer sentido que as aplicações financeiras associadas o autor seja o beneficiário por morte da recorrente. A prova a realizar para ilidir tal presunção não tem de ser prova directa, até porque por vezes, como in casu, isso é impossível e constituiria ónus excessivo sobre a parte, podendo, ao invés, ser ilidida por prova indireta, indiciária ou circunstancial, o que in casu não resulta qualquer duvida que foi feita. Os factos, provados nos autos, fazem prova suficiente que afasta a presunção estabelecida no art. 516° do Código Civil, pelo que, a douta sentença recorrido, ao não concluir assim, violou o disposto nos art° 516°, 349° e 350°, n° 2, todos do Código Civil. Pois, entender que aqueles normativos exigem prova directa de que o dinheiro existentes nas contas bancárias a que aludem os autos são pertença também do autor, quando tal prova directa além de praticamente impossível é, também por isso, excessiva para a parte a que tem de a fazer. Se, porém, se aplicar corretamente o direito aos presentes autos, tem de se concluir que a recorrente ilidiu a presunção do art° 516° do Civil Face ao supra exposto, a sentença recorrida violou, a nosso ver, e entre outros o disposto nos artigos 5.º, 552.º, 607.º e 615.º do Código de Processo Civil, artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, e artigos 342.º, 512.º e 516.º do Código Civil.” Cremos que, também quanto à pretendida prova do facto não provado viii, a recorrente invocou elementos probatórios suficientes para a compreensão do fundamento da impugnação. Trata-se, sobretudo, de ilações ou inferências retiradas de factos que a recorrente entende estarem provados e que foram alegados na contestação, acompanhados por documentos que a apelante identifica. Acresce, mais uma vez, o teor de um trecho das declarações do A. na audiência. Tudo a fazer, na tese da apelante, que se considere ilidida a presunção prevista no art.º 516.º do Código Civil. Contrariamente ao alegado pelo recorrido, a fundamentação da impugnação da decisão de facto estava suficientemente explicitada para que a contraparte pudesse exercer o correspondente contraditório. Questão diversa será se a impugnação, pela argumentação expendida, é suficientemente fundada ou convincente, para determinar a reversão ou alteração da decisão de facto. Tal não implica, contudo, um juízo de rejeição da impugnação da decisão de facto, mas de improcedência dessa impugnação. Na revista o recorrente reitera a oposição deduzida em sede de contra-alegação da apelação, pugnando pela rejeição da impugnação da decisão de facto. Ora, do exposto supra resulta que, a nosso ver, o recorrente não tem, neste segmento do recurso, razão. A Relação não tinha fundamento para rejeitar a impugnação da decisão de facto, em qualquer dos seus elementos. Nesta parte, assim, a revista improcede. 3. Segunda questão (nulidades do acórdão recorrido) 3.1. Na sequência da apreciação da impugnação da decisão de facto a Relação, julgando-a procedente, decidiu acrescentar aos factos provados os não provados alíneas vi e viii, que assumiram os números 9 e 11, e ainda acrescentar um número 10, respeitante à matéria do número 9. Dessa forma, a matéria de facto provada e não provada passou a ter a seguinte redação: 1. Autor e ré são irmãos. 2. Autor e ré abriram as seguintes contas bancárias: a) conta bancária no Banco BPI, S.A., balcão de ..., com o número ...19, inicialmente aberta no Banco Borges & Irmão, balcão de ..., este que integrou aquele, conta esta que no dia 25/07/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 22.060,80, constituindo um depósito solidário. b) conta de depósito à ordem na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., com o número ...74, que, no dia 24/06/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 9.100,05, constituindo uma conta mista. 3. A conta referida em b), tratando-se de conta mista, admitia o regime de movimentação “mista”, tendo sido estabelecido como critério de movimentação que o 2º titular só podia movimentar após morte do 1º titular. 4. Nessa conta o autor figura como 2º titular. 5. A 25.07.2011, a ré, sem o conhecimento do autor, procedeu à transferência bancária do saldo da conta mencionada em a) supra para conta bancária a que o autor não tem acesso (conforme consta no acórdão, “eliminou-se a parte em que se referia “fazendo seu esse montante”, por se mostrar incoerente com a matéria ora provada”). 6. No dia 24.06.2011, a ré, sem o conhecimento do autor procedeu à transferência do saldo da conta mencionada em b) supra para conta com o número ...47, a que o autor não tem acesso. 7. Assim, a ré procedeu à transferência da quantia global de € 31.160,85. 8. O autor procedeu ao levantamento da quantia de € 800,00, sem o conhecimento da ré. 9. A conta referida em 2.b) supra, foi aberta no dia 12.02.2008, com o montante de € 4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia, cuja única titular era a ré. 10. O dinheiro existente na conta nº ...74 proveio de duas contas bancárias tituladas pela ré e das quais o autor nunca foi titular. 11. A conta referida em 2.a) supra estava aprovisionada com dinheiro pertencente exclusivamente à ré, fruto do seu trabalho e das suas poupanças, bem como, fruto de subscrição de fundos e obrigações que foi fazendo ao longo dos anos. Dos factos não provados i. Os saldos das contas referidas em 2) pertencem na sua totalidade ao autor, por terem sido aprovisionadas, na data de abertura das mesmas, com dinheiro do autor, fruto das suas poupanças, do seu salário, de outras poupanças resultantes de um subsídio que era paga ao seu filho. ii. A Ré desde há muitos anos a esta parte abriu uma conta no Banco Borges e Irmão, actual BPI, e na Caixa de Crédito Agrícola, ambos balcões de ..., sendo ela própria a única titular. iii. Em data que não sabe precisar, por sugestão do autor, a ré chegou a colocar as suas poupanças em nome do sobrinho, filho do autor, nessa data ainda menor. iv. Mais tarde o autor sugeriu que, com a maioridade do filho, passasse a ser o próprio autor o co-titular das contas da ré, ao que esta acedeu por confiar no autor. v. Então, por sugestão dos funcionários bancários a ré, para colocar o autor como co-titular das suas contas, encerrou aquelas que tinha apenas em seu nome e abriu novas contas que passaram a ter como primeira titular a ré e como segundo titular o autor. vi. (eliminada) vii. Todos os depósitos feitos a partir dessa data na conta em apreço resultaram dos rendimentos provenientes do trabalho da ré. viii. (eliminada) ix. O autor pedia dinheiro emprestado à ré. x. O autor foi pagando parte dessas quantias mas nunca pagava a totalidade do dinheiro que lhe era emprestado pela ré. xi. No início do ano de 2011, a ré disse ao autor que não voltaria a emprestar-lhe dinheiro. xii. Mediante tal decisão, o réu, junto do Banco BPI, pediu um cartão de multibanco e fez diversos levantamentos para substituir esses levantamentos pelos empréstimos que a ré lhe vinha fazendo até essa data. xiii. Devido a este comportamento do autor e com a intenção de proteger o seu dinheiro, a ré procedeu ao levantamento das quantias referidas em 5 e 6 supra. 3.2. O Direito 3.2.1. Conforme exposto supra, o recorrente considerou que a Relação não deveria ter admitido a impugnação da decisão de facto apresentada pela apelante, pois esta, segundo o recorrente, não cumpriu o ónus que sobre si impendia de indicação dos concretos meios probatórios constantes do processo que, com relação a cada facto impugnado, impunham decisão diversa da recorrida. Assim, defende o recorrente, a Relação violou o preceituado no disposto nos n.ºs 1-b) e 2-a) do art.º 640.º do CPC, o que acarreta a nulidade do aresto recorrido. Conforme já acima explicitado, este STJ considera que a Relação não tinha base legal para rejeitar a impugnação da decisão de facto, pois esta reunia os pressupostos legais – pelo que o acórdão da Relação, ao reapreciar a decisão de facto, não merece censura. Ainda que assim não fora, a eventual indevida aplicação pela Relação do disposto no art.º 640.º do CPC constituiria um erro de julgamento (má aplicação do referido preceito) e não um vício formal do acórdão, isto é, uma nulidade. Nesta parte, pois, a revista improcede. 3.2.2. O recorrente considera que, não podendo apreciar a impugnação da decisão de facto, a Relação, ao fazê-lo, conheceu de questões que não podia apreciar. Assim, o acórdão enfermaria da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Ora, também aqui o recorrente imputa indevidamente um vício formal ao acórdão recorrido. Nos termos do art.º 615.º n.º 1 alínea d) do CPC, o juiz incorre em nulidade quando conhece de questão que não podia apreciar. Tal norma conjuga-se com o disposto no art.º 608.º n.º 2 do CPC. Nessa norma estipula-se (no que é aplicável ao julgamento da apelação, ex vi art.º 663.º n.º 2 do CPC), que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Ora, a Relação conheceu da impugnação da decisão de facto na sequência de petição que nesse sentido lhe foi dirigida pela apelante. Assim, não se lobriga como poderia a Relação ter incorrido na nulidade que o recorrente ora lhe assaca. Como já acima se expôs, a eventual aplicação errada do art.º 640.º do CPC, por na verdade o recorrente não ter satisfeito os ónus impostos nesse artigo para a admissão da impugnação da decisão de facto, não acarretaria nulidade mas erro de julgamento na aplicação da norma. Nesta parte, pois, a revista também improcede. 3.2.3. O recorrente também imputa ao acórdão recorrido o vício da falta de fundamentação, previsto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Segundo o recorrente, na apreciação do pedido de impugnação da decisão de facto o acórdão não menciona nenhum concreto meio de prova “que impusesse a modificação da matéria de facto impugnada nos moldes por si [pela apelante] preconizados, nem isso é sequer especificado no Acórdão recorrido, desde logo por referência a cada um dos pontos de facto que foram colocados em crise pela Ré/apelante, pelo que, também neste particular, fica o aqui recorrente sem saber e sem perceber a que concretos meios de prova documentais se refere o douto acórdão recorrido para concluir que a apelante cumpriu com os deveres impostos pelo artigo 640º, n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.”. No dizer do recorrente, tal acarreta falta de clareza, que equivale a falta de fundamentação da decisão, com a consequente nulidade. Vejamos. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do CPC). Trata-se, de resto, de um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da CRP). Consonantemente, os acórdãos, as sentenças e os despachos não fundamentados padecem de nulidade (artigos 666.º n.º 1, 613.º n.º 3 e 615.º n.º 1 al. b) do CPC). Sendo certo que, como é jurisprudência constante, não pode confundir-se falta de fundamentação com fundamentação alegadamente insuficiente ou desacerto da decisão (v.g., STJ, 02.6.2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt). Por outro lado, na mesma alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º comina-se com nulidade a sentença quando “…ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol I, Almedina, 3.ª edição, 2022, p. 794). A obscuridade ou ambiguidade só gera ininteligibilidade da parte decisória da sentença (ou do despacho) quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do CC não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 735; STJ 20.5.21, 69/11 e STJ 8.10.20, 1886/19, consultáveis em www.dgsi.pt). Compulsado o acórdão recorrido, nela não lobrigamos nenhum dos vícios invocados pelo recorrente. O acórdão da Relação explicou suficientemente as razões por que admitiu a impugnação da decisão de facto. Fê-lo em termos que mereceram a concordância deste STJ, não se suscitando qualquer dúvida quanto ao sentido quer do assim ajuizado, quer da sua fundamentação. Mais uma vez, o recorrente confunde discordância com o decidido, a qual funda recurso por erro de julgamento, com a existência de um vício formal, constitutivo de nulidade. Nesta parte, pois, reitera-se a improcedência da revista. 3.2.4. O recorrente também entende que o acórdão da Relação não fundamentou com a suficiência exigível a sua decisão de alterar a matéria de facto constante do ponto vi dos factos não provados, bem assim como da que foi aditada pela Relação no novo ponto 10 dos factos provados, ocorrendo, em consequência, a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, verificando-se até contradição intrínseca entre os fundamentos invocados no acórdão e o segmento decisório constante da al. a) da decisão nele tomada (supratranscrita). Vejamos. Acerca do vício da falta de fundamentação da decisão judicial, já acima discorremos. Quanto ao vício da contradição entre a decisão e os seus fundamentos: Outro vício de que a sentença pode padecer é quando a fundamentação da decisão aponta num determinado sentido, mas depois o veredito final, por um desacerto lógico, desemboca numa solução oposta ou diversa. Trata-se da oposição entre os fundamentos e a decisão a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. No acórdão recorrido a Relação apresentou fundamentação para o juízo de facto transposto para a matéria de facto sob os números 9 e 10. Vejamos o seu teor (mantemos os sublinhados, negritos e itálicos constantes no original: “Assim, começaremos pela reapreciação da matéria não provada constante da al. vi. cujo teor é o seguinte: «A conta referida em 2.b) supra foi aberta no dia 12.02.2008 com o montante de € 4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia, cuja única titular era a ré». Convém aqui relembramos a matéria dada como provada em 2.b) e que é a seguinte: Autor e ré abriram as seguintes contas bancárias: a) (…) b) «conta de depósito à ordem na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., com o número ...74, que, no dia 24/06/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 9.100,05, constituindo uma conta mista». Portanto, a questão está em saber se existe prova documental suficiente para dar como provada a matéria constante da al. vi. dos factos não provados, ou seja, saber se a conta da CCAM de ... com o número ...74 foi aberta no dia 12.02.2008, com o montante de € 4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia e cuja única titular era a ré. Ora, basta atentarmos nos elementos documentais existentes nos autos, designadamente nos elementos bancários juntos aos autos pela referida CCAM de ..., para facilmente chegarmos à conclusão que, a matéria constante da al. vi. constante do elenco factual não provado deveria constar da factualidade provada. De facto, do documento emitido pela CCAM em 21/04/2020 resulta que, a conta nº ...74, referida em 2.b) da matéria de facto provada, foi aberta em 12/02/2008, com as quantias de € 69,78 e de € 8.101,45, provenientes da conta nº ...92. Por seu turno, dos elementos bancários juntos pela CCAM em 17/09/2020 aos autos e do doc. nº 1 junto à contestação, resulta que o saldo da referida conta nº ...92 tinha integrada a quantia de € 4.569,48, resultante da liquidação da conta poupança nº ...48 e, que nessa mesma data de 12/02/2008 foi transferida para a conta nº ...74. Ora, a conta nº ...92 era titulada pela ré e por um seu sobrinho, filho do autor, de nome CC (de acordo com a informação prestada pela CCAM em 30/11/2020, junta aos autos) e a conta nº ...48 tinha apenas como titular a ré (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação). Deste modo, atentos os elementos documentais supra referidos, cuja veracidade não foi posta em causa pelo autor, impõe-se que se dê como provada a matéria constante da al. vi. da matéria dada como não provada na 1ª instância, que passará a ter o nº 9. E, tendo em conta a prova documental mencionada deve ainda aditar-se a seguinte factualidade provada, sob o nº 10. «O dinheiro existente na conta nº ...74 proveio de duas contas bancárias tituladas pela ré e das quais o autor nunca foi titular». Atendendo às premissas apontadas pela Relação (elementos documentais mencionados), não se lobriga que exista uma relação de contrariedade lógica entre elas e a decisão de alteração da matéria de facto transcrita. Por outro lado, é manifesto que tal decisão está fundamentada. Questão diversa, repete-se, é a da bondade da alteração, isto é, se a fundamentação apresentada é bastante para justificar a aludida modificação da matéria de facto – o que se prende com a correção do julgamento, que não com a validade formal da decisão. Nesta parte, pois, repete-se a improcedência da revista. 4. Terceira questão (modificação da decisão de facto e consequente procedência parcial da ação) Por último, o recorrente insurge-se contra a alteração à matéria de facto decidida pela Relação. Segundo o recorrente, o dado como provado pela Relação é contrariado pelos documentos juntos aos autos. E, no que concerne ao facto dado como provado sob o n.º 11, a Relação sustentou-o por meio de ilação assente em factos não provados – pelo que tal presunção judicial é inadmissível. Vejamos. Como é sabido, em regra o STJ não interfere na fixação da matéria de facto. Na Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8) anuncia-se que “[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito” (art.º 46.º). Com efeito, estipula o n.º 3 do art.º 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. Em consonância, no julgamento da revista o STJ aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido” (n.º 1 do art.º 682.º do CPC) e, reitera o n.º 2 do art.º 682.º, “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”. À Relação, como tribunal de segunda instância e em caso de impugnação da matéria de facto, caberá formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos artigos 663.º n.º 2 e 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC. O CPC descreve a atitude devida pelo juiz da instância na apreciação das provas e consequente fixação da matéria de facto provada e não provada. Segundo o n.º 4 do art.º 607.º, “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”. Segundo o n.º 5 do mesmo artigo (art.º 607.º), “[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”. O juiz fixará os factos de acordo com a convicção que extrair da prova produzida, analisada de forma racional e lógica, atendendo à qualidade e credibilidade dos meios probatórios apresentados no processo. No espaço que caiba ao princípio da livre apreciação (isto é, não condicionado por provas tarifadas), em que se enquadra a prova testemunhal (art.º 396.º do CC), as declarações de parte (art.º 466.º n.º 3 do CPC) e a prova pericial (art.º 389.º do CC), a convicção do juiz assentará em regras da ciência e do raciocínio e em máximas de experiência (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª edição, 1997, Lex, p. 347). Raramente a convicção do juiz assentará numa certeza absoluta. Por regra, “a decisão factual assenta apenas em certeza relativa, a qual, acrescentada pela ponderação de quem julga, conduz a uma situação de convicção e a subsequente exposição em termos necessariamente categóricos” (…). Em situação de incerteza factual, “o juiz de facto acrescenta a esta a sua convicção em ordem a transformá-la em certeza fictícia, ou em negação desta“ (STJ, 22.10.2009, processo 409/09.4YFLSB, consultável em www.dgsi.pt). Na apreciação dos factos o juiz não pode refugiar-se num non liquet (art.º 8.º n.º 1 CC). Em caso de dúvida acerca da realidade de um facto, o juiz decidirá contra aquele sobre quem recair o ónus da prova desse facto (art.º 414.º do CPC). Nos termos do disposto no n.º 662.º n.º 4 do CPC, das decisões da Relação tomadas em sede de modificabilidade da decisão de primeira instância sobre matéria de facto não cabe recurso ordinário de revista para o STJ. O STJ apenas interferirá nesse juízo se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogicidade ou assente em factos não provados (neste sentido, cfr., v.g., acórdãos do STJ de 08.11.2022, proc. nº. 5396/18.5T8STB-A.E1.S1, 30.11.2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1 e de 14.07.2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2.S1). Revisitemos a fundamentação da decisão de facto prolatada pela Relação (mantemos os sublinhados e negritos contantes no texto original): “De qualquer modo, o Tribunal da Relação na reapreciação da prova goza da mesma amplitude de poderes do Tribunal de 1.ª instância e, tendo em vista garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. Por isso, a prova deve ser apreciada no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência. Nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido, um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do CCivil) – cfr. ac. do TRP de 04/02/2019, pº nº 999/15.2T8PVZ.P1, consultável em www.dgsi.pt. Assim, começaremos pela reapreciação da matéria não provada constante da al. vi. cujo teor é o seguinte: «A conta referida em 2.b) supra foi aberta no dia 12.02.2008 com o montante de € 4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia, cuja única titular era a ré». Convém aqui relembramos a matéria dada como provada em 2.b) e que é a seguinte: Autor e ré abriram as seguintes contas bancárias: a) (…) b) «conta de depósito à ordem na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de..., com o número ...74, que, no dia 24/06/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 9.100,05, constituindo uma conta mista». Portanto, a questão está em saber se existe prova documental suficiente para dar como provada a matéria constante da al. vi. dos factos não provados, ou seja, saber se a conta da CCAM de... com o número ...74 foi aberta no dia 12.02.2008, com o montante de € 4.568,52, montante este proveniente da conta nº ...48, liquidada nesse mesmo dia e cuja única titular era a ré. Ora, basta atentarmos nos elementos documentais existentes nos autos, designadamente nos elementos bancários juntos aos autos pela referida CCAM de ..., para facilmente chegarmos à conclusão que, a matéria constante da al. vi. constante do elenco factual não provado deveria constar da factualidade provada. De facto, do documento emitido pela CCAM em 21/04/2020 resulta que, a conta nº ...74, referida em 2.b) da matéria de facto provada, foi aberta em 12/02/2008, com as quantias de € 69,78 e de € 8.101,45, provenientes da conta nº ...92. Por seu turno, dos elementos bancários juntos pela CCAM em 17/09/2020 aos autos e do doc. nº 1 junto à contestação, resulta que o saldo da referida conta nº ...92 tinha integrada a quantia de € 4.569,48, resultante da liquidação da conta poupança nº ...48 e, que nessa mesma data de 12/02/2008 foi transferida para a conta nº ...74. Ora, a conta nº ...92 era titulada pela ré e por um seu sobrinho, filho do autor, de nome CC (de acordo com a informação prestada pela CCAM em 30/11/2020, junta aos autos) e a conta nº ...48 tinha apenas como titular a ré (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação). Deste modo, atentos os elementos documentais supra referidos, cuja veracidade não foi posta em causa pelo autor, impõe-se que se dê como provada a matéria constante da al. vi. da matéria dada como não provada na 1ª instância, que passará a ter o nº 9. E, tendo em conta a prova documental mencionada deve ainda aditar-se a seguinte factualidade provada, sob o nº 10. «O dinheiro existente na conta nº ...74 proveio de duas contas bancárias tituladas pela ré e das quais o autor nunca foi titular». Passemos agora à reapreciação da matéria impugnada dada como não provada sob a al. viii. que, a recorrente entende dever constar do elenco factual provado. Relembramos aqui o respectivo teor: «A conta referida em 2.a) supra estava aprovisionada com dinheiro pertencente exclusivamente à ré, fruto do seu trabalho e das suas poupanças, bem como, fruto de subscrição de fundos e obrigações que foi fazendo ao longo dos anos». Ora, em 2.a) deu-se como provado que autor e ré abriram a seguinte conta bancária: «conta bancária no Banco BPI, S.A., balcão de ..., com o número 6-1553719, inicialmente aberta no Banco Borges & Irmão, balcão de ..., este que integrou aquele, conta esta que no dia 25/07/2011, apresentava um saldo no depósito à ordem de € 22.060,80, constituindo um depósito solidário». Não há dúvida que, a prova positiva da matéria constante da al. viii. é deveras difícil, uma vez que, quer o depoimento do autor quer toda a prova testemunhal ouvida em audiência de julgamento foram prestados de forma que não nos ofereceu credibilidade, pois o depoimento daquele foi evasivo, titubeante, inseguro e incoerente, já que não foi capaz de explicar de modo credível quais os seus reais rendimentos mensais e a forma como contribuía com valores para depositar na conta do BPI de que também era titular. Como sabemos, a prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, razão pela qual será normalmente insuficiente para a prova de um facto essencial à causa de pedir que surja desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie. Por isso, cremos não fazer qualquer sentido a argumentação do autor/recorrido no sentido de que, ao longo do tempo ia dando à ré/recorrente, quantias em dinheiro para depositar em conta bancária e não cure de saber durante décadas qual o montante existente na dita conta bancária ou se porventura os montantes que alegadamente diz ter entregue à sua irmã, a aqui ré, estavam a ser depositados, exigindo-lhe nomeadamente o talão de tais depósitos. Há que atentar ainda na referência argumentativa de o autor ter sido casado, ter dois filhos, um deles com necessidades especiais, como foi referido em audiência de julgamento e, por isso, naturalmente com mais despesas e, certamente, por isso, é que necessitou de levantar a quantia de € 800,00 sem o conhecimento da ré, tal como ficou provado no ponto 8. da matéria de facto provada e não impugnada, enquanto a ré, sendo divorciada e não tendo ascendentes ou descendentes, trabalhando assiduamente, naturalmente que pode amealhar mais dinheiro e daí que reivindique a propriedade exclusiva dos fundos depositados na conta do BPI. Relativamente à prova testemunhal também não nos podemos ancorar na mesma, pois como bem refere a sentença recorrida foi “lacónica e suficientemente cerceada pelas relações familiares”, motivo pelo qual, não merece credibilidade. Na verdade, não se acredita que tenha sido apenas o autor a entregar dinheiro à ré como referiu a testemunha CC, filho do autor. Se assim fosse não se percebe a necessidade do mesmo levantar dinheiro sem o conhecimento da ré e esta ter ficado muito aborrecida de tal modo que liquidou todas as contas existentes onde o autor figurava também como titular. Igualmente os depoimentos das testemunhas DD e EE nenhum interesse revestiram por nada saberem em concreto sobre as contas bancárias ou sobre quem emprestava dinheiro a quem. Tendemos a acreditar mais na versão dos factos apresentada pela ré e no depoimento da testemunha FF, irmão do autor e da ré, o qual, pese embora não tivesse conseguido explicar a acumulação das quantias em apreço por parte da ré, é crível, de acordo com as regras da experiência comum que, tal tenha acontecido ao longo de décadas de trabalho e poupança e que esta tenha querido colocar o nome do irmão, o ora autor, como titular da sua conta no BPI, por questões de segurança, para que, em caso de morte, dado não ter descendentes ou ascendentes, o dinheiro revertesse para o seu irmão, como herdeiro. Repare-se que, o autor não conseguiu provar que o dinheiro depositado em qualquer das duas contas fosse da sua exclusiva propriedade, como alegou na p.i. Veja-se, aliás, que nenhum sentido faria serem os montantes depositados, da sua exclusiva propriedade e no caso da conta da CCAM, ele figurar como 2º titular e só poder movimentar a conta após a morte da 1ª titular, a ré, sua irmã. A acrescer a tudo isso, de acordo com o doc. 22 junto com a contestação, extrai-se que quem fez uma aplicação financeira designada por BPI Reforma Aforro PPR – Seguros da Capitalização associada à conta do BPI foi a ré, sendo o autor beneficiário à sua morte. Portanto, como se poderia o autor arrogar proprietário exclusivo de tais montantes se não os podia movimentar enquanto a ré fosse viva? Seguramente que não é seu proprietário. Por outro lado, as declarações fiscais relativas a tais aplicações financeiras sempre foram emitidas pela instituição bancária BPI em nome da ré, por ter sido ela subscritora do referido PPR bem como ter sido a adquirente de obrigações, tal como se infere dos docs. 14 a 21 juntos com a contestação emitidos pelo próprio banco, cuja veracidade não foi impugnada, limitando-se o autor a impugnar o seu teor. Na verdade, como poderia o autor ser o proprietário exclusivo dos montantes, aplicações e obrigações a que a conta do BPI diz respeito se as declarações fiscais não eram remetidas em seu nome mas no da ré? Decorre das regras da experiência comum e da logica dos acontecimentos que, tal é difícil de acontecer senão raro, aliado ao facto de o autor nunca ter querido saber do que constava nos extractos bancários. Há ainda um dado que nos faz crer que os montantes existentes nas duas contas não eram da exclusiva propriedade do autor. Se o fosse, ele não se conformaria com o facto de vir a receber apenas metade do que era seu. Mais, se o dinheiro fosse da exclusiva propriedade do autor como alegou na p.i., qual a razão por que não se insurgiu com a sua condenação em sede reconvencional na sentença de 1ª instância? Mesmo tendo sido condenado apenas a restituir a metade do que havia levantado (€ 800,00 sem o conhecimento da ré), resulta claro que, tendo sido a ré condenada a restituir metade do que ela própria havia depositado ao longo da sua vida fruto do seu trabalho e poupança, seria sempre um ganho para o autor, pois ser-lhe-ia restituído dinheiro de depósitos bancários para os quais nunca havia contribuído. A nossa convicção resulta do conjunto da prova produzida, da experiência comum e da lógica das coisas, tanto mais que, como já atrás referimos, depois de o autor ter levantado dinheiro que não lhe pertencia e a ré vendo que o seu próprio dinheiro estava a ser levantado pelo irmão, ora autor, resolveu proceder à transferência de todos os montantes existentes nas ditas duas contas bancárias para outras a que o autor não tinha acesso. Por isso, estamos em crer que o autor descontente, por se ver impedido de levantar dinheiro como o vinha fazendo, resolveu intentar a presente acção em 10/07/2018, no intuito de, pelo menos, ficar com metade daqueles montantes, apesar de bem saber que os mesmos não lhe pertenciam. Assim, tendo em conta o teor dos documentos juntos aos autos a que supra fizemos referência e a pouca credibilidade dos depoimentos prestados em julgamento, entendemos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos impugnados neste recurso, deve ser alterada. Consequentemente, a matéria constante da al. viii. da matéria dada como não provada deve passar a constar do elenco factual provado sob o nº 11”. Não vislumbramos que a Relação, ao ajuizar conforme supra exposto, tenha desrespeitado as normas legais que definem a força probatória de determinados meios de prova, ou que exigem, para certos factos, prova tarifada, ou pressupõem a logicidade do raciocínio e a existência de base factual para a dedução de factos. Os factos que a Relação, modificando a decisão de facto, deu como provados, assentam em documentos que, na sua existência e no seu teor funcionam como factos instrumentais, nesse âmbito invocados e avaliados pela Relação. Como é sabido, é função dos factos instrumentais permitir a prova dos factos principais, isto é, daqueles que sustentam a procedência da ação ou das exceções que contra ela tenham sido aduzidas (cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 4.ª edição, 2017, Gestlegal, p. 175). Dos factos instrumentais infere-se, de acordo com as regras da experiência humana, a realidade de outros factos. Os factos que servem de base a essa dedução dizem-se factos probatórios. Assim, é facto probatório (e instrumental) a informação contida num documento (José Lebre de Freitas, ob. cit. pp. 175 e 176). A Relação apontou um acervo de documentos (movimentações bancárias, investimentos efetuados pela R., declarações para efeitos fiscais emitidas pelo BPI), declarações do Autor (incapacidade para explicar o seu afastamento da movimentação das duas contas objeto da ação e de esclarecer ou demonstrar a invocada proveniência, como sendo sua, dos fundos entrados nas duas contas), factos dados como provados pela primeira instância (nomeadamente que a conta da Caixa de Crédito Agrícola, referida em 2.b), só poderia ser movimentada pelo A. após a morte da R. - cfr. n.ºs 3 e 4 dos factos provados, que o ora recorrente não questionou aquando da apelação, nomeadamente nos termos e para os efeitos previstos no art.º 636.º n.º 2 do CPC), teor de prova testemunhal (depoimento do irmão do A. e da R., FF, que mencionou a vida de trabalho da irmã como sendo o suporte das poupanças contidas nas duas contas bancárias) para dar como demonstrada a propriedade, pela R., dos fundos que se encontravam depositados nas duas contas. Esses factos instrumentais, resultantes da instrução, eram livremente cognoscíveis pela Relação (art.º 5.º n.º 2 al. a) do CPC). A base factual e probatória utilizada pela Relação para a reapreciação da matéria de facto encontrava-se à sua disposição para esse efeito, e aquela dela fez um uso que não merece censura a este Supremo Tribunal. Os factos provados determinam a elisão da presunção prevista no art.º 516.º do Código Civil, devendo dar-se por demonstrado que as quantias que a R. retirou das duas contas bancárias de que era titular juntamente com o A. pertenciam exclusivamente à R.. Daí a total improcedência da ação e a total procedência da reconvenção – conforme decidido pela Relação. A revista é, pois, improcedente. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido. As custas da revista, na componente de custas de parte, serão a cargo do recorrente, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC). Lx, 04.7.2023
Jorge Leal (Relator) Maria Clara Sottomayor Pedro de Lima Gonçalves |