Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3372/18.7T8VNF.G2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
LICITAÇÃO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- O caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tal como previsto no art. 620º, 1, do CPC, constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.

II- A decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a aplicação da 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC ao caso julgado formal; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou.

III- Assim se verifica quando o conteúdo da decisão fica dependente, por vicissitude superveniente nos autos, da inexistência de invocação de nulidades processuais, enquanto não verificação de condição ou facto relativo à sua validade e à necessidade de posterior decisão judicial sobre a nulidade invocada, não ficando impedida nova pronúncia sobre o acto processual decidido (designação de licitação no exercício de direito de preferência) até decisão dessa condição, pois até esse momento condicionante o conteúdo decisório ainda está na disponibilidade do juiz.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 3372/18.7T8VNF.G2.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 1.ª Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra «Cosoli, SGPS, S.A.» e «Crosscalendar, S.A.», requerendo incidentalmente a intervenção principal provocada de «A... . ...., S.A.», «F. ....... . ...., S.A.», «ORO – SGPS, S.A.», «J. ... ............. . ...., S.A.», BB e CC, pedindo a procedência da acção e, em consequência, a título principal, “a) ser reconhecido à autora, conjunta ou individualmente, o direito de preferência na cessão da quota com o valor nominal de € 994.625,95, no capital social da “O........”, que a “Cosoli” fez à “Crosscalendar” pelo preço de € 1.500,00, substituindo-se a autora a ali à ali cessionária no respetivo contrato”; “b) ser ordenado o cancelamento de todos os registos que hajam sido feitos na sequência dessa cessão, nomeadamente a favor da ré “Crosscalendar”, pelo Dep. 123/2016.0... e a sua inscrição na titularidade daqueles que venham a exercer a preferência”; “c) ser admitida a intervenção principal provocada activa e ordenada a citação dos intervenientes para, como autores, declararem nos autos se pretendem exercer a preferência”; ou, a título alternativo, a entender dever-se aplicar a forma processual do artigo 1037º do CPC, “ser ordenada a alteração da forma de processo e aproveitados os atos praticados e: a) ser reconhecido à autora o direito à licitação no exercício do direito de preferência na aquisição da identificada quota social; b)ser ordenada a notificação dos intervenientes para comparecerem no Tribunal no dia e hora fixados a fim de se proceder a licitação entre eles e a autora, no que respeita ao exercício daquele direito de preferência”.


2. As Rés apresentaram Contestação, pugnando pela improcedência da acção e invocando excepções peremptórias, nomeadamente, a caducidade do direito de acção, a excepção de prévia determinação do preferente e a ineficácia da cessão da quota da Ré «Cosoli» para a Ré «Crosscalendar».

Citados ulteriormente para contestar, vieram apresentar articulado os sócios da «O......... ...., Lda.» cuja intervenção principal tinha sido deduzida, a saber, DD, «J. . .............», BB, «A. . ............., Lda.» (que sucedeu nas posições da «A...») e da «F. .......», aderindo à posição da Autora e declarando que também pretendem preferir na cessão de quota com o valor nominal de € 994.626,95 correspondente ao capital social da «O........».

3. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador (2/11/2020), no qual se fixou o valor da causa em € 1.500 (tendo em conta o decidido nos termos do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) em 6/6/2019, que revogou anterior saneador-sentença: ref.ª CITIUS 6460447), se declarou improcedente a excepção de falta de legitimidade activa da «A. . ............., Lda.», não se conhecendo do pedido subsidiário de habilitação da mesma em substituição da «ACRO», se deu como decidida a nulidade invocada do despacho que agendou diligência de licitação ao ser dada sem efeito a marcação e permitido aos sócios co-Autores pronunciarem-se, se decidiu relegar para final a decisão relativamente à excepção de caducidade do exercício do direito de preferência e se declarou improcedente a excepção de ineficácia da cessão da quota da Ré «Cosoli» para a Ré «Crosscalendar». Foi então definido o objeto do litígio: “aferir dos pressupostos do exercício do direito de preferência na cessão da quota da O........, Lda, que a R Cosoli cedeu à R Crosscalendar”.

4. Foi interposto recurso de apelação pela Interveniente Principal «ORO – SGPS, S.A.» e pelas Rés do despacho que fixou o valor da causa em € 1.500,00, tendo o TRG, por acórdão proferido em 6/5/2021, revogado o despacho recorrido e fixado à causa o valor de € 24.750,00.

Interposto recurso de revista para o STJ pelas Rés, com recurso subordinado dos Intervenientes Principais BB e «J. . .............», foi proferido acórdão (8/2/2022; ref.ª CITIUS 10641562) em que se julgaram improcedentes as revistas (principal e subordinada), confirmando-se a decisão recorrida (transitado em julgado em 24/2/2022).

5. Realizada audiência final de julgamento, a Juiz 2 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão proferiu sentença (27/2/2022), rectificada por despacho ulterior (quanto a alteração do artigo 7.º dos factos provados), a qual dispôs:


“a) Reconheço à aqui A e co-AA, AA, A. . ............., Lda, F. ........ ...., SA, Oro, SGPS, SA, J. ............. . ...., SA, BB e CC, o direito a preferir conjuntamente, na proporção da sua participação no capital social, na cessão da quota da O......... ...., Lda, com o valor nominal de € 994.625,95, que a Cosoli cedeu à Crosscalendar a 25-3-2016, pelo preço convencionado de € 1.500,00.


b) Em consequência, ordeno o cancelamento de todos os registos que hajam sido feitos em consequência dessa cessão, nomeadamente a favor da R Crosscalendar, e a sua inscrição em nome dos aqui preferentes.”


6. As Rés e a Interveniente Principal «ORO – SGPS, S.A.», inconformadas, interpuseram recurso de apelação para o TRG, que, uma vez identificadas quatro grupo de questões, conduziu a ser proferido acórdão (15/12/2022), decidindo (sublinhado nosso, pertinente para o objecto do recurso):

“- julga-se procedente a nulidade por omissão de pronúncia quanto à nulidade da não convocação da audiência invocada pelas RR. no seu requerimento de 16/11/2020;

- conhece-se da referida nulidade e julga-se a mesma improcedente;

- não se conhece do recurso na parte em que tem por objecto o uso, pelo tribunal recorrido, dos poderes conferidos pelo art. 597º do CPC;

- julga-se improcedente o recurso quanto à questão da necessidade da A. . ............., Lda. deduzir incidente de habilitação de adquirente para intervir nos autos;

- julga-se improcedente o recurso quanto à decisão que julgou improcedente a ilegitimidade processual da AO, relegando para a apreciação do mérito da causa a invocada ilegitimidade substantiva da mesma;

- julga-se procedente a nulidade por omissão de pronúncia quanto à reclamação quanto ao objecto do litigio;

- conhece-se da referida questão e julga-se improcedente tal reclamação;

- julga-se improcedente a inexistência da sentença por esgotamento do poder jurisdicional quanto à questão da licitação;

- consigna-se que a questão da repartição da quota, não tendo sido formulado qualquer pedido nesse sentido, é inconsequente;

- julga-se procedente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto às seguintes questões:

a) Natureza fiduciária da cessão de quota (cfr., art. 171.º e ss da contestação à petição da A., e arts. 66.º a 103.º da contestação às petições dos intervenientes);

b) Inexistência do direito convencional de preferência (arts. 163.º a 195.º da contestação);

c) Ilegalidade da cláusula estatutária de preferência (arts. 196.º a 210.º da contestação);

d) Falta de eficácia real do direito de preferência (arts. 211.º a 223.º da contestação);

e) Renúncia ao direito de preferência (arts. 224.º a 236.º da contestação);

- julga-se procedente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à pretensão da interveniente Oro – SGPS, SA, de que lhe seja reconhecido exclusivamente o direito preferir na cessão da quota;

- julga-se improcedente a nulidade da sentença por ter conhecido da questão da repartição da quota;

- julga-se procedente a nulidade da sentença, por condenação ultra petitum, no que respeita ao segmento (a seguir sublinhado) do dispositivo em que reconhece o direito da A. e dos intervenientes a preferir na cessão da quota “na proporção da sua participação no capital social”;

- julga-se prejudicada a questão da nulidade da sentença por contradição;

- anula-se a decisão de facto quanto aos pontos 13 a 22 e 24 a 28 dos factos provados e quanto às alíneas D), E) e G) dos factos não provados, a fim de o tribunal recorrido suprir as contradições verificadas no ponto 6.3.1 deste Acordão;

- anula-se a decisão de facto, a fim de o tribunal recorrido suprir a deficiência quanto [à]questão de facto de saber se a quota da O........ cedida pela Cosoli à Crosscalendar valia, pelo menos, 481.179.37 euros, se necessário, mediante nova produção de prova, juízo que caberá ao tribunal a quo realizar;

- julga-se improcedente a ampliação da matéria de facto quanto às questões do negócio indirecto e fiduciário;

- julga-se improcedente a pretendida eliminação do ponto 35 dos factos provados;

- determina-se que a Sra. Juiz a quo, fundamente devidamente a sua decisão quanto aos pontos 9º a 12º, 17º, 29º, 30º e 34º dos factos provados e a sua decisão quanto à matéria de facto não provada, tendo em conta a prova produzida.”

7. Sem se resignarem, as Rés interpuseram recurso de revista para o STJ, tendo por fundamento o art. 629º, 2, a), do CPC – “ofensa de caso julgado” –, restrito ao “segmento em que decidiu que o despacho da 1ª instância que ordenou a realização de licitação entre a A. e os Intervenientes Principais não constitui caso julgado formal”.


A finalizar as suas alegações, apresentaram as seguintes Conclusões


1.ª Dos actos e termos do processo enunciados sob as alíneas i) a xvii) do corpo da alegação supra – que, por economia processual, se dão aqui por integradas e reproduzidas – extraem-se duas proposições, a saber:

- Nenhuma das partes impugnou o despacho de 11.12.2019, pelo qual foi determinada a realização de licitação entre a A. e os Intervenientes Principais. A única questão suscitada foi o adiamento da data designada para o acto de licitação por forma a respeitar o contraditório, sendo certo que, decorrido o prazo para o efeito, nenhuma das partes questionou, directa ou indirectamente, a realização, em si mesma, da licitação; De resto, se alguma das partes estivesse em desacordo com a licitação ordenada pelo despacho de 11.12.2019, o meio próprio para a impugnação dessa decisão seria o recurso, o que ninguém fez;

- Não há nos autos nenhuma decisão a declarar nulo o despacho de 11.12.2019.

2.ª O despacho de 11.12.2019 não foi anulado por qualquer decisão, pelo que continuou a produzir efeitos.

3.ª Com efeito, considerando o teor inequívoco dos despachos de 23.1.2020, o despacho saneador de fls. … e o despacho de 17.6.2021, proferido na sessão de julgamento desse dia, em nenhum momento o Tribunal da 1.ª instância declarou a nulidade do despacho de 11.12.2019 que ordenou a realização da licitação, tendo-se limitado a dar sem efeito a data agendada para essa diligência para possibilitar o exercício do contraditório.

4.ª Não tendo sido interposto recurso do despacho de 11.12.2019 que ordenou a realização de licitação, nem tendo a 1.ª instância declarado a nulidade dessa decisão, formou-se, com o respectivo trânsito, caso julgado formal.

5.ª A eficácia intraprocessual apresenta-se como inerente a qualquer decisão que transite em julgado, pelo que é consequência de qualquer despacho interlocutório, proferido na pendência da instância.

6.ª Às decisões que não caibam na previsão do art. 619.º, n.º 1, do CPC chama o art. 620.º do mesmo diploma legal sentenças e despachos que “recaiam unicamente sobre a relação processual”, com o que a lei abrange não só a decisão que se pronuncie sobre os elementos subjectivos e objectivos da instância e a regularidade da sua constituição, mas também todos aqueles que, em qualquer momento do processo, decidem uma questão que não é de mérito.

7.ª Proferida uma decisão interlocutória, essa eficácia de caso julgado determina uma vinculação para o julgador, que está obrigado a não repetir nem contrariar as suas próprias decisões, pois encontra-se esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.ºs 1 e 3, do CPC): decidida uma determinada questão, processual ou atinente ao mérito da causa, o juiz não pode vir de novo pronunciar-se sobre ela; terá, sim, que respeitar, nas decisões posteriores do processo, a decisão sobre ela já proferida.


8.ª Decidida interlocutoriamente uma questão processual, se o juiz do processo proferir nova decisão com ela incompatível (por a contrariar ou não a ter considerado como seu pressuposto) esta não valerá, por força do esgotamento do poder jurisdicional, tornando-se definitiva depois do trânsito em julgado, formando-se então o caso julgado formal; se o juiz proferir decisão após se ter esgotado o poder jurisdicional, tal decisão é juridicamente inexistente, não valendo como decisão jurisdicional.

9.ª O caso julgado é uma excepção dilatória resultante da violação de regras relativas a pressupostos processuais (art. 577.º, al. i), do CPC), sendo objecto de controlo oficioso, nos termos do art. 578.º do CPC.

10.ª Em suma: o despacho de 11.12.2019 é vinculativo para o Tribunal da 1.ª instância, que nem o pode repetir ou alterar nem pode deixar de o considerar como pressuposto de decisão dele dependente que venha a proferir, e, tendo esse despacho transitado em julgado, ganhou a definitividade que é própria do caso julgado.

11.ª Os fundamentos invocados no acórdão recorrido para concluir pelo trânsito em julgado do despacho de 23.1.2020, da decisão contida a pgs. 3 no despacho saneador e do despacho proferido na sessão de julgamento de 17.6.2021, revelam um manifesto erro de julgamento, uma vez que apenas foi dado sem efeito o agendamento da licitação, licitação essa já decidida pelo despacho de 11.12.2019:

- O despacho de 23.1.2020 apenas deu sem efeito a data agendada para a licitação, e não a realização dessa diligência que tinha sido determinada pelo despacho de 11.12.2019, como resulta claramente dos seus expressos dizeres: “ (…) dou sem efeito a agendada diligência até decisão das nulidades (…)”;

- No despacho saneador a apreciação das nulidades foi considerada prejudicada por “ter sido dada sem efeito a marcação e permitido aos sócios pronunciarem-se”;

- No despacho proferido na sessão de julgamento que teve lugar em 17.6.2021 diz-se expressamente que “nada a decidir, uma vez que apreciado em sede de despacho saneador e aquando do despacho relativamente ao acórdão do 1.º recurso”.

12.ª Os sobreditos despachos, posteriores ao despacho de 11.12.2019, não têm conteúdo dispositivo, e mesmo que o tivessem, não podiam ter o alcance de alterar ou revogar a licitação ordenada, por se ter esgotado o poder jurisdicional e se ter formado caso julgado formal relativamente a essa questão da relação processual.


13.ª A designação de dia e hora para licitações é uma mera consequência da determinação, a montante, desse mesmo acto, pelo que a falta de despacho nesse sentido apenas permite concluir que a 1.ª instância omitiu a prática de um acto devido. Isso e nada mais.

14.ª Sem prejuízo das anteriores conclusões, acrescente-se que o despacho de 11.12.2019 que ordenou a licitação prevaleceria sempre sobre qualquer outra decisão de sentido contrário proferida posteriormente por ter transitado em primeiro lugar, mesmo quando estejam em causa decisões proferidas dentro do mesmo processo, nos termos do art. 625º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

15.ª A atribuição em conjunto do direito de preferência à A. e aos Intervenientes Principais, constituindo uma proposição antagónica com a natureza e a finalidade da licitação, viola o caso julgado formal formado pelo despacho de 11.12.2019 que ordenou, com trânsito em julgado, a realização desse acto processual.

16.ª Sendo a licitação um expediente de que a lei se socorre para resolver a questão da concorrência entre preferentes, ficando encabeçado no direito de preferência o preferente que fizer o lance mais elevado, excluindo, assim, os demais preferentes, a atribuição em conjunto do direito de preferência significa uma revogação do despacho de 11.12.2019, em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e da intangibilidade do caso julgado formal.

17.ª A interposição de recurso de revista extraordinário com fundamento em ofensa de caso julgado, independentemente do valor da causa e da sucumbência, tem tutela na al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC – cfr., neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., pg. 28.

18.ª Em apertada síntese, decidindo como decidiu, o acórdão recorrido violou o caso julgado formal, pois o trânsito em julgado do despacho de 11.12.2019 impede que, nos presentes autos, seja proferida outra decisão que não seja a realização da licitação ordenada por aquele despacho.

19.ª O acórdão recorrido violou as disposições legais supra citadas.”





A Interveniente Principal «ORO – SGPS, S.A.» apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade e improcedência da revista.





8. Foi proferida Decisão Sumária Liminar, usando da prerrogativa dos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC, julgando improcedente a revista e confirmando-se o acórdão recorrido no segmento impugnado, prosseguindo os autos nos termos decididos e ordenados pelo mesmo acórdão recorrido.


9. Inconformadas, as Recorrentes deduziram Reclamação para a Conferência, reiterando a sua argumentação no contexto da existência de “direitos de preferência concorrentes” dependentes de licitação.


*


Foram dispensados os vistos legais.


Cumpre apreciar e decidir da viabilidade da pretensão das Recorrentes.


II) APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO E FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objecto da revista


As Recorrentes impugnam em revista o acórdão recorrido no segmento em que apreciou o vício imputado à sentença recorrida em função do despacho proferido em 1.ª instância (11/12/2019) sobre a designação de dia para se proceder à licitação entre todos os titulares do direito de preferência na cessão da quota da sociedade comercial «O........», susceptível de – assim se alegou – afectar a existência (recte: validade) da sentença por “esgotamento do poder jurisdicional” (art. 613º, 1, CPC).


Em rigor, não se submete ao juízo do STJ a reapreciação de uma decisão interlocutória que recai sobre a relação processual, proferida em 1.ª instância, no quadro de impugnação contemplado no art. 671º, 2, do CPC. Antes se sindica a constituição de caso julgado formal à luz do art. 620º,1, do CPC, por parte desse despacho e a sua repercussão na validade da sentença proferida em 1.ª instância.


Acontece que o valor da causa não admitiria a admissibilidade da revista, se aplicado o requisito geral do art. 629º, 1, do CPC, que exigiria no caso um valor superior ao valor da alçada da Relação (€ 30.000: art. 44º, 1, Lei 62/2013).


Porém, uma vez que os Recorrentes alegam uma situação de revista extraordinária, prevista no art. 629º, 2, al. a), in fine, onde se abrange a «ofensa de caso julgado», formal ou material, em que o recurso é sempre admissível «independentemente do valor da causa e da sucumbência», tal impedimento geral não se preenche e não obsta à admissibilidade da revista com tal objecto exclusivo e restrito, o que foi apreciado na Decisão Sumária aqui objecto de Reclamação.


Mais se entendeu que o requisito geral de recorribilidade contemplado no art. 631º, 1, se encontra verificado em relação à posição das aqui Recorrentes.


2. Factualidade relevante


Para além do que consta do Relatório supra, para a decisão da revista interessa destacar:


2.1. O juiz de 1.ª instância proferiu despacho em 11/12/2019:

“Perante a intenção dos demais titulares do direito de preferência na compra e venda da quota em questão nos autos, designo o dia 28-1-2020 para se proceder a licitação entre todos, incluindo, naturalmente, a A., nos termos dos artigos 1037.º, n.º 1 e 1032.º, n.os 1 a 3 CPC.”

2.2. A Interveniente Principal «ORO – SGPS, S.A.», por requerimento de 16/12/2019, e as Rés, por requerimento de 06/01/2020, invocaram a nulidade processual do referido despacho.


A primeira, no articulado oferecido nos termos do art. 319º, 3, do CPC, concluiu: “porque o facto deste ter sido proferido antes do final do prazo para apresentação do articulado próprio da Interveniente Principal ORO contitui uma irregularidade, que pode influir no exame ou decisão da causa, por força do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC”.


A segunda pugnou pela procedência da nulidade, dando-se sem efeito o despacho, ordenando-se a notificação das Rés para exercer o contraditório relativamente aos articulados próprios apresentados por cada um dos intervenientes principais.


2.2. O juiz de 1.ª instância proferiu despacho em 13/1/2020:


“Notifique a A e os restantes RR para se pronunciarem sobre a nulidade invocada a fls 270 e ss e 332 e ss.”


2.3. A Interveniente Principal «ORO – SGPS, S.A.» e a Autora, por requerimentos atravessados em 21/01/2020, em resposta do despacho antecedente, vieram requerer quefosse dada sem efeito a designação de data e realização da referida licitação (a última por adesão do primeiro requerimento).


2.4. O juiz de 1.ª instância proferiu despacho em 23/1/2020 (data da assinatura, com Cls. a 22/1):

“A Oro – Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., veio a fls 367 e ss requerer que se dê sem efeito a audiência de licitação para permitir às partes que se pronunciem sobre a invocada nulidade do seu agendamento, dado o prazo terminar na véspera e ainda ser possível às partes pronunciarem-se para lá daquela data, com o pagamento de multa.

A A. EE veio secundá-la por requerimento de fls. 369.

Efectivamente, assim é. Pelo que, para evitar a deslocação inútil de todos os intervenientes para a diligência de licitação já que não pode o tribunal decidir as invocadas nulidades sem estar cumprido o contraditório, dou sem efeito a agendada diligência até decisão das nulidades invocadas pela Oro e pelas RR Cosoli, SGPS, S. A. e Crosscalendar, S. A.”.

2.5. No despacho saneador (2/11/2020) foi decidido:

“A invocada nulidade do despacho que agendou diligência de licitação, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC alegando que foi cometida irregularidade que pode influir no exame ou decisão da causa, já foi decidida ao ter sido dada sem efeito a marcação e permitido aos sócios co-AA pronunciarem-se.”

2.6. Em 9/6/2021, veio a Autora aos autos pronunciar-se e requerer:

“1. Pelo douto Despacho de 11 de Dezembro de 2019, com a referência .......79, foi designado o subsequente dia 28 de Janeiro para que se procedesse a licitação entre os diferentes preferentes.

2. pelo douto Despacho de 22 de Janeiro de 2020, com a referência .......62, foi essa diligência dada sem efeito até à decisão das nulidades invocadas pelas partes.

3. Compulsados os autos, verifica-se que a diligência nunca foi novamente agendada, pelo que, consequentemente, não se realizou.

4. Impõe-se, assim, que seja devidamente esclarecido em que momento terá lugar, o que se requer.”

2.7. Na sessão da audiência de julgamento, que teve lugar em 17/06/2021, o juiz de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho:

“Quanto ao requerimento de fls. 598 e fls. 600, nada há a decidir, uma vez que já foi apreciado em sede de despacho saneador e aquando do despacho proferido relativamente ao acórdão do 1º recurso.”

3. Direito aplicável


3.1. A Decisão reclamada apresenta a seguinte argumentação.


3.1.1. O art. 620º, 1, do CPC estatui:


«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»


Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:

i. as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);

ii. o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.1

Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.


Por outro lado, a decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidadenão se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou2.


3.1.2. O despacho proferido em 11/12/2019, a designar licitação no âmbito do regime do art. 1032º do CPC, apresentou um conteúdo processual indissociavelmente ligado, complexamente, à validade=inexistência de nulidades imputadas a esse mesmo despacho e à necessidade de decisão sobre o fundamento da nulidade arguida perante esse despacho.


Ou seja, olhando para o despacho em causa no “conjunto encadeado de atos, bem como da necessidade da estabilização de tais atos do mesmo decorrentes, essencial à realização das finalidades do processo”3, o seu conteúdo ficou dependente, por vicissitude superveniente nos autos, revelada no despacho de 13/1/2020 relativo ao contraditório sobre as nulidades, da inexistência de invocação de nulidades processuais, enquanto não verificação de condição ou facto relativo à sua validade e à necessidade de posterior decisão judicial sobre a nulidade invocada (que se veio a registar ulteriormente no despacho saneador); verificando-se essa invocação e necessidade de decisão, não estava impedida nova pronúncia sobre o acto processual decidido.


Assim sendo, compreende-se que tenha sido dado sem efeito tal despacho de designação de data para a licitação, uma vez que o seu conteúdo estava ainda na disponibilidade decisória do juiz, como tal mobilizada e actuada no despacho proferido em 23/1/2020. Sendo, por isso, este o despacho que, sem impugnação, constitui caso julgado formal no processo quanto ao acto de licitação (arts. 620º, 1, 628º, CPC):


“(…) dou sem efeito a agendada diligência até decisão das nulidades invocadas pela Oro e pelas RR Cosoli, SGPS, S. A. e Crosscalendar, S. A.”.

3.1.3. Perante esta disciplina – e perante a invocação na Apelação de que, “tendo o tribunal proferido despacho a designar data para licitação, o poder jurisdicional do Tribunal a quo quanto a essa questão extinguiu-se; a sentença, ao atribuir o direito de preferência em conjunto, altera aquela decisão, pelo que é juridicamente inexistente” – adere-se à argumentação do acórdão recorrido (art. 663º, 5, 2ª parte, CPC):

“De tudo decorre que[,] aquando da prolação da sentença, não havia nenhum despacho eficaz a designar dia e hora para licitações, pelo que a sentença, ao reconhecer à A. e a todos os intervenientes, “o direito de preferir conjuntamente”, não decidiu sobre objecto já coberto pelo caso julgado.”


3.1.4. Não se vislumbram razões para alterar os fundamentos usados na Decisão Sumária reclamada, em todas as vertentes analisadas e na adesão à doutrina e jurisprudência do STJ.


Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação, que não é contrariada pela argumentação trazida pela Reclamante, e decidir em acórdão pela sua confirmação, o que se decidirá.


Sem prejuízo.


3.2. As Recorrentes vêm invocar novamente a alegada violação dos acs. da Relação e do STJ que decidiram incidentalmente do valor da causa (cfr. supra, ponto 4. do Relatório), pois neles se referiu, para esse efeito de fixação do valor da causa de acordo com o critério do art. 301º, 1, do CPC, estarmos no caso perante direitos de preferência “concorrentes”, demandantes de licitação ao abrigo do art. 419º, 2, do CCiv.


Porém, esta invocação transcende o objecto do presente recurso, limitada à violação do caso julgado formal, alegadamente constituído pelo despacho de 11/12/2019, na sentença proferida em 1.ª instância.


Tal invocação contende com o dispositivo decisório da sentença de 1.ª instância:


“a): Reconheço à aqui A e co-AA, AA, A..............., Lda, F ........ ...., SA, Oro, SGPS, SA, J. ............. . ...., SA, BB e CC, o direito a preferir conjuntamente, na proporção da sua participação no capital social, na cessão da quota da O......... ...., Lda, com o valor nominal de € 994.625,95, que a Cosoli cedeu à Crosscalendar a 25-3-2016, pelo preço convencionado de € 1.500,00” (sublinhado nosso).


Segmento decisório este que foi objecto da Apelação, sendo identificada a correspondente questão recursiva (“Ilegalidade da atribuição em conjunto do direito de preferência.”), conduzindo ao acórdão da Relação que decidiu julgar procedente a nulidade da sentença nos termos e fundamentos supra referidos, sem obstar ao que se vier a decidir sobre essa questão e suas consequências no exercício do direito de preferência em discussão.


III) DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a Reclamação, confirmando-se a Decisão Sumária reclamada e a prossecução dos autos nos termos do acórdão recorrido.


Custas pelas Reclamantes, que se fixa em taxa de justiça no valor correspondente a 3 UCs.


STJ/Lisboa, 17 de Outubro de 2023


Ricardo Costa (Relator)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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1. V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2021 (reimp.), “Artigo 620º”, págs. 752-753, “Artigo 621º”, págs. 754-755 (“se se concluir que a decisão se baseou em não estar verificada uma condição, em não estar decorrido um prazo ou em não ter sido praticado determinado facto, a eficácia de caso julgado material (…), circunscrita nesses limites, não impede a propositura de nova ação, visando a obtenção duma decisão diversa da proferida, quanto a condição se verifique, o prazo esteja decorrido ou o facto seja praticado”), 757. Recentemente, Ac. do STJ de 3/5/2023, processo n.º 1182/20.0T8VRL-C.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

2. Sobre a aplicação da doutrina do art. 621º ao caso julgado formal, v., favoráveis e exemplificativos, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 621º”, ob. cit., pág. 757.↩︎

3. Neste sentido decisivo para mobilizar o caso julgado formal, transcreve-se o que surge no Ac. do STJ de 1/3/2023, processo n.º 1202/20.9T8OER-A.L1.S1, Rel. ANA RESENDE, in www.dgsi.pt.↩︎