Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3683/16.6T8CBR.C1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
REJEIÇÃO DE RECURSO
TRANSCRIÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5ª ed., p. 169 a 175.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A), B) E C) E 2, ALÍNEA A) E 662.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-02-2015, PROCESSO N.º 299/05.6TBMGD.P2.S1;
- DE 22-10-2015, PROCESSO N.º 212/06.3TBSBG.C2.S1;
- DE 29-10-2015, PROCESSO N.º 233/09.4TBVNG.G1.S1;
- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Para efeitos do disposto nos artigos  640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir,  previstas nas alíneas a), b)  e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por  função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
E, por outro lado, a exigência da  indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada  na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um  ónus secundário, tendente a possibilitar  um acesso mais ou menos  facilitado aos meios de prova gravados relevantes  para a apreciação da impugnação deduzida.

II. Na verificação  do cumprimento dos ónus de impugnação previstos  no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c)  do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada,  já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício  do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo  tribunal  de recurso.

IV. Tendo o  recorrente,  indicado, nas  conclusões das alegações de recurso,  o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas  indicações  com a  transcrição, no corpo das alegações,  dos excertos dos depoimentos  relevantes para o julgamento do objeto do recurso,  tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu  o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos  prescritos  no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento  dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL

I. Relatório

1. Nos autos de processo de inventário, subsequente a divórcio, para partilha dos bens comuns dos ex-cônjuges AA e BB e em que este último, nas funções de cabeça de casal, relacionou bens e dívidas, foram os interessados, relativamente a determinadas verbas, relegados para os meios comuns.

Na sequência disso, veio BB, em 10/05/2016, instaurar, contra AA, ação declarativa,  com processo comum,  pedindo , a  condenação da  Ré  a pagar-lhe:

a) o montante de 23.577,90 € (vinte e três mil quinhentos e setenta e sete euros e noventa cêntimos), correspondente a metade do montante depositado na conta de Depósito à Ordem no Banco CC, S.A nº ...;

b) o montante de 114.723,00 € (cento e catorze mil setecentos e vinte e três cêntimos), correspondente ao produto da venda de apartamento propriedade do autor, adquirido por este em data anterior ao casamento, utilizado na aquisição da casa de morada de família;

c) o montante de 12.470,00 € (doze mil quatrocentos e setenta euros), correspondente a metade do valor emprestado por DD para a construção/obras da casa de morada de família), no valor 24.940,00€, já integralmente pago pelo A.;

d) o montante de 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros), correspondente a metade do valor emprestado por EE para pagamento das obras da casa de morada de família, no valor de 15.000,00€ (quinze mil euros), já integralmente pago pelo A.;

e) o montante de 14.900,00 € (catorze mil e novecentos euros), correspondente a metade do valor emprestado por FF, para pagamento das obras da casa de morada de família, no valor de 29.800,00€ (vinte e nove mil e oitocentos euros), já integralmente pago pelo A.;

f) o montante de 1.225,00 € (mil duzentos e vinte e cinco euros), correspondente a metade do valor das obras realizadas na casa de morada de família para obtenção de licença de utilização – alteração no muro fronteiro (obras realizadas por GG), no valor de 2.450,00€ (dois mil quatrocentos e cinquenta euros), já integralmente pago pelo A.;

g) o montante de 32.168,50 € (trinta e dois mil cento e sessenta e oito euros e cinquenta cêntimos), correspondente a metade do valor dos bens móveis de que a Ré se apropriou indevidamente e cujo valor global se cifra em 64.337,00 €.

Mais pediu a condenação da Ré  a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado por decisão de 1.10.2010, proferida na ação nº 3321/06.5TBCBR, no montante de € 8.762, 23, acrescido de  juros legais de 4%, desde a citação naquela ação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória de € 7.125, 10, fixada por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela primeira decisão, acrescida  de juros de 4% desde a notificação daquela primeira decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão.

Alegou, para tanto e em síntese, ser dono de parte do dinheiro depositado em conta bancária em nome da ré e das filhas; ser credor da ré de quantias que foram emprestadas ao casal para construção da casa que habitaram e que apenas o autor reembolsou; ser credor do património comum de quantia, que era bem próprio e que foi empregue naquela construção, de quantia que pagou ao empreiteiro que aí realizou obras e de quantia em que foi  condenado, judicialmente, a pagar a outro empreiteiro e  dos valores  correspondentes a metade do montante a que ascendem bens móveis que existiam na casa, que a ré ocultou e que não  foram descritos no inventário para partilha de meações.

2. Citada, a ré contestou, sustentando que a dívida da empreitada da casa de morada de família decidida na ação 3321/06.5TBCBR, por decisão do Tribunal de 1ª Instância proferida no processo de inventário  foi incluída na relação de bens e que tendo tal decisão sido revogada pelo Tribunal da Relação, vedada fica, nos termos  do  art. 1336.º CPC, a possibilidade de se discutir, de novo, essa mesma dívida.

Impugnou os demais factos alegados pelo  autor, concluindo pela condenação deste como litigante de má-fé.

3. Proferido despacho saneador, nele julgou-se improcedente a invocada exceção de caso julgado, fixando-se, depois, o objeto do processo e os temas de prova.

4. Realizada a audiência final, em 12.07.2017, foi  proferida sentença que,  julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré a  pagar ao autor a quantia de € 35.519, 27  e a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado por decisão de 1.10.2010, proferida na ação nº 3321/06.5TBCBR, no montante de € 8.762, 23, acrescido de  juros legais de 4%, desde a citação naquela ação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória de € 7.125, 10, fixada por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela primeira decisão, acrescida  de juros de 4% desde a notificação daquela primeira decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão.

Mais absolveu a ré do demais peticionado pelo autor.

5. Inconformados com esta decisão,  dela apelaram a ré e o autor para o Tribunal da Relação de ..., impugnando, para além do mais, a decisão da matéria de facto.

6. Por acórdão proferido em 10.07.2018, o Tribunal da Relação de ..., no que concerne à  impugnação da matéria de facto, rejeitou  o recurso  interposto, quer pela ré, por entender que esta  não observou o ónus previsto na alínea a) do n° 2 do artigo 640° do Código de Processo Civil, quer pelo autor, com o fundamento de que este não cumpriu os ónus previstos  no art. 640º, nº1, als. a) e c) e nº 2, al. a) do CPC.
Mais decidiu julgar, no mais, improcedente o recurso do autor e, na parcial procedência da apelação interposta pela ré, revogar a sentença do Tribunal de 1ª Instância na parte em que condenou a ré “...a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado por decisão de 1.10.2010, acima identificada, ação 3321/06.5TBCBR, na quantia de € 8.762, 23, com juros legais de 4%, desde a citação naquela ação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória fixada por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela primeira decisão, em € 7.125, 10, com juros de 4% desde a notificação daquela primeira decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão até efetivo e integral pagamento.”, indo a Ré absolvida do pedido correspondente.

6. Inconformada, com esta decisão, dela interpôs a ré recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 - Vem o presente recurso de Revista Excepcional interposto do douto acórdão da Relação proferido nos presentes autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, que rejeitou o recurso da Ré/Recorrente na parte relativa à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, com fundamento e ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do n° 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil.

2 - O douto acórdão recorrido rejeitou o recurso interposto pela Ré/Recorrente no que se refere à impugnação da matéria de facto, por entender que a aí Apelante e ora Recorrente, não observou o ónus previsto na alínea a) do n° 2 do artigo 640° do Código de Processo Civil por não ter "feito a indicação dos tempos, onde, no suporte em que ficam gravados esses elementos de prova, se situam as passagens que entendia relevantes para alcançar a alteração que pretendia quanto à matéria de facto", uma vez que entende que o recorrente apenas cumpre o que a lei exige no aludido 640°, n° 2, al. a) se "indicar, por referência ao suporte onde se encontrem gravados os depoimentos que pretenda utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens desses depoimentos, em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante"

3 - Não pode a ora recorrente concordar com tal entendimento, desde logo, porque parte de errados pressupostos: (1) o de que por "passagens da gravação" o legislador se quer referir a "passagens dos depoimentos", sendo que ambos os conceitos são material e substancialmente distintos e (2) o de que é sempre possível aos recorrentes indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravada a audiência de discussão e julgamento, o início e o termo da concreta passagem que se quer evidenciar, o que, por regra, não sucede.

4 - A ora recorrente, nas suas alegações de recurso, identificou os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência à matéria de facto dada como provada, indicou os elementos de prova que entendeu mal valorados, forneceu a indicação da sessão onde foram prestados os depoimentos das testemunhas que, a seu ver, impunham decisão diferente, com referência ao início e termo dos mesmos, transcrevendo as passagens em causa, bem como referiu qual o sentido em que, no seu entender, deveria ter sido decidido, o que tanto bastava para que o douto tribunal da Relação devesse ter procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de rejeitar, nesta parte, o recurso.

5 - Com tal rejeição, deixou o tribunal da Relação de apreciar questão que se lhe impunha que apreciasse, o que lhe estava vedado, sendo nulo o douto acórdão proferido, nos termos dos artigos 615° alínea d) e 666° do Código de Processo Civil, nulidade essa que ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

6 - Mas o certo é que tal entendimento, salvo melhor opinião, encontra-se em oposição ou contradição com o douto Acórdão, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 01/07/2014, no Processo n° 1825/09.7TBSTS.P1.S1, da 1a Secção, em que é Relator o Exm° Senhor Doutor Juiz Conselheiro Gabriel Catarino - acórdão fundamento - que considera que o Tribunal de Recurso não se deve abster de reapreciar a prova gravada ainda que o recorrente não indique com "exactidão", as passagens da gravação em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa.,

7 - Ambos os Acórdãos - Acórdão recorrido e Acórdão fundamento - foram proferidos no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamentai de direito - ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto imposto pelo artigo 640° n° 2 alínea a) do CPC - e não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

8 - Seguindo o entendimento explanado no douto Acórdão fundamento, entende a ora recorrente que a indicação, ainda que não totalmente exacta, das passagens da gravação em que funda o recurso para basear o erro de julgamento com referência às provas gravadas é suficiente para se considerar que o recorrente cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640°, n° 2, alínea a) do Código de Processo Civil, não havendo motivo ou fundamento para que o Tribunal da Relação deixe de apreciar o recurso na parte relativa à da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto.

9 - A questão da interpretação do estatuído na alínea a) do n° 2 do artigo 640° do CPC, podendo parecer despicienda, é, no entanto, de extrema relevância jurídica, porquanto uma má interpretação de tal preceito pode pôr em causa o próprio direito fundamental, constitucionalmente consagrado, do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, sendo a sua discussão e apreciação, pela sua relevância, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

10 - Pelo que, mesmo que não houvesse qualquer contradição entre acórdãos -
e há - sempre deveria tal questão ser discutida e a Revista Excepcional admitida, ao
abrigo da alínea a ) do n° 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil.

11 - A verdade é que a rejeição liminar do recurso na parte relativa à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, quando a ora recorrente cumpriu o "cerne" material, ou o ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto do seu recurso e de fundamentação concludente da sua impugnação, é uma sanção demasiado gravosa para uma eventual falha de indicação de uma questão meramente formal, ou ónus secundário.

12 - No caso concreto do autos, tendo a Ré/Recorrente, nas alegações que interpôs para o Tribunal da Relação de ..., indicado as passagens da gravação em que se fundou para sustentar ter havido erro na apreciação da prova gravada, com referência à sessão a que pertenciam e aos minutos indicados na acta de início e fim e tendo feito um resumo, transcrito, dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, serviam para contrariar a decisão sobre a matéria de facto dada pelo Tribunal recorrido e impunham decisão diversa, que indicou, deve entender-se que cumpriu, no essencial, o ónus imposto pela alínea a) do n° 2 do artigo 640° do Código de Processo Civil, como, aliás, entende o douto Acórdão Fundamento, pelo que devia o seu recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto, ter sido apreciado e decidido.

13 - O douto Acórdão recorrido, ao entender que as indicações dadas pela Ré/Recorrente nas alegações que interpôs para o Tribunal da Relação de ... e supra explanadas, não cumpriram o ónus imposto pela alínea a) do n° 2 do artigo 640° do Código de Processo Civil, por "omissão da indicação exacta que se determina na alínea a) do n° 2 do artigo 640o", optou por tese que o levou a decisão oposta à do douto Acórdão fundamento.

14 - Há pois, oposição de julgados entre os dois Acórdãos (recorrido e fundamento), verificando-se o requisito da alínea c) do n° 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil, devendo ser admitida a Revista Excepcional.

15 - Quando assim se não entenda, então deve ser admitida a Revista nos termos gerais, porquanto entende a ora recorrente não se verificar a dupla conforme (impeditiva do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), porquanto a reapreciação das provas é um "poder" próprio do Tribunal da Relação, sem qualquer correspondência com a decisão da primeira instância, não existindo, consequentemente, no entender da ora recorrente, uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões uniformes, para tanto aqui se dando por reproduzidas as alegações ora produzidas».

Termos em requer seja revogado o acórdão recorrido e o  recurso interposto pela ora recorrente admitido na parte relativa à impugnação da matéria de facto, com todas as legais consequências.

7. Também inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação de ..., o autor  dela interpôs recurso de revista  para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« A) O presente recurso de Revista que se interpõe do Acórdão da Relação proferido no âmbito dos presentes autos tem por objeto a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo de rejeição do recurso interposto pelo aí apelante, consubstanciado no invocado incumprimento dos ónus previstos no art.° 640, n° 1, a) e c) e n° 2, a) do NCPC, resultando na não apreciação da prova e consequente mérito do mesmo, devendo tal decisão, por ilegal e em clara contradição com o estatuído no artigo 640.° do CPC, ser revogada e substituída por outra que admita o recurso e, consequentemente, leve à apreciação da prova e do mérito do recurso aí interposto.

B) Bem como a decisão de julgar procedente o recurso da Ré, revogando a sentença no que respeita à condenação desta litigante "... a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado pro decisão de 1.10.2010, acima identificada, ação 3321/06.5TBCBR, na quantia de €8.762,23, com juros legais de 4%, desde a citação naquela ação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória fixada por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela primeira decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão até efetivo e integral pagamento.", indo a Ré absolvida do pedido correspondente."

C ) Entendeu o Tribunal a quo rejeitar o recurso consubstanciado no incumprimento dos ónus previstos no art° 640, n° 1, a) e c) e n° 2, a) do NCPC que se concretizam na:

a. Especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. Especificação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e

c.   Falta de indicação exata das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes

D)   Com a decisão de rejeição do recurso de apelação aqui sujeita a escrutino, o Autor ora Recorrente viu-se impedido de ver sindicada a decisão de facto que culminou no julgamento da improcedência da quase totalidade do seu pedido.

E)    O artigo 2.° do CPC ao dispor que "A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar" pretende que os tribunais optem e se esforcem para que profiram decisões de mérito  suficientemente fundamentadas que justifiquem ao comum dos mortais o motivo pelo qual lhe foi deferido ou não determinado pedido que formulou em sede de petição inicial.

F)    O artigo 202° da CRP determina que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Sendo certo que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados, devendo optar para o efeito e sempre que tal lhes seja viável pela prolação de decisões que avaliem do mérito dos litígios levados a tribunal por parte dos cidadãos.

G)  É efetivamente contrária à referida disposição da CRP a interpretação do artigo 640.° do CPC no sentido de rejeitar o recurso, abstendo-se de conhecer da matéria de facto e consequentemente do mérito da decisão, por violação dos requisitos formais aí explanados, sempre que ainda assim e independentemente dessa violação, seja possível a apreciação do mérito da questão com base na sua inteligibilidade e alcançabilidade, ainda que tal corresponda a um esforço acrescido por parte desse Tribunal, designadamente no que respeita à audição das gravações dos depoimentos.

H) Em prol da verdade material o Tribunal da Relação deve proceder às audição da íntegra dos depoimentos invocados pelas partes nos respetivos recursos, sob pena de poder ser levado a extrair conclusões fora do contexto de testemunho realizado e precipitar-se em decisões ilegais e injustas!

I) Mas mesmo que se entenda que os Tribunais não têm a obrigação de aproximar os cidadãos à justiça (processual) esforçando-se por proferir decisões de mérito, verdade é que os incumprimentos (processuais) invocados pelo Tribunal a quo, para justificar a recusa em proferir uma decisão de mérito sobre o peticionado estão longe de se verificarem no caso em concreto ou de se mostrarem de tal forma gravosos que impedissem aquele Tribunal de julgar a matéria de facto sujeita a recurso.

J) Não se verifica a alegada violação do ónus de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, sendo que o Apelante especifica de forma bastante explícita, - utilizando inclusivamente negrito na formatação do texto, quais as questões a submeter à reapreciação dos Venerandos Desembargadores, identificando as seguintes:

a. A - A existência de depósito bancário - CONTA DO BANCO CC - Depósito à Ordem no Banco CC, S.A n° .... - que à data de 30-12-2018 apresentava um
saldo de 50.096,57 € (cinquenta mil e noventa e seis euros e cinquenta e sete
cêntimos)

b. B - Emprego de bem próprio para aquisição de bem comum - valor adquirido pelo
A./Recorrente na sequência de fracção que lhe coube por partilha subsequente a
anterior divórcio

c. C - Bens móveis - Bens móveis que ficaram na casa de morada de família, ao
cuidado da R./Requerida e que devem ser relacionados como bens comuns a
partilhar.

K) Identificando novamente tais pontos de facto em sede de apresentação de conclusões do recurso, sendo exemplo disso mesmo as conclusões C), G) e L).

L) Em consequência a decisão de rejeição do recurso na parte em que se recusa a apreciar a factualidade posta em causa consubstanciada em tal violação, deverá ser revogada e ser o recurso aceite e submetido a julgamento quanto à matéria de facto e sobre o mérito da causa, por falta de verificação dos pressupostos processuais que justificaram tal decisão de rejeição do recurso.

M) Revogação essa que deverá ser consubstanciada na violação do disposto no artigo 640.°, n.° 1, al. a) do CPC por parte do Tribunal a quo ao determinar que o ora recorrente não cumpriu o ónus de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.

N) Não se verifica a alegada violação do ónus de especificação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, sendo clarividentes as especificações das decisões que no seu entender deveriam ser proferidas pelo Tribunal a quo, identificando-as no texto do recurso, bem como nas suas conclusões, sendo exemplo disso mesmo a conclusão F) K) e M).

O) Pelo que, também aqui não se alcança que o ora Recorrente tenha incorrido no vício supra invocado, pelo que deverá a decisão de rejeitar o recurso com base no invocado incumprimento do ónus de especificação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, ser revogada com base na violação do disposto no artigo 640.° do CPC e substituída por outra que admita o recurso de Apelação e leve à apreciação da matéria de facto e consequentemente do mérito da causa.

P) Não se verifica a alegada falta de indicação exata das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Q) Nos pontos de facto que considera incorretamente julgados, verdade é que o ora Recorrente indicou com precisão os depoimentos que fundam o seu recurso e alegações de recurso, identificando sempre o nome da testemunha em causa e o respetivo ficheiro de gravação que serve de base ao suporte de tal depoimento.

R) Resulta apenas da norma que o Recorrente tem o dever de indicar com precisão as passagens da gravação em causa, nunca resultando da norma que a exatidão apenas será viável pela indicação dos tempos do depoimento referenciado.

S) Na verdade, tal interpretação restritiva é contrária ao espirito da norma que, desde que se identifiquem as passagens em causa com exatidão, conferiu ao Recorrente liberdade na sua identificação.

T) Com efeito, o ora Recorrente identificou tanto as passagens dos depoimentos como os documentos que suportam as alegações de recurso, tendo o Tribunal a quo todas as condições de se pronunciar sobre a matéria de facto em causa e sujeita a recurso.

U) Consequentemente, ao ter decidido como decidiu - com a rejeição do recurso pelo simples facto do Recorrente não ter identificado os tempos da gravação - o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 640.° do CPC, por adotar uma interpretação não consentânea com a letra e o espírito da norma, devendo ser tal decisão revogada e substituída por outra que determine a aceitação do recurso e que leve à decisão sobre a matéria de facto posta em causa e consequentemente sobre o mérito da causa.

V) Nesse sentido segue este Douto Tribunal que, por exemplo, no acórdão proferido no âmbito do processo 1825/09.7TBTS.P1.S1, l.a Secção, datado de 01/07/2014.

W) Atento o supra exposto consubstanciado no facto do Tribunal a quo não ter conhecido a matéria de facto posta em causa toda a decisão proferida no âmbito do mérito dos recursos estará inevitavelmente inquinada, em especial no que respeita à questão do "pretenso emprego de bem próprio" e quanto à questão "dos bens móveis", devendo assim ser revogada tal decisão, ordenando-se que o Tribunal a quo decida tais questões após apuramento da factualidade posta em causa, no recurso em causa.

X) Por outro lado e no que respeita à condenação da Ré "... a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado por decisão de 1.10.2010, acima identificada, ação 3321/06.5TBCBR, na quantia de €8.762,23, com juros legais de 4%, desde a citação naquela ação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória fixada por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela primeira decisão, em €7.125,10, com juros de 4% desde a notificação daquela primeira decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão." agora revogada pelo tribunal a quo, por se entender que a Ré nelas não teve qualquer tipo de intervenção."

Y) Entende o Tribunal a quo que "Efectivamente, não sendo a acção interposta contra a ora Ré, nem sendo a mesma chamada a intervir, não está vinculada ao que aí foi decidido e, por isso, o facto de o aí Réu ter sido aí condenado a pagar determinada importância a favor do aí credor, é irrelevante para efeitos de ora Autor vir agora pretender fazer a dívida também da responsabilidade da ora Ré, quando não possibilitou a esta - v.g., chamando-a a intervir na ação - discuti-la em confronto com o credor."

Z) Ora a ação foi interposta contra o aqui Autor Recorrente em 2006 tendo sido proferida sentença em 1.10.2010, sendo que praticamente todo o seu processamento processual realizou-se enquanto os aqui partes eram casados no regime da comunhão de adquiridos.

AA) Em consequência disso mesmo, e nos termos do disposto no atual artigo 34.° n.° 3 do CPC tal ação não teria que ser intentada contra ambos os cônjuges e ainda assim caso um deles fosse condenado responderiam os bens comuns do casal.

BB) Na verdade, a questão que se colocará é se os cônjuges continuassem casados em outubro de 2010 aquela condenação aplicar-se-ia aos bens comuns do casal ou não? A resposta é claramente em sentido afirmativo, por via do disposto no artigol691.° do CC!

CC) A decisão agora posta em causa suscita um enriquecimento sem causa da Ré/Recorrida nos termos do disposto no artigo 473.° do CC, pelo que teria sempre, esta última, que devolver a quantia a que injustificadamente se locupletou.

DD) Consequentemente, ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 34.° do CPC, bem como os artigos 473.° e 1691.° devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que condene a Ré/Recorrida naquele pedido em concreto.

Por tudo o supra exposto deve o presente Recurso de Revista ser julgado totalmente procedente e em consequência serem revogadas as decisões do Tribunal a quo aqui identificadas.»

8. A ré respondeu, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo autor.

9. Apresentados os autos à Formação de Juízes a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC, decidiu a mesma que tendo o recurso por fundamento  a violação das normas  dos arts. 640º e 662º, nº1, ambos do CPC, a ausência de dupla conforme relativamente a esta questão implica necessariamente o conhecimento do recurso como revista normal. 

10. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

    


***

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões  que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].

Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber:


A - Quanto ao recurso interposto pela ré:

1ª- se no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de ..., ao não tomar conhecimento dos segmentos da decisão de facto impugnados, com fundamento na inobservância do requisito formal do ónus impugnativo previsto  na alínea a) do nº 2 do  art. 640º, violou  o disposto neste artigo, em conjugação com os artigos 639º, nº1 e 662º,  todos do C. P. Civil; 

2ª- se o acórdão recorrido padece da nulidade  prevista  no art. 615º, nº1, al. d), ex vi, art. 666º , ambos do CPC.

B - Quanto ao recurso interposto pelo autor

1ª- se no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de ..., ao não tomar conhecimento dos segmentos da decisão de facto impugnados, com fundamento na inobservância do requisitos formais do ónus impugnativo previstos  no  art. 640º, nº1, als. a) e c) e nº 2, al. a) violou  o disposto neste artigo, em conjugação com os artigos 639º, nº1 e 662º,  todos do C. P. Civil;

2ª-  se deve ser mantida a condenação da ré a reconhecer a existência de uma dívida comum do extinto casal a HH e a cujo pagamento foi o A. condenado  por decisão de 1.10.2010, proferida  na ação 3321/06.5TBCBR.


***

III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto

A) – a) - Na sentença da 1.ª Instância a decisão proferida quanto à matéria de facto foi a que ora se transcreve:

«[…] Matéria de Fato Provada

1 - A. e R. contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos, em 14 de Setembro de 1996 (doc. de fls. 21), tendo o casamento sido dissolvido, por divórcio, em conferência ocorrida no então Tribunal de Família e Menores de ..., 1º Juízo, processo nº 979/08.4TMCBR, em 08-03- 2010 (doc. de fls. 22).

2 - A ação de divórcio foi precedida da saída da casa de morada de família do então cônjuge marido, em outubro de 2008 [a data de saída do A. da casa é aceite pela Ré e foi coonestada em julgamento pelos testemunhos ouvidos, particularmente pelo produzido pelo amigo do A., a testemunha II].

3 - Na sequência do divórcio, foi intentado no Tribunal de Família e Menores de ... inventário para partilha de bens, no âmbito do qual o Autor, e aí cabeça-de-casal, relacionou bens e passivo, os quais não foram integralmente aceites pela Ré, nomeadamente quanto às seguintes verbas:

a) Verba n.º 4: Depósito à ordem no Banco CC, SA, n.º ....

Foi decidido por decisão de 9.5.2013, naquele processo de inventário, o seguinte: 3) por se não ter apurado com suficiente certeza ou segurança se a conta da verba n.º 4 pertence só às filhas da requerente, só constando ela como titular, por elas serem menores, são os interessados remetidos para os meios comuns, mas permanecendo relacionada a mesma, sendo o valor a considerar o existente à data da instauração do divórcio [na relação de bens esta verba foi descrita com o montante de € 2.815, 64 – fls. 68 v.º] – 28-11-2011 – face ao disposto no art. 1789.º do CC /cfr. art. 1350.º/2 do CPC – doc. de fls. – fls. 25.

Esta decisão foi mantida em sede de recurso, pelo acórdão da RC, datado de 25.2.2014, onde se lê decidir aquele Tribunal a) manter a decisão recorrida relativamente ao ponto 3 (doc. de fls. 116 v.º), tendo fundado tal decisão no seguinte; (…) nos termos do art. 1350, n.º2, CPC, permanecem relacionados os bens cuja exclusão se requereu, o que significa quem, tendo-se o Sr. Juiz abstido de decidir sobre a propriedade dos bens depositados (que considerou no valor à data da propositura da ação), se deve partir do princípio de que os valores depositados pertencem aos cônjuges divorciados e não às titulares da conta (fls. 111 e v.º).

b) Verba n.º 41, no montante de € 114.723, 00, apresentada como crédito do aqui A. sobre o património comum do ex-casal, e decorrente da venda da fração “O”, do prédio com o art. predial urbano 7218 e descrição predial 256/19850910, da CRPredial de ....

Sobre esta verba, no processo de inventário, decidiu-se o seguinte: 7 a) por se não ter apurado (…) o montante exacto do preço recebido pelo CC pela venda do seu imóvel com que entrou para a aquisição da verba n.º 1 da relação, e constante do passivo da verba n. º 41 (…), são os interessados remetidos para os meios comuns (doc. de fls. 25 v.).

Esta decisão foi mantida, nesta parte, pois não foi objeto de recurso.

c) Verba n.º 43, no montante de € 25.000, 00, apresentado como crédito do A. sobre o património do casal, decorrente de empréstimo prestado por DD para fazer face às despesas com a construção da casa de morada de família, valor que foi reembolsado exclusivamente pelo A. em 2008 (doc. de fls. 89 v.º).

d) Verba n.º 44, no montante de € 15.000, 00, apresentado como crédito do A. sobre o património do casal, decorrente de empréstimo prestado por EE, para fazer face às despesas com a construção da casa de morada de família, valor que foi reembolsado exclusivamente pelo A. (doc. de fls. 90).

e) Verba n.º 45, no valor de € 30.000,00, relativa a empréstimo prestado por FF, para pagamento das obras casa de morada de família (doc. de fls. 90).

f) Verba n.º 46, no valor de € 2.450, 00, correspondente a obras na casa de morada de família para obtenção de licença de utilização (alteração do muro fronteiro), realizadas por GG, tendo este valor sido pago pelo A. após ter saído da casa em apreço (doc. de fls. 90).

Sobre este passivo, o despacho aí proferido consignou o seguinte: 7 c) quanto ao invocado crédito do CC do pagamento de dívidas do casal, após 2008, das verbas n.ºs 43 a 47 do passivo, por se não ter apurado (…) esses pagamentos, são os interessados remetidos para os meios comuns (…) – doc. de fls. 25 v.º.

Esta decisão não foi alterada pelo Tribunal da Relação.

g) Verba 11: Treze salvas de prata; Valor: 5.200,00€

Verba 12: Oito serviços de Jantar completos de 12 peças da Vista Alegre; Valor: 12.000,00€

Verba 13: Cinco serviços de café completos de 12 peças da Vista Alegre; Valor: 6.000,00€

Verba 14: Quatro serviços de chá completos de 12 peças da Vista Alegre; Valor: 4.800,00€

Verba 15: Um faqueiro completo em estojo debruado a ouro para 24 pessoas; Valor: 2.000,00€

Verba 16: Um carro para bebidas de apoio à sala de estar em madeira ornamental e envidraçado trabalhado com acabamento superior;

Valor: 400,00€

Verba 17: Três serviços de cristal completos para 12 pessoas; Valor: 6.000,00€

Verba 18: Um serviço de cristal completo para 24 pessoas; Valor: 2.000,00€

Verba 19: Um armário/estante com 72 miniaturas réplicas de vários utensílios em cristal; Valor: 4.320,00€

Verba 20: Três máquinas de café novas;

Valor: 630,00 €

Verba 21: Uma estatueta metálica, cavalo em pé assente nas patas traseiras 60cms banhada a prata; Valor: 1.200,00€

Verba 22: Dois galheteiros com suporte em prata e duas garrafas em cristal colorado; Valor: 1.200,00€

Verba 23: Três quadros (telas) a óleo; Valor: 2.250,00€

Verba 24: Um espelho com moldura valiosa com a dimensão de 1,5 x 0,90 m; Valor: 450,00€

Verba 25: Dezoito garrafas de Whisky James Martins 22 anos; Valor: 2.160,00€

Verba 26: Três garrafas de Whisky 22 anos; Valor: 360,00€

Verba 27: Duas garrafas de Whisky Logan de Luxe 12 anos garrafa de 2,5 l com estojo metálico; Valor: 720,00€

Verba 28:Trinta e seis garrafas de Vinho Quinta da Dona colheita de 2004; Valor: 1.260,00€

Verba 29: Quarenta e seis garrafas de Vinho Quinta do Canto, colheitas de 1994-2004; Valor: 1.012,00€

Verba 30: Onze garrafas de Vinho Quinta do Canto colheita de 1994-2004; Valor: 165,00€

Verba 31: Dezassete garrafas de Vinho Quinta do Canto colheita de 1994-2004; Valor: 238,00€

Verba 32: Vinte e três garrafas de Espumante Bruto e Meio Doce diversos produtores; Valor: 414,00€

Verba 33: Catorze garrafas de aguardente velha (diversos produtores); Valor: 1.820,00€

Verba 34: Duas garrafas de aguardente velhíssima “Nunes Maia”; Valor: 280,00€

Verba 35: Dezanove garrafas de Vinho do Porto (diversos produtores); Valor: 798,00€

Verba 36: Um cofre;

Valor: 1.250,00€

Verba 37:Três jarrões em porcelana, pintados, com um metro de altura; Valor: 1.200,00€

Verba 38: Dois arranjos florais para os jarrões de porcelana (contendo flores secas e preparadas para longa duração);

Valor: 1.500,00€

Verba 39: Dois arranjos florais com suporte em metal; Valor: 960,00€

Verba 40: Uma máquina porta garrafões de água mineral com dispositivo de refrigeração e aquecimento;

Valor: 1.750,00€

Quanto a estas verbas, o despacho proferido no processo de inventário foi o seguinte: 6) por se não ter apurado com suficiente certeza ou segurança a existência dos bens relacionados nas veras 11 a 40, são os interessados remetidos para os meios comuns, mas permanecendo relacionados (cfr. art. 1350.º/2 do CPC) – doc. de fls. 25 e v.º.

4) Verba 59: Valor peticionado no processo judicial que correu seus termos na Vara Mista de ... – 1ª Secção (processo nº 3321/06.5 TBCBR – Ação de Processo Ordinário) instaurado por HH, cujo desfecho/condenação afeta o património comum, no valor de 8.762,23 €, acrescido de juros desde a citação até integral pagamento, e no valor de 7.125,10€ acrescido de juros de mora à taxa supletiva de 4% desde a notificação daquela decisão e de juros à taxa de 5% ao ano, sobre a quantia de €.7.125,10, desde o trânsito em julgado da mesma (cfr. fls. 91).

Quanto a esta verba, em sede de recurso do despacho proferido no processo de inventário (fls. 26), foi a mesma verba excluída da relação de bens (fls. 116 v.º).

5) A conta de depósito à ordem no Banco CC, S.A nº ..., tem como titulares a Ré, a filha da Ré, JJ, e a filha do cabeça-de-casal e da Ré, KK, estando provisionada a 28.11.2011, data do início da ação de divórcio, com a quantia de € 2.815, 64; a 4.12.2018 com o valor de € 3.624, 37, e com o valor de € 50.096, 57, a 30.12.2008 (doc. de fls. 30 e demais matéria já assente em inventário quanto ao valor existente à data da ação de divórcio).

6) Por via da partilha realizada em 16.6.2001, por divórcio do A. com LL com quem foi casado em comunhão geral de bens e de quem se divorciou a ….1995, foi atribuída a este a fração autónoma designada pela letra “O”,, correspondente à primeira cave esquerda, com entrada pelo número 2, do prédio urbano sito em ..., na Rua ..., à ..., designado por lote 1 ou Bloco ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n. ...e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … (doc. de fls. 31 e ss.). A titularidade registral da fração foi inscrita a favor do A. e sua ex-mulher, LL, em 06/05/96, por compra à LL (doc. de fls. 36), altura em que o A. já vivia em comunhão integral de vida com a Ré, desde 1985/86 [O fato relativo ao início da união de fato com a Ré resulta das declarações de parte do A., bem como do testemunho da ex-mulher do A., a testemunha LL.]

7) A. e R. compraram, por escritura de 25.11.1999, pelo preço de cinco milhões de escudos, um lote de terreno para construção, sito em ..., ..., destinado à construção de moradia para habitação dos compradores que receberam do NN, no mesmo ato, a quantia mutuada de vinte e três milhões de escudos (doc. de fls. 42 e ss.).

8) Por escritura de 28.5.2002, o A. declarou vender o prédio descrito em 6, a OO e mulher, pela quantia de € 60.000, 00, valor que os compradores, no mesmo ato, receberam do PP, SA, por mútuo que este lhes concedeu (doc. de fls. 39 e ss.).

9) Para realização das obras de reconstrução/acabamentos da casa de morada de família - casa de habitação, sita na Rua …, ..., freguesia de ..., concelho de ..., por mais do que uma vez e por mais do que uma pessoa foi emprestado dinheiro a A. e Ré.

10) Assim, para esse efeito, DD emprestou ao A. e à Ré a quantia de 24.940,00 € que foi diretamente aplicada nas obras da casa de morada de família e foi devolvida àquele DD, pelo A., em 2010, sem juros.

[Sobre os empréstimos obtidos por A. e Ré a partir de amigos e clientes do A. para fazer face a despesas com as obras da casa - moradia que todas as testemunhas concordaram ter ascendido a valores elevados, atenta o volume e qualidade de obras verificados (casa farta, moradia grande com piscina, como descreveu a testemunha II) -, foi ouvida a testemunha QQ que referiu conhecer o A. desde 1999/2000. Depôs de forma objetiva e credível, sabendo que DD, abastado amigo e cliente do A., lhe emprestou cerca de € 25.000, 00, em 2006 ou 2007, valor que ficou titulado em cheque de garantia e que o A. veio a saldar em finais de 2011, altura em que esta testemunha emprestou ao A. a quantia de € 5.000, 00, que lha pediu para pagar aquela dívida já antiga a DD. Também RR, mulher daquele DD ao tempo do falecimento deste e antiga empregada da casa, quando aquele era casado com senhora entretanto falecida, sabia que o A. andava a construir a moradia e pediu dinheiro emprestado àquele falecido que ficou com um cheque que o A. lhe deu em garantia (o de fls. 47, de uma das empresas do A.), tendo o montante em apreço, ali titulado, sido pago por várias vezes pelo A., que acabou de o pagar em 2010, segundo julga, altura em que DD devolveu o cheque ao A.]

11) Por sua vez, o amigo do Autor EE emprestou ao A. e à Ré a quantia de 15.000,00 € que foi diretamente aplicada nas obras da casa de morada de família, tendo a mesma sido devolvida, sem juros, pelo A. àquele EE já depois de proferida a decisão de divórcio entre A. e Ré.

[De forma credível e equidistante, referindo-se ao empréstimo desta quantia ao A., para obras na moradia, e por nele confiar, uma vez que efetuava a contabilidade de empresa de que é sócio- gerente, a testemunha EE, sabia que o A. tinha um apartamento que estava para vender, mas precisou de dinheiro para as obras da moradia e por isso pediu-lhe € 15.000, 00, para o efeito, tendo-lhe devolvido de forma doseada, apenas desde 2014, não lhe tendo cobrado juros, atenta a relação de amizade que os unia.]

12) FF, amigo de A. e Ré e, por si e pelas respetivas empresas, cliente das sociedades do A., na altura em que A. e R. procediam às obras da casa de morada de família, emprestou-lhes a quantia de 29.800,00 €, dinheiro que foi diretamente aplicado na casa de morada de família, tendo tal valor sido devolvido pelo A. àquele FF, já depois de decretado o divórcio com a Ré.

[O testemunho de FF foi credível e claro, aludindo a relacionamento pessoal e comercial estreito entre si e o A. e as empresas de ambos, relacionamento que possibilitou empréstimos como o que ficou demonstrado, para a realização das obras na casa, empreendimento que a testemunha considerava exagerado para o que considerava serem as possibilidades reais do casal. Este seu depoimento foi, ademais, suportado pelo da testemunha TT, funcionário das empresas do A., que sabia ter o A. contado com empréstimos de amigos para fazer face às obras da moradia, designadamente dos mencionados DD, EE e FF, nos montantes acima referidos, tendo, a pedido do A., analisado a documentação existente a este respeito e explicitado a relação do doc. de fls. 164 com o empréstimo efetuado por FF de forma coincidente com o depoimento deste.]

13) No âmbito do processo 3321/06.5TBCBR, ação ordinária instaurada por HH contra o aqui A., foi dado como provado o seguinte na sentença proferida a 1.10.2010 (doc. de fls. 328 v.º e ss.):

A) Em 13.9.99, o A., que exercia a atividade económica de construção civil, apresentou ao R. uma proposta orçamental para acabamentos finais da vivenda (moradia) que este construía na Rua da …, ..., ....

B) O preço da proposta foi de € 69.243, 12, a que acresceria o IVA, obrigando-se o R. a fornecer todos os materiais, mosaicos (…).

C) Na mesma data, o A. apresentou ao R. uma proposta orçamental para a construção dos dos muros de vedação do mesmo prédio (moradia) que este estava a construir em ..., ..., sendo o valor da proposta de € 22.196, 50, a que acresceria IVA.

D) O pagamento deveria ser efetuado da seguinte forma: metade no início dos trabalhos e a outra metade com os serviços concluídos.

E) O R. aceitou ambas as propostas e entregou a execução de tais obras ao A .

F) Por conta do valor total da empreitada adjudicada ao A., o R. entregou-lhe a quantia de esc. 10.500.00$00 (52.373,78 euros), estando incluída neste  valor  a  metade referente à construção dos muros.

G) De comum acordo, A. e R. prorrogaram a conclusão das obras para 31 de Julho de 2000.

H) O R. concedeu novo prazo ao A. para este terminar as obras até 31 de Agosto

I) Na data de 31/08/2000, as obras não estavam finalizadas.

J) O R. jamais solicitou ao A. que corrigisse qualquer incorreção que a obra pudesse apresentar.

L) O R. devia entregar ao A. madeiras e outros materiais para serem incorporados na obra.

M) O R. requereu a notificação judicial avulsa do A. em 10 de Outubro de 2000 para que este lhe entregasse o livro de obra e lhe restituísse a quantia de 5.956.500$00, relativa à diferença entre o montante de 10.500.000$00 Escudos e o valor dos trabalhos que, segundo o R., foram realizados (4.543.500$00 Escudos).

N) O A. foi notificado em 20 de Outubro de 2000 nesses termos pretendidos e entregou o livro de obra em 03 de Novembro de 2000.

- O A. pretendia ainda concluir os trabalhos que vinha executando na moradia em causa, no que foi impedido pelo R., mediante a intervenção de entidade policial, que obrigou o A. e os seus trabalhadores a sair do local, numa altura em que estava instalado o desentendimento entre as partes.

- No dia 31/08/2000, o R. chamou a polícia ao local da obra, e expulsou o A. daquele local, proibindo-o de aí voltar.

- O R. substituiu o A. por outro empreiteiro em Setembro de 2000, não mais podendo aquele voltar ao local da predita obra.

- Em 31/08/2000 os trabalhos incorporados na obra e efetuados pelo A. tinham o valor de 52.253,00 euros (acrescido de IVA).

- Outros trabalhos efetuados pelo A. encontravam-se  incorporados  na obra naquela data.

- Estes trabalhos eram os seguintes:

- abertura de rasgos e esgotos e seu tapamento;

- abertura de rasgos de eletricidade e assento de caixas;

- rasgos para sistema de segurança, com fornecimento de tubos;

- modificação da porta da casa de banho;

- reboco interior;

- construção parcial de chaminés interiores do fogão de sala.

- O valor total da empreitada adjudicada ao A. pelo R., fixou-se na quantia de 91.439,62 € (69.243,12 € + 22.196,50 €), a que acresceria o IVA à taxa legal de  17%, perfazendo a quantia global de 106.984,35 €.

- A percentagem de lucro esperada pelo  A., caso  os trabalhos  fossem executados até ao fim, era de cerca de 10% sobre o valor total da obra.

- A obra estava em fase de acabamentos (…).

- preparação do pavimento para levar tacos e mosaicos;

- construção parcial do canil;

- arranjo parcial das floreiras, varanda e entrada da cozinha;

- Até ao final da obra, o A. teria ainda de suportar custos em valor não apurado. (…)

Consequentemente, foi o aqui A. e aí R. condenado a pagar a HH a quantia de € 8.762, 23, com juros legais de 4%, desde a citação e até integral pagamento, bem como a quantia indemnizatória a liquidar ulteriormente, correspondente ao proveito que o A. poderia ter retirado da obra.

Por decisão de 23.9.2013, em liquidação daquela decisão, foi fixado em € 7.125, 10, o valor do proveito que HH poderia retirar da obra, tendo sido o aí R. e aqui A. condenando a pagar tal quantia, com juros de 4% desde a notificação daquela decisão e de 5% desde o trânsito em julgado da mesma decisão.

(doc. de fls. 308 e ss.)

Matéria de Fato Não Provada (tendo em conta que dos fatos alegados, a grande maioria não constitui causa de pedir – esta resumida pelo A. nos arts. 39.º e 42.º da petição inicial -, não sendo fatos essenciais mas sim meros fatos instrumentais cuja prova, a ocorrer, se destina a determinar a conclusão pela prova dos restantes – poucos – fatos essenciais. Encontram-se nesta categoria os fatos alegados nos seguintes artigos da petição inicial: 4.º a 24.º, 58.º a 80.º, 112.º a 118.º, 123.º, 124.º, 127.º, 130.º, 142.º.

De relevante para a decisão final não logrou apurar-se qualquer outra factualidade.

Designadamente não se apurou:

1 - O valor de € 50.096, 57, que existia na conta referida supra em 5, na data de 30.12.2008, proveio de outra conta que era provisionada com dinheiro do casal ou era valor que a Ré tinha e pertencia ao casal, tendo a Ré ocultado ao A. quaisquer movimentações ou extratos de contas bancárias relativas a dinheiro pertença do casal.

[Estes fatos não se apuraram porquanto se ignora se os valores que provisionaram a conta já depois da separação de fato – ocorrida em outubro de 2008 – e já depois de instaurada a ação de divórcio – no mês de novembro seguinte -, valores esses que provêm de outras contas (cfr. informação do CC de fls. 271) e que vêm a constituir o saldo já significativo do final do ano de 2008 – pertencem também ao A. ou são resultado de poupanças únicas da Ré e não também e apenas das suas filhas, cotitulares. Na verdade, das próprias declarações do A. resulta ter a Ré exercido atividade remunerada, nomeadamente nas empresas do A. (como também afirmou o contabilista e funcionário das empresas do A., a testemunha TT), o que começou a ocorrer uns anos após o início da vida em comum (teriam começado a viver em comum em 1985/86), acrescentando o A. que o avô paterno da filha da Ré, na altura pequena de idade, efetuava depósitos mensais a favor da neta em conta bancária desta. Este fato foi confirmado pela filha Ré, JJ, nascida em …, que referiu ter casado em 2005, altura em que o avô paterno lhe deu de prenda a quantia de € 25.000, 00, por depósito bancário. Mais referiu que, após ter deixado de habitar com a Ré, o A. deixou de contribuir para o sustento da filha que tem em comum com aquela, nomeadamente para a ajudar no pagamento das propinas de doutoramento que a mesma efetuou em ..., para concluir tal ciclo de estudos, o que demandou toda a quantia existente na conta em finais de 2008, conta para a qual até mesmo a irmã, ora testemunha, transferiu valores seus para ajudar o percurso académico daquela. Em declarações de parte, o A. confirmou não ter contribuído para o financiamento destes estudos da filha, sendo irrelevante o motivo por que o não fez. Ademais, o A. tem também três filhas do primeiro casamento e, depois de separado de fato da ex-mulher, já em comunhão de vida com a Ré, foi sempre sustentando as três filhas do casamento anterior, como mencionado pela ex-mulher, o que também afasta toda a desproporção de rendimentos e despesas em que o A. estriba a petição inicial para fundamentar a sua pretensão aos valores do depósito em causa. A verdade, afinal, é que não decorreu prova alguma de que o valor em apreço proviesse exclusivamente de poupanças da Ré durante o tempo em que esteve casada com o A.].

2 - O A. vendeu a fração “O” a OO e mulher pelo preço simulado de 114.723,00€, tendo este valor sido empregue pelo A. para custear as obras de construção da casa de morada de família do casal que o A. formou com a Ré.

[Não é este o valor contido em documento autêntico cujo conteúdo sequer pode ser afastado por prova testemunhal – menos, ainda, por declarações de parte -, conforme resulta do art. 394.º CC. Ademais, não obstante resultar de fls. 175 v.º e 304 que da conta bancária ..., pertencente ao comprador, OO- que também o confirmou em audiência, a fls. 299 v.º - foram transferidas para a conta da Ré, em 29 e 31.5.2002 (a venda ocorreu a 28.5.2002), as quantias de € 64.843, 73, e € 5.000, 00, a verdade é quem nem destas duas quantias juntas resulta o valor mencionado como tendo sido o preço real, nem resulta que tenha sido empregue pelo A. na totalidade ou em parte nas obras da casa de morada de família. Com efeito, também resulta de fls. 175 v.º que, logo a 29.5.2002, o montante de € 50.995, 91, foi transferido dessa conta da Ré para a conta …, conta da sociedade UU, empresa do A., como é reconhecido a fls. 232 v.º. Ora, nada resulta dos autos, nem foi alegado na petição inicial, quanto à UU ter custeado as obras da casa do seu sócio-gerente, o aqui A., não obstante à testemunha TT, atual funcionário da sociedade do A., II, Ld.ª, ter parecido que a conta bancária daquela sociedade UU foi usada pelo casal para fazer face a despesas pessoais dos seus membros, nomeadamente com a construção da moradia. Ainda assim, não se encontra justificada a transferência efetuada para a conta da UU do valor recebido do comprador da fração “O” a título de pagamento do preço.]

3 – A Ré não prestou praticamente nenhuma contribuição para pagamento das contas de aquisição do terreno e compra da casa de morada de família.

[Não foi efetuada prova deste fato. Sendo certo que era o A. quem, de forma manifesta e através das suas empresas de contabilidade, angariava a maioria dos réditos do casal, o próprio A. admitiu em declarações de parte não ser a Ré uma pessoa “esbanjadora”, o que lhe permitiu efetuar poupanças que se admite possam igualmente ter sido despendidas na construção.]

4 – O valor de € 2.450, 00, pelas obras na casa de morada de família para obtenção de licença de utilização – alteração no muro fronteiro, obras realizadas por GG, foi pago exclusivamente pelo A. BB após ter saído da casa de morada de família.

[Contrariando a prova deste fato acha-se o cheque de fls. 256 e 259 v.º, passado a GG e sacado sobre empresa do A., no montante exato de € 2.450, 00, estando o cheque datado de 6.9.2008, i.é, antes do fim da vivência em comum das partes.]

5 - Entre outubro de 2008 e a data do arrolamento, desapareceram vários bens comuns do então casal constituído pelo A. e pela R.

6 - O A. saiu de casa sem levar qualquer objeto pessoal ou comum.

7 - A Ré ocultou os seguintes bens, por forma a que não fossem arrolados:

Verba 11:

Treze salvas de prata Valor: 5.200,00€ Verba 12:

Oito serviços de Jantar completos de 12 peças da Vista Alegre Valor: 12.000,00€

Verba 13:

Cinco serviços de café completos de 12 peças da Vista Alegre Valor: 6.000,00€

Verba 14:

Quatro serviços de chá completos de 12 peças da Vista Alegre

Valor: 4.800,00€ Verba 15:

Um faqueiro completo em estojo debruado a ouro para 24 pessoas Valor: 2.000,00€

Verba 16:

Um carro para bebidas de apoio à sala de estar em madeira ornamental e envidraçado trabalhado com acabamento superior.

Valor: 400,00€ Verba 17:

Três serviços de cristal completos para 12 pessoas Valor: 6.000,00€

Verba 18:

Um serviço de cristal completo para 24 pessoas Valor: 2.000,00€

Verba 19:

Um armário/estante com 72 miniaturas réplicas de vários utensílios em cristal Valor: 4.320,00€

Verba 20:

Três máquinas de café novas Valor: 630,00 €

Verba 21:

Uma estatueta metálica, cavalo em pé assente nas patas traseiras 60cms banhada a prata

Valor: 1.200,00€ Verba 22:

Dois galheteiros com suporte em prata e duas garrafas em cristal colorado Valor: 1.200,00€

Verba 23:

Três quadros (telas) a óleo Valor: 2.250,00€

Verba 24:

Um espelho com moldura valiosa com a dimensão de 1,5 x 0,90 m

Valor: 450,00€ Verba 25:

Dezoito garrafas de Whisky James Martins 22 anos Valor: 2.160,00€

Verba 26:

Três garrafas de Whisky 22 anos Valor: 360,00€

Verba 27:

Duas garrafas de Whisky Logan de Luxe 12 anos garrafa de 2,5 l com estojo metálico Valor: 720,00€

Verba 28:

Trinta e seis garrafas de Vinho Quinta da Dona colheita de 2004 Valor: 1.260,00€

Verba 29:

Quarenta e seis garrafas de Vinho Quinta do Canto, colheitas de 1994-2004 Valor: 1.012,00€

Verba 30:

Onze garrafas de Vinho Quinta do Canto colheita de 1994-2004 Valor: 165,00€

Verba 31:

Dezassete garrafas de Vinho Quinta do Canto colheita de 1994-2004 Valor: 238,00€

Verba 32:

Vinte e três garrafas de Espumante Bruto e Meio Doce diversos produtores Valor: 414,00€

Verba 33:

Catorze garrafas de aguardente velha (diversos produtores) Valor: 1.820,00€

Verba 34:

Duas garrafas de aguardente velhíssima “Nunes Maia” Valor: 280,00€

Verba 35:

Dezanove garrafas de Vinho do Porto (diversos produtores) Valor: 798,00€

Verba 36: Um cofre

Valor: 1.250,00€ Verba 37:

Três jarrões em porcelana, pintados, com um metro de altura Valor: 1.200,00€

Verba 38:

Dois arranjos florais para os jarrões de porcelana (contendo flores secas e preparadas para longa duração)

Valor: 1.500,00€ Verba 39:

Dois arranjos florais com suporte em metal Valor: 960,00€

Verba 40:

Uma máquina porta garrafões de água mineral com dispositivo de refrigeração e aquecimento Valor: 1.750,00€

8 - Estes bens encontravam-se na casa de morada de família quando o A. dela se ausentou, em outubro de 2018, tendo-se a Ré deles apropriado.

[Alguns bens desta natureza ou semelhantes foram descritos pela testemunha II que conhecia a casa e mencionou algum do recheio aí existente, mas sem especificar valores, ignorando o fim que levaram, designadamente se a Ré deles se apropriou. A testemunha VV, comerciante de utilidades domésticas, confirmou ter oferecido ao A. alguns bens como os descritos, mas ignorava, de igual forma, se existiam na casa quando o A. dali se ausentou e se, existindo, foram subtraídos pela Ré.]

9 – A fração “O” foi adquirida pelo A. com dinheiro comum de A. e Ré.

[Apesar de viverem já em união de fato, perdurando o casamento anterior do A., a verdade é que se não demonstrou ter a Ré contribuído com o que quer que fosse para a compra em apreço.] […]».


***

3.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, quer no recurso interposto pela ré, quer  no recurso interposto pelo autor, está em causa decidir se ambos os recorrentes observaram o ónus impugnativo previsto no art. 640º do CPC, pelo que, nesta parte, proceder-se-á à sua apreciação  conjunta.

3.2.1. Enquadramento preliminar
 
Como é consabido, o exercício efetivo pelo Tribunal da Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados, prestados oralmente na audiência de discussão e julgamento,  à luz do critério da sua livre e prudente convição, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso  ónus de impugnação por forma a impedir que «a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme  numa mera manifestação de inconsequente inconformismo»[2]
Daí dispor o  art.º 640.º do C. P. Civil que:
« 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)».

Tal como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 29.10.2015 ( processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1)[3], consagra este regime processual um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso  e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar  um acesso mais ou menos  facilitado aos meios de prova gravados relevantes  para a apreciação da impugnação deduzida.
Assim, nesta conformidade, integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por  função delimitar o objeto do recurso  e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto[4].
Mas, já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada  na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função  facilitar  a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.
E se é certo  cominar a lei o incumprimento do ónus primário e do ónus secundário de igual forma, ou seja,  com a  sanção da rejeição imediata do recurso [ cfr. art 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do mesmo artigo], não sendo consentida a formulação ao recorrente de  um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, a verdade é que, tal como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, « não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra  num  ou noutro âmbito».
 Dito de outro modo e na expressão  do  Acórdão do STJ, de 19.02.2015 ( processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1)[5], enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica  a imediata rejeição do recurso na parte infirmada,  já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício  do contraditório pela parte contrária e/ou o exame  por banda do tribunal  de recurso.
Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.
É que, como adverte o Acórdão do STJ, de 28.04.2016 ( processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1), dando voz  à jurisprudência cada vez mais  consolidada neste Supremo Tribunal[6],  « é necessário que a verificação do cumprimento  do ónus de alegação regulado no art. 640 do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material», por forma a não se exponenciarem  os efeitos cominatórios  previstos no mesmo artigo,  havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes  com estes princípios.
Assim,  nesta linha de entendimento, salienta-se,  no já  citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, que na interpretação da norma do art. 640º, « não  pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação- evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».
 Também na defesa da orientação de que não deve adotar-se uma interpretação rígida e desproporcionadamente exigente deste ónus de impugnação, sublinha o Acórdão do STJ, de 22.10.2015 ( processo nº 212/06.3TBSBG.C2.S1) [7] que « o sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no nº1 do art. 640º do CPC devem  ser equacionados à luz das razões que lhe estão subjacentes, mormente  em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da  própria decisão de facto».
E, quanto à problemática de saber se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias  ou bastará incluí-los  no corpo alegatório, refere o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 ( processo nº 99/05.6TBMGD.P2.S1)[8],  que a resposta a dar a esta questão depende da função que está subjacente a  cada um dos referidos ónus.
Deste modo,  «constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias [9], por força do disposto no artigo 635º, nº4, conjugadamente com o art. 640º, nº1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente, o preceituado no nº1 do art. 639º, todos do CPC».
Mas, já assim não acontece  com  a especificação dos meios concretos de prova nem com  a indicação das passagens das gravações visto que « não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória».   

*

3.2.2. No caso dos autos verifica-se que a ré e o autor interpuseram recurso de apelação  da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, impugnando, para além do mais, a decisão  sobre a matéria de  facto.

Pronunciando-se sobre este segmento dos recursos, o  Tribunal da Relação do Porto, no acórdão ora recorrido,  considerou que os apelantes não respeitaram o requisitos formais do ónus de impugnação da decisão de facto, pelo que rejeitou, nesta parte, ambos os recursos, mantendo tal decisão.

A- Quanto à  impugnação do autor, fê-lo com base na seguinte fundamentação:

« (…)

No presente caso o Autor sustenta:

- “a ...MMª Juiz do Tribunal a quo, desde logo porque incorreu em erro na apreciação da prova, assente na incorrecta valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como da que foi junta pelo A./Recorrente com os seus articulados.”;

- “...há factualidade dada como não comprovada pela MMª Juiz do Tribunal a quo e que concorreu para a prolação de decisão que se apresenta em contradição com a prova (testemunhal e documental) produzida nos autos.”;

- “Considera-se, pois, a existência de erro na apreciação da matéria de facto quando a MMª Juiz do Tribunal a quo deu como provado e conclui, na douta sentença de que se recorre, matéria que não pode entender-se que resulta do depoimento prestado pelas testemunhas e dos documentos juntos e que, por tal motivo, consubstanciou decisão que contraria a boa decisão da causa.”;

“...estamos em presença de erro na apreciação da prova porquanto da apreciação subjectiva que a MM. Juiz a quo não resulta a formulação (correcta) de juízo de ponderação da prova que (objectivamente) é colocada à sua douta apreciação...”;

- “...os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas e a que aqui se faz referência podem e devem ser valorados permitindo alicerçar decisão diversa da que foi proferida MMª Juiz do Tribunal a quo. “;

- ser de “...concluir que o que foi alegado pelo A./Recorrente e aqui colocado em relevo nesta sede recurso deve considerar-se provado.”.

E para alicerçar o erro na apreciação da prova que diz ter incorrido o Tribunal “a quo”, o Autor, no âmbito da prova gravada, indica os depoimentos das testemunhas QQ, LL, TT e II.

Vejamos.

-Sob pena de imediata rejeição do recurso na parte respectiva, o recorrente que pretenda impugnar a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, tem, além do mais, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados - v.g., quanto aos depoimentos ou às declarações das partes, aos esclarecimentos prestados em audiência pelos Srs. Peritos, bem assim como quanto aos depoimentos das testemunhas -, que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (nº 2, a), do artº 640º do NCPC, que corresponde ao n.º 2 do art.º 685-B do CPC).

Ora, para que cumpra o que a lei exige no aludido artº 640º, nº 2, a), importa ao recorrente indicar, por referência ao suporte em que se encontrem gravados os depoimentos que pretenda utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens desses depoimentos, em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Por isso, a exacta indicação das passagens da gravação que se exige no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, não pode considerar efectuada com a simples identificação do “ficheiro” áudio correspondente ao depoimento em causa (como o Autor faz, dizendo, por exemplo: “LL - FICHEIRO Nº ...”), nem se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio, efectuado no Tribunal “a quo”, onde começa, ou onde começa e termina, cada um dos depoimentos em causa, pois que, a entender doutro modo, ter-se-ia de considerar que a norma exigia uma indicação exacta dos depoimentos e não, propriamente, das passagens destes.

Por maioria de razão, à referida exacta indicação das passagens da gravação, não pode equivaler a inclusão, no corpo da alegação de recurso, de súmulas dos depoimentos ou da transcrição da totalidade ou de excertos destes.

É claro que o Tribunal “ad quem” não ficará restringido ao exame, na prova registada, das passagens que o recorrente indique, podendo, para além da análise das mesmas (e das passagens que eventualmente o recorrido também indique - art.º 640º, nº 2, b), proceder à audição daquilo que entender dos depoimentos prestados, mas essa possibilidade de o Tribunal estender a sua análise para além das passagens indicadas pelo recorrente e pelo recorrido, está longe de evidenciar serem essas indicações despiciendas, antes se prendendo com a confirmação da relevância das ditas, quando perspectivadas no contexto de todo o depoimento em que se inserem, pelo que em nada prejudica, ou atenua, a necessidade de o recorrente proceder à indicação exata que o artº 640º, nº 2, a), do NCPC lhe impõe.

Ora, no “caso “sub judice”, quanto à prova gravada – “rectius”, quanto aos depoimentos que indicou no recurso para ilustrar o erro na apreciação da prova que diz ter incorrido o Tribunal “a quo”, o Autor limitou-se, por um lado, a identificar os ficheiros “audio” correspondentes a tais depoimentos, tendo-se, por outro lado, limitado a transcrever excertos dos mesmos, em caso algum tendo feito a indicação dos tempos, onde, no suporte em que ficaram gravados esses elementos de prova, se situam as passagens que entendia relevantes para alcançar a dita alteração quanto à decisão da matéria de facto.

O procedimento do Apelante, que se acaba de expor, salvo o devido respeito por entendimento diverso, implica, face ao que mais acima se disse, por incumprimento do ónus previsto no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. (…)

O referido incumprimento bastaria para legitimar a rejeição do recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto, mas, a falta de observância, pelo Apelante, dos ónus estabelecidos pelo artº 640º, nºs 1 e 2 do NCPC, não se fica por aqui.

Por imposição do artº 640º, nº 1, a), do NCPC, o recorrente que pretenda impugnar a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, tem de especificar, sob pena de rejeição, “Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”, tendo, ainda, sob a mesma cominação, de especificar “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” (artº 640, nº 1, c), do NCPC), não tendo o Apelante efectuado qualquer destas especificações, quer no corpo da alegação de recurso, quer nas respectivas conclusões.

E se a omissão destas especificações no corpo alegatório, tem como consequência, clara e imediata, a rejeição do recurso respeitante à decisão proferida quanto à matéria de facto, tem-se entendido, que também cumpre ao Recorrente, nas conclusões do recurso, fazer a indicação, ainda que sintética, dos concretos pontos que considera incorrectamente julgados. (…)

O procedimento da Apelante que acima se deixou exposto, implica, salvo o devido respeito por entendimento diverso, a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por incumprimento dos ónus previstos no artº 640º, nº 1, a) e c) e nº 2, a), do NCPC. (…)».

B – E relativamente à impugnação feita pela ré, considerou que:

« Invocando incorrecta valoração da prova por parte do Tribunal “a quo”, pretende a Ré que esta Relação dê como não provada a matéria elencada nos pontos 4), 9), 10), 11) e 12) dos factos provados.

Alicerça tal pretensão nos depoimentos prestados pelas testemunhas QQ, RR, EE, FF, e TT.

Ora, relativamente a esta impugnação aplica-se o que dissemos acima, quanto ao recurso do Autor, embora que, aqui, restringindo-se a inobservância do ónus previsto no citado artº 640º, à omissão da indicação exacta que se determina na alínea a) do nº 2 do artigo, já que, quanto à prova gravada – “rectius”, quanto aos depoimentos das referidas testemunhas, que indica no recurso com o desiderato de levar a que esta Relação procedesse à alteração da matéria de facto -, a Apelante limitou-se, por um lado, a assinalar o início e o termo de cada um desses depoimentos[10] e a transcrever excertos dos mesmos, em caso algum tendo feito a indicação dos tempos, onde, no suporte em que ficaram gravados esses elementos de prova, se situam as passagens que entendia relevantes para alcançar a alteração que pretendia quanto à decisão da matéria de facto.

O procedimento da Apelante que se acaba de expor, implica, salvo o devido respeito por entendimento diverso, a rejeição do recurso na parte relativa à da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, o que ora se decide».


*

No presente recurso insurge-se a ré  contra este entendimento, sustentando que o acórdão recorrido, ao exigir a indicação dos tempos onde, no suporte em que ficaram gravados esses elementos de prova, se situam as passagens dos depoimentos  que tem por relevantes, parte de dois pressupostos que considera errados.

Por um lado o de que o legislador com a expressão "passagens da gravação" quis referir-se a "passagens dos depoimentos", quando é certo estarmos perante dois  conceitos material e substancialmente distintos.

E, por outro lado,  o de que é sempre possível aos recorrentes indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravada a audiência de discussão e julgamento, o início e o termo da concreta passagem que se quer evidenciar, o que, por regra, não sucede.

Mais sustenta que ao rejeitar o recurso com base neste fundamento, o Tribunal da Relação deixou de  apreciar questão  que se lhe impunha conhecer, enfermando, por isso, o acórdão recorrido da nulidade  prevista no art. 615° alínea d ), ex vi, art.  e 666° , ambos do CPC.

Começando por este último aspeto, diremos ser manifesta a falta de razão da recorrente, pois não se verifica qualquer omissão de pronúncia, por parte do Tribunal da Relação.

Com efeito, tendo rejeitado o recurso da impugnação da decisão de facto, com fundamento na falta de observância do ónus impugnativo previsto no citado art.640º, nº 2, al. a), vedada ficou ao  Tribunal da Relação  o conhecimento dos  fundamentos de tal  impugnação.

Mas, já quanto à questão do cumprimento do referido ónus, julgamos assistir razão à recorrente.
É que, não tendo o ónus em causa por função  a delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, mesmo admitindo que a indicação feita pela  recorrente  não seja totalmente exata  e precisa, por não  conter a  indicação dos tempos em que os excertos dos  depoimentos  das testemunhas  tidas por relevantes se encontram gravados no suporte técnico  que contém a gravação da prova produzida na audiência de julgamento, não  se vislumbra  que a falta dessa indicação parcelada  das passagens  dos depoimentos  convocados dificulte, gravemente, o exercício  do contraditório pela parte contrária e/ou a sua localização e  exame  pelo tribunal  de recurso.
Desde logo porque a recorrente, para além de indicar, nas suas alegações de recurso,  o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas,  com recurso à seguinte fórmula ( sistema CITIUS, do dia  20/02/2017, 11:12:58 a 11:50:29), alterando o dia e as horas conforme os casos, complementou essa indicação  com a  transcrição, em escrito datilografado, dos excertos dos depoimentos  relevantes para o julgamento do objeto do recurso (cfr. fls. 396 a 402), o que tanto basta para se concluir que a Relação dispõe de todos os dados necessários  para proceder à localização dos excertos  dos depoimentos  em que a parte fundou a impugnação da decisão de facto, no suporte técnico que contém  a gravação da audiência.
Daí que, nestas circunstâncias e em conformidade  com o entendimento acima perfilhado se considere que a recorrente cumpriu  o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos  prescritos  nº art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento  dos fundamentos do recurso[11].

*

Discordando também  do entendimento seguido pelo Tribunal da Relação, sustenta  o autor que, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido,  não se verifica  violação do ónus de especificação previstos no art 640º , nº 1, als. a) e c) e nº2, al. a) do CPC.

Isto porque  indicou,  não só em sede de alegações como nas  conclusões vertidas nas alíneas C), G) e L),  que os pontos de factos que considera incorretamente julgados  respeitavam  à:

« A - A existência de depósito bancário - CONTA DO BANCO CC - Depósito à Ordem no Banco CC, S.A n° .... - que à data de 30-12-2018 apresentava um saldo de 50.096,57 € (cinquenta mil e noventa e seis euros e cinquenta e sete cêntimos)

 B - Emprego de bem próprio para aquisição de bem comum - valor adquirido pelo A./Recorrente na sequência de fracção que lhe coube por partilha subsequente a anterior divórcio

 C - Bens móveis - Bens móveis que ficaram na casa de morada de família, ao cuidado da R./Requerida e que devem ser relacionados como bens comuns a partilhar»,

como fez constar, quer das alegações, quer das alíneas F), K) e M) das respetivas conclusões,  as especificações das decisões que no seu entender deveriam ser proferidas pelo Tribunal a quo.

E porque, para além de ter indicado com  precisão os depoimentos que fundam o seu recurso e alegações de recurso, identificando sempre o nome da testemunha em causa e o respetivo ficheiro de gravação, procedeu, em sede de alegações, à transcrição dos excertos que considera relevantes.

Que dizer?

Desde logo que, apesar de se reconhecer  não ser exemplar a forma como o recorrente formulou as conclusões das suas alegações de recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, tanto mais que a mesma surge associada a  considerações de direito, a verdade é que  o recorrente não deixou de especificar, nas  conclusões B), C) G) L), os segmentos da decisão de facto que tem por incorretamente julgados.
E se é certo que  não o fez por referência aos factos dados como provados e não provados na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância,  certo é também que da simples comparação entre a factualidade descrita nas conclusões  B) C), G) e  L)  e os factos dados  como não provados na sentença proferida pelo  Tribunal de 1ª Instância, facilmente se conclui que a factualidade impugnada  reporta-se aos factos dados como não provados  na referida sentença  sob os nºs 1, 2 e 7 ( cfr. fls. 362  a 365).
Mas, para além disso, o recorrente também não deixou de explicitar, nas conclusões F), K) e M), os termos em que os  factos dados como não provados nos pontos 1, 2 e 7 da sentença do Tribunal de 1ª Instância e supra descritos  nas conclusões C), G) e L)  devem ser dados como provados, pelo que nestas circunstâncias tem-se por observado o ónus de impugnação da decisão de facto nos termos prescritos no n.º 1, al. a) e c) do art.º 640.º do CPC.
E o mesmo vale dizer quanto ao ónus de impugnação estabelecido no nº 2, al. a) deste mesmo artigo, pois o autor indicou os motivos e os meios de prova que deveriam  ter conduzido a um resultado probatório diverso e que segundo ele consistem:
-  na ausência de prova  de que o valor  € 50.096,57 proviesse exclusivamente de poupanças da ré, no que respeita aos factos dados como não provados e supra descritos sob o nº1  ( cfr. alínea E) das conclusões);
- relativamente aos factos dados como não provados e supra descritos sob o nº 2,   nos documentos juntos aos autos  e nos depoimentos das testemunhas   QQ – ficheiro  nº ….;  LL  - ficheiro  nº …  e TT- ficheiro nº … ( cfr. alíneas G) e H) das conclusões);
- quanto aos  factos dados como não provados e supra descritos sob o nº 7, no depoimento  da testemunha II – ficheiro  nº … ( cfr. alínea L) das conclusões).
Mas além disso, indicou, no corpo das alegações, os documentos em que se baseia  e transcreve os excertos dos depoimentos das testemunhas QQ,  LL, TT ( cfr. fls. 374 a 377 v, 378 v e 379  a ) e  II – ( cfr. fls. 383 v a 384 v ) que pretende sejam reapreciados, em vista da matéria impugnada.
Mas se assim é, não se vê que a mera identificação dos ficheiros em que estão gravados, no suporte técnico, os depoimentos destas testemunhas e, consequentemente,  a  falta de indicação exata das passagens relevantes  dos seus depoimentos  dificulte relevantemente a sua localização por parte do Tribunal recorrido, pelo que, neste contexto e em consonância  com o entendimento supra exposto no ponto 3.2.1. e por nós sufragado, tem-se também por observado o ónus de impugnação da decisão de facto nos termos prescritos no n.º2, alínea a), do art. 640º do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso.
Daí concluir-se que o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou erradamente os parâmetros processuais que disciplinam o seu poder de cognição da decisão de facto impugnada, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c)  e nº 2, alínea a), do CPC, o que importa a sua anulação, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento da segunda questões suscitada  no âmbito do recurso de revista interposto pelo autor e supra enunciada no ponto II,  uma vez que a mesma tem subjacente matéria de facto que foi objeto de impugnação por parte do autor.

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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal  em:

a) - Anular o acórdão recorrido na parte em que não conheceu da impugnação da decisão de facto sobre deduzida pela ré apelante e  pelo autor apelante;
b) - Consequentemente, ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que tome conhecimento daquelas impugnações, bem como, se for o caso, do subsequente alcance em sede da solução de direito;

Custas das revistas a cargo da parte vencida a final.

Notifique.


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Supremo Tribunal de Justiça, 21 de março de 2019


Rosa Tching (Relatora)


Rosa Maria Ribeiro Coelho


Catarina  Serra

__________________
[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , pág. 169.
[3] Acessível in wwwdgsi.pt.
[4] Esclarecendo, porém, o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 ( processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1), que a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente  não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.
[5] Acessível in wwwdgsi.pt.
[6] Cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STJ citados  por Abrantes Geraldes, in “in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.
[7] Acessível in wwwdgsi.pt.
[8] Acessível in wwwdgsi.pt.
[9] Salienta, contudo, este acórdão que “perante a pouca clareza da lei e a decorrente divergência jurisprudencial, quando o recorrente tenha especificado os pontos concretos de facto apenas no corpo das alegações, caso se entenda que o devia fazer nas conclusões, será porventura mais curial providenciar pelo aperfeiçoamento destas, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 639.º do CPC, em vez de rejeitar logo a impugnação assim deduzida, só se justificando essa rejeição imediata quando tenha sido omitida de todo tal especificação”.
[10] V.g., testemunha António Amaral: (Cf sistema CITIUS de 19/04/2017, de 10:15:28 a 11:40:47).
[11] Neste sentido, cfr., entre outros, os  Acórdãos do STJ, de 01.07.2014 ( Processo nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1); de 19.02.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1); de 09.07.2015 (processo nº 284040/11.0YIPRT.G1.S1); de 01.10.2015 (processo nº 6626/09.0TVLSB.L1.S1); de 20.10.2015 (processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1); de 19.01.2016 (processo nº 3316/20.4TBLRA.C1.S1) e de 28.04.2016 (processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1).