Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DO CARMO SILVA DIAS | ||
Descritores: | RECORRIBILIDADE DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA DECISÃO CONDENATÓRIA REENVIO DO PROCESSO REQUISITOS DA SENTENÇA NULIDADE DA SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA | ||
Data do Acordão: | 10/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGAMENTO ANULADO | ||
Sumário : | I. Perante a sentença absolutória da 1ª instância, proferindo a Relação decisão condenatória incompleta, porque alheando-se completamente do acórdão do STJ n.º 4/2016, de 21.01.2016, em vigor, decide reenviar o processo para a 1ª instância para apurar factos relevantes para a determinação da medida e escolha das penas concretas a aplicar e proceder à respetiva imposição dessas penas, assim proferindo uma decisão inovadora quanto à questão da culpabilidade mas, depois, não decidindo da determinação da sanção, atuou em flagrante violação do disposto no art. 445.º, n.º 3, do CPP, sendo essa a via de inviabilizar o direito ao recurso da arguida para o STJ, previsto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, desde a reforma introduzida pela Lei n.º 94/2021, quando é confrontada com uma decisão inovadora como sucede neste caso. II. Vedando-se, neste momento, o direito ao recurso da arguida para o STJ ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP ou, considerando que não era aplicável o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, isso iria contra todos os princípios e regras que se enquadram no núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, pois que sendo absolvido pela 1ª instância e depois condenado (ainda que imperfeitamente) pela Relação, tal significava que era confrontado com uma nova decisão desfavorável, tendo de lhe ser reconhecido o acesso ao tribunal que ocupa o topo da hierarquia na organização judiciária dos tribunais criminais e o direito a um grau de recurso (artigos 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da CRP). III. Perante uma situação omissa como esta, não prevista no art. 400.º do CPP, à semelhança do que ensina Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 209-210 (ainda que para outros casos omissos), visto o princípio geral da recorribilidade previsto no art. 399.º do CPP e no confronto com o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, há que garantir o direito ao recurso da arguida, sob pena de lhe ser vedada a possibilidade de posteriormente impugnar a questão da culpabilidade decidida inovadoramente pela Relação e que é garantido pela CRP, sendo, assim, admissível o recurso da arguida; por isso, acrescentamos que, outra interpretação de tais normas era inconstitucional, por violação dos arts. 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, da CRP, traduzindo-se numa inaceitável restrição à admissibilidade do recurso em segundo grau, relativo à questão da culpabilidade decidida inovadoramente pela Relação, que a condenou sem lhe aplicar pena, reenviando o processo para a 1ª instância para esse efeito, o que impedia a arguida de sindicar aquela parte da decisão inovadora. IV. Não tendo a Relação aplicado, no acórdão recorrido, as respetivas penas individuais e única, como lhe competia e, portanto, não se pronunciando sobre a questão da determinação da sanção, cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia prevista nos arts. 369.º, 374.º, n.º 3, al. b), 375.º, 379.º, n.º 1, al. a), al. c) e nº 3 e 425.º, n.º 4, do CPP, a qual terá de suprir tendo em atenção o ac. do STJ n.º 4/2016, que ignorou. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça Relatório 1. No processo n.º 1519/15.4JAPRT do Juízo Local Criminal ..., Juiz 2, comarca do Porto, foi proferida em 08.04.2022 sentença que absolveu a arguida AA dos crimes pelos quais estava pronunciada, em concreto, um crime de burla qualificada p. e p. nos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do CP, um crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, do CP e um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no art. 261.º, n.º 1 do CP e, bem assim, julgou improcedente o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado efetuado pelo Ministério Público, igualmente a absolvendo desse mesmo pedido. 2. Inconformado com essa decisão o Ministério Público recorreu para a Relação, pugnando pela condenação da arguida por erro notório na apreciação da prova e errado julgamento ou, assim não se entendendo, por nulidade da sentença por falta de fundamentação ou sendo inviável decidir da causa, ser determinado o reenvio ao abrigo do art. 426-A do CPP. 3.1. Na Relação do Porto foi em 23.11.2022 proferido acórdão no qual se decidiu julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e, consequentemente, foi alterada do modo aí indicado a decisão sobre a matéria de facto, sendo a arguida absolvida do crime de burla qualificada p. e p. nos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do CP, mas condenada pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, do CP e um crime de uso de documento de identificação alheio p. e p. no art. 261.º, n.º 1 do CP, sendo, porém, determinado o reenvio dos autos à 1ª instância para a realização de novo julgamento destinado a apurar os fatores relevantes para a determinação da medida e escolha das penas concretas a aplicar à arguida pelos crimes por ela cometidos e proceder à imposição das penas que se mostrem cabidas ao caso. 3. 2. Entretanto, a Relação por acórdão de 7.12.2022 referiu que, por essa via, procedia à retificação do acórdão anteriormente proferido em 23.11.2022, quanto à indicação de uma das alíneas (em vez de “a) e c)” ser “c) e d)”) do crime de falsificação de documento (passando, assim, a ser o p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. c) e d) e n.º 3, do CP). 4. Notificada dessa decisão, veio a arguida recorrer para o STJ, pugnando pela sua absolvição, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos nem sublinhados): A. A decisão recorrida enferma de vícios, concretamente, de erro notório na apreciação da prova e da insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP). B. Na sequência do erro na apreciação e valoração da prova cometido pelo Tribunal da Relação, este alterou o elenco dos factos dados por assentes, introduzindo os seguintes: «4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia 22/05/2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas;» →o Tribunal apenas sustenta tal facto no depoimento da testemunha BB (irmão do assistente), não tendo demonstrado nem provado que a aqui arguida tivesse conhecimento do mesmo. «5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de CC com o n.º ......75 3zz9, válido até 25/10/2016» →tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida (e não o assistente) que tinha na sua posse o cartão de cidadão. Sendo certo que, mesmo que fosse, nenhum ilícito criminal se poderá retirar deste facto. A verdade é que qualquer pessoa pode ter na sua posse um cartão de cidadão de terceiro, sem que isso seja considerado um crime. «5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente;» → tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida tenha assim atuado. Antes resultou da prova produzida e das regras da experiência comum que a arguida, na sequência dos já anteriores registos provisórios (que caducavam naquela data – 22/05/2015), quis continuar a proteger o património do assistente contra as possíveis burlas (atendendo a que aquele já havia sido vítima de várias em momentos anteriores); mais não resultou demonstrado nem provado, com segurança, que a pessoa que compareceu no dia 22/05/2015 no Cartório Notarial não tenha sido o aqui assistente, sendo certo, todavia, que a testemunha DD reconheceu e indicou o aqui assistente como tendo sido a pessoa que esteve presente no dia da escritura e a testemunha EE reconheceu o aqui assistente, embora não conseguindo afirmar com certeza em qual dos dias o viu. «5B) Na concretização dos seus intentos, no dia 22/05/2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária EE, sito na Avenida ..., na cidade ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar;» → dá-se por reproduzido o referido quanto ao facto anterior. «6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública, já constante da matéria de facto assente na decisão recorrida]» → tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que era a arguida que tinha na sua posse o cartão de cidadão do assistente e, a ter, sequer que o tenha entregue a alguém que não ao próprio assistente. Antes resultou da prova produzida e das regras da experiência comum, que tanto a Notária como a funcionária verificaram a identidade da pessoa que compareceu no dia da escritura e que nada lhes pareceu suspeito ou anormal. A pessoa que ali se apresentou tinha na sua posse um cartão de cidadão válido e que correspondia (fisicamente, pela idade e pela imagem) à pessoa identificada no referido documento de identificação. Não resultou demonstrado nem provado que houve qualquer engano e intenção de engado por parte da arguida às pessoas do Cartório. «6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia 22/05/2015 não era o seu tio CC e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste;» → tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo. Pelo contrário, resultou da prova produzida e das regras da experiência comum que existia uma intenção de proteger o património do assistente de terceiros, situação que é também corroborada pelos anteriores registos provisórios. «8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros;» → tal facto decorre de construções arbitrárias e contraditórias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo. Pelo contrário, resultou da prova produzida e das regras da experiência comum, aliás, como inclusive foi admitido pelo Tribunal da Relação, que tal negócio se tratava de uma venda fictícia, mais uma vez, com vista a proteger o património do assistente de terceiros. «8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome — o do assistente — que não era o seu;» → tal facto decorre de construções arbitrárias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a pessoa que esteve presente na escritura não foi efetivamente o aqui assistente. «8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.» → tal facto decorre de construções arbitrárias e contraditórias do Tribunal da Relação, não se tendo demonstrado nem provado que a arguida tenha atuado desse modo. C. Os factos introduzidos pelo Tribunal da Relação contrariam, do ponto de vista de um homem médio, a lógica e as regras da experiência comum. Existe uma desconformidade entre os factos agora dados como assentes e a prova produzida em audiência, assim como o Tribunal da Relação decidiu de forma contraditória face àquilo que se provou. D. O Tribunal da Relação assume como facto assente que a testemunha EE confirmou que a pessoa que a abordou no dia 26/05/2015 foi o aqui assistente, logo, sendo pessoas diferentes as que se apresentaram nos dias 22/05 e 26/05, seria forçoso concluir que a pessoa que foi à escritura não era o assistente. E. Contudo: i) o auto de reconhecimento é inválido; ii) o auto de reconhecimento não foi confrontado à testemunha em sede de audiência, nem sujeito ao contraditório; iii) o auto de reconhecimento não diz que a testemunha indicou que o Sr. CC «era a pessoa que se lhe tinha apresentado no dia 26/05/2015», mas apenas que aquela pessoa era «semelhante»; iv) a admitir-se, por hipótese, que as pessoas que compareceram num dia e noutro seriam diferentes (como se faz crer na decisão recorrida), as mesmas teriam de ser, entre si, semelhantes – situação que sempre geraria dúvida que não podia deixar de ser relevada; v) certo é que, em sede de audiência, a testemunha referiu que não conseguia dizer quem era o "verdadeiro” CC e, por isso, não conseguia afirmar se a pessoa que se apresentou no dia da escritura era ou não o aqui assistente. F. Por isso, qualquer homem médio que leia a decisão recorrida, facilmente se apercebe, segundo as regras da experiência comum, que o Tribunal da Relação errou na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, tendo-se baseado em critérios arbitrários, meramente conclusivos e também contraditórios com as regras de valoração das provas. G. Por outro lado, o auto de reconhecimento em causa (e que tanto sustenta as ilações do Tribunal da Relação) é inválido, pois não é genuíno e fiel ao reconhecimento que efetivamente foi feito pela testemunha DD, contendo declarações incorretas! H. Erro, aliás, que também o próprio Tribunal da Relação não deixou de reconhecer no acórdão ora recorrido quando refere «…tendo ela esclarecido que o auto de reconhecimento aludido enferma de erro manifesto (ela não viu a pessoa que se apresentou no Cartório onde trabalha no dia 26/05/2015, portanto não podia reconhecê-la)…». I. Não obstante reconhecer o erro, o Tribunal da Relação retirou do depoimento prestado pela testemunha DD em sede de audiência de discussão e julgamento que «o reconhecimento que fez — tanto quanto se recordava — se destinava a identificar a pessoa que tinha comparecido para outorgar a escritura em causa nestes autos (o que resulta também do auto da diligência), sendo que nenhum dos participantes na linha de reconhecimento era a pessoa em questão». [sublinhado e negrito nosso] J. Ora, um homem médio que lê a decisão recorrida facilmente se apercebe que a decisão enferma de erro manifesto, mais uma vez, o raciocínio do Tribunal da Relação está ferido de um raciocínio ilógico e arbitrário, porquanto: i) se a testemunha DD identificou no auto de reconhecimento o Sr. CC; ii) e se a testemunha DD apenas viu a pessoa presente no dia da escritura, não se tendo cruzado nem visto o senhor que apareceu no Cartório no dia 26/05/2015; iii) então, necessariamente, a pessoa que a testemunha identificou entre as pessoas que se encontravam na linha de reconhecimento foi a pessoa que viu no dia da escritura. K. Dito de outro modo, a pessoa que a testemunha DD viu, confirma que reconheceu e com quem esteve presente no dia da celebração da escritura foi o aqui assistente. L. Pelo que, em sentido contrário ao que refere o acórdão, o homem médio concluiria que o assistente Sr. CC esteve presente no referido Cartório no dia 22/05/2015. M. Além disso, resultou da prova produzida que: - existiam várias pessoas que agiam sempre em torno do aqui assistente, designadamente pessoas do Lar onde se encontrava, "O.... .. .....”, quer os seus dirigentes, quer funcionários do mesmo, diversos advogados e ainda outras pessoas; - o assistente era uma pessoa de alguma idade e proprietário de um vasto património imobiliário; - o assistente foi vítima de várias burlas ao seu património, inclusive de pessoas que trabalhavam no Lar onde se encontrava; - a arguida e o seu pai eram as únicas pessoas familiares próximas do assistente e, por isso, tal como também resultou da prova feita, estes procuraram proteger o património do assistente; - existiam já vários registos provisórios que tinham sido anteriormente efetivados. N. Pelo que, seria, de acordo com as regras da experiência comum, expectável que os familiares próximos (e sendo eles os únicos) celebrassem escrituras fictícias para proteger o património do assistente das más intenções de terceiros. O. E fictícias – como o próprio nome indica – significa que seriam escrituras simuladas, não tendo a arguida em vista a apropriação de tais bens para si às custas do património do assistente, mas apenas a sua proteção de terceiros. P. Além de que os referidos registos provisórios caducavam – pelo menos quanto aos imóveis aqui em causa – no dia 22/05/2015, o que também justifica que a escritura se tenha celebrado naquela data. Q. Ademais, também resulta da prova e da decisão recorrida que no mesmo dia 22/05/2015 em que foi celebrada a escritura aqui em causa, foi igualmente celebrada uma doação do assistente de grande parte do seu património (26 prédios rústicos). R. Ora, não faz sentido que o Tribunal da Relação refira, na decisão recorrida, que «não se afigura razoável que o assistente perdesse o controlo da melhor parte do seu património sem receber o que quer que fosse em troca, sendo certo que nada indicia nos autos que ele pretendesse despojar-se de bens que lhe davam segurança económica», referindo-se à venda fictícia (aliás, que até admite que seja fictícia) do assistente à arguida, quando nessa mesma data o assistente doa grande parte do seu património a terceiros! S. Por outro lado, resultou da prova feita e decorre da decisão recorrida que o assistente tinha vários cartões de cidadão em seu poder. Pelo que, face às regras da experiência comum e à prova produzida, não seria de estranhar que, de facto, o assistente tenha utilizado cartões de cidadão distintos em ambas as escrituras. Acresce, ainda, que, T. Mesmo que, por hipótese, se admitisse que foi o assistente que, após celebrar a escritura no dia 22/05/2015, lá regressou no dia 26/05/2015, tal não seria assim tão inusitado, face à prova feita e às regras da experiência comum. Porquanto: U. Resultou da prova feita que o assistente padecia de uma situação demencial, de diversos problemas de saúde, designadamente patologia do foro neurológico, psico-motor e psiquiátrico, o que pode explicar a instabilidade do assistente. Assim como as influências de estranhos e de terceiros (nomeadamente pessoas do lar onde se encontrava, quer de seus dirigentes, quer de funcionários do mesmo, e ainda advogados e outras pessoas) a que estava sujeito, e máxime por ter ido no dia 26.05.2015 ao cartório acompanhado por um grupo de senhoras, que não se identificaram, mas que de acordo com o Tribunal da Relação seria a FF que o havia burlado anteriormente por decisão transitada em julgado e pela qual se encontrava a cumprir pena no estabelecimento prisional- Vidé decisão sob recurso pág. 35 linhas 21 e 22. V. Além disso, o comportamento processual do assistente refletido ao longo deste processo, revela bem o estado de saúde em que o mesmo se encontrava, podendo ainda revelar algo mais, como seja o quão influenciável e manipulável era o aqui assistente. W. Se assim é e se tais factos resultaram da prova feita, então, de acordo com as regras da experiência comum, será também expectável (ou pelo menos não poderá deixar de ser verosímil ou admissível) que o assistente, após celebrar a escritura num dia, por vontade própria, mais tarde, por influência de terceiros, tenha lá regressado para evitar a venda anteriormente realizada e se comportado nos termos por esses terceiros indicados. X. E, portanto, perante este estado de dúvida, não podia o Tribunal da Relação admitir que o assistente só compareceu no Cartório no dia 26/05/2015 e que não foi ele quem celebrou a escritura no dia 22/05/2015. Y. Muito menos admitindo a Relação que o Assistente no dia 26/05/2015 foi acompanhado até ao Cartório pela burlona FF que foi condenada por burlar o Assistente e se encontrava à data do julgamento a cumprir pena de prisão efetiva por esses crimes. - pág. 35 linhas 21 e 22 do acórdão sub iudice. Acresce que, Z. A decisão recorrida enferma, também, de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, uma vez que não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha praticado um crime de falsificação de documento (art. 256º, n.º 1, als. c) e d) e n.º 3 do Código Penal), nem um crime de uso de documento de identificação alheio (art. 261º, n.º 1, do Código Penal). AA. Não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha emitido uma declaração falsa – logo, não está verificado o elemento objetivo do crime de falsificação de documento. BB. E não decorre da matéria de facto provada que a arguida tenha usado documento de identificação emitido a favor de outra pessoa – logo, não está verificado o elemento objetivo do crime de uso de documento de identificação alheio. Mais, CC. Foi violado o princípio “in dubio pro reo” e o art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Finalmente, DD. Não estão verificados os elementos objetivo e subjetivo dos crimes: - a arguida não emitiu falsa declaração; (elemento objetivo – crime de falsificação de documento) - a arguida não usou documento de outrem; (elemento objetivo - crime de uso de documento de identificação alheio) - resulta da prova constante do acórdão sub iudice, do contrato de 09.05.2018 (fls. 1474 a 1477 vso.) e dos registos provisórios que a arguida interveio para proteger o património do assistente das investidas e burlas de terceiros. Relembra-se que já existiam condenações de funcionários da O.... .. ....., por burla de que o Assistente foi vítima, e de terceiros que lhe retiraram o seu património. Por isso existiam já sucessivos, registos provisórios prévios à celebração da escritura, com vista à proteção do património do assistente. (elemento subjetivo) Termina pedindo o provimento do recurso, sendo revogada a decisão recorrida e absolvida a arguida, pelas razões supra expostas, da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas c) e d), e n.º 3, do Código Penal e da prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261º, n.º 1 do Código Penal. 5. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, sustentando, em resumo, dever ser rejeitado o recurso por ser inadmissível ou, se assim não for entendido, deve ser julgado improcedente. 6. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido da irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, uma vez que se compreende no elenco das decisões a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP (na medida em que não chegou a aplicar uma pena à arguida e, por isso, não está perfeita ou completa, não tendo apreciado do mérito da causa, uma vez que não há condenação sem pena), devendo ser rejeitado o recurso, por legalmente inadmissível, ou se assim não for entendido, de qualquer modo, deve ser julgado improcedente, pelos motivos indicados na resposta ao recurso, com os quais também concorda. 7. A arguida respondeu ao Parecer do Sr. PGA pugnando, em resumo, “pela admissibilidade do recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 399º, 432º, n.º1, al. b) e 400º, n.º1 a contrario, todos do CPP. Subsidiariamente, caso assim não se entenda: i) Requer que se admita o presente recurso, sob pena de se violar as garantias de defesa da arguida consubstanciadas no direito ao recurso (art. 32º, n.º 1 da CRP e art. 14º, n.º 5 do PIDCP) e o direito da arguida a um processo equitativo e justo (art. 20º, n.º 4 da CRP e art. 6º, n.º 3 da CEDH); - e, sob pena de , não sendo o presente recurso admitido, passarmos a ter duas decisões conformes, decorrentes da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que ordena a alteração da sentença da 1ª Instância impondo que o Tribunal de 1ª instância fixe a espécie e a medida da pena aplicável, passando assim, em consequência deste “mecanismo”, a existir uma decisão de 1ª instância de condenação e outra já proferida pelo Tribunal da Relação igualmente condenatória que inviabiliza o recurso para o STJ. Subsidiariamente, ii) Requer se anule o acórdão recorrido por falta da menção referida no art. 374º/3, b) (ex vi arts. 379º/1, a) e 425º/4, todos do CPP) e por omissão de pronúncia (art. 379º/1, c), ex vi art. 425º/4, ambos do CPP), sendo o mesmo omisso quanto à condenação concreta da arguida e, por isso, ininteligível, por falta de objeto decisório, para se formular um juízo sobre a admissibilidade ou não do recurso. Subsidiariamente, iii) Requer se admita, ao abrigo do disposto no art. 29º, n.º 6 da CRP, a possibilidade de a arguida requerer a revisão da decisão que a condena, uma vez que a condenação é injusta. Finalmente, em caso de admissão do recurso interposto, requer que seja julgado procedente. 8. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão. Cumpre, assim, apreciar e decidir. Fundamentação 9. Resulta dos autos, com interesse para a presente decisão, o seguinte que consta do acórdão recorrido do TRP de 23.11.2022, proferido em conferência: (…) 6.Cumpridos os legais trâmites importa decidir. 7. Uma advertência prévia, entretanto, se impõe. O assistente originário nos autos faleceu no decurso da tramitação do processo, como se refere na matéria de facto dada por assente, tendo a posição do mesmo, entretanto, sido ocupada pelo seu irmão, pai da aqui arguida. De modo a evitar dúvidas, importa esclarecer que, nas considerações subsequentes, sempre que se aludir ao assistente, e salvo indicação em contrário, é o assistente originário, não o «atual» assistente, que se pretende referir. II 8. O presente recurso merece parcial provimento. 9. 1. A sentença recorrida – contra o que pretende o Digno recorrente – não padece de qualquer vício de fundamentação que determine a sua nulidade, por via das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal. 10. Com efeito, analisadas as razões em que funda o Digno recorrente tal pretensão, retira-se claramente que o que ele censura à decisão recorrida é o facto de nela não se ter efetuado uma distinta valoração da prova produzida (coincidente, naturalmente, com a que ele defende nas suas alegações de recurso), o que obviamente não corresponde a qualquer falta de fundamentação (no sentido, amplo, de omissão de indicação bastante das razões que conduziram à formação da convicção do Tribunal no tocante à matéria de facto relevante para a decisão, em qualquer das vertentes em que esta se analisa): a sentença recorrida está devidamente motivada no que tange às razões que levaram o Tribunal a quo a fixar a matéria de facto (provada e não provada) nos termos em que o fez; se essas razões são ou não procedentes, se são ou não convincentes para os respetivos destinatários, é questão que tem de ser discutida em sede de impugnação da dita valoração, a que, aliás, se dedica o recorrente ao longo de todas as suas alegações e que a seguir se tratará. 11. 2. Já contrariamente ao que entendido foi na decisão recorrida, a prova produzida perante o Tribunal a quo é suficiente para, afastando o estado de incerteza naquela invocado, concluir pela prática, por parte da arguida, das condutas que lhe são imputadas nos autos. 12. a) Os factos básicos que interessam para a decisão do presente pleito são relativamente incontrovertidos. Assim, nenhuma dúvida existe que no dia 22/05/2015, foi celebrada uma escritura pública em Cartório Notarial sito na Avenida ..., na cidade ..., na qual foram outorgantes a aqui arguida e, alegadamente, o assistente nestes autos (tio daquela), entretanto falecido na pendência do presente processo, como se referiu, escritura essa através da qual o aludido assistente supostamente declarou vender à sua sobrinha, pelo preço global de € 414 661,99 (também supostamente já recebido), um conjunto de bens imóveis (de valor real não concretamente apurado, mas seguramente superior ao indicado, que corresponde ao valor matricial dos ditos imóveis), identificados no mesmo instrumento público; para tanto, no dia e hora marcados para a celebração da dita escritura, a arguida compareceu no pertinente Cartório, na companhia de alguém que se identificou como sendo o assistente, apresentando, como prova da sua respetiva identidade, um cartão de cidadão legalmente emitido e ainda dentro da respetiva data de validade, em nome do mesmo assistente. 13. Também é incontrovertido que, no subsequente dia 26/05/2015, se apresentou no dito Cartório Notarial um grupo de pessoas, suscitando a questão de a aludida escritura ter sido celebrada por pessoa distinta do aqui assistente, ou seja, alegando que alguém se teria dirigido ao mencionado cartório e assinado a dita escritura fazendo-se passar pelo assistente e abusando da sua identidade e assinatura. Face a tal situação, nesse mesmo dia 26/05/2015, a Notária responsável pelo Cartório em apreço, depois de confirmar que também a pessoa que se lhe apresentava como sendo o assistente era portadora de cartão de cidadão, legalmente emitido e válido, confirmando a respetiva identidade, lavrou a declaração acima reproduzida, concluindo, na mesma, que «[p]ese embora tenha constatado que a pessoa que perante mim, no dia 22-05-2015 outorgou a escritura não era, de facto, a mesma que no dia 26-05-2015 compareceu no Cartório, o certo é que, quer o cartão de cidadão exibido na escritura, quer o que foi exibido posteriormente em 26-05-2015, estavam ambos válidos e pertenciam à mesma pessoa, uma vez que o número de identificação civil era o mesmo, mas eram duas vias diferentes daquele documento». 14. Já quanto aos demais factos que à arguida eram imputados na acusação e pronúncia contra ela formuladas nos autos, declarou-se, no entanto, o Tribunal a quo, em dúvida insanável, essencialmente porque: «face a tudo o expendido não é possível ao Tribunal concluir, com a certeza e a segurança que uma condenação impõe, que não tenha sido o assistente a estar presente na referida escritura e que tenha sido a sua sobrinha, aqui arguida, a montar todo este esquema ardiloso com vista a ficar com o seu património, pelo que não ficou assim demonstrado que a arguida tenha montado um esquema fraudulento e enganador, que apresentou à notária, ludibriando-a, com a única intenção de se apropriar dos bens imóveis de seu tio, bem sabendo que agia contra a vontade deste. Se é certo que o Tribunal não pode atestar – perante a prova que se produziu – que a arguida nada tenha feito, também o contrário não resultou com segurança e certeza da prova produzida.» 15. b) Esta posição do Tribunal recorrido choca, no entanto, com a prova perante si (validamente) produzida e com as regras da experiência comum. 16. Assim, o Tribunal a quo não valorou corretamente os depoimentos das testemunhas EE e DD, respetivamente Notária e funcionária do Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura pública aqui em questão. 17. Com efeito, a primeira das aludidas testemunhas, no decurso do seu depoimento, em momento algum manifestou qualquer dúvida de que a pessoa que se lhe apresentou no dia 22/05/2015 não era a pessoa que se lhe apresentou no subsequente dia 26/05/2015 (portanto, apenas 4 dias depois da celebração da escritura aqui em causa, quando a sua memória dos eventos ainda estava fresca), não havendo razão alguma para colocar em causa a credibilidade de tal depoimento nessa parte, tanto mais que foi esse facto que a levou a lavrar a declaração atrás transcrita. 18. A própria decisão recorrida não deixa de o reconhecer, fundando a dúvida insanável em que alega encontrar-se (sobretudo) na circunstância de que «a referida testemunha (…) di[sse] que (…) não pod[ia] atestar, com certeza e segurança, que o verdadeiro CC fosse a pessoa que se apresentou na escritura ou no outro dia, apenas podendo dizer que eram pessoas diferentes», e não propriamente em qualquer incerteza do depoimento da testemunha nesta parte. E embora posteriormente acrescente «mesmo admitindo que as pessoas eram diferentes» (os sublinhados são nossos), parecendo duvidar desse facto apesar da posição anteriormente assumida, sempre acrescenta, no que que se antolha como o ponto essencial em que ancora a sua dúvida: «não conseguimos saber, com um grau de certeza e segurança, quem era o “verdadeiro” CC – se a pessoa que esteve presente na escritura datada de 22/05/2015 ou se a pessoa que se apresentou no Cartório, juntamente com várias senhoras, no dia 26/05/2015». 19. Esta conclusão, contudo, é também insustentável face à prova produzida em audiência, verificando-se, igualmente aqui, um erro na sua apreciação. 20. Ainda que se pudesse admitir que a identificação a que, no dia 26/05/2015, procedeu a testemunha EE não permite, com a necessária segurança, concluir que quem se deslocou ao Cartório onde a mesma é Notária foi efetivamente o aqui assistente, o certo é que, no decurso do inquérito (e como se refere na decisão recorrida), as testemunhas EE e DD foram chamadas a realizar reconhecimento presencial (cfr. o auto de fls. 961-962) com vista a apurar se a pessoa que compareceu no Cartório Notarial aquando da celebração da escritura aqui em causa seria algum dos participantes na diligência, tendo nessa altura a testemunha EE afastado claramente tal possibilidade, mas esclarecendo que um dos presentes na linha de reconhecimento era a pessoa que se lhe tinha apresentado no dia 26/05/2015, precisamente o aqui assistente, de cuja identidade não se pode, destarte, duvidar, seja porque nesse dia ele foi identificado pelos agentes policiais envolvidos na diligência de reconhecimento (também por meio do correspondente cartão de cidadão), seja porque um dos elementos presentes na linha de reconhecimento era o pai da arguida e irmão do próprio assistente, que não colocou em causa a identificação que deste foi então feita. 21. De todo o exposto é, pois, seguro, que a pessoa que abordou a testemunha EE no dia 26/05/2015 foi o aqui assistente. 22. Para além disto, também o aludido depoimento da testemunha DD é relevante quanto a este ponto, porquanto tendo ela esclarecido que o auto de reconhecimento aludido enferma de erro manifesto (ela não viu a pessoa que se apresentou no Cartório onde trabalha no dia 26/05/2015, portanto não podia reconhecê-la), deixou igualmente claro que o reconhecimento que fez – tanto quanto se recordava – se destinava a identificar a pessoa que tinha comparecido para outorgar a escritura em causa nestes autos (o que resulta também do auto da diligência), sendo que nenhum dos participantes na linha de reconhecimento era a pessoa em questão. Também por aqui, pois, é seguro concluir que o assistente neste processo não esteve presente no referido Cartório no dia 22/05/2015. 23. Nestas circunstâncias, e ao contrário do que se defende na decisão recorrida, forçoso é concluir que a pessoa do sexo masculino que, juntamente com a aqui arguida, outorgou a escritura pública em causa nestes autos não era o assistente, pois que este seguramente não compareceu no Cartório Notarial onde a mesma foi celebrada antes do dia 26/05/2015, nenhuma dúvida razoável se podendo manter a respeito de tal facto. 24. c) Esta conclusão é ainda reforçada quando se valoram globalmente os factos dados como assentes e outros que ressumam da prova (sobretudo) testemunhal e documental que se encontrava à disposição do Tribunal recorrido. 25. Em primeiro lugar, não há qualquer dúvida que o aqui assistente manifestou vontade de deixar os bens que foram objeto da escritura pública em causa nos autos a entidades religiosas, e que isso era do conhecimento dos seus familiares próximos, pois que o seu próprio irmão o reconheceu durante o seu depoimento. Não faria assim sentido que o assistente resolvesse, sem mais, «vender» ficticiamente à sua sobrinha uma porção muito significativa do seu património imobiliário, o que o impedia de concretizar aquela sua intenção, ainda que fosse, como alega a arguida, para «colocar a salvo» os imóveis em questão (também do próprio assistente, dir-se-ia, pois que com a respetiva venda deixaria de poder dispor deles como entendesse). 26. Em segundo lugar, não há qualquer dúvida que a «venda» em causa nos autos não correspondia efetivamente a qualquer negócio de transmissão onerosa dos imóveis propriedade do aqui assistente, algo que a própria arguida reconhece sem rebuço, esclarecendo mesmo que só não foi realizada uma doação por isso implicar custos notariais mais elevados. Assim sendo, o assistente perdia o controlo da melhor parte do seu património, sem receber o que quer que fosse em troca, o que não se afigura razoável, sendo certo que nada nos autos indicia que pretendesse ele despojar-se de bens que lhe davam segurança económica, considerando a sua situação. 27. Em terceiro lugar, o aqui assistente, no dia em que foi celebrada a escritura em causa nos presentes autos, outorgou outra escritura, junta aos autos a fls. 138 e segs., na qual é identificado por referência ao seu cartão de cidadão com limite de validade em 17/11/2018 (precisamente o mesmo com que se apresentou a pessoa que, no dia 26/05/2015, abordou a testemunha EE e se lhe identificou como sendo o assistente). Curiosamente, na escritura em causa nestes autos a identidade do vendedor é estabelecida utilizando um cartão de cidadão com data de validade anterior (25/10/2016), nenhuma razão havendo para que fossem utilizados documentos de identificação diferentes, no mesmo dia, em atos equivalentes, quando o assistente estava na posse de um cartão de cidadão plenamente válido, salvo, naturalmente, se se admitir (pelo menos) que a arguida utilizou um cartão de cidadão sem confirmar, com o seu tio, se era esse ou não o cartão que utilizava para se identificar, o que também se afigura pouco verosímil, se a celebração da escritura aqui em causa tivesse sido por este desejada e voluntariamente realizada. 28. Em quarto lugar, mesmo tendo em consideração os eventuais problemas de saúde mental que afligiram o assistente nos últimos anos da sua vida, o certo é que se ele tivesse tido conhecimento, e tivesse concordado, com a celebração da escritura em causa nos autos, não se teria seguramente deslocado ao Cartório onde esta foi outorgada, ainda que tivesse mudado de opinião relativamente ao negócio que a mesma se destinou a titular, nos moldes em que o fez, até sem primeiro falar com a sua sobrinha e indagar, junto dela, o que se estava a passar (o que esta, aliás, não alegou ter sucedido em momento algum). 29. Em quinto lugar, e ainda que o depoimento da testemunha FF, dado o seu comportamento anterior em relação ao assistente, não mereça, de facto, particular credibilidade, não parece que seja de duvidar que ela se dirigiu ao Cartório onde foi celebrada a escritura aqui em causa na companhia do assistente (o que permite estabelecer, novamente sem qualquer dúvida, a identidade da pessoa que se apresentou à testemunha EE no dia 26/05/2015), e que este não lhe mostrou, em qualquer momento, ter conhecimento da realização de qualquer escritura de compra e venda dos bens imóveis alegadamente por si vendidos à arguida nos autos (até que se esclareceram, em parte devido a diligências desenvolvidas pela testemunha, os factos relativos a tal negócio). 30. Tudo aponta, assim, para que a escritura pública em causa nos presentes autos foi marcada e outorgada sem que o assistente nisso tivesse qualquer participação, ou sem que ele o consentisse, o que quadra com o comportamento que ele adotou logo que obteve o conhecimento necessário acerca do negócio celebrado. 31. O valor indiciário dos factos acabados de mencionar não é posto em causa pelo eventual estado de progressiva deterioração mental que afetou o aqui assistente nos últimos anos de vida, já que não resulta do processo, nem ninguém alegou, que, à data em que a escritura pública em causa nos autos foi outorgada (tal como a escritura que nesse mesmo dia o assistente seguramente celebrou) não estivesse ele ainda na posse das necessárias faculdades intelectuais para dispor do seu património, embora porventura (cada vez mais) suscetível a influências exteriores. 32. Não existem, pois, razões para crer que o assistente, se tivesse concordado e participado na outorga da escritura aqui em causa, se esqueceria de imediato do que tinha feito, mostrando-se, perante as pessoas com quem contactou a esse propósito, surpreso (e indignado) com um negócio que objetivamente o privava de boa parte do seu património, e que, de forma clara, mostrou rejeitar, não se limitando a manifestar mero arrependimento em relação à celebração do mesmo. 33. Das considerações antecedentes não pode deixar de retirar-se, pois, que o assistente não teve qualquer intervenção na celebração da escritura pública em causa nestes autos, nem autorizou o negócio através dela formalizado. 34. Ora, neste quadro de coisas, não pode senão concluir-se, também, que a celebração da escritura em causa nos autos foi «orquestrada» pela arguida: ela conhecia perfeitamente o seu tio, de modo que seguramente não foi enganada pelo indivíduo que a acompanhou até ao Cartório Notarial, só ela, na díada, tinha acesso ao cartão de cidadão do seu tio e podia dele dispor, só ela tinha interesse em fazer seus os imóveis objeto da «venda» titulada pela aludida escritura pública, não se vislumbrando qualquer outro motivo para o seu comportamento – mediante conluio com uma terceira pessoa, à margem da vontade e sem o conhecimento do aqui assistente, celebrando um negócio completamente simulado em prejuízo deste. 35. Mesmo admitindo que o assistente possa ter, em algum momento, ponderado a possibilidade de transmitir, para a sua sobrinha (e aqui arguida), a propriedade sobre os imóveis em referência, designadamente para evitar que pudesse ser manipulado, ou enganado, a deles dispor a favor de terceiros contra a sua real vontade, dos elementos probatórios já referidos resulta, com segurança, que, pelo menos aquando da celebração da escritura pública aqui em causa, não tinha ele decidido proceder a tal transmissão, nem a autorizou (até porque, como a própria arguida reconheceu, o património em causa já se encontrava salvaguardado pelo registo provisório da respetiva aquisição). 36. Daqui decorre, a nosso ver, que a atuação da arguida só pode compreender-se como uma forma de avantajar-se com o património do assistente, ainda que, em último termo, dessa forma também impedisse, ao menos indiretamente, que o mesmo fosse dissipado, porventura em moldes também não propriamente desejados pelo seu tio. 37. Fosse esta a única intenção da arguida, e estivesse ela completamente desinteressada em ficar com os imóveis pertencentes ao seu tio, seguramente que não teria atuado contra a vontade dele, agindo do modo já descrito, enganando a Notária que celebrou a escritura pública aqui em causa, bem como pelo menos uma funcionária do respetivo Cartório quanto à identidade da pessoa que assumiu, nessa mesma escritura, a posição de vendedor, que, ademais, não podia desconhecer corresponder a atos proscritos, e punidos, pelo ordenamento jurídico, já que tal conhecimento faz parte do acervo de saberes que qualquer pessoa com um processo de socialização adequado detém, muito mais o possuindo quem tem formação jurídica, como ocorre com a arguida. 38. Tudo isto aponta, pois, para um interesse muito próprio, e que poderia justificar o risco corrido pela arguida: a obtenção de um património imobiliário significativo, sem qualquer contrapartida, evitando que o assistente nos autos pudesse dispor dele a favor de terceiros, como, aliás, repetidamente disse ser sua intenção. 39. d) Nestas circunstâncias, pois, haverá que alterar a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, de modo a aí incluir, por um lado, que o aqui assistente, em data anterior a 22/05/2015, manifestou ao seu irmão e à filha deste, a aqui arguida, a sua intenção de deixar os seus bens imóveis, incluindo os que foram objeto da escritura pública em causa nos presentes autos, a instituições ligadas à Igreja Católica (o que o pai da arguida, e esta própria, embora de forma menos clara, confirmaram em audiência); por outro lado, que o indivíduo do sexo masculino que, juntamente com a arguida, celebrou a mesma escritura, não era o aqui assistente; e, por outro lado ainda, que a arguida atuou nos moldes em que atuou com vista a apropriar-se dos bens imóveis objeto da escritura pública aludida, não obstante saber que agia contra os ditames do ordenamento jurídico. 40. Na ausência de prova adequada do seu montante, o valor dos imóveis objeto da escritura pública em causa nos autos, relevante seja para a qualificação jurídica dos factos aqui em causa, seja para a determinação da medida concreta da pena, e que por isso também deverá ser integrado na factualidade dada por assente, só por referência ao respetivo valor tributário pode ser fixado. 41. As considerações anteriores resultam, assim, na introdução, entre os factos dados por assentes na decisão recorrida (com consequente eliminação do elenco da factualidade considerada não provada) do seguinte (bem como as alterações à factualidade dada por assente a seguir indicadas, de modo a garantir a sequência lógica da matéria de facto a dar como provada): 4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia 22/05/2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas; 5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de CC com o n.º 30836075 3zz9, válido até 25/10/2016. 5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente; 5B) Na concretização dos seus intentos, no dia 22/05/2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária EE, sito na Avenida de ..., na cidade ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar; 6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública, já constante da matéria de facto assente na decisão recorrida] 6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia 22/05/2015 não era o seu tio CC e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste; 8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros; 8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome – o do assistente – que não era o seu; 8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 42. Já quanto aos demais factos que o Digno recorrente pretende ver aditados à matéria dada por assente, não se vislumbra interesse na sua inclusão entre o acervo fáctico relevante para a decisão a proferir, uma vez que se trata de eventos posteriores aos que interessam para a apreciação da eventual responsabilidade criminal da arguida pelo seu comportamento que constitui objeto destes autos. 43. 3. Contrariamente ao que entende o Digno recorrente, a matéria de facto dada por assente não sustenta a condenação da arguida pela prática do crime de burla qualificada que lhe é imputado nos autos. 44. O crime de burla é, como se sabe, um crime de resultado (de dano), exigindo a sua consumação que, à conduta do agente, se siga a produção de uma alteração do mundo exterior, espácio-temporalmente distinta daquela (vd., v. g., FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 11.º Cap., § 38, pág. 356), no caso, a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de um terceiro, por via da realização, por parte destes, de atos – de disposição – idóneos a produzir a diminuição daquele mesmo património (assim, por todos, A. M. ALMEIDA COSTA, anotação ao artigo 217.º do Código Penal em FIGUEIREDO DIAS (fundador)/M. COSTA ANDRADE (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, vol. 1, §§ 4, pág. 345, 12 e 13, págs. 364-365). 45. Se o crime de burla dispensa a identidade entre quem é enganado pela conduta do agente e o titular do património que este pretende dessa forma atingir (o «prejudicado»), já não dispensa, no entanto, a identidade entre o enganado e a pessoa que pratica os atos de disposição patrimonial que produzem (são causalmente adequados a produzir) o resultado típico legalmente exigido (o prejuízo patrimonial). Por isso mesmo, nos casos em que não se verifica aquela identidade (os ditos casos de «burla triangular»), é indispensável que o enganado – para dizê-lo de forma sintética – tenha a possibilidade de dispor do património do sujeito passivo do crime (para um conspecto geral da discussão doutrinal a propósito da relação que há de interceder entre o enganado e o património atacado nos casos de burla «triangular», vd. THOMAS HILLENKAMP/KAI KORNELIUS, 40 Probleme aus dem Strafrecht – Besonderer Teil, 13.ª ed., págs. 176 e segs.). 46. Ora, a pessoa sobre a qual atuaram a arguida e o seu comparsa, e que foi, assim, «enganada», a Notária que outorgou a escritura pública em causa nestes autos, não se encontrava em posição de realizar qualquer ato de disposição patrimonial que afetasse efetivamente, diminuindo-o, o património do aqui assistente, pois que a sua intervenção se limita, como decorre do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Notariado, «a dar forma legal e conferir fé pública aos atos jurídicos extrajudiciais», e, se necessário, a «prestar assessoria às partes na expressão da sua vontade negocial», nos termos previstos no n.º 2 do mesmo preceito legal, não se incluindo entre as suas funções a tomada de qualquer decisão que afete, de forma direta e imediata, o património de quem quer que seja. 47. Por outro lado, é evidente que nem a arguida, nem o seu comparsa, detinham quaisquer poderes, jurídicos ou meramente fácticos, para dispor validamente do património do aqui assistente, o que significa que o contrato que celebraram, na medida em que incidiu sobre bens alheios relativamente a ambos, é nulo, não produzindo quaisquer efeitos em relação a terceiros, incluindo o aqui assistente (cfr. o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil; o regime previsto nos artigos 892.º e segs. não tem aplicação atento o preceituado no artigo 904.º do mesmo corpo de normas, mas redundaria em resultado similar). 48. Da «transmissão» da propriedade sobre os imóveis do aqui assistente assim supostamente efetuada por arguida e seu comparsa, portanto, não resultou, para o património daquele, qualquer prejuízo efetivo, ainda que não se olvide que a celebração da escritura pública em apreço (e, bem assim, o eventual ulterior registo da suposta aquisição efetuada pela arguida, matéria que, no entanto, não foi validamente incluída no objeto dos autos), debilitaria, até ao esclarecimento completo da situação e eliminação dos seus possíveis efeitos práticos (o que poderia implicar o recurso à via judicial, com os custos e incertezas inerentes), a posição do mesmo assistente em relação ao seu próprio património. Isso, porém. já não resultaria diretamente de qualquer disposição patrimonial que ainda pudesse imputar-se ao «enganado» pela conduta da arguida e seu comparsa, mas do uso (necessariamente posterior) que eles fizessem da escritura celebrada. 49. Por outro lado, não se reconduzindo a conduta da arguida e seu comparsa a qualquer das situações previstas nas diferentes alíneas do n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal, não entra igualmente aqui em consideração o preceituado no artigo 217.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas. 50. 4. A factualidade dada por assente, com as alterações que, como referido, lhe há que introduzir, permite concluir ter a arguida cometido os crimes de falsificação de documento e de uso de documento de identificação alheio cuja prática lhe é imputada nos autos. 51. a) Conforme decorre da matéria de facto dada como assente, a arguida, em conluio com o seu mencionado comparsa, apresentou-se no Cartório Notarial atrás identificado, onde o seu dito acompanhante, nos moldes já descritos, se identificou como sendo o assistente nos presentes autos, outorgando, de seguida, nessa qualidade, tomando parte e subscrevendo sob nome que não era seu, a escritura pública já várias vezes mencionada, dispondo de imóveis que não lhe pertenciam de facto, que a arguida declarou adquirir (supostamente) ao seu tio, aqui assistente, tudo, precisamente, para que esta, como era sua intenção, pudesse fazer seus tais bens, pertencentes ao seu tio, sem a eles ter qualquer direito legítimo, gerando um título bastante que justificasse a sua pretensão a ser reconhecida como proprietária dos mesmos e, ademais, permitindo-lhe, designadamente, proceder ao registo da transmissão do direito de propriedade sobre esses mesmos bens a seu favor, com os efeitos daí decorrentes. 52. As declarações assim realizadas, especialmente as respeitantes à identidade do indivíduo que compareceu no aludido Cartório Notarial, não correspondiam, pois, à verdade (eram falsas), sendo que destarte foi registado em escritura pública (que constitui um documento autêntico) um conteúdo suscetível de influir, ao menos formalmente, sobre a situação jurídica dos bens imóveis objeto de tal instrumento público, conferindo aparência de seriedade à pretensão da arguida de ser reconhecida como titular do direito de propriedade sobre eles (e que, portanto, não pode deixar de ser juridicamente relevante). 53. Tendo a arguida atuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com vista à obtenção de vantagem económica a que não tinha direito, preenche, pois, a factualidade dada por assente, e se bem se vê, inteiramente, a previsão do artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), e 3, do Código Penal (este último preceito por referência aos artigos 363.º, n.º 3, e 269.º e seguintes do Código Civil), não podendo assim aquela deixar de ser condenada pela sua prática. 54. b) De igual modo, a conduta da arguida preenche integralmente a previsão do artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal, já que facultou ela, ao indivíduo que consigo celebrou a escritura pública em causa nos autos, um cartão de cidadão (que constitui «documento de identificação», na aceção da incriminação em apreço, nos moldes previstos no artigo 255.º, alínea c), do corpo de normas aludido) de que era titular o aqui assistente, para que o dito indivíduo o pudesse usar, como ele veio efetivamente a usá-lo, de modo a identificar-se como sendo o respetivo titular, tudo o que era do conhecimento (e desejo) da arguida, com vista à concretização, conjuntamente com o dito indivíduo, dos seus intentos delituosos, bem sabendo ser a sua conduta contrária aos ditames da ordem jurídica. 55. A conduta da arguida poderia ainda subsumir-se ao n.º 2 do preceito legal aludido (facultação de documento de identificação alheio a terceiro, conduta necessariamente prévia ao seu respetivo uso). 56. Contudo, e considerando que mesmo em relação ao uso do documento de identificação em questão teve a arguida intervenção, atuando mancomunada com comparsa que, no limite, poderia ter desmascarado, se assim o tivesse querido, fazendo fracassar o plano criminoso que executaram, não pode deixar de reconhecer-se que partilhou com ele o (con)domínio do facto, e nessa medida não pode deixar de ser reconhecida como sua coautora (artigo 26.º, 3.ª alternativa, do Código Penal) e por ele (mas só por ele) punida, pois que a incriminação em questão abrange a totalidade do desvalor do ilícito cometido. 57. 5. A decisão recorrida não contém os elementos necessários para que este Tribunal possa fixar a pena a impor à arguida pela prática dos crimes já indicados, o que exige a realização de diligências probatórias incompatíveis com a cognição que está este Tribunal autorizado a realizar nestes casos (cfr. artigos 410.º, n.º 2, alínea a), e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). 58. Com efeito, da decisão recorrida, a propósito da vida pregressa e da situação social, económica e familiar da arguida, consta apenas que «[a] arguida nasceu no dia 27/01/1971, tendo atualmente 51 anos de idade, é solteira, empresária hoteleira» e «não tem antecedentes criminais (cfr. CRC junto aos autos)». 59. Tais factos são insuficientes para permitir a ponderação imposta pelo artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, exigindo a ampliação da matéria de facto neste ponto a todos os fatores aí mencionados e relevantes para a determinação concreta das penas a aplicar à arguida pela sua conduta já aludida. Tal tarefa deverá, por isso, ser confiada à 1.ª instância, a quem incumbe, em primeira linha, a determinação – com pleno contraditório – da factualidade relevante para a decisão a tomar. 60. 6.No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). III 61. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, em: a) Alterar, pelas razões expostas no ponto 16 e segs., a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, de modo a que nela passem a constar os seguintes factos (com consequente eliminação do elenco da factualidade considerada não provada) do seguinte (bem como as alterações à factualidade dada por assente a seguir indicadas, de modo a garantir a sequência lógica da matéria de facto a dar como provada): 4A) Em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao dia 22/05/2015, o aqui assistente deu conhecimento, designadamente, ao seu irmão e sobrinha, da sua intenção de dispor dos imóveis de sua propriedade a favor de instituições religiosas; 5) À data dos factos a seguir descritos, a arguida tinha na sua posse um Cartão de Cidadão de CC com o n.º ......75 3zz9, válido até 25/10/2016; 5A) De modo a fazer seus vários bens imóveis propriedade do assistente, a arguida conluiou-se, então, com um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, com características físicas semelhantes ao seu tio, a quem entregou o aludido Cartão de Cidadão, de modo a que o mesmo pudesse fazer-se passar pelo assistente; 5B) Na concretização dos seus intentos, no dia 22/05/2015 a arguida apresentou-se no Cartório Notarial da Notária EE, sito na Avenida ..., na cidade ..., acompanhada do referido indivíduo, cuja identidade não foi possível apurar; 6) Aí, este indivíduo identificou-se como sendo o assistente, apresentando o cartão de cidadão que a arguida lhe havia entregue, desse modo conseguindo convencer os funcionários do dito Cartório (e a respetiva Notária) que se tratava efetivamente do tio da arguida e aqui assistente, tendo então outorgado, com esta, escritura pública do seguinte teor: [reprodução do teor da escritura pública constante deste mesmo ponto da matéria de facto dada por assente na decisão recorrida] 6A) A arguida tinha perfeito conhecimento de que a pessoa que consigo se apresentou no referido Cartório Notarial no dia 22/05/2015 não era o seu tio CC e que a outorga daquela escritura não refletia a vontade deste; 8A) A arguida atuou nos moldes descritos com a intenção, lograda, de enganar a Notária responsável pelo Cartório Notarial aludido quanto à identidade da pessoa que a acompanhava, levando-a assim a celebrar a escritura pública em causa nos autos e, dessa forma, fazer seus os bens imóveis melhor descritos em tal instrumento público, pertencentes ao seu tio, de valor concretamente não apurado, mas nunca inferior a meio milhão de euros; 8B) O indivíduo que agiu juntamente com a arguida sabia que utilizava um documento de identificação que lhe não pertencia e que subscrevia a escritura pública em que participou com um nome – o do assistente – que não era o seu; 8C) A arguida atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. b) Absolver a arguida, pelas razões constantes do ponto 43 e segs., da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal; c) Condenar a arguida, pelas razões constantes do ponto 51 e segs., pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal, em pena a determinar na 1.ª instância; d) Condenar a arguida, pelas razões constantes do ponto 54 e segs., pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal, em pena a determinar na 1.ª instância; e) Ordenar o reenvio dos autos para realização de novo julgamento destinado a apurar os fatores relevantes para a determinação da medida e escolha das penas concretas a aplicar à arguida pelos crimes por ela cometidos, e proceder à imposição das penas que se mostrem cabidas ao caso (ponto 57 e segs.). 62. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Direito 10. Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP (cf. art. 434.º do CPP). Ora, analisadas as conclusões do recurso apresentado pela arguida para o STJ, verifica-se que recorre do acórdão do TRP de 23.11.2022, retificado por acórdão de 7.12.2022, que, depois de alterar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, a condenou por um crime de falsificação de documento e por um crime de uso de documento identificação alheio, quando havia sido totalmente absolvida pela 1ª instância da prática dos crimes pelos quais fora acusada. As questões que a arguida/recorrente coloca prendem-se, em primeiro lugar, com a invocação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do CPP, em segundo lugar, com a interpretação (que entende ter sido errada) feita do princípio in dubio pro reo e, por último, com a alegada errada interpretação na subsunção dos factos ao direito. Questão prévia colocada pelo Ministério Público, na sua resposta, é a de não ser admissível o recurso para o STJ, tendo em vista o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e) do CPP (sendo que o Sr. PGA neste STJ coloca a questão da inadmissibilidade do recurso por aplicação do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP). Porém, também se pode suscitar a questão (como em parte sustenta a recorrente na resposta ao Parecer do Sr. PGA) de saber se, afinal, não estaremos antes perante um acórdão (impugnado) da Relação que é nulo, por omissão de pronúncia quanto à determinação da sanção, sem prejuízo da Relação estar a inviabilizar que funcionem as regras de recurso, nomeadamente o art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, sendo o recurso admissível nos termos gerais (art. 399.º do CPP), ainda que a recorrente defenda, a título principal, que o recurso pode desde já ser conhecido pelo STJ, mesmo sem a determinação da sanção. Vejamos então. Quando a sentença absolutória da 1ª instância foi proferida em 8.04.2022 já estava em vigor a alteração ao CPP aprovada pela Lei 94/2021, de 21.12, que entrou em vigor em 21.03 seguinte. Ora, já nessa altura, tal como atualmente, dispunha o art. 400.º (Decisões que não admitem recurso) do CPP: 1 - Não é admissível recurso: (…) c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º; (…) e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância; (…) Neste caso concreto, temos uma sentença absolutória da 1ª instância, que foi alterada na Relação, por acórdão que, modificando em parte a decisão sobre a matéria de facto, proferiu uma decisão condenatória pela prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de uso de documento de identificação alheio, mas não aplicou as respetivas sanções, por ter determinado o reenvio do processo para a 1ª instância para apurar factos relevantes para a determinação da medida e escolha das penas concretas a aplicar e proceder à respetiva imposição dessas penas. Ou seja, a Relação resolveu a questão da culpabilidade mas, depois, não quis decidir da determinação da sanção, que remeteu para a 1ª instância. Portanto, proferiu uma decisão de condenação incompleta, na medida em que decidindo ser a arguida culpada pelos referidos dois crimes (um crime de falsificação de documento e um crime de uso de documento de identificação alheio), todavia não a condenou nas respetivas penas individuais e subsequente pena única, como lhe competia. E, por essa via, se fosse admissível, poder-se-ia dizer que estaria encontrada (de novo e ao contrário do que já resultava, a seu tempo, do Ac. do TC n.º 595/20181) a forma de a Relação inviabilizar o direito ao recurso da arguida para o STJ, previsto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, desde a reforma introduzida pela Lei n.º 94/2021, quando é confrontada com uma decisão inovatória como sucede neste caso. O mesmo se diga com o entendimento do Ministério Público, quando defende que, neste momento, não é admissível recurso para o STJ. Vedando-se, neste momento, o direito ao recurso da arguida para o STJ ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP ou, considerando mesmo que o não tem por aplicação do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP (face à decisão do reenvio parcial, sem se atentar no tipo de reenvio em causa), a questão da culpabilidade ficava já definitivamente assente? É que, repare-se, a Relação definiu a questão da culpabilidade e apenas reenviou a questão da determinação da sanção, o que significa que a 1ª instância tem de aceitar a decisão superior quanto à culpabilidade e limitar-se a averiguar os factos e aplicar a sanção (depois o que se poderia seguir era um recurso sobre a medida da pena que, eventualmente, atenta a moldura abstrata dos crimes em causa e pena aplicada, até ficaria pela Relação). Se assim fosse, isso iria contra todos os princípios e regras que se enquadram no núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, pois que sendo absolvido pela 1ª instância e depois condenado (ainda que imperfeitamente) pela Relação, isso significava que era confrontado com uma nova decisão desfavorável, tendo de lhe ser reconhecido o acesso ao tribunal que ocupa o topo da hierarquia na organização judiciária dos tribunais criminais e o direito a um grau de recurso (artigos 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da CRP). A subsequente questão que se colocava, seguindo o entendimento do Ministério Público, era saber como depois admitir o recurso para o STJ, se a pena não foi fixada pela Relação? Proferida a nova sentença quanto à pena pela 1ª instância, na sequência do reenvio determinado pela Relação, o processo voltava à Relação para viabilizar o direito ao recurso da arguida para o STJ quanto à questão da culpabilidade e também da pena? Mas como viabilizar legalmente esse entendimento e formalismo? Estas e muitas outras interrogações poderíamos colocar a partir do momento em que o tribunal deixou de cumprir a lei processual penal. Aliás, como se pode ver da fundamentação do acórdão impugnado, quando foi determinado o reenvio para determinação da sanção, foi simplesmente ignorado o acórdão do STJ n.º 4/2016, de 21.01.2016, publicado no DR I Série de 22.02.2016, em vigor, que fixou a seguinte jurisprudência: Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal. Assim, se entendia que havia insuficiência de factos para a determinação da sanção a Relação não estava impedida de, por si, obter os elementos necessários em falta. A este propósito, defende-se no citado acórdão do STJ n.º 4/2016, de 21.01.2016, que “não está a Relação impedida de obter os elementos necessários à determinação da sanção por via da realização de uma audiência, nos termos do artigo 371.º, pois, como vimos, em recurso são aplicáveis as disposições sobre deliberação e votação em julgamento, tendo em atenção a natureza das questões objecto do recurso (n.º 2 do artigo 425.º), nelas se incluindo tanto a questão da culpabilidade como a questão da determinação da sanção e, nesta, contempla‑se a possibilidade de a deliberação e votação sobre a espécie e a medida da sanção ser precedida de produção de prova nos termos do artigo 371.º Numa outra perspectiva, defende‑se uma interpretação extensiva ou mesmo por analogia do artigo 430.º do Código de Processo Penal, “por exigência do direito a um processo equitativo, no caso em que depois de uma absolvição em 1.ª instância poderá seguir‑se uma condenação no tribunal de recurso”. Por isso, acaba-se por concluir no citado acórdão do STJ n.º 4/2016, que «a lei processual penal, impõe à Relação o dever de, resolvida a questão da culpabilidade, decidir a questão da determinação da sanção», assim se evitando que assuma uma «decisão deliberadamente “incompleta” e, por isso, ilegal, porque afetada de nulidade». E, se a Relação tivesse aplicado as sanções, como podia e devia, observando o estatuído no citado acórdão do STJ n.º 4/2016, não se colocava agora esta questão, que ainda assim procurou remediar quando admitiu o recurso da arguida para o STJ, mas esquecendo que havia proferido uma condenação incompleta. De todo o modo, previamente, ainda resta definir se é ou não admissível recurso para o STJ, tendo em atenção que a Relação condenou inovadoramente a arguida, mas não lhe fixou a pena, o que, porém, não pode inviabilizar ou inutilizar o direito ao recurso conferido à arguida pelo art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, apesar desta norma pressupor a aplicação da pena. De esclarecer, ainda, que tendo a Relação determinado o reenvio parcial nos moldes indicados (independentemente do que acima já se disse sobre essa matéria), teremos de concluir que o acórdão da Relação conheceu a final e, em parte, do objeto do processo, na medida em que decidiu da questão da culpabilidade e apenas determinou o reenvio parcial da determinação da sanção, remetendo para a 1ª instância, não só a averiguação dos factos pertinentes, assim como da decisão de aplicação das respetivas sanções individuais e única (ou seja, na perspetiva da Relação conheceu de tudo o que tinha a conhecer sobre o mérito da causa, conhecendo a final da relação substantiva, pondo fim ao processo na Relação). Seria arrojado conjeturar que era admissível o recurso para o STJ por via dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, al. c) 1ª parte a contrario e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP. Uma vez que não foi determinada a pena, a interpretação mais correta é entender que esta concreta decisão impugnada não cabe no leque das decisões irrecorríveis indicadas no art. 400.º do CPP, percebendo-se, contudo, que a Relação tivesse admitido, por despacho de 18.01.2023, o recurso interposto pela arguida para o STJ (ao abrigo dos arts. 400º, n.º 1 à contrário, 402º, 406º, 407º, 408º, 432º, n.1 al. b), 434º e 410º, n.ºs 2 al. a) e c) do CPP invocados pela arguida), mas tendo presente igualmente a regra geral contida no art. 399.º do CPP. Com efeito, nesta perspetiva, perante uma situação omissão como esta, não prevista no art. 400.º do CPP, à semelhança do que ensina Maria João Antunes2 (ainda que para outros casos omissos), visto o princípio geral da recorribilidade previsto no art. 399.º do CPP e no confronto com o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, há que garantir o direito ao recurso da arguida, sob pena de lhe ser vedada a possibilidade de posteriormente impugnar a questão da culpabilidade decidida inovadoramente pela Relação e que é garantido pela CRP; por isso, acrescentamos que, outra interpretação de tais normas era inconstitucional, por violação dos arts. 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, da CRP, traduzindo-se numa inaceitável restrição à admissibilidade do recurso em segundo grau, relativo à questão da culpabilidade decidida inovadoramente pela Relação, que a condenou sem lhe aplicar pena, reenviando o processo para a 1ª instância para esse efeito, o que impedia a arguida de sindicar aquela parte da decisão inovadora. Assim resolvida a questão da admissibilidade do recurso da arguida, antes de nos debruçarmos sobre as questões por ela colocadas, como acima já se adiantou, em primeiro lugar, importa conhecer da questão essencial da nulidade do acórdão da Relação impugnado, uma vez que, a verificar-se, prejudica o conhecimento das demais questões. E, a importância do conhecimento da nulidade do acórdão recorrido prende-se, precisamente, com o facto de a condenação nele contida não estar completa e, por isso, não se poder considerar uma verdadeira e perfeita condenação, tendo presente que esta afeta sempre os direitos do condenado. Efetivamente, não tendo a Relação aplicado, no acórdão recorrido, as respetivas penas individuais e única, como lhe competia e, portanto, não se pronunciando sobre a questão da determinação da sanção, cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia prevista nos arts. 369.º, 374.º, n.º 3, al. b), 375.º, 379.º, n.º 1, al. a), al. c) e nº 3 e 425.º, n.º 4, do CPP. Terá assim a Relação de suprir essa nulidade, devendo fazê-lo, sem determinar o reenvio parcial do processo para o efeito, como acima já se explicou, tendo em atenção o ac. do STJ n.º 4/2016, que ignorou. É que, para além do mais, não se pode olvidar o valor e a eficácia da decisão contida no ac. do STJ n.º 4/2016, visto o disposto no art. 445.º do CPP e, mesmo que nos termos do seu n.º 3 a Relação viesse a fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada nessa decisão, único caso em que poderia determinar o reenvio, este deveria limitar-se à averiguação dos factos pertinentes, mas deveria ser sempre a Relação a determinar as sanções individuais e única a aplicar à arguida, para não inviabilizar ou inutilizar o disposto no art. 400. º, n.º 1, al. e), do CPP, o mesmo é dizer, o direito ao recurso da arguida perante uma decisão inovadora como esta (em que passa de uma absolvição da 1ª instância para uma condenação na Relação). Em conclusão: a nulidade apontada prejudica o conhecimento do recurso da arguida. Assim, impõe-se devolver os autos à Relação, a fim de ser suprida pelo mesmo tribunal a nulidade apontada, com a prolação de novo acórdão. Dispositivo Pelo exposto, acordam nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos dos arts. 369.º, 374.º, n.º 3, al. b), 375.º, 379.º, n.º 1, al. a), al. c) e n.º 3 e 425.º, n.º 4, do CPP, por omissão de pronúncia sobre a questão da determinação da sanção a aplicar à arguida, determinando-se a devolução dos autos à Relação para o mesmo tribunal que proferiu tal decisão, suprir a deficiência apontada, ficando prejudicado o conhecimento do recurso da arguida. Sem custas. * Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos. * Supremo Tribunal de Justiça, 25.10.2023 Maria do Carmo Silva Dias (Relatora) Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta) Sénio Alves (Adjunto) _______
1. Ac. do TC n.º 595/2018, publicado no DR I Série de 11. 12.2018, que “declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.” 2. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 209-210. |