Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2810/22.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
DECISÃO JUDICIAL
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
ESCRITURA PÚBLICA
NOTÁRIO
LEI ESTRANGEIRA
REQUISITOS
VALIDADE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
A escritura pública de divórcio consensual outorgada no Brasil em cartório notarial é suscetível de revisão, constituindo a sua invocação válida causa de pedir, nos termos e para os efeitos da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
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I - Relatório

Os Requerentes instauraram ambos no Tribunal da Relação de Lisboa uma ação especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo que seja revista e confirmada a Escritura Pública de Divórcio Consensual Direto outorgada por ambos os Requerentes, em ... de Outubro de 2020, no Cartório do Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de ..., Município e Comarca de ..., Estado de São Paulo, na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571.°, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733° do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226°, parágrafo 6°, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, pela qual se dissolveu o vínculo conjugal entre eles existente e passaram a ter o estado civil de divorciados.

Observado o disposto no artigo 982.°, n° 1, do Código de Processo Civil, apenas o Ministério Público apresentou alegações, nas quais sustenta, em resumo, inexistirem dúvidas quanto à autenticidade do documento de que consta a sentença a rever, não se vislumbrar a ausência de qualquer dos requisitos aludidos nas alíneas b) a e), do artigo 980.°, do Código de Processo Civil, e ser a decisão confirmanda conforme aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, estando, portanto, reunidos todos os pressupostos necessários à confirmação da sentença revidenda.

Foi proferida decisão sumária pelo Relator que julgou inepta a petição inicial por falta de causa de pedir (art. 186°, n° 1, e n° 2, ai. a), do atual Código de Processo Civil}, no que concerne ao pedido de revisão e confirmação da Escritura de Divórcio Consensual Direto outorgada por ambos os Requerentes, em ... de Outubro de 2020, no Cartório do Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de ..., Município e Comarca de ..., Estado de São Paulo, na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571°, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733° do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226°, parágrafo 6°, da Constituição Federal, da República Federativa do Brasil, pela qual os Requerentes dissolveram o vínculo conjugal entre eles existente e passaram a ter o estado civil de divorciados, tendo indeferido a petição inicial (nos termos do n° 1 do art. 590° do actual CPC), declarado nulo todo o processo (nos termos do n° 1 do cit. art. 186° do mesmo diploma) e extinta a instância.

Tendo os Requerentes reclamado para a Conferência, foi proferido acórdão, com um voto de vencida, que confirmou aquela decisão sumária.

Os Requerentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

I - Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 27 de Abril de 2023, que decidiu confirmar a decisão singular do Juiz Desembargador Relator que julgou inepta a petição inicial — por falta de causa de pedir —, no que concerne ao pedido de revisão e confirmação do ato apresentado pelos Recorrentes, e, consequentemente, indeferiu a petição inicial —, e veio declarar nulo todo o processo e extinguiu a instância, com um voto vencido.

II - Impõe-se a interposição do presente recurso na medida em que a decisão agora posta em causa encontra-se em clara violação do enquadramento legal aplicável in casu dos artigos 978º e ss. do CPC, conduzindo a uma errada aplicação da lei de processo, nos termos do artigo 674, nº 1, al. b) e nº 2 do CPC, ao interpretar que o divórcio consensual celebrado no Brasil pelos Recorrentes por escritura pública não é passível de revisão e confirmação através de acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira nos termos do artigo 978º e ss do CPC.

III - Bem como em extensa jurisprudência das Respeitáveis Relações e por este Colendo Tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito.

IV - Decisão que aqui os recorrentes não se conformam, nem sequer com a fundamentação do acórdão recorrido que mais não foi que “copiar” e “colar” a fundamentação da decisão singular reclamada, não existindo qualquer outra fundamentação que reforce a decisão do Sr. Relator e, havendo referência a um voto vencido, não consigna o sentido da discordância, encontrando-se em falta fundamentação legal.

V - O recorrente AA é cidadão português registado através do Assento de Nascimento nº ...25, do ano de 2021 da Conservatória dos Registos Centrais de ...

VI - Os aqui recorrentes celebraram casamento civil em ... de Dezembro de 2005, em ..., ..., Brasil, o qual se encontra transcrito em Portugal através do Assento de Casamento nº .30, do ano de 2022, da Conservatória do Registo Civil de Ermesinde.

VII - A Ordem Jurídica brasileira permite que o divórcio consensual (divórcio por mútuo consentimento, em Portugal) — não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto a prazos e demais requisitos legais — seja realizado por escritura pública em notário.

VIII - Por escritura pública, do dia 28 de Outubro de 2020, lavrada pelo Cartório do Oficial de Registo Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de ... ..., São Paulo, no Livro nº 373, Folhas 37/38, e por não haver filhos da referida união, os recorrentes dissolveram definitivamente o casamento.

VIX - Nesta senda, os recorrentes deram entrada com acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, ao abrigo do artigo 978º e segs. do Código Processo Civil.

X - Foi proferida decisão singular a julgar inepta a petição inicial — por falta de causa de pedir — e consequentemente, o indeferimento da mesma, mas com fundamentos um pouco contraditórios!

XI - O artigo 980.º do Código de Processo Civil elenca quais os requisitos para que uma sentença estrangeira seja confirmada em Portugal.

XII - Dispõe o artigo 983, n.º 1 do Código de Processo Civil: “O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696.º.”

XIII - O artigo 984.º do mesmo diploma legal estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) da referida norma; quanto às restantes condições, o Tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure faltar alguns desses requisitos.

XIV - No presente caso, estão preenchidos os requisitos indicados sob as alíneas a) e c) da supra citada norma.

XV - A sentença que se pretende confirmar é uma escritura pública de divórcio directo consensual.

XVI - A finalidade do instituto jurídico do divórcio consensual nos termos em que a Lei brasileira o consagra, na medida em que são conferidos poderes ao notário-tabelião de controlo das regras aplicáveis e validação da manifesta vontade de ambas as partes no sentido e quanto ao respectivo divórcio por via consensual (regime legal idêntico) ao nosso divórcio por mútuo consentimento.

XVII - O divórcio direto consensual previsto na legislação brasileira, em grande medida, equivale à modalidade de divórcio por mútuo consentimento que a Lei portuguesa permite (artigos 1773.º, n.º 1, 1775.º e seguintes do Código Civil português.

XIII - No douto acórdão deste Colendo Tribunal de 25.06.2013 (disponível para consulta em dgsi.pt), refere-se: “Para estas situações em que a autoridade administrativa estrangeira decreta o divórcio, desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.

XIX - Esta explanação deve-se, por a uma questão de adequação, justiça e igualdade de direitos, a uma interpretação extensiva do mecanismo da acção de revisão de sentença estrangeira, concretamente, do disposto no artigo 980.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, como integrante do conceito de decisões, que não só as decisões judiciais propriamente ditas, mas, e também, decisões de autoridade administrativa estrangeira competente para o decretar um divórcio, cuja revisão e confirmação é exigida pela Lei civil portuguesa (substantiva e adjectiva), designadamente uma escritura pública na qual seja decretada a dissolução por acto directo consensual do casamento de dois cônjuges brasileiros, como é o caso concreto e que o próprio aresto referido (de Uniformização de Jurisprudência), considera.

XX - Estando o divórcio juridicamente consolidado num Estado estrangeiro, não existe qualquer razão para se instaurar um processo judicial nesse Estado para decretar novamente o divórcio por forma a que o estado português o considere. O indeferimento desta pretensão leva à impossibilidade do reconhecimento do divórcio em Portugal

XXI - Neste sentido, veja-se o acórdão deste Venerando Tribunal de 07.07.2022 (Processo n.º 2201/21.9 YRLSB – A – 7.ª Secção, em que foi Relator Ferreira Lopes, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça.

XXII - A atual redação do artigo 980.º do Código de Processo Civil corresponde à que foi introduzida pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, no artigo 1096.º do anterior Código de Processo Civil. A redação anterior exigia que a sentença revidenda não contivesse “decisão contrária aos princípios da ordem pública portuguesa”, ao passo que no texto atual exige-se que a decisão “não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do estado português, mas cuja aplicação concreta não o seja.”.

XXIII - No dizer deste Colendo tribunal (acórdão de 21.02.2006, disponível para consulta em dgsi.pt – Processo 05B4168), “a exceção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al. f) do art. 1096.º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com o atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais em enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a conceção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses de maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, “de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação”.

XXIV - Da leitura dos fundamentos do douto acórdão posto em sindicância, resulta que se encontra em causa os poderes decisórios do tabelião e que o acto de divórcio consensual realizado por escritura não tem “força legal”.

XXV - Quer então o Senhor Relator dar a entender que um divórcio por mútuo consentimento requerido junto da Conservatória do Registo Civil Português – que é equiparada a qualquer Cartório Oficial de Registo Civil da Pessoas Naturais e Tabelião de Notas no Brasil – trata-se meramente de declarações negociais, ou divórcio privado, sem qualquer validade legal!?

XXVI - Tanto em Portugal como no Brasil, por vontade das partes, o casamento é dissolvido, passando a ter o estado civil de divorciados, e é através do Conservador (no Brasil designado por Tabelião) que o divórcio é “reconhecido”, ficando o mesmo registado civilmente

XXVII - O documento que fundamenta, neste caso, o pedido não é uma sentença judicial, porém, e conforme já admitido nestes autos, o direito brasileiro permite que o divórcio consensual, nos termos já explanados, seja concedido por escritura pública em Notário.

XXVIII - O direito brasileiro, confere poderes ao Tabelião (equiparado aos Conservadores em Portugal) para lavrar a respectiva escritura de divórcio e em situações bem definidas, conforme os artigos 1.124 da Lei 11.441/2007, artigo 733 da Lei nº 13.105 de 16 de Março de 2015, que controla os actos feitos pelo Tabelião que consubstanciem a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto de divórcio, ao qual são atribuídos efeitos pela ordem jurídica brasileira.

XXIX - O sistema de revisão de sentença estrangeiros português um sistema de delibação, em que ocorre tão só uma revisão meramente formal, na medida em que o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa, verificando-se que estamos perante uma verdadeira sentença, porquanto constitutiva de direitos – a extinção do vinculo conjugal – e mostrando-se conforme com os requisitos do artigo 980º do Código de Processo Civil, pelo que se impõe a sua confirmação judicial.

XXX - A decisão em causa é constitutiva de direitos porque extingue o vínculo conjugal entre os cônjuges, através da declaração do tabelião e verificação em conformidade com a lei brasileira, tal qual também é permitido em Portugal.

XXXI - A decisão proferida vai contra o entendimento que tem vindo, aliás, a multiplicar na recente jurisprudência produzida pelos tribunais superiores portugueses, quer Tribunais da Relação, quer do próprio Supremo Tribunal de Justiça, que já se pronunciaram acerca desta matéria em casos idênticos — acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2005, P.05B1880, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.06.2009, Cristina Coelho, 344/09; processo 904/18.4YRLSB, foi proferida sentença, em 20.09.2018.

XXXII - No mesmo sentido decidiram as 6ª e 7ª secções desse Tribunal nos processos que correram termos sob os números 1047/18.6YRLSB e 2780/18.8YRLSB, respetivamente, e cujas decisões foram proferidas em 30-10-20018 e 04-01-2019, tendo sido esta última notificada à aqui signatária em 15.01.2019; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2021, processo 241/20.4YRPRT.S1 (todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

XXXIII - No caso dos autos está em causa o reconhecimento da escritura de divórcio dos recorrentes, não existindo dúvidas sobre a autenticidade do documento que incorpora a decisão revidenda, nem sobre a inteligência da decisão, a mesma não se mostra contrária aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

XXXIV - Em face do exposto, resulta demonstrada a violação do enquadramento legal aplicável in casu nos termos do estatuído no artigo 978º e ss. do CPC e, por conseguinte, uma errada aplicação da lei de processo no que concerne à escritura pública que decreta a dissolução do casamento civil de dois cidadãos brasileiros por divórcio direto consensual no sentido em que esta não é passível de ser objeto de ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos dos artigos 978º e ss do CPC.

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II – Factos provados

Neste processo encontram-se documentalmente provados os seguintes factos:

1. Os Requerentes contraíram entre si casamento civil, em ... de Dezembro de 2005, em ..., Estado de ..., na República Federativa do Brasil.

2. Por Escritura de Divórcio Direto Consensual, outorgada em 28 de Outubro de 2020, no Cartório do Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de ..., Cidade e Comarca de ..., Estado de São Paulo, na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571°, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733° do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226°, parágrafo 6°, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, os Requerentes, além do mais, declararam, perante o Tabelião substituto, que a convivência matrimonial entre eles se tornou indesejável, não havendo possibilidade de reconciliação e que o divórcio que ora requerem preserva os interesses do cônjuges e não prejudica o interesse de terceiros (...) As partes declararam perante a advogada e este tabelião substituto, estarem convictas de que a dissolução do casamento é a melhor solução para ambas (...) Assim em cumprimento do pedido e vontade dos outorgantes e reciprocamente outorgados, atendidos os requisitos legais, pela presente escritura, nos termos do artigo 733.º do Código de processo Civil, fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles, que passam a ter o estado civil de divorciados (...).

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III – O direito aplicável

Os Requerentes pretendem que seja revista e confirmada em Portugal, através do processo especial previsto nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, o seu divórcio efetuado no Brasil, através de Escritura de Divórcio Direto Consensual.

O acórdão recorrido, confirmando decisão sumária do Desembargador Relator, considerou inepta a petição dos Requerentes com a seguinte fundamentação, aqui parcialmente transcrita:

(...) No caso dos autos, o divórcio por mútuo consentimento que se pretende seja reconhecido por esta Relação, através de processo de revisão e confirmação regulado nos artigos 978° e segs. do actual GPC, não foi decretado por nenhum tribunal estrangeiro, nem sequer por qualquer autoridade administrativa ou religiosa a quem, porventura, a ordem jurídica brasileira tivesse conferido poderes de autoridade para decretar a dissolução, por divórcio, dos casamentos.

Efetivamente, neste caso, a dissolução do casamento celebrado entre os Requerentes promana das declarações negociais de vontade emitidas pelos próprios cônjuges no contexto duma escritura pública celebrada num cartório notarial, segundo o ritualismo estabelecido pela Lei n° 11.441, de 4/1/200741, em que o notário se limita a certificar que os outorgantes declararam que, pela presente escritura, nos termos do artigo 1571°, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733° do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226°, parágrafo 6o, da Constituição Federal do Brasil, fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles [outorgantes], que passam a ter o estado civil de divorciados" (cfr. o documento junto à petição inicial como documento n° 5, a fls. 19-20).

Neste quadro, irreleva que, segundo o direito Brasileiro, os Notários ou tabeliães sejam, a par dos registradores, considerados agentes públicos, ou seja, particulares que recebem, por delegação do Estado, a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. De todo o modo, não é o Notário ou tabelião brasileiro (que lavra a escritura pública de divórcio consensual) quem declara a dissolução do casamento; são os cônjuges outorgantes que se auto-divorciam, dissolvendo, eles próprios, o vínculo conjugal entre eles existente.

O Notário-tabelião brasileiro mais não faz do que certificar as declarações negociais de vontade emitidas pelos outorgantes, através das quais eles próprios dissolvem o seu casamento e decidem que passam a ter o estado civil de divorciados

Trata-se, portanto, dum divórcio privado, operado pelos próprios cônjuges outorgantes da escritura pública de divórcio, na qual o papel do Notário/Tabelião é, tão só, o de dar fé pública àquelas declarações negociais de vontade.

Assim sendo, inexiste, no caso em apreço, uma decisão, judicial, administrativa ou religiosa, passível de ser submetida ao processo especial de revisão e confirmação regulado nos artigos 978° e segs. do CPC de 2013.

Esta visão das escrituras de divórcio por mútuo consentimento no ordenamento jurídico brasileiro não é correta, conforme tem sido afirmado uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça 1, entendendo-se que a circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retira ao ato em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português. Dito de outro modo: basta, para a aplicação da presente ação especial, que se esteja perante intervenção de oficial público que produza efeitos jurídicos relevantes segundo o ordenamento jurídico do Estado de origem, como se fora um tribunal. Nesse sentido a intervenção do oficial público terá uma repercussão performativa na ordem jurídica onde está prevista e onde foi praticada, significando essa intervenção mais do que o mero reforço da força probatória de uma determinada situação. O plus dessa intervenção não poderá residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público.

No acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STJ em 19.10.2022 (AUJ 10/2022, processo 151/21.8YRPRT.S1-A, publicado no DR, I, de 24.11.2022), assentou-se em que “[a] escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”. Para chegar a essa conclusão o STJ salientou que a dita escritura não tinha a virtualidade de produzir efeitos jurídicos relevantes para o efeito da sua revisão, não constituindo uma decisão. A união de facto a que a escritura se referia, necessariamente pré-existia a esse ato; isto é, a escritura teria um mero efeito probatório dessa situação jurídica, mas não a constituía.

Nesse acórdão o STJ distinguiu a escritura pública declaratória de união estável da escritura de dissolução consensual do matrimónio, na medida em que esta última efetivamente produz efeitos duradouros na ordem jurídica brasileira (extinção do vínculo conjugal). Assim, contrariamente às escrituras declarativas de união estável, nesse acórdão o STJ admitiu, na respetiva fundamentação, que a escritura pública de divórcio consensual outorgada no Brasil é equiparável a decisão, para o efeito da sua revisão ao abrigo do art.º 978.º e seguintes do CPC 2.

Tal equiparação tem sido reiteradamente admitida pelo Supremo Tribunal de Justiça, realçando-se o teor do artigo 733.º do Código de Processo Civil Brasileiro, onde se lê:

O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituros ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731º.

§ 1º. A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

§ 2º. O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”

Na escritura que os Requerentes pretendem ver revista e confirmada como decisão consta expressamente que a mesma foi lavrada por Tabelião, o qual declarou nessa escritura que em cumprimento do pedido e vontade dos outorgantes e reciprocamente outorgados, atendidos os requisitos legais, pela presente escritura, nos termos do artigo 733.º do Código de processo Civil, fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles, que passam a ter o estado civil de divorciados.

Não oferece, pois, dúvidas que o ato em causa comporta a intervenção de oficial provido de poder público, cuja atuação produz efeitos jurídicos duradouros na esfera jurídica privada dos outorgantes, isto é, a dissolução do respetivo vínculo matrimonial, pelo que constitui uma decisão, para os efeitos da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.

A petição apresentada pelos Requerentes não era, pois, inepta, como foi julgada pelo acórdão recorrido, devendo, por isso, os autos baixarem ao Tribunal da Relação, para que sejam apreciados os demais pressupostos da revisão da decisão em causa, uma vez que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao tribunal a quo, preenchendo essa omissão (cfr. artigos 679.º e 665.º n.º 2 do Código de Processo Civil) julgando-se procedente o recurso interposto pelos Requerentes.


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Decisão

Julga-se procedente o recurso interposto pelos Requerentes e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa do processo a fim de que a Relação se pronuncie acerca dos restantes pressupostos de revisão e confirmação previstos no art.º 980.º do Código de Processo Civil.


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Sem custas.

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Notifique.

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Lisboa, 12 de outubro de 2023


João Cura Mariano (relator)

Isabel Salgado

Catarina Serra

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1. Acórdãos do S.T.J. de 07.06.2022, Proc. 1181/21 (Rel. Pedro Gonçalves), de 07.07.2022, Proc. 220/21 (Rel. Ferreira Lopes), de 22.06.2023, Proc. 1974/22 (Rel. Ana Paula Lobo), e de 20.09.2023, Proc. n.º 3185/22 (Rel. Jorge Leal).

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2023, citado na nota anterior.