Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
996/04.3JAPRT-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
AMNISTIA
PERDÃO
PENA ÚNICA
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. A providência de Habeas corpus tem natureza extraordinária e é independente do sistema de recursos penais.

II. Em consonância com a sua matriz histórica, destina-se a pôr cobro a situações graves de detenção ou prisão ilegais e mais carecidas de tutela urgente.

III. Não se ignora que, ao longo dos tempos, as leis de amnistia têm levantado muitos problemas de interpretação e aplicação.

IV. Afigura-se-nos, no entanto, que, tendo o arguido sido notificado do despacho do Senhor Juiz que lhe negou o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, por ter sido condenado numa pena única superior a 8 anos de prisão e, uma vez que o mesmo discordava dessa posição, o meio adequado e idóneo para se opor a tal despacho seria o recurso para o competente Tribunal da Relação.

V. Sendo a providência de Habeas corpus uma providência excecional contra situações flagrantes de prisão (ou detenção) ilegais, não constitui o meio próprio para sindicar o mérito de um despacho judicial que não aplicou, de forma fundamentada, o perdão à pena única em que foi condenado o arguido nem como forma de reagir a uma situação de divergências de interpretação sobre o campo de aplicação de uma lei de amnistia, como é a Lei n.º 38-A/2023.

VI. Nesta conformidade, indefere-se, por manifesta falta de fundamento, a providência requerida.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O arguido AA, em cumprimento de pena no Estabelecimento de ..., veio interpor, por intermédio da sua ilustre advogada, a presente providência de Habeas corpus, nos termos do disposto nos arts. 222.º n.º 2 c) e 223.º, do C.P.P., com os seguintes fundamentos (Transcrição):

1. O ora peticionante encontra-se a cumprir pena de prisão, em cúmulo jurídico, de 16 anos e 4 meses no Estabelecimento Prisional de ....

2. O cúmulo referido em 1, diz respeito ao processo 996/04.3JAPRT e englobou penas dos processos: 45/04.1...; 2782/05.4...; 344/04.2...; 7826/04.4...; 71/04.0... e 1073/01.4...

3. Vejamos:

PROCESSODATA PRÁTICACRIMEPENA
996/04.3JAPRT26/04/04

(TJ – 15/12/2008)

Roubo (210.º, nº1 CP)2 anos (abrangido pela Lei 38-A/2023)
45/04.1...Abril 2004

TJ 16/06/08

Vários crimes não abrangidos pela Lei 38-A/2023

E

1 roubo simples, na forma tentada, p.e p. 22º, 23º, 210º nº1 CP

1 crime de detenção de arma de caça p. e p. 6º nº1 do DL 22797

1 ano e 6 meses (abrangido pela Lei 38-A/2023)

1 ano de prisão (abrangido pela Lei 38-A/2023)

2782/05.4...28/11/2005

TJ 31/07/2007

1 crime de Falsidade de testemunho p. e p. 360º nº1 e 3 CP5 meses de prisão (abrangido pela Lei 38-A/2023)
344/04.2...25/03/04

TJ 25/05/2007

1 furto simples p. e p. 203º nº1 CP10 meses de prisão (abrangido pela Lei 38-A/2023)
7826/04.4...13/10/2004

TJ 23/03/06

1 crime de Falsidade de testemunho p.e p. 360º nº 2CP8 meses de prisão (declarada extinta pelo cumprimento- 13/06/2007)
71/04.0...02/02/06

TJ-18/01/2007

CRIME DE EVASÃO- Não abrangido pela Lei 38-A/2023
1073/01.4...11/09/2001

TJ-05/12/2006

Crime de roubo

Não abrangido pela Lei

38-A/2023

4. Estes processos que supra se indicaram dizem respeito ao cometimento de crimes de:

- 8 crimes de roubo agravado;

- 5 crimes de roubo;

- 1 roubo na forma tentada;

- 2 furtos qualificados;

- 1 crime de furto simples;

- 2 crimes de falsidade de testemunho;

- 1 crime de violência depois da subtracção;

- 1 crime de detenção ilegal de arma de caça;

- 1 crime de evasão

5. Em cúmulo Jurídico foi aplicada ao arguido a pena de 16 anos e 4 meses de prisão.

6. O peticionante atinge os cinco sextos da pena em 08/04/2024, pelo que, nesta altura sairá em liberdade condicional, para o qual já deu o seu consentimento.

7. Com a publicação da Lei 38-A/2023, de 02.08, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, foi oficiosamente apreciada a situação do arguido, aqui peticionante e decidido, por despacho datado de 02/10/2023 que:

“ AA nascido a .../04/1985 foi condenado nestes autos, por decisão transitada em julgado, na pena única de 16anos e 4meses de prisão, à ordem do processo nº 996/04.3JAPRT (que englobou as penas dos processos nºs 45/04.1..., 2782/05.4..., 344/04.2..., 7826/04.4..., 71/04.0...e 1073/01.4...), pela prática de 8 crimes de roubo agravado, 5 de roubo, 1 de roubo na forma tentada, 2 de furto qualificado, 1 de furto, 2 de falsidade de testemunho.1 de violência depois da subtração, 1 de detenção ilegal de arma de caça e 1 de evasão.

Em 1 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, desde que não excluídos pelo catálogo previsto no art.7º do referido diploma, a penas de prisão até 8 anos.

Nos termos do n.º 4, do art.º 3º da mencionada lei, o perdão incide sobre a pena única.

Do exposto resulta excluída a aplicação do perdão à pena única sofrida pelo condenado.

Notifique e comunique ao TEP e ao E.P.” (sublinhado, itálico, negrito nosso)

8. O peticionante na data do cometimento dos factos pelos quais veio a ser condenado tinha menos de 30 anos, pelo que, está abrangido nos termos do art.º do disposto no art. º2.º, n. º1 da citada Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.

9. Por seu turno, preceitua o art.º 3.º, n. º1, da mesma Lei que, “sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.”

10. A mesma Lei prevê as situações de excepção, que não são abrangidas pela mesma, no seu art.º 7º.

11. Isto posto, constata-se que o peticionante cometeu crimes que fazem parte das excepções previstas no art.º 7.º, pese embora, tenha cometido outros que não fazem parte dessas excepções, pelo que, terão de ser beneficiadas por esta Lei - Conforme quadro ilustrativo apresentado em 3.

12. Em nenhum dos crimes pelos quais foi condenado e que reportam a situações contempladas pelo perdão da lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, ao peticionante foi aplicada qualquer pena parcelar superior a 8 anos.

13. É certo que, em cúmulo jurídico de TODOS os processos, a condenação é de 16 anos e 4 meses.

14. E o que a lei diz é que o perdão terá de incidir sobre a pena aplicada em cúmulo, ou seja, aos 16 anos e 4 meses, ao qual deverá ser perdoado 1 ano.

15. A lei não diz, em momento algum, que as penas superiores a 8 anos (em cúmulo jurídico) não são abrangidas pelo perdão. O que a Lei diz, claramente, é que o desconto de 1 ano, caso o haja há de ser sobre a pena aplicada em cúmulo. Ou seja, situação substancialmente diferente daquela que consta no despacho dos presentes autos e apresentado em 7!

16. E tem sido este o entendimento dos vários tribunais de 1ª instância- que apreciam a aplicação do perdão a cada caso concreto –

Ainda que a pena cumulatória aplicada seja superior a 8 anos, o facto de constarem no “rol“de crimes que está afecto ao cúmulo jurídico, que sejam abrangidos pela Lei do perdão e sobre os quais não tenha sido aplicada uma pena – parcelar – superior a 8 anos, importa que seja feito o desconto de um ano, sobre a pena achada em cúmulo, seja ela de 1 ou de 25 anos.

17. Caso disso é, a título meramente exemplificativo, o que sucedeu no âmbito do processo 673/06.0... , que correu termos no Juízo Central Criminal de ... – Juiz 4 , em que o arguido/condenado JS, foi condenado na pena única de “23 anos e 250 dias de multa, pela prática de um crime de homicídio qualificado, de detenção de arma proibida, profanação de cadáver e furto qualificado (tentado), desobediência qualificada, condução sem habilitação legal, desobediência e condução sem habilitação legal.

A pena de multa foi convertida em 5 meses e 16 dias de prisão subsidiária (cfr. Fls. 620) “

O despacho de 07/09/2023 versa “ Aderindo-se , na generalidade , ao entendimento plasmado na promoção que antecede – com excepção da parte em que considera o crime de profanação de cadáver não abrangido pela presente Lei da Amnistia , posição da qual discordamos por não encontrarmos qualquer referência ao mesmo nas excepções previstas no art.º 7.º, da dita lei – declara-se perdoado um ano de prisão à pena de 23 anos de prisão e , declara-se ainda o perdão da pena de prisão subsidiária de 5 meses e 16 dias . (negrito, itálico e sublinhado nosso)

18. E tem sido este o entendimento da maioria dos Tribunais que, decidem e bem, em consonância com o que dita a Lei – ou seja, em caso de cúmulo é descontado 1 ano à pena (final) sendo que, para efeito de abrangência do perdão da citada lei , há que aferir à idade do arguido na prática dos factos, ao tipo de crime ( se faz ou não parte das excepções previstas e descritas na citada Lei ) e ainda se pelo cometimento desse crime não excepcionado foi aplicada uma pena inferior a 8 anos.

19. Nem faria sentido que pela aplicação do cúmulo, que é reconhecidamente um instituto favorável ao arguido, venha agora a ser vedada a possibilidade de beneficiar de uma lei – a lei do perdão – pela aplicação do conhecimento superveniente

20. Não poderemos conceber um instituto jurídico que é concomitantemente favorável ao arguido e obstativo da aplicação do perdão.

21. Se ao arguido não tivesse sido aplicado o cúmulo jurídico, o mesmo veria as penas parcelares perdoadas em 1 ano, pela aplicação da lei do perdão.

22. Ora, obviamente, não foi esta a intenção do legislador.

23.Sendo certo que, se dúvidas houvessem na interpretação da lei, sempre seriam em benéfico do arguido e não contra ele.

24. Isto posto, consta-se que o, ora peticionante, caso lhe visse aplicada a lei corretamente , estaria em condições de sair em liberdade condicional, porquanto já havia atingido os 5/6 da pena.

25. Isto significa que, a partir de dia 01/09/2023 o peticionante teria de sair em regime de liberdade condicional, o que não aconteceu, por interpretação errada da Lei.

26. O peticionante encontra-se ilegalmente preso, pois que, deu o seu consentimento à sua saída em regime de liberdade condicional, aos cinco sextos da pena, (pelo desconto de 1 ano a que tem direito pela lei do perdão), tendo-lhe sido vedada essa possibilidade por despacho do tribunal que aplicou erradamente a Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.

27. E a prova disso mesmo é o facto de outros tribunais aplicarem a lei em consonância com o que lá vai descrito promovendo assim, a saída de reclusos que estão em condições de beneficiar da liberdade condicional.

28. Não se pode admitir é que se mantenham em reclusão cidadãos, por errada interpretação e aplicação da lei

29. Não é admissível, nem aceitável que num mesmo estabelecimento prisional, saiam reclusos beneficiando da Lei, e outros porque se encontram a cumprir pena por condenações em outros tribunais de outras comarcas, vejam a sua situação prejudicada .

30. A lei é igual para todos e tem de ser aplicada nas mesmas circunstâncias para todos.

31. Assim sendo, dúvidas não restam que, se encontra ilegalmente preso.

32. De acordo com o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, na situação em que por decisão judicial (que não aplica o perdão de um ano a que o arguido tem direito), um cidadão permaneça privado da sua liberdade, é a petição de Habeas Corpus o meio adequado e idóneo para solucionar tal violação dos Direitos Fundamentais.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE A PRESENTE PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS PROCEDER, SENDO DECLARADA A ILEGALIDADE DA PRISÃO, QUE SE MANTÉM ACTUAL POR TER SIDO MOTIVADA POR FACTO PELO QUAL A LEI NÃO PERMITE DE ACORDO COM O ARTIGO 222.º N.º 2 ALÍNEA C) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, E, CONSEQUENTEMENTE, ORDENADA A IMEDIATA LIBERTAÇÃO DO REQUERENTE AA.

2. A Senhora Juíza do Juízo Central Criminal ... -J8, prestou, em 04/10/2023, a informação a que se refere o art. 223.º n.º 1, do C.P.P, que passamos também a transcrever:

Exm.º Sr.º Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça

AA, nascido a ... de Abril de 1985, foi condenado nestes autos por acórdão cumulatório proferido a 4 de junho de 2009, já transitado em julgado a 02 de novembro de 2010, na pena única de 16 anos e 4 meses de prisão. (cfr. Acórdão do STJ de fls. 1458 a 1468)

Englobaram o cúmulo jurídico as condenações sofridas pelo arguido:

- nestes autos, na pena de 2 anos de prisão, pela prática em 26 de abril de 2004, de um crime de roubo, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, do C.P.

-Nos processos:

45/04.1..., pela prática em abril de 2004, de um crime de roubo, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2 al. b), na pena de 5 anos de prisão; 1 crime de furto qualificado, p.p. pelo art.º 204º, n.º 2, al. f), na pena de 5 anos de prisão; 1 crime de furto qualificado, p.p. pelo art.º 204º, n.º 2 al. f), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; 1 crime de violência depois da subtracção, p.p. pelo art.º 211º, , por referência aos art.º 204º, n.º 2, al. f) e 210º, n.º 2, al. b), na pena de 4 anos e 3 meses de prisão; 1 crime de roubo agrvado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), do C.P. na pena de 5 anos de prisão; 1 crime de roubo agravado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, al. b), do C.P. na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; 2 crimes de roubo agravado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), do C.P. nas penas de 4 anos e 10 meses e 4 anos e 2 meses; 2 crimes de roubo agravado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, al. f), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um deles; 2 crimes de roubo agravados, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), na pena de 3 anos de prisão por cada um deles; 1 crime de roubo agravado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), na pena de 4 anos e 2 meses de prisão; pela prática de um crime de roubo agravado, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, e 2, al. b), na pena de 5 anos de prisão; 1 crime de roubo tentado, p.p. pelo art.º 210º, n.º1, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; 1 crime de detenção ilegal de arma de caça, p.p. pelo art.º 6º, n.º 1 do D.L. 22/97, na pena de 1 ano de prisão;

- 2782/05.4..., pela prática em 28 de novembro de 2005, de um crime de falsidade de

testemunho, p.p. pelo art.º 360º, nº1 e 3, do C.P. na pena de 5 meses de prisão; 1 crime de furto, pp. Pelo art.º 203º, n.º 1, na pena de 10 meses de prisão;

- 344/04.2..., pela prática em 25 de março de 2004, de um crime de furto, p.p. pelo art.º 203º, n.º1, do C.P. na pena de 10 meses de prisão;

7826/04.4..., pela prática em 13 de outubro de 2004, de um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo art.º 360º, do C.P. na pena de 6 meses de prisão;

- 71/04.0..., pela prática em 7 a 11 de fevereiro de 2006, de um crime de evasão, na pena de 15 meses de prisão; e

- 1073/01.4..., pela prática a 11 de setembro de 2001, de um crime de roubo, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1 e 2, do C.P. na pena de 5 anos de prisão;

Na sequência do trânsito em julgado do acórdão cumulatório foi o arguido desligado dos autos de processo comum 2782/05.4..., do Juízo de Média Instância Criminal Juiz 1, e colocado à ordem destes autos veio a pena a ser liquidada em 18 de janeiro de 2011, a qual mereceu aceitação judicial, ocorrendo o meio da pena em 03/12/2017; os dois terços em 23/08/2017; os cinco sextos em 13 de maio de 2020 e o termo da pena em 03 de fevereiro de 2023 (cfr. fls. 1515 e ss).

Esta contagem foi objecto de reformulação, pelo Tribunal de execução de penas, fixando-se o seu 1/2 em 23 de junho de 2012, os 2/3 em 27 de dezembro de 2015, os 5/6 em 03 de julho de 2019, e o termo em 07 de janeiro de 2023 (cfr. fls. 1576).

Na sequência de ausência ilegítima do arguido do E.P. a pena veio a ser reformulada fixando-se o ½ em 09 de março de 2015; 2/3 em 28 de novembro de 2017; 5/6 em 19 de agosto de 2020 e o termo em 09 de maio de 2023; cfr fls. 1619, 1620 e 1621;

Por referência a 09 de março de 2015, foi o arguido desligado destes autos e colocado à ordem dos autos de processo 752/12.5...- Aveiro, Instância Central Criminal – J1.

Com efeitos a partir de 07 de maio de 2020, foi o arguido recolocado à ordem destes autos tendo-se procedido a nova contagem de pena ocorrendo o ½ em 06 de maio de 2020; 2/3 em 26 de janeiro de 2023, 5/6 em 16 de outubro de 2025 e termo em 06 de julho de 2028 (cfr. 1663 e 1664).

Por sentença proferida a 02 de novembro de 2020, pelo Juízo de Execução de Penas do Porto, J2, foi decidido não colocar o arguido em liberdade condicional (fls. 1678).

Por sentença proferida a 25 de outubro de 2021, pelo Juízo de Execução de Penas do Porto, J2, foi decidido não colocar o arguido em liberdade condicional (fls. 1678).

Na sequência de ausência ilegítima do arguido, em 29 de julho de 2022, a contagem de pena sofreu alterações, fixando-se o ½ a 19 de junho de 2020; 2/3 a 11 de março de 2023; 5/6 a 29 de novembro de 2025 e o termo a 19 de agosto de 2028 (fls. 703, 1704).

Por sentença proferida a 12 de dezembro de 2022, pelo Juízo de Execução de Penas do Porto, J2, foi decidido não colocar o arguido em liberdade condicional (fls. 1678).

Na sequência de nova ausência ilegítima os 5/6 da pena sofrida pelo arguido nestes autos passaram para 08 de abril de 2024 e o termo para 24 de agosto de 2028 (fls. 1725).

Por despacho proferido nestes autos a 1 de Outubro de 2023, foi recusada a aplicação à pena única sofrida pelo arguido da lei 38-A/23, de 2 de Agosto, por superior a 8 anos de prisão (ref. .......51).

O arguido encontra-se preso, em cumprimento de pena cujo termo ocorrerá a 24 de agosto de 2028.

É quanto me cumpre informar, por ora, V.Ex.ª com a mais elevada consideração.

3. Neste Supremo Tribunal, convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a defensora do arguido, teve lugar a audiência (art. 223.º n.º 3, do C.P.P.), com todas as formalidades legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Começamos por referir que a providência de Habeas corpus1, ao contrário do que a designação parece sugerir, não teve origem na Roma antiga, mas na Inglaterra, em 1215, quando a nobreza impôs ao Rei João Sem Terra a Magna Carta Libertatum, com o objetivo de limitar os poderes reais2.

Com o tempo foi-se aperfeiçoando e a sua versão moderna surge, em 1679, com o famoso Habeas Corpus Amendment Act, que veio regulamentar o procedimento na área criminal, constituindo um eficaz instrumento no controlo da legalidade dos atos restritivos da liberdade individual.

Entre nós, a medida tem, como é sabido, desde há muito, dignidade constitucional, tendo sido introduzida pela Constituição de 19113. Presentemente o art. 31.º, da nossa Constituição, reza assim:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória».

No que concerne ao direito ordinário, o Código de Processo Penal vigente prevê, nos seus arts. 220.º e ss., o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, em virtude prisão ilegal, os respetivos procedimentos processuais – assentes em grande informalidade e celeridade – e ainda o incumprimento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a petição, que é punido com as penas do crime de denegação de justiça e prevaricação.

Ora, do cotejo de todos estes preceitos, podemos extrair que esta providência, de cariz expedito, tem em vista salvaguardar a liberdade física, reagindo contra uma situação de abuso de poder4, por virtude de uma prisão ou detenção ilegal. Contudo, não constitui um recurso.

Como bem acentua Eduardo Maia Costa5, trata-se de uma providência, independente dos sistemas de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Naturalmente, o modo de impugnação por excelência das decisões judiciais é o recurso para um tribunal superior. O Habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, servindo como instrumento da proteção da liberdade, quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.

Deve servir, por conseguinte, para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente.

Porém, não tem uma natureza meramente residual, conforme observa Rodrigues Maximiano6, mas sim a natureza de uma providência extraordinária, abrangendo as situações de abuso, que são distintas das situações de decisão discutível.

Cingindo-nos mais concretamente ao Habeas corpus por virtude de prisão ilegal (art. 222.º), por ser o mais comum e ser também o caso da situação em apreço, podemos dizer que os seus fundamentos se reconduzem todos, ao fim e ao cabo, à ilegalidade da prisão: incompetência da entidade que a efetuou ou a determinou, ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite e excesso de prazos.

O n.º 2 do citado normativo consagra, como notam Gomes Canotilho e Vital Moreira7, uma espécie de ação popular, uma vez que a petição pode ser formulada pelo interessado ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, conquanto dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e apresentada à autoridade à ordem da qual se encontra preso o mesmo.

A limitação do gozo dos direitos políticos não diz, obviamente, respeito ao próprio, mas sim ao(s) terceiro(s) que decida(m) intervir.

Na esteira também da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça8, quando se aprecia a providência do Habeas corpus não se analisa o mérito da decisão que determinou a prisão, nem tão pouco os erros procedimentais (eventualmente, cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede própria, através dos recursos, mas tão só incumbe decidir se ocorrem qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do C.P.P.

2. Feito este breve enquadramento histórico-legal da medida em questão e regressando à situação sub judice, a razão por que o arguido, ora requerente, entende que se encontra numa situação de prisão ilegal prende-se com o facto de não ter beneficiado do perdão previsto na Lei n.º 38-A/20239, de 02/08, por o Senhor juiz do processo ter, nos termos do disposto no art. 3.º n.º 4, da citada lei, recusado a aplicação, dado o mesmo ter sido condenado, na sequência do cúmulo jurídico efetuado, numa pena única superior a 8 anos de prisão, mais concretamente, 16 anos e 4 meses de prisão.

Porém, de acordo com o entendimento do requerente, dever-lhe-ia ter sido aplicado tal perdão, uma vez que não foi condenado, em qualquer das penas parcelares, em pena superior a 8 anos de prisão, conforme, segundo refere, já foi decidido em situações idênticas, noutros processos de outras comarcas.

Ora, não se ignora que, ao longo dos tempos, as leis de amnistia têm levantado muitos problemas de interpretação e consequente aplicação.

Afigura-se-nos, no entanto, que, tendo o arguido sido notificado do despacho do Senhor Juiz que lhe negou o perdão em causa, nos termos do art. 3.º n.º 410, da Lei n.º 38-A/2023, e, uma vez que discordava dessa posição, o meio adequado e idóneo para se opor a tal despacho seria o recurso para o competente Tribunal da Relação.

Na verdade, como tivemos oportunidade de salientar, no ponto anterior, a providência de Habeas corpus, sendo uma providência excecional contra situações flagrantes de prisão (ou detenção) ilegais não é, neste contexto, o meio próprio para sindicar o mérito de um despacho judicial que não aplicou, de forma fundamentada, o perdão à pena única em que foi condenado o arguido nem forma de reagir a uma situação de divergências de interpretação sobre o campo de aplicação de uma lei de amnistia, como é a Lei n.º 38-A/2023.

Convém, além do mais, também ter presente que, nos termos da informação fornecida pela Senhora Juíza do processo, o termo da pena em que foi condenado o arguido ocorrerá apenas em 24/08/2028!

Nesta conformidade, por manifesta falta de fundamento, está votada ao insucesso a providência de Habeas corpus requerida pelo arguido, pois não se demonstra, de todo, que a sua prisão se mantenha para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a. indeferir, por ser manifestamente infundada, a providência de Habeas corpus requerida pelo arguido AA (art. 223.º n.º 4 a), do C.P.P.);

b. condenar o requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos da Tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais; e

c. condenar ainda o requerente em mais 6 UC, nos termos do art. 223.º n.º 6, do C.P.P.

Lisboa, 11 de outubro de 2023

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

José Luís Lopes da Mota (Adjunto)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Nuno A. Gonçalves (Presidente da Secção)

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1. Forma abreviada da expressão latina Habeas corpus ad subjiciendum – Que tenhas o teu corpo para apresentar ao tribunal.

2. Para uma visão mais desenvolvida sobre a sua origem histórica, vejam-se, com interesse, Eduardo Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., e Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss.

3. Em termos de lei ordinária, viria a ser instituída pelo DL n.º 35 043, de 20/10/1945.

4. Garantia privilegiada do direito à liberdade, na expressão feliz de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista, pg. 508.

5. Loc. cit., pgs. 236 e 237.

6. In Direito e Justiça, Vol. XI, T. 1, pg. 197.

7. Ob. cit., pg. 509.

8. Cfr., entre muitos, os acórdãos de 20/9/2023, no Proc. n.º 344/14.4GBSSB-A.S1, de 9/3/2022, no Proc. n.º 816/13.8PBCLD-A.S1, de 28/4/2021, Proc. n.º 72/18.1T9RGR-A.S1, e de 18/11/2020, Proc. n.º 300/18.3JDLSB-E.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Maria do Carmo Silva Dias, Lopes da Mota, Ana Barata Brito e Nuno Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

9. Estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

10. Que textua que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.