Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4427/19.6T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
TERCEIRO
LESADO
SEGURADORA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I- Para um contrato de seguro de grupo contributivo (seguro de pessoas do ramo vida), a pretensão do segurado junto da seguradora em ser indemnizado pela cobertura relativa a “incapacidade permanente” (correspondente à garantia complementar de “invalidez absoluta e definitiva”), conducente a invalidez e reforma, submete-se ao prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 121º, 2, do DL 72/2008 (RJCS), uma vez assente que o contrato de seguro, celebrado antes de 1/1/2009 e renovado nessa mesma data, se encontra sujeito à regra de aplicação imediata do regime do contrato de seguro em vigor desde essa data, assim como que o sinistro relevante se verificou após essa mesma data, tendo em conta os arts. 2º, 1 e 2, e 3º, 1, do preâmbulo da lei.

II- De acordo com esse art. 121º, 2, «Os restantes direitos emergentes do contrato de seguro prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa.», o que significa um prazo especial de prescrição de cinco anos a contar do conhecimento do direito, operando o prazo de prescrição de vinte anos decorrente do art. 309º do CCiv. apenas na ausência de tal conhecimento ou, se este só vier a ocorrer após o decurso de 15 anos sobre a data do facto, ocorrendo a prescrição impreterivelmente ao fim de 20 anos.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 4427/19.6T8VNG.P1.S1
Revista Excepcional: Tribunal recorrido – Relação do Porto, ... Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA intentou contra «BES – VIDA, Companhia de Seguros, S.A.» (actualmente «GNB – Companhia de Seguros de Vida, S.A.») acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, com requerimento de intervenção principal provocada da «Novo Banco, S.A.», pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe as seguintes quantias: (i) € 129.534,06, correspondente ao valor das prestações de capital em falta para pagamento do valor objecto dos contratos de mútuo, vincendas após a propositura da presente acção, acrescidas dos juros de qualquer natureza, encargos e prémios de seguro vincendos, cujo cômputo se relega para execução de sentença; (ii) a contar de 05/2010, actualmente, 108 prestações de capital, juros de qualquer natureza e prémios dos seguros de vida pagas indevidamente ao «Banco Espírito Santo, S.A.», actual «Novo Banco, S.A.» no montante de € 200.294,64, cujo cômputo e actualização também se relega para execução de sentença; (iii) no total a quantia de € 329.828,70 acrescidos de outras decorrentes do pagamento indevido das prestações, despesas judiciais e custas de parte, cujo computo se relega para execução de sentença; fundamenta-se na celebração de contrato de seguro de vida de capital por morte (garantia principal), com a garantia complementar de invalidez absoluta e definitiva, associado a créditos de mútuo com garantia hipotecária celebrados pelo Autor então com o «Banco Espírito Santo» como entidade mutuante, titulado na Ré por apólices da «Companhia de Seguros Tranquilidade – VIDA, S.A.».

2. Citada após requerimento do Autor, veio a Ré apresentar Contestação com Reconvenção; invocou como excepção a prescrição do direito do Autor para efeitos de absolvição do pedido, alegando: o sinistro nunca foi participado à Ré; de todo o modo, o sinistro ter-se-á verificado em 2010; pediu a anulação do contrato de seguro “titulado pelos Certificados Individuais/apólice n.º ...59 e ...60, por incumprimento do dever de declaração inicial exata e completa do risco por parte do Autor”.

3. O Autor apresentou Réplica e Ampliação do Pedido.
Quanto à excepção da prescrição, sustentou que o prazo é de 20 anos (âmbito da responsabilidade contratual; art. 309º do CCiv.).
Quanto ao pedido, requereu a ampliação a fim de ser declarado não escrito, nulo, inexistente e de nenhum efeito o vertido no ponto 8., nomeadamente no subponto 8.2. da garantia complementar, bem assim o disposto no artigo 8.4 da cobertura complementar e n. 3.4. dessas condições especiais. Subsidiariamente, em caso de procedência do pedido reconvencional, pede a restituição de todas as prestações ou prémios de seguro por si liquidados, desde 21/8/2006 até à presente data, acrescidos de juros legais de mora, a contar desde a data de vencimento de cada uma das prestações ou prémios, até efectivo e integral pagamento, cujo cômputo se relega para execução de sentença.

4. Foi admitida a intervenção principal provocada activa da «Novo Banco, S.A.» (15/1/2020).
Em consequência, apresentou Articulado Superveniente, pugnando pelo julgamento da acção como de Direito e, procedendo, pagamento dos valores cobertos pelo risco coberto.

5. Foi proferido despacho de incompetência em razão do território para conhecimento da acção pelo Juiz ... do Juízo Central de Vila Nova de Gaia, sendo oferecido ao Autor a escolha do tribunal territorialmente competente, que, em resposta, indicou o Juízo Central da Póvoa de Varzim; em consequência, foi proferido despacho de remessa dos autos (14/10/2020).

6. Após notificação às partes para se pronunciarem sobre a excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré e sobre a eventual inutilidade da lide quanto ao pedido reconvencional para a hipótese de se vir a julgar verificada a aludida excepção, bem como sobre a dispensa de realização de audiência prévia, para além, ulteriormente, da invocadada inconstitucionalidade da aplicação ao caso do prazo de prescrição previsto no art. 121º, 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (doravante: RJCS), aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, o Juiz ... do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim proferiu despacho saneador-sentença, em audiência prévia, no qual se julgou procedente a excepção de prescrição invocada pela Ré e, em consequência, absolveu a Ré do pedido que contra si tinha sido formulado pelo Autor.
Foi fixado o valor da causa no montante de € 329.828.

7. Inconformado, interpôs o Autor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, identificada a questão decidenda (“saber se se encontra prescrito o direito invocado pelo autor e, na afirmativa, se estão inquinadas de inconstitucionalidade material as normas que determinam tal prescrição”), conduziu a ser proferido acórdão que indeferiu a eliminação do facto assente (referido como) 3. (supra, correspondente ao facto assente 7.) e julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

8. Novamente inconformado, o Autor referido interpôs recurso de revista excepcional para o STJ, invocando as als. a), b) e c) do art. 672º, 1, do CPC; neste último fundamento, com base em oposição de julgados com os Acs. do TRPorto de 14/3/2017 e do TRLisboa de 13/7/2017.  
A Ré e a Interveniente «Novo Banco, S.A.» apresentaram contra-alegações, sustentando a inadmissibilidade da revista excepcional e, em caso de admissão, a improcedência do recurso.

9. Remetidos os autos à Formação Especial do STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância no dispositivo decisório e na fundamentação das instâncias no que toca à questão de mérito da excepção de prescrição reapreciada pela Relação, como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra, foi por aquela Formação proferido acórdão de admissão da revista excepcional.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões pertinentes do Autor e Recorrente (1. a 3., 18. a 72.) e a fundamentação do acórdão da Fundamentação, a questão a decidir encontra-se sintetizada neste último aresto:
           
saber “se ao direito reclamado pelo autor emergente de um contrato de seguro de grupo celebrado entre a ré seguradora e o interveniente Banco Espírito Santo S.A.[1][,] a que o recorrente aderiu antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril (…)[,] se aplica o prazo prescricional de cinco anos a que alude o artigo 121.º, n.º 2 daquele diploma ou, ao invés, o prazo ordinário de prescrição a que se refere o artigo 309.º do Código Civil” (sublinhado nosso).
Para resolver a questão, de acordo com o art. 682º, 1, do CPC, aplicar-se-á o regime jurídico que se julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido.


2. Factualidade assente nas instâncias e relevante para a apreciação da excepção de prescrição

1) No dia 31 de Outubro de 2002, o aqui Autor celebrou na qualidade de mutuário um contrato de mútuo com garantia de hipoteca com o n.º ...58, cuja quantia mutuada ascendeu a €179.208,99 (cento e setenta e nove euros mil duzentos e oito euros e noventa e nove cêntimos);

2) Nesse mesmo dia, o aqui Autor também celebrou na qualidade de mutuário um contrato de mútuo multiopções com garantia de hipoteca com o n.º ...59, cuja quantia mutuada ascendeu a €49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos);

3) Entretanto, no dia 19 de Setembro de 2007, o aqui Autor celebrou na qualidade de mutuário um novo contrato de mútuo multiopções com garantia de hipoteca com o n.º ...33, cuja quantia mutuada ascendeu a €: 80.000,00 (Oitenta mil euros);

4) Nas datas de outorga desses contratos, o Autor celebrou com a Ré contratos de seguro, tendo como tomador o Banco mutuante – com cobertura de morte e cobertura complementar de “invalidez total e permanente” – que garantia, em caso de sinistro, o ressarcimento do saldo em dívida dos aludidos mútuos;

5) Com efeito, A Ré Seguradora havia celebrado com o então «Banco Espírito Santo, SA» um contrato de seguro de vida grupo temporário contributivo, titulado pela apólice n.º ...01 – cujas condições particulares, gerais e especiais estão juntas a fs. 109 e segs. dos autos, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;

6) A adesão do Autor, na qualidade de segurado/pessoa segura deu origem às apólices n.os ...59 e ...60;

7) O Autor alega [que] ser portador de uma situação de doença que lhe acarreta uma situação de incapacidade permanente para o exercício da sua profissão que lhe foi atribuída pela junta médica do Núcleo do Serviço de Verificação da Segurança Social; com efeitos a partir de 21 de Maio de 2010, conforme parecer de 16.06.2010, concluindo que desde aquela data se encontra numa situação de invalidez, numa situação de reforma;

8) A acção foi proposta em 31 de Maio de 2019 e a Ré Seguradora foi citada para os termos da presente acção em 5 de Junho de 2019.

Acresce ainda a seguinte factualidade documentalmente apreendida nos autos e pertinente para a decisão, nomeadamente tendo em conta os documentos anexos à petição inicial e à contestação (nos termos dos arts. 607º, 4, 2ª parte, 663º, 2, e 679º, do CPC):

9) A apólice referida no facto 5) respeita a seguro, originariamente celebrado entre a «Companhia de Seguros Tranquilidade Vida. S.A.» e a «Banco Espírito Santo, S.A.», com data de início em 15 de Janeiro de 2001 e data de termo em 31 de Dezembro de 2001, sendo automaticamente renovado por períodos de um ano, a partir do dia 1 de Janeiro de cada ano (art. 1.º das “condições particulares”).

10) Nas “condições particulares” da apólice referida no facto 5), regula-se que o seguro “garante, durante o prazo do empréstimo e sem prejuízo do disposto em 4.3. destas Condições Particulares, o pagamento ao Beneficiário designado, da totalidade ou parte do capital em dívida na data do falecimento do Segurado/Pessoa Segura ou em caso de Invalidez Absoluta e Definitiva, tendo em consideração a opção de cobertura escolhida pelo Segurado na Proposta Individual de Adesão” (art. 4.1.) e que “[a]s Garantias são válidas desde que os eventos, Morte ou Invalidez Absoluta e Definitiva do Segurado se verifiquem no decorrer do prazo de validade do Certificado Individual e no máximo até às idades termo das Coberturas/Garantias” (art. 4.2.).

11) Nas “condições particulares” da apólice referida no facto 5), regula-se que, “[s]em prejuízo do parágrafo seguinte, para cada Segurado/Pessoa Segura, o pagamento da indemnização verificar-se-á após o primeiro evento – Óbito ou Invalidez – com cessação automática de todas as restantes garantias e do respectivo Certificado Individual” (art. 4.4.).

12) As apólices referidas no facto 6) apresentam períodos de vigência entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de cada ano civil.

13) As apólices referidas no facto 6) apresentam como “garantia principal” a morte e como “garantia(s) complementares” a invalidez absoluta defintiva.

14) A deliberação referida no facto 7) foi objecto de comunicação ao Autor e tem data de 23 de Junho de 2010 (fls. 167 e ss dos autos).


3. Fundamentação de direito

3.1. Nos autos discutem-se contratos de seguro celebrados em 31/10/2002 e 19/9/2007, correspondentes à adesão a um típico seguro de grupo contributivo, de acordo com a definição que se encontra nos arts. 76º e 77º do RJCS, renovável por períodos de tempo equivalentes, na modalidade de “seguro de pessoas/seguro de vida”, associados aos créditos para aquisição de habitação e multiusos contratados pelo Autor segurado com o banco mutuante e tomador do seguro de grupo (seguros trilaterais[2]).
Porém, estamos perante contratos de seguros celebrados antes da entrada em vigor do DL 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o RJCS nos termos do respectivo art. 1º, apresentando-se o dia 1 de Janeiro de 2009 como a data de início da produção de efeitos dessa nova disciplina legal (art. 7º) – cfr. factos assentes 4) a 6).
Por isso, interessa convocar o regime fundamental de aplicação dessa lei no tempo, tal como prescrito na regra de direito transitório exposta no art. 2º:
«1. O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.
2. O regime referido no número anterior não se aplica aos sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa.»
Sendo ainda de atender ao art. 3º, 1: «Nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
Daqui resulta que o novo regime do contrato de seguro após 2009 se aplica aos contratos dos autos nos termos do art. 2º, 1 e 2, enquanto contrato renovável periodicamente – cfr. factos assentes 9) e 12) –, a partir do momento em que ocorre a primeira renovação coincidente ou posterior a 1 de Janeiro de 2009[3], com as excepções legais relativas à formação do contrato, sem que seja prejudicada tal aplicação por força do art. 2º, 2, uma vez que o facto que se deve considerar como sinistro – efeitos da “incapacidade permanente” reportados a 21/5/2010 – ocorre após a primeira renovação posterior à data da entrada em vigor da aplicação da nova lei (cfr. factos assentes 7) e 12))[4].
Essa renovação ocorreu, no que respeita às apólices dos seguros contratados pelo Autor, e tendo em conta o critério legal do art. 3º, 1, no dia 1 de Janeiro de 2009.

3.2. No caso, discute-se a aplicação do regime especial de prescrição do art. 121º, 2, do RJCS.
Que reza assim:
«Os restantes direitos emergentes do contrato de seguro[5] prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa

O recente ac. do STJ de 27/10/2022[6] teve a oportunidade de delimitar e fundamentar o âmbito de aplicação desse normativo.
Transcreve-se e apropria-se nesta oportunidade:

“(…) o contrato de seguro encontra-se hoje regulado pelo D.L. n.º 72/2008, de 16/4, o qual no seu artigo 121º estabelece o prazo de prescrição de dois anos do direito do segurador ao prémio (n.º 1) e (…) o de cinco anos, quanto aos restantes direitos emergentes do contrato de seguro, a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa (n.º 2)
Este prazo de cinco anos aplica-se, conforme resulta da própria letra da lei, a todos os direitos emergentes do contrato de seguro, quer digam respeito ao segurador quer ao segurado, como se pode apurar do próprio preâmbulo do diploma, onde se indica expressamente que, por via do mesmo é estatuído, na parte geral, um regime específico de prescrição, prevendo-se prazos especiais de prescrição de dois anos no que tange o direito ao prémio de seguro e de cinco anos relativamente aos restantes direitos emergentes do contrato, sem prejuízo da prescrição ordinária. Daqui decorre para nós, com clareza, que o n.º 2 do art. 121 impõe o prazo de prescrição de cinco anos a contar do conhecimento do direito, operando o prazo de prescrição de vinte anos apenas na ausência de tal conhecimento ou, se este só vier a ocorrer após o decurso de 15 anos sobre a data do facto, ocorrendo a prescrição impreterivelmente ao fim de 20 anos.
(…)
A construção da recorrente tem como suporte a ideia de o art. 121 do LCS, que estabelece um regime específico de prescrição em matéria de seguro, só ter aplicação ao segurador e não ao segurado. No entender da recorrente, a circunstância de o art. 119 e 122, pertencentes ao mesmo capítulo do art. 121, serem direcionados e perspetivados para a posição do Segurador e não do Lesado ou Tomador de Seguro imporia o afastamento desse âmbito dos direitos dos segurados.
Sobre este argumento, observamos que o capítulo a que alude a recorrente, o XI, reportando às disposições complementares – sendo que o art.119 regula o dever e siligo; o 120 as comunicações e o art. 122 a arbitragem – não permite minimamente essa leitura sistémica que exclua do seu âmbito os segurados e que enuncie que tais disposições se apliquem apenas às seguradoras. Se é verdade que a regulação do sigilo sobre informação que o segurado tenha prestado diz respeito à seguradora, porque é ela a recetora da informação (que o segurado forneça) tendo o informador a liberdade de a comunicar a quem quiser porque lhe pertence, não cremos que o referente às comunicações se restrinja ao segurador uma vez que também o segurado e ou o tomador do seguro podem ter de realizar comunicações (v.g. em caso de denúncia ou de resolução do contrato) o que cabe no nº1 do art. 120, sendo o nº2 uma especialidade essa sim referente à seguradora. Ainda no domínio da arbitragem, não pode entender-se que este preceito (o 122) diga respeito apenas à seguradora pela óbvia razão de a arbitragem se traduzir num confronto de partes – veja-se que salvo acordo em contrário, a solução dada pelos peritos (perícia arbitral) é vinculativa. A arbitragem na resolução de litígios segue o regime geral (Lei n.º 31/86, de 29 de agosto), podendo, da decisão arbitral, não haver recurso para os tribunais judiciais caso tenha havido renúncia das partes.
A indicação expressa no preâmbulo do diploma de se ter pretendido criar um “regime específico” para a prescrição afasta em nosso aviso, liminarmente, a ideia de o legislador ter pretendido fazer da LCS em matéria tão vital e importante como a prescrição um regime avulso e restrito para as seguradoras, deixando à leitura interpretativa da lei ordinária e geral a prescrição que envolvesse os segurados, ou seja, uma das partes do contrato de seguro celebrado e regido normativamente por essa LCS.
Regulando de forma unitária o contrato de seguro, que na sua matriz contratual direta envolve um segurador e um segurado, não tem sustentação interpretativa defender-se que em matéria de prescrição dos direitos que envolvam esses contraentes o regime de um estaria nessa lei especial e o de outro na lei ordinária civil. Se tal desejasse, impor-se-ia ao legislador que deixasse expressa essa exclusão ou que limitasse a previsão sobre a prescrição ao nº1 do art. 121, referente ao prémio de seguro, que tinha prazo de previsão de 5 anos nos termos do art. 310 nº1 al. g) do CCivil e, com a LCS, passou a ter o prazo de 2 anos.
(…)
É exatamente por a letra da lei ser essa que o entendimento a fazer do art. 121 só possa ser, e nunca vimos defendido na doutrina e na jurisprudência o contrário, o de “os restantes direitos” e o prazo de cinco anos se aplicar a todos os direitos emergentes do contrato de seguro, quer digam respeito quer ao segurador quer ao segurado. A lei não distinguiu, se pretendesse fazê-lo, tê-lo-ia feito e a economia interpretativa do próprio preceito não permite o contrário.  
(…)
Estendendo ainda esta análise ao regime da prescrição que é contemplado na LCS o art. 145º da LCS ordena aplicar “Aos direitos do lesado contra o segurador (…) os prazos de prescrição regulados no Código Civil.”.
Esta norma, pela sua posição sistemática, tem aplicação, apenas, aos seguros de responsabilidade civil que, de acordo com o art. 137º do diploma, cobrem os riscos de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros, sendo estes terceiros os lesados referidos na redação da norma e não outros.”

3.3. Está em discussão o prazo de prescrição invocado pela seguradora como excepção peremptória do direito indemnizatório peticionado pelo Autor enquanto segurado e lesado próprio em execução dos seguros celebrados.
Desde logo, por isso, não se aplica ao caso o art. 145º do RJCS, ainda que fosse por interpretação extensiva, que nos remeteria para o prazo geral de prescrição ordinária, pois aqui só está em causa, nos seguros de danos/responsabilidade civil (sistematicamente assim apreendidos no RJCS), os riscos de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros (art. 137º RJCS), a exercer como direito de “acção directa” nos termos do art. 140º, em esp. n.os 2 e 3[7].

3.4. A prescrição assume-se como um efeito jurídico da inércia prolongada do titular de um direito no seu exercício: a pessoa vinculada fica titular do poder de recusar o cumprimento da prestação ou da conduta a que se encontra adstrito ou de se opor perante o credor ao exercício do direito prescrito, sem ter de usar outro meio de defesa para além da simples invocação do decurso do tempo fixado na lei (art. 304º, 1, do CCiv., em conjugação com a irrepetiblidade de uma «prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita», tal como contemplada no seu n.º 2)[8].
Ora, se está em causa a recusa do cumprimento pela seguradora dos direitos conferidos ao segurado pelo seguro, estamos perante matéria integrante do conteúdo (efeitos jurídicos relativos ao vínculo negocial; objecto imediato) do contrato[9]. Se estamos perante conteúdo do seguro[10], aplica-se o art. 2º, 2, e 3º, 1, do RJCS, ao contrato de seguro celebrado antes de 1 de Janeiro de 2009 e a partir da data de renovação ocorrida em 2009, pois a situação reporta-se a seguro que perdura à data da entrada em vigor do RJCS e se renova nessa ou após essa data.
É o caso dos autos, como vimos, pelo que não pode deixar de se aplicar o prazo especial de prescrição de 5 anos previsto no art. 121º, 2, do RJCS, a partir do conhecimento do direito pelo seu titular, sem prejuízo da aplicação do prazo de prescrição ordinário do art. 309º do CCiv. para as situações em que tem que se computar a data da ocorrência do facto-sinistro que origina o direito sem conhecimento do direito.

3.5. De acordo com o art. 323º, 1, do CCiv., a prescrição, como regra geral, «interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.»; sendo que só com a citação a acção produz efeitos em relação ao réu (art. 259º, 2, do CPC).

3.6. De acordo com a factualidade assente, em referência à cobertura complementar de “invalidez absoluta e definitiva” – cfr. factos assentes 10) e 13) –, o segurado teve conhecimento de um parecer da junta médica do Núcleo do Serviço de Verificação da Segurança Social sobre a sua “incapacidade permanente”, com data de 16 de Junho de 2010, tendo esse facto sido comprovado com efeitos a partir de 21 de Maio de 2010, concluindo que desde esta data se encontrava numa situação de invalidez e consequente reforma.
Este facto – doença com “incapacidade permanente” para o exercício da profissão, com invalidez e reforma – é o sinistro relevante para accionar a convocação das garantias e coberturas de riscos correspondentes aos seguros contratados – «O sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato.» (art. 99º do RJCS) – cfr. factos assentes 10) e, em especial, 11), relativo ao art. 4.4. das “condições particulares”.
Esse conhecimento ocorreu em função da comunicação da deliberação de 23 de Junho de 2010 – facto assente 14); item 10º da petição inicial.
Nesta acção, a citação da Ré seguradora registou-se em 5 de Junho de 2019.
Desta forma, conclui-se que, entre o conhecimento do direito que seria de exigir à seguradora, comprovado pelo tal parecer e deliberação da Segurança Social – pelo menos concretizado em definitivo com a comunicação relativa à data de 23 de Junho de 2010 – e a data da citação da seguradora Ré na presente acção, foi claramente ultrapassado o prazo de prescrição de 5 anos previsto pelo art. 121º, 2, do RJCS, aplicável para aferição da bondade da excepção invocada pela Ré e aqui Recorrida.
Assim resumiu, no que aqui importa, o acórdão da Relação:

“Se é certo que a doença é um processo evolutivo e que não é o diagnóstico da mesma que marca a situação de “invalidez total e permanente” abrangida pela cobertura do contrato de seguro, o conhecimento desse sinistro tem um momento preciso e determinado, a saber a data em que teve conhecimento da deliberação da junta médica do Núcleo do Serviço de Verificação da Segurança Social que lhe atribuiu uma incapacidade permanente para o exercício da sua profissão, com efeitos a partir de 21 de Maio de 2010, deliberação essa datada de 16.06.2010, de que o próprio recorrente junta cópia da respectiva comunicação como doc. n.º ... junto com a p.i.. A partir desse momento não mais teve o recorrente dúvidas sobre as consequências da doença para o exercício da sua profissão e sobre o carácter definitivo da situação. Logo, e como muito bem se entendeu na douta decisão recorrida, ficou desde tal comunicação em condições de accionar a cobertura da apólice e exercer os direitos emergentes do contrato de seguro que subscreveu, contando-se desde então o respectivo prazo prescricional de cinco anos estabelecido pelo n.º 2 do art. 121.º do RJCS, já há muito expirado quando a R. foi citada para a presente acção.”

3.7. Interpretação esta – aplicação do prazo prescricional dos 5 anos (art. 121º, 2, do RJCS) – que, por fim, tal como asseverou igualmente o acórdão recorrido, não ofende os arts. 13º, 20º e 65º da CRP, para aplicação e tutela da igualdade, acesso ao direito/tutela jurisdicional efectiva e direito à habitação, acórdão ao qual se adere (também) nesta parcela, sem mais e nos termos do art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi art. 679º, CPC[11].
*

Neste encalce, falecem as Conclusões pertinentes do Recorrente, negando-se a impugnação corporizada nesta revista, ainda que com fundamentação adicional relativamente às instâncias.


III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 3 de Maio de 2023



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo



SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


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[1] Acrescentou-se no acórdão da Formação: “Está em causa um contrato de seguro de grupo, ao qual o Autor foi obrigado a aderir, e que constituiu uma relação jurídica tripartida, entre o segurador, o tomador do seguro (o Banco), e o lesado/segurado/terceiro – aqui Autor – unido apenas ao tomador pelo contrato de mútuo bancário com garantia hipotecária.”
[2] V., por ex., Acs. do STJ de 30/3/2017, processo n.º 4267/12.3TBBRG.G1.S1, Rel. JOÃO TRINDADE, e de 10/5/2018, processo n.º 261/15.0T8VIS.C1.S2, Rel. HENRIQUE ARAÚJO, in www.dgsi.pt.
[3] “(…) deve entender-se que o novo regime se aplica aos contratos cuja renovação coincida com o dia da entrada em vigor da lei. Sendo o contrato renovado a 1 de janeiro de 2009, poder-se-ia admitir, numa interpretação exclusivamente literal do preceito, que a lei nova só se aplicaria a partir do dia 1 de janeiro de 2010, mas esse sentido contraria a ratio da norma, da qual resulta que as situações de sobrevigência da lei antiga só são aceites na medida do estritamente necessário. Recorde-se que o princípio geral é o da aplicação imediata da lei nova às situações jurídicas em curso, pelo que este regime, excecionando tal regra, deve ser interpretado em termos estritos (e restritos)”: PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Preâmbulo”, Lei do Contrato de Seguro anotada, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 25.
[4] V., quanto ao âmbito de aplicação do art. 2º, 2, desse Preâmbulo do DL 72/2008, os Acs. do STJ de 24/4/2014, processo n.º 6659/09.6TVLSB.L1.S1, Rel. GRANJA DA FONSECA, e 30/5/2019, processo n.º 2081/16.6T8FAR.E1.S1, Rel. ROSA COELHO, in www.dgsi.pt.
[5] O n.º 1 do art. 121º refere-se em particular ao «direito do segurador ao prémio», que prescreve no prazo de dois anos a contar da data do seu vencimento.
[6] Processo n.º 6735/20.4T8VNG.P1.S1, Rel. MANUEL CAPELO, in www.dgsi.pt.
[7] Assim, JOSÉ VASQUES, “Artigo 145º”, Lei do Contrato de Seguro anotada, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 461.
[8] PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO, Teoria geral do direito civil, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 386-387.
[9] Cfr. CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 553.
[10] De acordo com PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Preâmbulo”, ob. cit., pág. 23, para efeitos de aplicação do art. 2º, 1, do DL 72/2008, «conteúdo» diz respeito a “questões relacionadas com a execução do vínculo”, “aos seus efeitos”, «abstraindo dos factos que lhes deram origem» (cf. art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC)”.
[11] Seguindo o já discorrido no saneador-sentença, nas suas págs. 9 a 11.