Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1884/18.1T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Não há nulidade por omissão de pronúncia quando o Tribunal aprecia a questão que tinha o poder e o dever de apreciar.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


1. Notificada do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 14.09.2023, em que se negou provimento à revista, veio a ré e recorrente Freigest – Gestão de Investimentos Associados, S.A., reclamar para a conferência. Invoca a nulidade do Acórdão nos termos da als. c) e d) do n.º 1 do artº. 615.º do CPC.

2. O autor e recorrido, AA, veio exercer o contraditório. Pugna pelo indeferimento do requerimento de nulidade.


***


Aprecie-se.

No presente requerimento, a reclamante argui, em primeiro lugar, a nulidade do Acórdão deste Supremo Tribunal por omissão de pronúncia (cfr., essencialmente, alegações 2 a 21).

Alega a reclamante, mais precisamente, que o Supremo Tribunal não se pronunciou sobre a violação do artigo 5.º do CPC, por ela alegada.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, na parte relevante:

1 - É nula a sentença quando: (…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.

De relevante para a questão foi afirmado no Acórdão reclamado:

“O recurso gira, essencialmente, em torno da decisão do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto. Com efeito, o inconformismo da recorrente quanto à rejeição da alteração da decisão sobre a matéria de facto é patente e está omnipresente, seja expressa seja implicitamente, na esmagadora maioria das conclusões (cfr., sobretudo, conclusões I a XLIII).

Sucede que os poderes deste Supremo Tribunal quanto à decisão sobre a matéria de facto são muito limitados – dir-se-ia: meramente residuais.

O Supremo Tribunal apenas pode apreciar a violação de regras de Direito probatório material, dispondo-se, claramente, no n.º 3 do artigo 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

A verdade, porém, é que, além da menção a regras que, manifestamente, não se reconduzem àquele grupo e cuja violação, portanto, não pode ser apreciada, a recorrente invoca, a certa altura, a norma do artigo 662.º do CPC (cfr. conclusões XXVII e XLIII).

Ora, é consensualmente entendido que, para lá da violação das regras de Direito probatório material, o Supremo Tribunal pode apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”1 (uso indevido, insuficiente ou excessivo) susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC2.

Assim, não obstante o recurso se prender, nesta parte, com a decisão sobre a matéria de facto, a questão não está subtraída às competências do Supremo Tribunal de Justiça.

Acrescente-se que é uma questão que respeita, em exclusivo, à actuação do Tribunal a quo, pelo não é possível, relativamente a ela, dizer-se que existe dupla conforme.

Cumpre, pois, apreciá-la, devendo advertir-se que em caso algum se trata de sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido ou de controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – o que implicaria interferir na valoração da prova que este Tribunal fez segundo o critério da livre e prudente convicção3 – mas sim, tão-somente, apreciar o exercício dos poderes-deveres do artigo 662.º do CPC.

(…)

1. Do exercício dos poderes de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto

No que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido rejeitou, primeiro, o aditamento de factos novos requerido pela recorrente.

A sua fundamentação foi a seguinte:

“Estamos, então, em sede de ampliação da matéria de facto.

O n.º 2 do artigo 662.º CPCivil, que disciplina a modificabilidade da decisão de facto, dispõe que “a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: ( …) c) anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Esta exigida indispensabilidade traduzir-se-à quando o facto omisso da matéria de facto seja essencial para o preenchimento da causa de pedir ou de alguma exceção.

Dispõe o artigo 5.º/2 CPCivil, que,

“2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”.

Não consta aqui qualquer referência aos factos essenciais.

Assim se não tiverem sido alegados pelas partes, não será permitido considerá-los na sentença. Da mesma forma, se o facto for essencial e não tiver sido alegado, o recorrente não pode pedir que o tribunal da Relação o adite ao elenco dos factos provados.

Segundo aquela norma, só os factos instrumentais ou complementares poderão ser aditados à matéria de facto, tenham ou não sido alegados, neste último caso se resultarem da discussão da causa.

E, apenas, sempre, no caso de se revelarem indispensáveis para a decisão da causa.

Compreende-se que assim seja não só por razões de economia processual, como também para evitar uma complexidade desnecessária que multiplicaria as questões e não promoveria a clarificação das questões efetivamente relevantes.

Com efeito, considerando a liberdade com que se alegam ou se omitem factos, se não decorressem consequências preclusivas em relação aos essenciais, atendendo à amplitude das questões factuais colocadas às testemunhas, se não existissem restrições à ampliação da matéria de facto em sede de recurso, sempre haveria motivo para se solicitar a ampliação da matéria de facto, dado que o juiz não leva à sentença toda a factualidade que de alguma forma é afirmada nos autos, seja pelos interessados nos seus requerimentos, seja pelas testemunhas, pelos técnicos ou mesmo a constante de relatórios técnicos e outros documentos.

Por conseguinte, para evitar um excessivo alargamento das questões factuais que produzirá consumo relevante de atividade processual sem o correspondente proveito para decisão do mérito da causa, deverão observar-se estas regras e razões que vigoram no processo comum no que respeita aos factos complementares ou instrumentais, ou seja, só de aditam em sede de recurso, se para tanto existirem razões, os factos indispensáveis à decisão, cfr. neste sentido acórdão da RC de 20.4.2021, consultado no site da dgsi.

E, assim, dado estarmos, desde logo, perante factos essenciais não é permitido que o Tribunal da Relação procede ao seu aditamento”.

E rejeitou ainda a restante impugnação dizendo:

Como é sabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada factualidade que se considera incorretamente julgada. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. O seu efetivo objetivo é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.

Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.

E, assim, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.

Donde, no caso, a preconizada alteração do sentido decisório relativamente aos aludidos pontos factuais não assume, in concreto, relevância para a decisão do recurso e, por conseguinte do pleito, não se vislumbrando qual a efectiva utilidade em saber se, no confronto entre os elementos do foro clínico e a realidade dos factos, no terreno, o que emerge é que, de facto, o autor continua a ser picheleiro, a ganhar como picheleiro, com muitas tarefas que não consegue realizar, mesmo com esforço acrescido tendo necessidade de pedir ajuda aos colegas – e, não, que tenha havido a necessidade da requalificação das tarefas que era chamado a desempenhar; que o autor, por causa das limitações, tenha sido obrigado a deixar de exercer as funções técnicas de picheleiro para passar a exercer funções tipicamente administrativas de recebimento e distribuição de materiais em armazém; que, mesmo considerando as tarefas fisicamente menos exigentes para as quais foi reconvertido ou requalificado, despende esforço físico suplementar para obtenção dos mesmos níveis de produtividade, o que lhe importa uma diminuição da capacidade de resistência produtiva ou, que o autor tenha sido degradado a funções administrativas que não se coadunam com as suas apetências e habilitações profissionais.

Consequentemente, não há, pois, que apreciar o referido segmento impugnatório, porquanto o seu conhecimento se revela espúrio e desnecessário para a decisão das concretas questões que consubstanciam o objecto do recurso.

Em face do que vem de ser exposto, rejeita-se a impugnação/aditamento da matéria de facto”.

Nas conclusões, a recorrente expõe, desenvolvidamente, as razões pelas quais não consegue conformar-se com esta decisão (cfr. conclusões I a XLIII), sendo certo que, conforme se explicou acima apenas cumpre a este Supremo Tribunal apreciar da eventual violação do artigo 662.º do CPC.

Dispõe-se no artigo 662.º do CPC, na parte directamente relevante para a questão em causa:

“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados (…)”.

Ora, é indubitável que o Tribunal recorrido teve em conta o disposto no artigo 662.º do CPC, designadamente o disposto no seu n.º 2, al. c).

O que sucedeu, simplesmente, foi que o Tribunal recorrido não considerou que se verificassem os pressupostos previstos no artigo 662.º do CPC e que ditariam a necessidade de modificação da decisão sobre a matéria de facto ou a determinação de diligências para que ela pudesse ter lugar.

Não cumprindo a este Supremo Tribunal apreciar das razões daquela convicção quando elas não contendam com o respeito pelas normas de Direito probatório material, resta dizer que o Tribunal recorrido actuou dentro dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC e que, ao contrário do que entende a recorrente, não se confirma a violação desta norma”.

Através desta transcrição se vê que este Supremo Tribunal se pronunciou sobre a exacta questão sobre a qual devia pronunciar-se.

Como se explicou no Acórdão reclamado, tendo em conta as circunstâncias do presente caso, nomeadamente a dupla conforme, a este Supremo Tribunal cabia apenas verificar se, na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação teve consciência, tomou em consideração e exerceu – exerceu correctamente – os poderes que lhe são legalmente conferidos através do artigo 662.º do CPC; não lhe cabia pronunciar-se sobre os pressupostos em que o Tribunal recorrido se apoiou para, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do CPC, tomar aquela sua decisão.

Quer isto dizer, em suma, que a não pronúncia sobre a alegada violação do artigo 5.º do CPC é uma não pronúncia que está em conformidade com a lei / observa a lei e, portanto, não configura omissão de pronúncia para o efeito da nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

Por esta razão, como se verá de seguida, não procede a alegação da reclamante de que “a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça se ter abstido de sindicar o juízo trilhado pelo Tribunal da Relação do Porto quanto à qualificação jurídica dos factos e à invocada violação do disposto no artº. 5.º do CPC vai manifestamente contra a própria fundamentação do acórdão na parte em que admite que aquele Tribunal pode e deve sindicar o modo como são utilizados os poderes deveres previstos no artº. 662.º do CPC (o seu uso indevido, excessivo ou deficiente), Encontrando-se, consequentemente, ferida de nulidade nos termos da al. c) do n.º 1 do artº. 615.º do CPC” (cfr. alegações 28 e 29).

Com efeito, argui ainda a reclamante a nulidade do Acórdão deste Supremo Tribunal com fundamento no que parecer ser uma “contradição entre os fundamentos e a decisão” (cfr., essencialmente, alegações 22 a 35).

Parece entender a reclamante, mais precisamente, que a não pronúncia sobre a violação do artigo 5.º do CPC está em contradição com a afirmação feita no Acórdão de que o Supremo Tribunal de Justiça tem o poder de apreciar o mau uso ou o uso indevido dos poderes do artigo 662.º do CPC pelo Tribunal da Relação.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, na parte relevante:

1 - É nula a sentença quando:

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”.

Ora, não se tendo dado por verificada a mencionada omissão de pronúncia, falece automaticamente um dos pressupostos do raciocínio da reclamante e, sendo assim, não é possível conceber a contradição entre os fundamentos e a decisão por ela alegada ou qualquer outra contradição.

Na verdade, ao invés do que afirma a reclamante, a não pronúncia sobre a alegada violação do artigo 5.º do CPC está em coerência com o afirmado no Acórdão quanto às limitações do objecto do recurso no presente caso.

Insiste-se em que a sindicância do exercício dos poderes do artigo 662.º do CPC não compreende a análise dos pressupostos que o Tribunal da Relação adopta para atingir a sua decisão quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


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DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


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Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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Lisboa, 2 de Novembro de 2023

Catarina Serra (relatora)

Fernando Baptista

Isabel Salgado

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1. Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015 (Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1).

2. Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019 (Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2).

3. Cfr., neste sentido, entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009 (Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1).