Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4184/21.6T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
COMUNICABILIDADE
CÔNJUGE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
REGIME DE BENS
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
CADUCIDADE
ARRENDATÁRIO
MORTE
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I – O art. 1068.º do C. Civil na redação dada pela Lei 6/2006 (NRAU) – que estabelece a comunicabilidade do arrendamento – é de aplicação imediata às relações jurídicas (situações jurídicas) constituídas antes da sua entrada em vigor, mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência.

II – Significa a remissão final do art. 1068.º do C. Civil para o “regime de bens vigentes” que, no regime de separação de bens, não há comunicabilidade; e que, no regime da comunhão de adquiridos, há comunicabilidade se a posição jurídica de arrendatário do cônjuge se iniciar em data posterior à celebração do casamento.

Decisão Texto Integral:

Processo: 4184/21.6T8FNC.L1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Figuras Atentas – Unipessoal, Lda, com sede à ... moveu contra AA, residente à ..., freguesia de ..., ..., ação declarativa de condenação, pedindo que:

“ (…) a) Seja declarada a extinção do arrendamento acima identificado no art. 5º, por morte de BB, em .../.../2020;

b) Seja o Réu condenado a desocupar e a entregar à Autora a parte do imóvel acima identificado no art. 1º que continua a ocupar após o dito óbito;

c) Seja o Réu condenado no pagamento à Autora, por cada mês de atraso na referida entrega, a partir da data da respetiva citação, da quantia mensal de € 500,00; (…)”

Alegou ser proprietária do prédio urbano sito à ..., freguesia de ..., concelho do ...; prédio de que uma parte identificada foi, por contrato verbal celebrado em 01/07/1968 – entre os então proprietários, CC e consorte DD, e, como inquilina, EE – dada de arrendamento urbano para fins habitacionais, arrendamento este que, tendo a referida EE falecido em .../.../1985, se transmitiu à sua filha, BB.

Entretanto, tendo esta BB falecido em .../.../2020, veio o R., casado com a falecida desde , invocar que lhe foi transmitida a posição de inquilino, sendo que, segundo a A., não se operou qualquer transmissão por óbito da sua falecida esposa BB, razão pela qual, extinto o arrendamento, permanece o R. no locado sem qualquer título ou fundamento (o que significa, por cada mês de atraso na sua efetiva desocupação e entrega, à luz dos valores de mercado correntes, um prejuízo mensal de € 500,00 para a A.).

Contestou o R., invocando, de mais relevante, que sempre, desde a data do casamento de ambos (em 17/01/1981), a BB (ora falecida) e o R. viveram no locado, razão pela qual o arrendamento, à data da morte da BB, era um bem comum do casal; e, tendo-se comunicado o direito da BB ao R., seu cônjuge, não houve transmissão do arrendamento por morte da BB, mas antes a concentração do arrendamento no cônjuge sobrevivo (o aqui R.), o qual já era, em consequência da comunicabilidade, arrendatário, pelo que o contrato de arrendamento não caducou.

E concluiu no sentido de a ação ser julgada totalmente improcedente.

Foi proferido saneador-sentença, que – após declarar a instância totalmente regular, estado em que se mantém – julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o R. de todos os pedidos deduzidos.

Inconformada, interpôs a A. recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Lisboa de 17/11/2022, foi julgado totalmente improcedente.

Ainda irresignada, interpõe a A. o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que julgue a ação procedente.

Verificando-se o obstáculo da “dupla conforme”, previsto no art. 671.º/3 do CPC, não se admitiu a revista como “revista normal”, porém, dizendo a A. que, subsidiariamente, pretendia interpor Recurso de Revista Excecional, invocando as alíneas a) e b) do art. 672.º/1 do CPC, foram os autos remetidos à “Formação” (por ser a competente de acordo com o art. 672.º/3 do CPC), que, por Acórdão de 12/07/2023, admitiu a revista excecional.

Terminou a A. a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

8º Já quanto à primeira questão que integra, em substância, o objecto do presente Recurso de Revista, atinente à interpretação e aplicabilidade do dito art. 1.068ºdoCód.Civil, o douto Acórdão ora recorrida seguiu o douto entendimento sufragado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/2021, proferido no processo 5958/18.0T8FNC.L1.S1.

9º Porém, na senda do entendimento sufragado designadamente pelos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/10/2012, proferido no processo 4994/08.0TBAMD-A.L1-2, de 29/05/2012, proferido no processo 1321/11.2YXLSB.L1-1, de 23/09/2014, proferido no processo 738/11.7YXLSB.L1-1, de 10/10/2019, proferido no processo 381/16.4YLPRT.L1-2, a Recorrente continua a pugnar no sentido de que se verifica a inaplicabilidade, ao caso vertente, do disposto no art. 1068º do Cód. Civil.

10º Sem prejuízo de todo o respeito devido pelo entendimento sufragado no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nesse dito processo 5958/18.0T8FNC.L1.S1, e seguido pelos dois Arestos já proferidos nos presentes Autos, impõe-se manifestar que o mesmo não é aquele que, no ver do Recorrente, se afigura acertado e mais conforme à Lei e à Constituição, atendendo designadamente aos elementos teleológicos do NRAU, bem como ao princípio constitucional da harmonização prática dos direitos.

11º Com efeito, e como bem sabido, o arrendamento urbano foi duradouramente marcado pelo denominado regime vinculístico – assim entendido pelas limitações que introduzia na respectiva regulamentação à autonomia privada das partes, e, designadamente, quanto aos aspectosatinentes à respectiva subsistência (prazo, denúncia, transmissão, etc.).

12º Também como bem sabido, independentemente da realidade económica e social que assim o determinou, a subsistência ao longo dos anos daquele dito regime contribuiu, na prática, para a degradação significativa do parque habitacional, e, também, para a desconfiança do mercado imobiliário em relação à relação arrendatícia habitacional.

13º As reformas do regime do arrendamento (RAU, NRAU) visaram então uma dinamização do mercado do arrendamento, sem prejuízo de medidas de salvaguardaemrelaçãoàssituaçõesjurídicaspré-existentes,pelodistanciamento em relação ao regime vinculístico anterior, e a sua progressiva extinção – a par e paraalémda adopção, emrelaçãoaosnovoscontratos,deumregime com maior liberdade contratual e mais consentâneo com a autonomia privada.

14º Essa transição de regimes evidencia-se com particular acuidade no caso das normas aplicáveis em termos de transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário, e inerentes normas transitórias – por via das quais o Legislador pretendeu objectivamente promover uma extinção não revolucionária, mas paulatina, do regime vinculístico.

15º Ora essa matéria está umbilicalmente ligada à questão da comunicabilidade do arrendamento – posto que, como é óbvio, não é possível haver transmissão quando já tenha havido comunicabilidade do arrendamento.

16º Ouseja,aindaquenãohajanormaexpressatransitórianoNRAUarespeito dodisposto no art.1068º doCód.Civil, nãopodedeixar deinterpretar-seque, tal como se foram implementando limitações sucessivas à transmissão por morte, visando a extinção paulativa das relações de arrendamento vinculísticas subsistentes, nunca foi intenção do Legislador conferir a essas mesmas relações, de modo enviesado econtraditório, uma sobrevida, agora por via da comunicabilidade de acordo com oregimede bensvigente,queantesnãoexistia.

17º Aliás, a comunicabilidade tem uma justificação – e não corresponde a qualquerdesequilíbriointolerávelentreosdireitosdosenhorioe doarrendatário – no regime vigente para os contratos celebrados ao tempo do NRAU, que não tem qualquer sentido no caso dos contratos vinculísticos subsistentes: é que, ao contrário do que sucede com estes, seja por via da denúncia, seja por via da oposição à renovação, tais contratos podem de facto cessar em determinado prazo por vontade do senhorio.

18º Em suma, a interpretação mais conforme ao espírito da Lei, e mais conforme à Constituição, designadamente à luz do princípio da concordância prática dos direitos, no caso o direito à habitação e o direito de propriedade, é a que, nas circunstâncias acima assinaladas, entende não ser aplicável, in casu, o disposto no art. 1068º do Cód. Civil.

19º Noutra perspectiva, afronta esse princípio a aplicação do art. 1068.º do Cód.Civil,einerentementeda comunicabilidadedoarrendamento aocônjugeda filha do primitivo arrendatário, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento em si, quer o casamento de filho do primitivo arrendatário, quer a transmissão a favor daquele por morte deste tenham ocorrido em data anterior a 27/06/2006 (data da entrada em vigor do NRAU).

20º Finalmente, quanto à segunda e última questão que integra, em substância, o objecto do presente Recurso de Revista, verifica-se que, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo (segundo se julga por manifesto lapso), o regime do casamento do Réu não é o da comunhão geral de bens, mas sim o da comunhão de adquiridos.

21º Na verdade, considerando o apurado sob a al. J) da matéria de facto (segundo o qual o casamento do Réu ocorreu em 17/01/1981, sem precedência de convenção antenupcial), o regime de bens em causa é o da comunhão de adquiridos, posto que, como bem sabido, em 1981 já era esse o regime supletivo (cfr. art. 15° do DL n° 47.334, de 25/11/1966).

22º Assim, ainda que, por mera hipótese e sem de modo algum conceder, se considerasse a aplicação ao caso vertente do disposto no art. 1068º do C.Civ., à luzdoregimede bensdocasamentodoRéu, que éode adquiridos,nuncaestaria em causa um direito comum, antes e apenas um bem próprio da falecida mulher do Réu – e que, como tal, nunca se haveria transmitido ao Réu por força do regime de bens vigente.

23º Com efeito, in casu, o arrendamento em causa, reportado a 1968, quando foicelebradopelafalecidasogradoRéu,VirgíniaVieiraAlvesdosSantosGouveia, veio a se transmitir, por morte desta, à respectiva filha BB.

24º Assim, não só o arrendamento é anterior ao casamento do Réu, como a sua transmissão à respectiva mulher ocorreu já mortis causa, a título gratuito e em virtude de direito anterior.

25º “Assim, se a celebração do contrato de arrendamento for anterior à celebração do contrato de casamento, a posição de arrendatário, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 1722.º, não se comunica ao consorte do arrendatário. Se, pelo contrário, a celebração do contrato de arrendamento for posterior à celebraçãodocontratodecasamento,aposiçãodearrendatáriovai,emprincípio, comunicar-seaoseucônjuge,segundoodispostonaal.b)doart.1724.º.Sóassim não será se se puder afirmar que a posição de arrendatário foi adquirida gratuitamente ou se a mesma tiver sido adquirida por virtude de um direito próprio anterior à constituição da relação matrimonial.” (cfr. Profª. Rute Teixeira Pedro, obra supra citada) – sendo esse precisamente o caso, como se viu.

26º Assim se pugna pela efectiva procedência do presente Recurso, devendo ser integralmente revogado o douto Acórdão recorrido, julgando a presente Acção integralmente procedente, por provada, de modo a se fazer Justiça. (…)”

Contra alegou o R., visando a manutenção do Acórdão da Relação.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

A-O Reu ora recorrido, sustenta que detém a qualidade de arrendatário, e por isso entende que não está obrigado a largar mão do local arrendado nem a indemnizar a Autora pela sua ocupação.

B- Este foi também o entendimento da sentença da 1ª instância bem como do Tribunal da Relação de Lisboa.

C- No douto acórdão, ora recorrido, não se verifica qualquer vicio na sua construção estando as premissas de facto e de direito de acordo com a factualidade apurada e da subsunção à fundamentação de direito aplicável.

D-O contrato de arrendamento em questão foi celebrado com a primitiva arrendatária em 01 de julho de 1968.

E- Nessa data, e durante os anos que lhe seguiram, até 2006, era de lei que o direito do arrendatário não se comunicava ao cônjuge.

F- A alteração surge com a Lei n.º 6/2006, a qual regulando para o arrendamento de prédios urbanos, procedeu à reposição do artigo 1068º do Código Civil.

G- A referida norma aplica-se à situação jurídica em questão, pois o n.1 do artigo 59º da Lei n.º 6/2006 estabelece que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias;

H-Sendo certo que a esposa do Réu/Recorrido, (a arrendatária) faleceu depois de tal data, ou seja, em ... de ... de 2020.

I- Percorrendo as normas transitórias vemos que relativamente aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da vigência do RAU ( aprovado pelo DL n.º 321-B/90), se aplica o disposto no artigo 26º, resultando, sem prejuízo das especificidades aí previstas, que os contratos para fins habitacionais celebrados anteriormente à entrada em vigor do RAU passam a ser submetidos ao NRAU, que estabelece nos termos do artigo 1068º do Código Civil que o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente.

J- O Tribunal da Relação entendeu, e bem, que a nova lei contém ela próprios preceitos especiais (direito transitório e regra de resolução de conflitos) sobre a sua aplicação no tempo, e mesmo face ao disposto no artigo 12º do Código Civil, a conclusão de que a nova lei - artigo 1068º do Código Civil se aplica ao arrendamento em curso é evidente.

K-Não estamos perante aplicação retroativa da lei, pois dá-se a aplicação retroativa da lei nova quando esta se aplica a factos já ocorridos ou a efeitos já produzidos anteriormente à sua entrada em vigor, isto é, quando a lei nova modifica uma situação jurídica do passado, o que não é o caso.

L- Salienta-se que o acórdão do Supremo Tribuna de justiça de 1 de março de 2018 (processo n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), defendeu que com a publicação da Lei n.º 6/2006, institui-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos, e que do artigo 59º do RAU resulta a aplicação do artigo 1068º a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.

M-Por força da nova lei, a partir de 27 de junho de 2006, o estatuto jurídico desse arrendamento alterou-se quanto às pessoas, passando a ser reconhecido ao Réu, que era casado no regime da comunhão de adquiridos com a arrendatária que sucedeu aquela primitiva arrendatária, a mesma qualidade de arrendatário, sendo este o efeito da comunicação do direito de arrendamento ao cônjuge.

N- Na verdade, este arrendamento de natureza plural concentrou-se depois, com o falecimento da esposa em ... de ... de 2020, na pessoa do Réu/Recorrido.

O-A matéria de facto apurada encontra-se minuciosamente, explicita e conduz ao direito aplicável quer pelo Tribunal de 1ª instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

P- Não se verifica qualquer vício na construção do douto acórdão proferido pelos Venerandos Juiz Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, estando as premissas de facto e de direito de acordo com a factualidade apurada e da subsunção à fundamentação do direito aplicável.

Q-Assim, detendo o Réu/Recorrido a qualidade de arrendatário do local em questão, não tem de o entregar à Autora/Recorrente, nem consequentemente, há fundamento para a pretendida indemnização que tinha como causa a falta de título para a detenção do local. (…)

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto:

A. O prédio urbano sito à ..., composto por casa com logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., sob on.º 631/19901115, da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3326 encontra-se registado pela apresentação 369 de 17 de junho de 2019, por aquisição por compra, em nome de “Figuras Atentas, Unipessoal Lda.”;

B. Na apresentação 369 de 17 de junho, aparece como sujeito passivo FF;

C. Por acordo celebrado em 01 de julho de 1968, CC e DD cederam a EE o uso de dois quartos e cozinha, do lado esquerdo, do seu prédio referido em A, pelo valor mensal de duzentos e noventa escudos;

D. O acordo referido em C foi participado, em 30 de julho de 1968, à 2ª Repartição de Finanças do Concelho do ...;

E. Por missiva escrita, datada de 22 de março de 1991 e endereçada a CC e DD, foi comunicado o falecimento de EE;

F. A comunicação referida em E, foi efetuada por BB, invocando a qualidade de filha de EE e com esta residente há mais de um ano;

G. Por força do referido em F, BB exerceu o seu direito de transmissão do arrendamento;

H. EE faleceu a ... de ... de 1985;

I. BB nasceu a ... de ... de 1956 e foi registada como filha de GG e de EE;

J. A 17 de janeiro de 1981, BB e AA celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial;

K. BB faleceu a ... de ... de 2020;

L. Por missiva escrita datada de 12 de fevereiro de 2020, endereçada para a ..., AA (aqui Réu) comunicou à Autora o falecimento de BB (sua mulher) e indicou exercer o seu direito de ver concentrado o arrendamento em causa na sua pessoa;

M) Desde a data referida em K. a Autora recebe mensalmente a quantia depositada pelo Réu na conta número .........10, sedeada no Banco Millenium.

N. BB, enquanto viva foi, e AA viveram sempre no prédio referido em A;

O. Por acórdão proferido em 07 de fevereiro de 2012, o Tribunal da Relação de Lisboa condenou BB e AA a reconhecer a propriedade de FF e HH sobre o prédio urbano, ao sítio do ..., inscrito na matriz sob o artigo 3326 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número .........15;

P. O acórdão referido em O, reconheceu poderem BB e AA ocupar dois quartos e cozinha (lado esquerdo) da casa existente no referido prédio, bem como mais um quarto para o casal, uma casa de banho e um pequeno compartimento de recanto para o presépio.”

*

III – Fundamentação de Direito

Tudo está em saber – sendo a questão que domina a revista e todo o processo – se com a morte da BB, em .../.../2020, ocorreu ou não, como sustenta e peticiona a A., a caducidade do arrendamento.

Não se discute:

- que tal arrendamento celebrado, em 01/07/1968, com mãe da falecida BB se haja transmitido a esta BB por morte da sua mãe, ocorrida em .../.../1985;

- que a BB sempre tenha vivido, desde a data do seu casamento (em 17/01/1981) com o R. II, no locado;

- que a tal casamento, porque celebrado sem convenção antenupcial, se aplica o regime supletivo da comunhão de adquiridos (cfr. art. 1717.º do C. Civil)1; e

- que o R. não haja oportunamente comunicado à A. o decesso do seu cônjuge.

Apenas está pois em causa a questão da caducidade do arrendamento, por a A. entender/sustentar que, sendo o arrendamento anterior à entrada em vigor do NRAU, não lhe é aplicável o atual art. 1068.º do C. Civil (mas sim o preceito que vigorava no momento em que o contrato foi celebrado).

Daí que o essencial da revista se circunscreva e resuma a uma questão/problema de aplicação da lei no tempo.

Efetivamente:

Quando o contrato de arrendamento dos autos foi celebrado (em 01/07/1968) e durante os anos que se lhe seguiram, até 2006, o direito do arrendatário de prédios urbanos para habitação não se comunicava ao cônjuge: era o que decorria, primeiro, do então art. 1110.º/1 do C Civil e, depois, do art. 83.º do RAU, nos quais se dispunha: “seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário [urbano para habitação] não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte (…)”.

Entretanto, em 2006, com a Lei n.º 6/2006 (que aprovou o NRAU) a matéria do arrendamento de prédios urbanos regressou ao C. Civil, onde, no seu art. 1068.º do C. Civil, se passou, diferentemente, a dispor (até hoje) que “o direito do arrendatário [seja para fins habitacionais ou não] comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”.

Ou seja, quando o arrendamento dos autos (para fins habitacionais, não se discute) foi celebrado e quando, depois, se transmitiu à falecida BB vigorava para o mesmo um regime de não comunicabilidade ao cônjuge do arrendatário e hoje, desde 2006, vigora o regime, contrário, de comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge do arrendatário (“nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”).

É, em face disto, de tal alteração legislativa, que se se coloca a questão do regime ao caso aplicável.

Vejamos:

Toda a regra de direito, é sabido, tem inscrito um “de agora em diante”, um “daqui para o futuro”, porém, salvo no domínio do direito penal, o princípio da não retroatividade das leis não tem força de princípio constitucional (cf. art. 29.º/1 da CRP), podendo o legislador ordinário dar às leis que edita eficácia retroativa, isto é, pode resolver os problemas suscitados pela sucessão de leis mediante disposições transitórias,

E foi este o caso: o legislador do NRAU resolveu o problema mediante uma disposição transitória, ao dispor no art. 59.º/1 da lei 6/2006 (NRAU), sob a epígrafe “aplicação no tempo”, que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, sendo que entre as particularidades ditadas pelas normas transitórias (maxime, pelos arts. 26.º a 29.º do NRAU) nada se inclui – sendo que em tais preceitos também se diz que os arrendamentos celebrados no regime do RAU e no regime anterior ao RAU passam a estar submetidos ao NRAU – que diga respeito à comunicabilidade (ou não) do arrendamento, pelo que, por interpretação, resulta do art. 59.º/1 do NRAU que o art. 1068.º do C. Civil se aplica “às relações constituídas que subsistam nessa data”, como é o caso do contrato de arrendamento dos autos.

Concorda-se pois com o Acórdão recorrido, quando o mesmo refere “que a lei (a lei nova) contém ela própria preceitos especiais (direito transitório, regra de resolução de conflitos) sobre a sua aplicação (neste caso, imediata) no tempo”.

Acresce que, ainda que o NRAU (Lei Nova) nada estabelecesse quanto à sua aplicação no tempo, a solução não seria diferente.

A doutrina do facto passado – segundo a qual seria retroativa toda a lei que se aplicasse a factos passados (e aos seus efeitos) antes do seu Início de Vigência (IV) – é complementada pelo chamado princípio da aplicação imediata da LN às situações em curso no momento do seu IV.

A lei, segundo o art. 12.º/1 do C. Civil, dispõe só para o futuro, quando não lhe seja atribuída eficácia retroativa pelo legislador; e, mesmo nesta hipótese, presumem-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

E, no art. 12.º/2 do C. Civil, a lei distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas leis que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos – 1.ª parte – que só se aplicam a factos novos; e aquelas leis que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem – 2.ª parte – leis essas que se aplicam a relações jurídicas (situações jurídicas) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu IV.

Ou seja, à constituição das Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica, mas ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data do IV da LN aplica-se imediatamente esta lei.

Dito de outro modo, os regimes jurídicos gerais das pessoas e dos bens (“estatuto pessoal” e “estatuto real” – incluindo certos princípios fundamentais de direito económico e social) estão sujeitos ao princípio da aplicação imediata da LN; enquanto o “estatuto do contrato”, na parte em que não entre em conflito com regras imperativas do “estatuto pessoal” e do “estatuto real”, será regulado pela lei vigente ao tempo da conclusão do contrato.

Assim, a aplicação ou não aplicação imediata das disposições da LN ao conteúdo e efeitos dos contratos anteriores depende fundamentalmente duma qualificação dessas disposições: referirem-se elas a um estatuto legal ou a um estatuto contratual, sendo que a disposição legislativa se qualificará como pertinente a um “estatuto legal” (ou – o que é o mesmo – como abstraindo-se dos factos constitutivos da SJ contratual) quando for dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica, de modo a poder dizer-se que tal disposição atinge essas pessoas, não enquanto contraentes, mas enquanto pessoas ligadas por certo tipo de vínculo contratual.

É exatamente este o caso do art. 1068.º do C. Civil: tutela os interesses duma generalidade de pessoas (os cônjuges dos arrendatários) que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica, de modo a poder dizer-se que tal disposição atinge essas pessoas/cônjuges, não enquanto contraentes, mas enquanto pessoas ligadas (por intermédio do seu cônjuge) a um certo tipo de vínculo contratual (no caso, o arrendamento).

Mais, da interpretação da LN (do art. 1068.º do C. Civil) resulta que tal disposição visa o conteúdo ou os efeitos da SJ contratual em si mesmos, abstraindo-se do facto que lhe deu origem, pelo que é de aplicação imediata.

A partir de 27 de junho de 2006, com a entrada em vigor do NRAU, faz parte do estatuto jurídico do cônjuge (não casado no regime da separação de bens) do arrendatário a comunicação da qualidade de arrendatário (pois que este é o efeito da comunicação do direito ao arrendamento ao cônjuge): por força do art.º 1068, dá-se a conversão de um contrato de arrendamento que, quanto ao arrendatário, era singular num contrato de arrendamento plural.

Efetivamente – a propósito da ressalva acabada de efetuar para o regime de separação de bens – embora a comunicabilidade da posição de arrendatário esteja redigida, no art. 1068.º do C. Civil, em termos amplos, parecendo abranger e aplicar-se a todos os casamentos, não deixa de remeter, no seu final, para o que resulta do “regime de bens vigente”, ou seja, sendo o casamento celebrado sob o regime de separação de bens, a aplicação do art. 1735.º do C. Civil determina que a posição contratual adquirida por um dos cônjuges seja qualificada como bem próprio dele, sem possibilidade de comunicabilidade por força do regime de bens do casamento.

O que – a remissão final do art. 1068.º do C. Civil para o “regime de bens vigentes” – pode suscitar quando o casamento é celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, em situações factuais diferentes da que temos nos autos, uma dificuldade interpretativa2: em tal regime de bens (comunhão de adquiridos), se a titularidade do arrendamento se iniciar em data posterior à celebração do casamento, a posição de arrendatário comunica-se ao cônjuge, segundo o disposto na art. 1724.º/b) do C. Civil, porém, se a titularidade do arrendamento for anterior à celebração do casamento, a posição de arrendatário, atento o disposto no art. 1722.º/1/a) do C. Civil, já não se comunicará ao cônjuge do arrendatário.

Sucede – é o que aqui releva – que, no caso, embora o arrendamento (com a mãe da falecida BB) haja sido celebrado em data anterior ao casamento do R., o certo é que a BB acedeu à titularidade do arrendamento quando já estava casada com o R., tendo assim aplicação o referido art. 1724.º/b) do C. Civil (não se podendo dizer que a transmissão do arrendamento a favor da BB foi a título sucessório e não se podendo por isso invocar o art. 1722.º/1/b) do C. Civil).

Entendimento este – sobre a aplicação no tempo do art. 1068.º do C. Civil – que corresponde ao que vem sendo perfilhado quer na jurisprudência deste STJ (cf. Acórdãos deste STJ de 01/03/2018, de 13/04/2021 e de 11/05/2023, todos disponíveis in ITIJ) quer na doutrina (Rita Lobo Xavier, in “Concentração” ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte -em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, pág. 1019; e Maria Olinda Garcia, in O arrendatário invisível– A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, Scientia Ivridica, Setembro/Dezembro 2016, tomo LXV, n.º 342, p. 417).

O que – tal entendimento – não é afastado, como invoca o A./recorrente, por um qualquer elemento interpretativo de cariz teleológico ou por ser “mais conforme ao espírito da lei e mais conforme à Constituição” restringir a aplicação do art. 1068.º do C. Civil aos arrendamentos celebrados à luz do NRAU: a anterior regra do art. 83.º do RAU estava inserida na secção III (“da transmissão do direito do arrendatário”) do capítulo II (“do arrendamento urbano para habitação”) do RAU, entendendo-se, na vigência do RAU, que valia apenas para o direito ao arrendamento para habitação, ou seja, só este é que era incomunicável ao cônjuge do arrendatário (fosse qual fosse o regime de bens em que tivesse sido celebrado o casamento do arrendatário); e entendendo-se também, na vigência do RAU, que nos demais arrendamentos urbanos — que não se destinassem, portanto, a habitação — haveria comunicabilidade da posição de arrendatário à luz das regras do regime de bens aplicável ao casamento do arrendatário.

Ora – é onde se pretende chegar – é esta regra (que seria a vigente na ausência duma específica disposição como a do anterior art. 83.º do RAU3) que o NRAU e o art. 1068.º do C. Civil consagra e estende de forma expressa a todos os arrendamentos, revogando a “particularidade” que havia em relação aos arrendamentos habitacionais, “revogação” esta a que não presidiram – e não servem de elemento interpretativo, ao contrário do invocado pela A/recorrente – as opções mais vinculísticas ou menos vinculísticas das várias reformas (incluindo o NRAU) ao regime do arrendamento.

Em síntese e revertendo ao caso dos autos, em 27 de junho de 2006, com a entrada em vigor do NRAU, o direito ao arrendamento do cônjuge (BB) do R. comunicou-se ao R. (o contrato de arrendamento que, quanto ao arrendatário, era singular converteu-se num contrato de arrendamento plural) e, em .../.../2020, com o decesso da BB, o direito ao arrendamento concentrou-se no cônjuge sobrevivo, o aqui R., pelo que – é a conclusão final – não ocorre a invocada (pela A.) caducidade do arrendamento dos autos.

É quanto basta para julgar totalmente improcedentes as conclusões da A./recorrente e para negar a revista.

*

IV - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a revista.

Custas pela A./recorrente.

Lisboa, 17/10/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende

_______________________________________________

1. É certo que a fls. 15 do Acórdão recorrido se fala em “comunhão geral de bens”, porém, trata-se seguramente de um manifesto lapso de escrita, retificado mais à frente, a fls. 20, dizendo-se que o R. era casado com a arrendatária “sob o regime da comunhão de adquiridos”.↩︎

2. Dificuldade que não se coloca no regime de comunhão geral, em que, à luz do art. 1732.º do C. Civil, todos os bens de que os cônjuges sejam titulares no momento da celebração do contrato de casamento e ainda todos aqueles bens que eles venham a adquirir, a título gratuito ou oneroso, no futuro, são incluídos no património comum (desta massa patrimonial comum só serão excluídos os bens que, nos termos do art. 1733.º, sejam incomunicáveis).↩︎

3. Dito de outra forma, deixando se haver na lei uma disposição como a do art. 83.º do NRAU, a regra sobre a comunicabilidade do arrendamento, constante do art. 1068.º, resulta também dos preceitos sobre o regime de bens dos cônjuges.↩︎