Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31803/15.0T8LSB.L1-A-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INCIDENTE ANÓMALO
TRÂNSITO EM JULGADO
DEMORAS ABUSIVAS
RECLAMAÇÃO
MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE
REQUERIMENTO
CONTA DE CUSTAS
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
CONHECIMENTO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. Quando seja manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou a sua remessa para o tribunal recorrido ou ainda ao trânsito em julgado da decisão reclamada, a Conferência pode ordenar que o respectivo incidente se processe em separado (cfr. artigo 670.º, n.º 1 e 2, do CPC).

II. Nesta hipótese, qualificando-se o incidente como manifestamente infundado, deve determinar-se a extração do traslado e o prosseguimento dos termos dos autos no tribunal recorrido (cfr. artigo 670.º, n.º 3, do CPC).

III. Apenas é proferida a decisão no traslado depois de, contadas as custas a final, o requerente as ter pago (cfr. artigo 670.º, n.º 4, do CPC).

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



1. Apícula – Investimentos, S.A., intentou acção declarativa contra a Massa Insolvente da Cityprofit Investimentos Imobiliários. Lda., e Outros, pedindo que fossem os réus condenados a pagar a quantia de €10.256.931,00 (dez milhões, duzentos e cinquenta e seis mil, novecentos e trinta e um euros), acrescida de juros legais vencidos e vincendos e ainda a quantia de 2.000.000,00€ (dois milhões de euros), quantia igualmente acrescida de juros vencidos e vincendos.

2. O Tribunal da 1.ª instância julgou a acção totalmente improcedente e absolveu todos os réus dos pedidos formulados pela autora.

3. Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação.

4. Em 14.11.2019 foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, que julgou improcedente a acção.

5. Em 6.01.2020 foi interposto recurso de revista excepcional, que acabou por não ser admitido pela Formação em 29.09.2020.

6. Em 14.01.2021, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedentes as nulidades invocadas em sede do recurso de revista anteriormente interposto.

7. Em 1.02.2021, foi interposto recurso de revista deste Acórdão, que não foi admitido por decisão singular proferida em 18.02.2021.

8. Em 6.03.2021, veio a ora reclamante invocar a nulidade processual por falta de notificação desta última decisão e reclamar do mesmo para o Exmo. Senhor Presidente Supremo Tribunal de Justiça.

9. Em 22.03.2021 foi proferido despacho que indeferiu a invocada nulidade e que rejeitou a reclamação deduzida.

10. Após novo requerimento da ora reclamante, foi proferido Acórdão em 13.05.2021 que considerou o incidente suscitado pela requerente como manifestamente infundado, determinado a imediata devolução dos autos ao Tribunal de 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 670.º do CPC.

11. Em 15.06.2021, a ora reclamante interpôs recurso de revista da decisão proferida em 13.05.2021, que foi rejeitado por inadmissibilidade legal por despacho proferido em 20.06.2021.

12. Em 31.08.2021, a ora reclamante interpôs recurso de revista do despacho proferido em 20.06.2021.

13. Em 31.01.2022, foi proferido despacho que admitiu o recurso, que veio a ser anulado por Acórdão da Conferência, proferido em 17.03.2022.

14. Em 26.04.2022, foi proferida decisão que, mantendo o decidido em 17.03.2022, ordenou a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância.

15. Em 9.05.2022, a reclamante apresentou a presente reclamação, ao abrigo do artigo 643.º do CPC.

16. Em 5.07.2022 proferiu a ora Relatora um despacho rejeitando a reclamação por extemporaneidade.

17. Em 26.08.2022 veio a reclamante apresentar requerimento, dirigido ao “Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa”, através do qual, nas palavras da requerente, “vem interpor recurso nos termos da alínea b) do número 4 do artigo 652º”.

18. Em 14.09.2022 proferiu a ora Relatora despacho, em que se decidiu não conhecer deste requerimento e se determinou a sua remessa ao Tribunal da Relação, para os efeitos que entendesse convenientes.

19. Em 29.09.2022, encontrando-se os autos já no Tribunal da Relação, veio a reclamante apresentar novo requerimento dirigido ao “Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa”, através do qual, nas palavras da requerente, “vem apresentar reclamação”.

20. Em 7.10.2022 foi proferido despacho no Tribunal da Relação em que se decidiu remeter de novo os autos a este Supremo Tribunal.

21. Em 15.12.2022 foi proferido em Conferência em que se decidiu indeferir a reclamação.

22. Depois disso, veio ainda a autora / reclamante apresentar requerimento do qual constava, na parte relevante, o seguinte:

Apícula – Investimentos, S.A., pessoa colectiva número ... ... .00, com sede em Estrada de ... em ..., melhor identificada nos autos à margem cotados, notificada do acórdão que rejeitou por extemporânea a reclamação apresentada pela requerente em 09-05-2022, ao abrigo do artigo 643º do CPC, não podendo conformar-se com o decidido, nos termos do artigo 686º nº4 do CPC, requerer a reforma do acórdão proferido por a reclamação – ao contrário do que vem afirmado – ter sido apresentada tempestivamente e admitido o recurso retido, vem nos termos do nº2 do artigo 686º do mesmo diploma legal, requerer a Sua Excelência, o Colendo Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ) o julgamento ampliado da revista retida (…)”.

23. Por seu turno, a recorrida E... - S.G.P.S., S.A., e Outros vieram apresentar requerimento em que expunham o seguinte:

“1 – Só agora se tomou conhecimento de que, por sentença de 8/6/2022, proferida no processo nº 2308/22.5..., que corre termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi declarada a insolvência da A. e nomeado como Administrador AA, com domicílio na Rua de ..., nº ...., ... – v. doc. junto.

2 – Com essa declaração de insolvência caducaram, de imediato, os mandatos conferidos pela A./Insolvente aos ilustres advogados que constitui nos autos – artºs 110º e 112º do CIRE.

3 – Assim, impõe-se que o Administrador da Insolvente assuma a representação da A./Insolvente (artº 81º do CIRE) e que, caso pretenda o prosseguimento da lide, em prazo a designar por Vª Exª, constitua mandatário (artº 41º do CPC) e ratifique o processado posterior à declaração da insolvência (artº 48º do CPC), com as respectivas cominações legais.

Termos em que, R. a notificação do Administrador da A./Insolvente para assumir a representação da Insolvente (artº 81º do CIRE) e para, desejando o prosseguimento da lide, em prazo a designar por Vª Exª, constituir mandatário, com a cominação do artº 41º do CPC, e ratificar o processado, com a cominação do artº 48º do CPC”.

24. A autora / reclamante respondeu a este requerimento.

25. A ora Relatora proferiu, em 5.06.2023, despacho em que se pode ler-se:

Não obstante existirem dúvidas de que seja possível conhecer do incidente ora suscitado pela autora / reclamante, pelo facto de o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal se haver esgotado com a prolação do Acórdão de 15.12.2022, é alegado no requerimento apresentado por E... - S.G.P.S., S.A., e Outros que a autora / reclamante Apícula – Investimentos, S.A., foi declarada insolvente e que, no respectivo processo de insolvência, foi nomeado administrador da insolvência.

Como é sabido, um dos efeitos da declaração de insolvência é o de que o administrador da insolvência assume a representação da insolvente para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (cfr. artigo 81.º, n.º 4, do CIRE).

Pelo exposto, determina-se a notificação do administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência de Apícula – Investimentos, S.A., para, no prazo de 10 dias, vir aos presentes autos dizer o que entender por conveniente, ao abrigo do artigo 81.º, n.º 4, do CIRE.

26. Nada tendo respondido o administrador da insolvência, proferiu a presente Relatora, em 2.07.2023, novo despacho com o seguinte teor:

“Dispõe-se no artigo 81.º, n.º 4, do CIRE:

“O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

Dispõe-se, por seu turno, no artigo 613.º do CPC, aplicável ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ex vi dos artigos 666.º, n.ºs 1 e 2, e 685.º do CPC:

“1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (…)”.

Finalmente, dispõe-se no artigo 686.º do CPC:

“1 - O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do pleno das secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.

2 - O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por qualquer das partes e deve ser proposto pelo relator, por qualquer dos adjuntos, pelos presidentes das secções cíveis ou pelo Ministério Público (…)”.

Perante o disposto nestas normas, cumpre dizer o seguinte.

Um dos efeitos da declaração judicial de insolvência é a substituição do devedor pelo administrador da insolvência em todos os actos que possam adquirir relevância para o processo de insolvência, o que equivale a dizer que o administrador deve assumir a representação processual do devedor nas acções que considere susceptíveis de afectar o valor da massa insolvente. Poder-se-ia, assim, equacionar – como se equacionou – a vontade de o administrador da insolvência intervir, sempre na defesa dos interesses da massa, na presente reclamação.

Seja como for, e independentemente disso, impõe-se dizer que sobre a presente reclamação, interposta ao abrigo do artigo 643.º do CPC, já incidiu, designadamente, um despacho em 5.07.2022, um novo despacho em 14.09.2022 e, por fim, um Acórdão da Conferência em 15.12.2022. Quer isto dizer que a presente reclamação ficou definitivamente decidida pelo Acórdão de Conferência de 15.12.2022 e com isso ficou esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal quanto à matéria da causa.

Não apontando a reclamante, neste seu requerimento, quaisquer erros materiais, nulidades ou outros fundamentos que possam levar a equacionar a reforma do Acórdão e requerendo, em vez disso, “nos termos do nº2 do artigo 686º do [CPC], [ ] a Sua Excelência, o Colendo Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ) o julgamento ampliado da revista retida (…)”, impõe-se concluir que não há enquadramento normativo para o referido requerimento.

Em particular no que toca ao julgamento ampliado de revista, diga-se ainda que ele só pode ser considerado estando em causa o julgamento de um recurso e até à prolação do respectivo acórdão, o que, manifestamente, não é o caso.

Face ao exposto, decide-se não tomar conhecimento do presente requerimento”.

27. Vem agora, mais uma vez, a autora / reclamante apresentar requerimento em que expõe, a abrir:

Apícula – Investimentos, S.A., pessoa colectiva número ... ... .00, com sede em Estrada de ... em ..., melhor identificada nos autos à margem cotados,

Face à notificação de que, por decisão singular, de 03/07/2023, se “decide não tomar conhecimento” do requerimento apresentado em 11 de Janeiro de 2023, rejeitando por intempestiva a reclamação apresentada pela requerente em 09/05/2022,ao abrigo do artigo 643º do Código do Processo Civil, doravante CPC, tendo requerido o julgamento ampliado da revista retida, a Sua Exª, o Colendo Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, doravante STJ.

Vem nos termos do artigo 686º nº4 do CPC, requerer a Nulidade, por erros manifestos, da decisão singular suprarreferida, em tudo se mantendo a revista admitida em 31/01/2022, a ser julgada nos termos prescritos pelo nº2 do artigo 686º do mesmo diploma legal”.


*


Conforme se assinalou no despacho de 2.07.2023, a presente reclamação, interposta ao abrigo do artigo 643.º do CPC, ficou definitivamente decidida pelo Acórdão de Conferência proferido em 15.12.2022, com isso se tendo esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal quanto à matéria da causa.

Apesar disso, depois do Acórdão de 15.12.2022, a reclamante veio apresentar um requerimento, que foi objecto de despacho em 2.07.2023.

Decidiu-se então não conhecer o requerimento, explicando-se que o poder jurisdicional estava esgotado e que tal requerimento carecia de enquadramento legal.

Apesar disso, a reclamante vem agora a apresentar novo requerimento que, forçosamente, também carece de enquadramento legal.

Não resta senão considerar o presente requerimento como um incidente anómalo, por manifestamente infundado e consubstanciador de um uso anormal do processo.

A sucessão de requerimentos sem fundamento atendível dá a entender que a verdadeira intenção da reclamante é obstar ao cumprimento do julgado, tal como descrito no artigo 670.º do CPC.

Assim sendo, cabe aplicar o disposto nesta norma e ordenar que o presente incidente se processe por separado.


*


Pelo exposto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 670.º do CPC, decide-se:

a) qualificar o presente requerimento como incidente manifestamente infundado (cfr. artigo 670.º, n.º 3, do CPC); e

b) determinar a imediata extracção de traslado, devendo os autos prosseguir os seus termos no tribunal recorrido (cfr. artigo 670.º, n.º 3, do CPC).

Uma vez cumprido o disposto no artigo 670.º, n.º 4, do CPC, proferir-se-á decisão no traslado.

Deve considerar-se transitada em julgado, para todos os efeitos, a decisão de indeferimento da presente reclamação proferida no Acórdão de 15.12.2022 (cfr. artigo 670.º, n.º 5, do CPC).


*


Custas do presente incidente pela reclamante, Apícula – Investimentos, S.A., fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*


Determina-se que este tribunal seja informado, pelo tribunal de 1.ª instância, quando estejam contadas e pagas as custas do processo e eventuais multas e indemnizações.

Determina-se que até lá não serão admitidas novas iniciativas processuais da reclamente que visem pôr em causa o trânsito em julgado do Acórdão de 15.12.2022.


*


Lisboa, 12 de Outubro de 2023


Catarina Serra (relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista