Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
911/21.0JALRA.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
AGRAVANTES
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :
I - Nenhuma circunstância de facto se retirando dos factos provados que permitisse inferir que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, não é a sua conduta subsumível ao tipo de homicídio privilegiado p.e p. no art. 133.º do CP e, nomeadamente, porquanto não se provou que tivesse agido sob ameaça iminente do progenitor coautor do crime, não obstante o ascendente deste sobre si, não se coibindo de matar a vítima, não com um tiro, mas com vários disparos, o que demonstra a intensidade do seu desapego do valor-vida da vítima, uma jovem de 18 anos ainda, multiplicidade de disparos essa reveladora da efectiva e clara intenção de lhe tirar a vida.
II - Mostram-se preenchidas as circunstâncias previstas nas als. e) (motivo fútil) e j) (frieza de ânimo) do n.º 2 do art. 132.º do CP, considerando que a acção do arguido se pautou sem motivo de relevo ou minimamente compreensível num caso que nem sequer o envolvia e só porque o pai lhe pediu para disparar, sobre uma jovem ainda mais jovem que ele próprio, aparentemente por causa de uma dívida de montante sem significado importante. Tal assume indubitavelmente uma ressonância ética de peso muito negativo, inaceitável, sem o mínimo de justificação. Ademais, tendo as instâncias apontado critérios fundantes da “futilidade de motivo” como “(…) não se poder razoavelmente explicar ou justificar (…); inadequação e desproporcionalidade; insensibilidade; particularmente reprovável e incompreensível; profundo desprezo (…) etc., e resultando com evidência de ambas as decisões a quo como demonstrados e ajustados a interpretações correntes, válidas e consensuais na jurisprudência.
III - Quanto à frieza de ânimo, embora o preceito neste segmento, historicamente se tenha construído à volta da reflexão prévia e sobretudo da chamada premeditação, é de confirmar a sua subsunção ao caso ao extrair-se da matéria de facto que, embora não houvesse evidência de um acto previamente pensado e elaborado e tendo até em conta que houve um momento de discussão entre pai e filho (na circunstância da indicação de quem mataria a vítima) o arguido, ainda assim, atirou à queima roupa disparando cinco vezes deixando a vítima abandonada à sua sorte.
IV - Operando a qualificação do homicídio pelas circunstâncias “frieza de ânimo e motivo fútil”, a agravação da moldura também ocorre a partir da intervenção normativa do art. 86.º, nº 3 do RJAM, considerando que o porte ou uso de arma (pistola) não foi elemento do concreto tipo de crime de homicídio qualificado, sendo que tal não representa uma dupla valoração.
V - A aplicação do regime penal relativo a jovens delinquentes entre os 16 e os 21 anos (v.g. o art. 4.º do DL n.º 401/82, de 23/09) não constitui uma faculdade do juiz mas, antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos e a sua aplicação é tanto obrigatória como oficiosa”. Este regime específico ou regime-regra para jovens, não deixa, no entanto, de ser de aplicação não automática, exigindo, concomitantemente, a ponderação dos factos em conjunto com a personalidade do jovem condenado, dado que é pressuposto fundamental que existam sérias razões que convençam que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social. Estando em causa um crime de elevadíssima gravidade praticado com um grau de dolo intenso e uma energia criminosa de ampla ressonância ética implicando uma censura com peso e fortemente assertiva, vendo-se das concretas condições pessoais do arguido carecer de forte acompanhamento no seu processo de ressocialização, revelar desadequação social, escolar e profissional desde muito cedo e uma personalidade já com uma certa frieza na acção e a ausência de arrependimento, as expectativas de uma atenuação pelo regime especial para jovens não são sólidas nem consistentes por isso não sendo de aplicar.
VI - Não obstante ter sido o arguido condenado em 21 anos de prisão (dentro de uma moldura entre 16 e 25 anos de prisão) esta pena é desproporcional face à juventude do arguido (19 anos à data dos factos) e ao seu menor grau de maturidade, dando algum ensejo a uma mais rápida ressocialização e readaptação social ainda em idade disso passível uma pena de prisão situada nos 18 anos a qual se encontra ainda dentro de uma margem de alguma esperança e oportunidade , dando ênfase aos aspectos positivos como a sua juventude, o afastamento do ascendente do pai -facilitando-se desse modo a mais rápida reversão do seu passado de disfuncional submissão- a confissão parcial e por último e a primariedade criminal, no estrito sentido de que à data dos factos não tinha ainda sido penalmente censurado por crime algum.
Decisão Texto Integral:




ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 5ª SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I- RELATÓRIO


1.1-No âmbito do presente processo criminal 911/21.0JALRA.C1 o Tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... (J... .), por acórdão de 14.12.2022 condenou o arguido AA pela prática, em co-autoria com BB, seu progenitor, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º, 132.º, n.º 2, als. e) e j), ambos do Código Penal, agravado nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de feverei­ro), na pena de 21 anos de prisão (ref.ª citius .......12, de 14 de dezembro de 2023).


Interposto recurso pelo arguido, o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 24 de Maio de 2023, depois de alterar o facto provado descritivo do temor reverencial que o arguido tinha para com o seu pai, confirmou o acórdão da 1.ª instância (ref.ª citius 10826207, de 24 de maio de 2023).


Inconformado, o arguido AA recorreu agora desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (ref.ª citius ....25, de 1 de julho de 2023) emergindo das conclusões que delimitam o objeto do recurso, infra transcritas, a seguinte síntese dos problemas que coloca para deliberação por este Tribunal:


1.º - A sua conduta deve ser reconduzida ao tipo de homicídio privilegiado do art.º 133.º do Código Penal (conclusões I a XII);


2.º - Não estão preenchidas as circunstâncias previstas nas als. e) e j) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal (conclusões XIII a XXI);


3.º - A circunstância agravante do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições não pode ser aplicada em virtude de o homicídio ter sido qualificado pelo uso da arma (conclusões XXII a XXVI);


4.º - Deve ser aplicado o art.º 4.º do Regime Penal dos Jovens Delinquentes (Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro) (conclusões XXVII a XXIX);


5.º - A medida da pena é desproporcional (conclusões XXX a XXXVI).


1.2 – O arguido, no aludido recurso para este Supremo Tribunal apresentou as seguintes conclusões:


A)


I


A defesa do Recorrente não coloca em causa a brutalidade e gravidade dos factos em apreciação nos presentes autos. Contudo quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal a quo, não relevaram e ponderaram convenientemente a situação pessoal do Arguido à data da prática dos factos, acima de tudo, não tiveram em consideração a subjugação deste ao seu pai.


II


As Instâncias julgaram o Recorrente como se fosse um jovem normal de 19 anos de idade não atendendo à concreta situação que resultou dos presentes autos.


III


É o próprio Tribunal a quo a reconhecer no seu Acórdão: “ resulta manifesta a implicação lógica de que com efeito a relação do recorrente com o pai, e independentemente de outros sentimentos ou emoções, tinha de ser marcada pelo menos também por medo do primeiro em relação ao segundo, fruto do manifestodestempero autoritário e violento com este àquele impôs a sua vontade paterna ao longo do respectivo processo de crescimento e tudo avaliado á luz da experiência da vida e conhecimento da normalidade das coias, é dizer, das regras da experiência comum.”


IV


Por isto mesmo o Tribunal a quo deu como provado que:


4- O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu Pai.


V


O Tribunal a quo reconhece igualmente que aquando do cometimento do crime o Recorrente foi colocado numa “tensão extrema nesse transe” …


VI


Ora, no caso sub judice, o estado de “transe” em que o Recorrente se encontrava, como é óbvio, não lhe permitia ter o discernimento que o Venerando Tribunal da Relação entendia que o mesmo deveria ter e isto porque, voltemos a frisar, as Instâncias analisaram o comportamento do Recorrente à luz daquilo que seria a atuação de um jovem de 19 anos com uma formação cerebral e crescimento social normais, o que não era manifestamente o caso sub judice.


VII


O Tribunal a quo pretendeu limitar o seu julgamento única e exclusivamente aos factos em investigação nos presentes autos, descurando, por completo, aquilo que era o enquadramento do comportamento do Recorrente, o qual no caso sub judice, por tudo o que acima se encontra exposto, era de especial importância.


VIII


Estamos perante um jovem claramente condicionado por uma infância de maus tratos, onde conforme demonstram os vários estudos realizados, o seu cérebro será 20% a 30% mais pequeno comparativamente a outras crianças não maltratadas.


IX


Um jovem que, apesar disso, procurou, fazer frente ao seu pai, mas que não conseguiu vencer o ascendente que o mesmo tinha sobre si:


15 - Após discutirem, o arguido AA recebeu da mão estendida de BB o revólver que o seu pai lhe apresentou, e, de seguida, em execução da ordem que lhe foi transmitida e a qual acatou, apontou-o com o braço esticado na direcção da cabeça da CC, que se encontrava parada e virada de frente para o arguido e BB, a uma distância entre 1 metro e 1 metro e meio destes.


X


Em face do que acima se encontra exposto, não podiam restar quaisquer dúvidas ao tribunal a quo de que o Recorrente, aquando da prática dos factos, se encontrava dominado por compreensível emoção violenta e desespero, situações que diminuem sensivelmente a sua culpa.


XI


Deveria, pois, o tribunal a quo ter concluído que o Recorrente agiu numa situação de profunda afetação mental, de domínio psicológico de seu pai dominado por compreensível emoção violenta.


XII


Entende, pois a defesa do Recorrente que a sua conduta deveria ter sido enquadrada na prática de um crime de Homicídio Privilegiado. Assim, ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou os artigos 131º, 132º e 133º do C.P.


B)


XIII


O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, mantendo a decisão do Tribunal de 1ª Instância entendeu que, efetivamente, estávamos perante a prática de um crime de Homicídio qualificado , nos termos do artigo 132º, n.º2, alínea e).


XIV


A defesa do Recorrente, não coloca em causa a brutalidade deste homicídio, contudo, não pode descurar, como o fez o Tribunal a quo, aquilo que o mesmo deu como provado:


4- O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai.


É neste contexto de medo do seu pai, de ascendente psicológico deste, que se revela claramente em submissão, e não subordinação, que ocorreram os factos.


XV


Ora, no caso sub judice, estamos perante factos praticados por um jovem de 19 anos, motivados pela conduta coativa e de domínio do seu pai, que lhe provocavam limitação clara na capacidade de decisão.


XVI


Atento o modo como os factos ocorreram, a idade do Recorrente, o ascendente psicológico do seu pai, o homicídio em causa, no que ao Recorrente diz respeito, não pode configurar uma especial censurabilidade ou perversidade, isto porque, conforme o Tribunal a quo reconheceu o Recorrente agiu num estado de medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai.”


XVII


No caso Sub Judice, a tensão extrema em que o Recorrente foi colocado pelo seu pai, o ascendente psicológico que tinha sobre este, associados ao comprovado medo que o mesmo tinha, à sua tenra idade, 19 anos, marcada por uma infância e adolescência de maus tratos físicos e psicológicos, os quais, como está cientificamente demonstrado condicionam e afetam irremediavelmente as capacidades cognitivas, nunca pode ser considerado que agiu por motivo fútil.


E o mesmo se diga quanto à alegada frieza de ânimo.


XVIII


A frieza de ânimo traduz-se na formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução.


XIX


No caso sub judice os factos precipitaram-se de um momento para o outro sem que existisse qualquer reflexão, num comportamento de segundos. Num, momento, como o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra reconheceu, de tensão extrema e transe.


XX


Não estamos perante uma formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo cauteloso, calmo na preparação e execução, toda a dinâmica dos factos vai em sentido diverso.


XXI


Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou os artigos 131º e 132º do C.P.P.


C)


XXII


O .


XXIII


O Tribunal a quo fundamentou a condenação pela prática do crime de homicídio qualificado, e a sua agravação no uso que o Recorrente fez da arma.


XXIV


Não pode o Recorrente ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado em virtude de ter disparado vários tiros e, ao mesmo tempo, ver esse crime agravado de um terço pelo facto do crime ter sido cometido com arma de fogo.


XXV


Aliás, sempre seria inconstitucional o artigo 86º, n.º3, da lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro e do artigo 132º do C. Penal quando interpretados no sentido que:


“Pode o Tribunal condenar o Arguido por homicídio qualificado fundamentando essa condenação no número de disparos efetuados com uma arma de fogo, e zona do corpo atingida, e, ao mesmo tempo, agravar os limites mínimos e máximo pelo facto do crime ter sido cometido com essa mesma arma de fogo.


Tal interpretação viola os artigos 2º e 29º, da Constituição da República Portuguesa.


XXVI


Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o artigo 86º, n.º3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.


D)


XXVII


O recorrente nasceu em .../.../2022, tendo, à data dos factos, 03/10/2021, 19 anos de idade, encontra-se, por isso, abrangido pelo Decreto Lei n.º 401/82, de 23 de setembro.


XXVIII


No caso sub judice é possível efetuar uma prognose favorável ao Arguido e considerando a sua tenra idade, a aplicação do Regime Penal para Jovens Delinquentes trará uma maior facilidade de ressocialização.


XXIX


O Tribunal a quo ao afastar a aplicação do Regime Penal Para Jovens Delinquentes violou o artigo 4º do Decreto lei n.º 401/82, de 23 de setembro.


E)


XXX


O Recorrente foi condenado:


Pela prática em co-autoria, com BB de um crime de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.ººs 14º, n.º1, 26º, 131º, 132º, n.º2 alíneas e) e j), ambos do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 86º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02 na pena de 21 (vinte e um) anos


de prisão;


XXXI


Caso se entenda que se mostram verificados todos elementos objetivos e subjetivos do crime de homicídio, então deve considerar-se que o Recorrente agiu dominado por compreensível emoção violenta e desespero, pelo que deve o mesmo ser condenado pela prática de um crime de Homicídio Privilegiado, nos termos do Artigo 133º do C. Penal, em pena de prisão não superior a três anos.


XXXII


Deve considerar-se que, no caso sub judice não se verificam os pressupostos para a condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado, mas apenas e tão só um homicídio simples nos termos do artigo 131º do C. P.


XXXIII


Considerando o Regime Penal de Jovens Delinquentes, do qual o Recorrente deve beneficiar, deve a pena aplicada ao mesmo não ser superior a 7 (sete) anos de prisão.


XXXIV


Contudo, caso V. Exas. entendam que efetivamente a conduta do Recorrente é enquadrável no crime de homicídio qualificado, nos termos do artigo 132º do C.P. o que apenas por dever de patrocínio se coloca, nunca a pena a aplicar ao mesmo deveria ser superior aos 12 (doze) anos de prisão.


XXXV


A pena imposta ao ora Recorrente revela-se manifestamente desproporcional e desadequada.


XXXVI


Ao condenar como condenou o tribunal "a quo" violou, nomeadamente, o artigo 71º do Código Penal, termos em que deve a pena aplicada ser substancialmente reduzida;


Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento.


1.3- Em resposta disse o MºPº na instância recorrida, em síntese:


A) DO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO


Desde logo, no que diz respeito ao homicídio privilegiado não existem factos provados que o sustentem, nem mesmo a compreensível emoção violenta e/ou desespero, que no limite se poderiam equacionar de forma vestigial, face aos termos em que o pai lhe ordenou que matasse a jovem vítima


e ao medo que sentia deste, como bem se analisa no douto acórdão recorrido, o arguido colaborou na condução da vítima a um lugar ermo para que lhe fosse exigido o pagamento duma dívida de droga, circunstância no âmbito da qual se desencadeou o homicídio, pelo que até por essa circunstância não se descortina que a tensão gerada nesse quadro para o qual contribuiu, lhe diminuam sensivelmente a culpa.


B) DO CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO;


Considerou-se no douto acórdão recorrido que a morte foi produzida em circunstâncias que revelam especial censurabilidade e perversidade e que se verificavam as circunstâncias do motivo fútil e da frieza de ânimo das alíneas e) e j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.


No essencial concordamos com o douto acórdão recorrido – é especialmente censurável atrair a um lugar quase ermo uma jovem para lhe exigir o pagamento duma dívida de droga e executá-la com 5 tiros sucessivos na cabeça – não se trata apenas de um homicídio, trata-se duma execução para punir o não pagamento duma dívida de droga, uma ação que atinge não só o valor da vida humana como os alicerces do Estado de Direito democrático ao impor pelo terror uma ordem ilícita.


Não deixa dúvidas o repúdio reforçado que tais ações justamente merecem na nossa comunidade e que se trata de um caso de especial censurabilidade nos termos do artigo 132º nº 1 do Código Penal.


A minha pequena discordância relativamente ao douto acórdão recorrido é no enquadramento do caso nos exemplos padrão do artigo 132º nº 2 do CP ao ter-se considerado a circunstância do motivo fútil resultante do arguido ter atuado apenas por ordem do pai.


No quadro fáctico dado como provado a aceitação da ordem corresponde à aceitação dos motivos e o motivo era a execução da vítima devido ao não pagamento duma dívida de droga.


À pergunta porque motivo foi morta a CC a resposta será porque o arguido executou a ordem do pai (causa imediata), mas explicação mais consentânea com os factos é a de que foi morta porque não pagou uma dívida proveniente de negócios de droga (causa determinante). Não se trata de um motivo fútil, mas sim dum motivo torpe, igualmente previsto na alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, por ser um motivo ilícito (a cobrança de dívidas do negócio da droga), mas também particularmente repugnante pelo desprezo pela vida e por procurar garantir pelo terror a impunidade desse negócio.


A forma como o homicídio foi executado, com o pai do arguido a decidir proceder à execução sumária da vítima, passando a arma ao arguido, para o vincular à execução do crime, o repetir dos disparos muito para além do necessário para garantir a morte na presença e para ilustração das testemunhas, tudo serviu para demonstrar que nos negócios de droga quem não paga em dinheiro, paga em sangue.


Não é por acaso que no douto acórdão recorrido se refere que o crime faz lembrar os atribuídos aos cartéis da droga latino americanos.


Faz lembrar porque se trata exatamente da mesma motivação, visando impor pelo terror os pagamentos ilícitos do negócio da droga, o que constitui um motivo torpe contrário aos valores essenciais do Estado de Direito Democrático, o que não pode deixar de merecer a mais enérgica censura no quadro das reações penais.


No mais aderimos integralmente ao exposto no douto acórdão recorrido,incluindo as questões da aplicabilidade da agravação nos termos da Lei das Armas e da aplicação do regime aplicável a jovens delinquentes.


C) MEDIDA DA PENA


Sou genericamente contrário a alguma jurisprudência dos tribunais superiores que procedem a alterações pontuais e por vezes mínimas das penas aplicadas em primeira instância porque defendo que é na primeira instância que existe maior imediação com a prova e que os recursos não devem servir para substituir a sensibilidade do juiz de 1.ª instância pela do juiz do tribunal de recurso.


Dito isto e em consciência, no quadro duma pena entre os 16 e os 25 anos de prisão, considero desproporcionada a pena de 21 anos aplicada a arguido de 19 anos na data dos factos, primário e que agiu por ordem do próprio pai.


Uma pena superior aos anos de vida do próprio arguido parece-me desnecessariamente agravada pelo que sou do parecer que melhor se adequava a aplicação de pena não superior a 18 anos”


1.4- Admitido o recurso e remetido a este Supremo Tribunal de Justiça,


A) O MºPº emitiu parecer no sentido da improcedência e alegando, em suma:


Conforme referido pelo MP na sua resposta, os temas colocados à apreciação deste Su­premo Tribunal estão desenvolvidamente tratados no acórdão do Tribunal da Relação de Co­imbra em termos que merecem a nossa integral concordância e que tornam escusadas quais­quer considerações adicionais (v. os pontos 3.42. a 3.46. quanto às pretensões de recondução dos factos ao tipo de homicídio privilegiado e ao não preenchimento das circunstâncias «mo­tivo fútil» e «frieza de ânimo» indiciadoras de maior censurabilidade e perversidade do homi­cídio, 3.47. e 3.48. quanto à contestada aplicação da agravante do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, 3.49. a 3.56. quanto à reclamada aplicação da atenuação especial do art.º 4.º do Regime Penal dos Jovens Delinquentes e 3.57. a 3.60. quanto à almeja­da redução da medida da pena).


Quanto à posição do Sr. procurador-geral-adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra a respeito da medida da pena.


Manifestando-se embora, por princípio, contrário a «alterações pontuais e por vezes mí­nimas das penas aplicadas em primeira instância», acaba aquele nosso colega por defender que uma pena «não superior a 18 anos» é mais adequada ao caso porquanto o arguido tinha 19 anos na data dos factos, era primário e agiu por ordem do próprio pai.


Pois bem. Que o arguido tinha 19 anos é inquestionável e já foi adequadamente ponderado pelo tribunal a quo a propósito das exigências de prevenção especial. Já a vítima, coitada, foi exe­cutada, por causa, afinal, de uma dívida a um traficante de droga (o progenitor do arguido), antes de completar os 19 anos.


Também é verdade que na data dos factos (3 de outubro de 2021) o arguido ainda era primário. No entanto, veio a ser condenado em dezembro de 2021 pela prática, em 10 de mar­ço de 2021, de um crime de condução sem habilitação legal, e em 16 de julho de 2021, de um crime de detenção de arma proibida. Convenhamos que o registo de três condenações crimi­nais por parte de alguém que tem 19 anos não é algo que, de todo, abone a sua personalidade e mereça ser gabado ou usado como circunstância atenuante.


Finalmente, quanto ao facto de o arguido ter cumprido uma ordem do seu pai convirá recordar que este deu-lhe a oportunidade de escolher: «ou tratas tu ou trato eu» (facto provado 14). Mais.


O que o BB disse ao arguido foi, apenas, «dá-lhe um tiro» (ainda o facto pro­vado 14). Não o mandou dar cinco tiros, não o mandou alvejar a cabeça da infeliz CC nem, por conseguinte, mandou matá-la. O arguido é que, depois de discutir com o progenitor (o quê, ao certo, não se apurou), executou a «ordem», efetuando não um mas cinco disparos, contra a cabeça da vítima, a cerca de 1 metro/1,5 metro de distância (facto provado 15), bem sabendo que assim atingi-la-ia em órgãos vitais e provocaria a sua morte, o que representou, quis e logrou alcançar (facto provado 29).


Mais ainda. Não se provou que o arguido tivesse sido ameaçado, chantageado ou de alguma outra forma obrigado, mesmo fisicamente, qual títere, a cometer o homicídio. Como inteligentemente observa o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ..., a partir do momento em que o revólver lhe foi entregue, «[n]ão faltariam alternativas ao arguido, desde recusar-se a disparar, disparar para o ar ou para o chão esgotando a munição, atirar a arma para longe, fugir do local, ou até apontando a arma a seu pai, ameaçando-o» (pág. 28 do respetivo acór­dão).


Divergindo, assim, da posição do Sr. procurador-geral-adjunto no tribunal a quo, enten­demos que a pena de 21 anos de prisão aplicada na 1.ª instância e mantida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, deve ser confirmada. (…)”


B) A defesa do arguido respondeu ao parecer dizendo:


“O Tribunal não pode deixar de ter em consideração a infância deste jovem e acima de tudo como ficou amplamente demonstrado:


“4- O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai.”


Estamos perante um pai que durante a infância e adolescência moldou o crescimento mental deste jovem.


Foram relatados atos de violência sobre o jovem arrepiantes na infância, ao ponto do seu progenitor para além das violentas agressões físicas que incutia na criança o ter chegado, inclusive, a comer o próprio vomitado…


não estamos perante um jovem que foi educado e cresceu num ambiente normal.


As considerações efetuadas pelo Senhor Procurador Geral Adjunto, que muito respeitamos, partem do pressuposto que o AA tinha essa capacidade de discernimento, que têm os jovens com um crescimento mental normal.


Acontece, porém, que, está amplamente provado que:


O cérebro de crianças maltratadas pode ser 20% a 30% mais pequeno comparativamente a outras crianças não maltratadas. As primeiras tendem também a desenvolver características cerebrais através das quais à menor ameaça apresentarão uma maior reactividade e a menor resistência ao stress.


Estas experiências de stress formam no cérebro padrões nos quais as respostas de medo se tornam fixas, o que pode proteger a criança de outros maus tratos mas comprometer o seu desenvolvimento normal. O medo e o estado de alerta permanente podem provocar na criança irritabilidade, dificuldades em dormir, hipervigilância, hiperactividade, agressividade, birras e atrasos no desenvolvimento (Lowenthal, 2001).


Um dos princípios fundamentais do Estado de Direito é tratar igual o que é igual e diferente o que é diferente.


No caso sub judice, sempre com o devido respeito por opinião diversa, a conduta do Arguido não pode ser interpretada como se estivéssemos perante um qualquer jovem, com uma infância e adolescência normais.


No caso sub judice o verdadeiro responsável por este horrendo crime não é o Arguido mas sim o cobarde do pai, que após levar o AA a cometer estes factos horríveis fugiu abandonando o filho à sua sorte.


Termos em que concluímos pelo pedido de procedência do Recurso apresentado!”


1.5 - Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora explicitar a discussão e deliberação tomadas.


II- O recurso em apreciação


2.1- Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art.ºº 410º, n.º 2 do CPP o âmbito do recurso delimita-se pelas questões sumariadas em face das conclusões extraídas da respectiva motivação, visando permitir e habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância da decisão recorrido. Este entendimento tem sido a posição pacífica da jurisprudência (1).


2.2- Questões em apreciação:


1.º - A conduta do arguido deve ser reconduzida ao tipo de homicídio privilegiado p.p. no art.º. 133.º do Código Penal?


2.º - Não estão preenchidas as circunstâncias previstas nas als. e) e j) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal?


3.º - A circunstância agravante do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições não pode ser aplicada em virtude de o homicídio ter sido qualificado pelo uso da arma?


4.º - Deve ser aplicado o art.º 4.º do Regime Penal dos Jovens Delinquentes (Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro)?


5.º - A medida da pena é desproporcional ?


2.3- Análise das questões enunciadas


2.3.1- A conduta do arguido deve ser reconduzida ao tipo de homicídio privilegiado do artª. 133.º do Código Penal?


Recordando, o TRC decidiu:

“(…) a total negação de provimento aos recursos interlocutórios, o do arguido BB, como o do arguido AA, mantendo-se nos seus precisos termos as decisões neles visadas, de 30/11/2022; e pela total negação de provimento também ao recurso do arguido AA contra o acórdão recorrido, de 14/12/2022, cuja decisão se mantém integralmente [sem prejuízo de na parcial procedência da impugnação de facto se alterar nele o facto consignado como provado sob 4 (nos precisos termos referidos supra em II/C/b/3.35)].”

A matéria de facto (provada e não provada) e respectiva fundamentação foi explicitada como se passa a transcrever:

“« (…)

II Fundamentação

Da prova produzida e da discussão da causa resultou o seguinte:

A Factos Provados Da acusação

1- DD nasceu em .../.../2002.

2- BB é pai do arguido AA.

3- Apesar de o arguido AA viver habitualmente com a sua mãe, EE, também vivia a espaços temporais com o seu pai, na Rua ..., ..., ....

4- O arguido AA tinha uma grande admiração pelo seu pai, BB, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai. ( esta redacção foi eliminada pelo AC TRC e que passou a introduzir a seguinte formulação a este nº4:

O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai”.

5- DD era amiga do arguido e seu pai, residindo com estes desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o início de agosto de 2021, num anexo à moradia supra identificada, pelo qual pagava a título de renda mensal, a quantia de € 100,00.

6- Em .../.../2021, CC tinha uma dívida monetária para com BB, de valor não concretamente apurado, relativo à compra de estupefacientes por parte da CC àquele.

7- Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos, desde o citado dia de .../.../2021 que a CC foi interpelada pelo BB a sair do anexo em que residia, por não pagar a renda há mais de um mês.

8- BB foi contactado pela vítima CC naquele dia, tendo ambos combinado encontrarem-se pessoalmente.

9- BB, por volta das 22h15 daquele dia, chegou ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-..-LZ, fazendo transportar a CC no lugar do pendura, e pelo arguido AA, a fim de determinarem que aquela pagasse a aludida dívida, até a um terreno baldio em frente à Estação de Comboios d. ..........., seguido por FF, que ia ao volante do veículo automóvel de passageiros com a matrícula ..-OV-.., e por GG, que seguia no local do pendura deste veículo.

10- Aí chegados, todo os ocupantes daqueles saíram do seu interior, aproximaram-se uns dos outros, e começaram a entabular conversa.

11- Nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar, BB, após ter sido informado por GG que este tinha entregue uma quantia total de € 860,00 à CC para que esta liquidasse parte da dívida que aquela tinha para com ele, interpelou GG e a CC, proferindo-lhes a seguinte expressão “Quem é que está a falar a verdade?”.

12- Ao que a CC pediu mais tempo a BB para reunir o valor que lhe devia e assim lhe pagar.

13- BB, que se tinha dirigido àquele local já munido de uma arma de fogo tipo revólver, com o n.º de série ...26, totalmente carregada com seis munições de calibre .22, retirou-a do coldre na qual a trazia acondicionada, por debaixo do braço esquerdo, e estendeu o seu braço na direcção do arguido AA, segurando a dita arma.

14- Ao mesmo tempo que o interpelava, em tom elevado e com foros de seriedade, e referindo-se à vítima CC, da seguinte forma: “Dá-lhe um tiro”, “ou tratas tu ou trato eu”.

15- Após discutirem, o arguido AA recebeu da mão estendida de BB o revólver que o seu pai lhe apresentou, e, de seguida, em execução da ordem que lhe foi transmitida e a qual acatou, apontou-o com o braço esticado na direcção da cabeça da CC, que se encontrava parada e virada de frente para o arguido e BB, a uma distância entre 1 m e 1,5 m destes.

16- Então, o arguido AA, por volta das 23h25, na presença de GG e de FF, naquele local público, premiu repetidamente o gatilho do revólver que empunhava, disparando e atingindo a CC por cinco vezes na sua cabeça.

17- Em virtude destes disparos, quatro dos projécteis desferidos perfuraram a região parietal esquerda da cabeça da CC, e um outro no occipital.

18- Após, o arguido e os demais presentes deixaram a vítima CC prostrada no chão, a agonizar, ausentando-se do local, sem lhe prestar qualquer socorro ou auxílio.

19- Como consequência directa e necessária de tal conduta, CC sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, vindo a falecer no dia .../10/2021, pelas 03h16, no Centro Hospitalar e Universitário …, local para o qual foi transportada após ter sido atingida nos termos acima descritos.

20- O arguido AA não é titular de licença de uso e porte de arma, nem a referida arma está manifestada em seu nome.

21- No dia .../10/2021, pelas 10h15, o arguido AA encontrava-se na Rua ..., em ..., à procura do seu cão que tinha transportado para o local referido em 9, e que aí tinha deixado após os factos narrados em 16.

22- Aí, o arguido AA foi interpelado pelos militares da GNR HH e II, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, que se apresentaram perante aquele naquela qualidade, sobre a razão de estar perto do local referido em 9.

23- Ao que o arguido AA respondeu que se encontrava à procura do seu cão.

24- Após o arguido AA ter sido informado que o seu cão tinha sido recolhido pela GNR de ... e que se encontrava nas suas instalações, foi interpelado por HH para que o acompanhasse até ao Posto Territorial daquela cidade, dado não ter qualquer identificação, e referir que não se queria identificar.

25- Após o arguido AA ter informado os referidos militares da GNR que se recusava a cumprir com tal ordem legitimamente emitida, começou a correr em direcção oposta à que se encontravam os militares da GNR, tendo sido agarrado de imediato por estes.

26- Durante as tentativas dos militares da GNR em imobilizá-lo e proceder à sua detenção, o arguido AA realizou vários movimentos rotativos com o cotovelo esquerdo,

27- Pelo que o militar da GNR II e o arguido se desequilibraram e caíram ambos no solo.

28- Como consequência directa e necessária de tal queda, o militar da GNR II sofreu um traumatismo directo no punho direito e uma escoriação na face interna desse mesmo punho, que lhe ditaram um período de doença fixável em cinco dias, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional por igual período.

29- Com a conduta supra descrita, bem sabia o arguido AA que a mesma era apta a provocar a morte da vítima CC, porquanto atingia órgãos vitais para a subsistência da vida humana, que representou, quis e logrou alcançar.

30- O arguido não se coibiu de agir da forma descrita, em local público e à frente dos restantes presentes, GG e FF.

31- O arguido conhecia as características da arma de fogo e munições acima descritas que tinha na sua posse, sabendo igualmente que não lhe era permitida a sua detenção e utilização sem a respectiva licença de detenção, uso e porte de arma, e, não obstante, agiu com a intenção alcançada de as usar.

32- O arguido AA conhecia a qualidade profissional dos militares da GNR, que estavam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, e que, por conseguinte, estava não só legalmente obrigado a apresentar o seu documento de identificação quando para tal foi interpelado, como também a deslocar-se até ao Posto Territorial da GNR de ..., todas legítimas porque emanadas de agentes com poderes para tal.

33- Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

34- JJ e KK, pais da DD, ficaram desolados com a morte da sua filha, sentindo sofrimento e dor com essa perda.

Pessoais do arguido

35- AA é o mais novo de uma fratria de dois irmãos germanos.

36- A sua infância e adolescência passou por uma vivência com algumas dificuldades de entendimento a nível familiar e fraca vinculação entre os elementos do agregado, principalmente com o pai.

37- O pai apresentava um modelo educativo punitivo e autoritário, havendo episódios de violência doméstica por parte deste, dirigidos tanto à mulher, como aos filhos.

38- Devido às persistentes dificuldades de entendimento entre o casal, há cerca de 6 anos separaram-se e passados dois anos ocorreu o divórcio.

39- Após a separação, o arguido e o irmão ficaram aos cuidados da mãe.

40- O pai trabalhou durante vários anos como motorista de longo curso, pelo que passava alguns períodos de tempo fora de casa.

41- Após a separação e sempre que o pai estava em Portugal, este impunha que o arguido mantivesse convivência com este, o que nem sempre era do seu agradado.

42- AA apresentou um percurso escolar com dificuldades de aproveitamento a partir da adolescência, concluiu o 9.º ano de escolaridade, com 14 anos de idade.

43- Posteriormente inscreveu-se no 10.º ano na escola ..., em ..., grau de ensino que não concluiu por ter reprovado três anos consecutivos.

44- Após ter abandonado a escola, teve actividades laborais de curta duração na área da construção civil, na apanha da fruta ou como mecânico de motas.

45- O arguido iniciou o consumo de haxixe aos 14 anos de idade, com pares mais velhos, em contexto escolar e, aos 17 anos de idade passou a consumir cocaína.

46- No período que antecedeu a prisão preventiva, AA vivia com a mãe, de 43 anos de idade, e com a avó materna, de 74 anos de idade.

47- O irmão do arguido emigrou para a Suíça há cerca de um ano.

48- A família reside numa casa térrea, que é propriedade da avó do arguido e que apresenta adequadas condições de habitabilidade e localiza-se numa zona rural, onde não se identificam problemáticas de referência.

49- AA, por insistência do pai, viveu em casa deste nos quatro dias que antecederam o dia 03/11/21.

50- O arguido encontrava-se inactivo há vários meses, sendo o seu sustento assegurado pela mãe, empregada num hotel da região, que aufere um vencimento equivalente ao salário mínimo nacional.

51- AA assume que neste período atravessava uma fase de instabilidade emocional, principalmente devido aos consumos regulares de haxixe e cocaína.

52- Esses consumos eram incentivados pelo pai, também ele consumidor, mantendo ainda o arguido convívio com grupo de pares também consumidores de produtos estupefacientes e com DD, pessoa que já conhecia antes de ela ter ido residir para casa do seu pai.

53- A nível de ocupação de tempos livres, AA mantinha como hobbies a prática de motocross e gostava de fazer esculturas em madeira.

54- Presentemente, em contexto prisional, o arguido encontra-se estável e abstinente e não identifica a necessidade de qualquer tipo de tratamento/acompanhamento para esta problemática.

55- Em contexto prisional, AA apresenta um comportamento consentâneo com as normas institucionais e trabalha como faxina de pavilhão.

56- No EP tem visitas regulares da mãe, que se mostra disponível para o apoiar no que se mostrar necessário.

57- O arguido já foi condenado:

a) No âmbito do Proc. 22/21.8..., do Juízo de Competência Genérica da ..., por decisão de 13/12/21, foi condenado pela prática, em 10/03/21, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €;

b) No âmbito do Proc. 81/21.3..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 14/12/21, foi condenado pela prática, em 10/07/21, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, nº 1, al. d) , da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

B Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

1- Em 3-10-2021, CC tinha uma dívida monetária para com o arguido AA e BB de valor superior a € 3.000,00, relativo à compra de estupefacientes por parte da CC àqueles.

2- Em data não concretamente apurada, mas compreendida na semana de 26/09/2021 a 02/10/2021, o arguido e BB interpelaram a CC, com tons de seriedade, para que lhes pagasse o valor de € 2.100,00 até dia 08/10/2021, pois caso contrário a matariam, no que foram por ela escutados.

3- À data de 03/10/2021, a CC não lhes tinha entregue a quantia monetária por eles exigida. 4- BB referiu que estava “farto de arrastar carne mijada”.

5- O arguido AA procurou atingir com os seus punhos fechados os militares da GNR.

6- Ao actuar da forma supra descrita, o arguido agiu motivado por uma animosidade que sentia em relação à vitima CC, decorrente de uma divida monetária que esta tinha para com aquele, bem sabendo que as suas condutas eram manifestamente desproporcionadas, tendo em conta que a relação de animosidade tinha na sua base factos sem relevância jurídica, por se tratar de uma dívida respeitante à compra pela vítima CC de produtos estupefacientes.

7- Sabia o arguido AA que a sua conduta era apta a produzir lesões em II, o que representou, quis e almejou alcançar.

8- BB apontou a arma na direcção da cabeça do arguido e disse-lhe: “ou dás um tiro na CC ou dou eu a vocês os dois.”

9- Caso o arguido não actuasse conforme ordenado pelo BB, o mesmo seria morto por este.

10- O arguido agiu com o único objectivo de salvar a sua própria vida.

11- O arguido estava convencido que o seu pai o mataria.

C - Fundamentação da matéria de facto

“Por força do art.º 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o art.º 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença, determina que ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou a que este valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 -5.ª).

Com a exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230).

Como decidiu este Supremo Tribunal (Ac. de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 -3.ª), a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e concluir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.

Mas a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada facto fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível (Ac. do STJ de 30-06-1999, in SASTJ, n.º 32, pág. 92).” [Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15/10/2008, Proc. 08P2864, www.dgsi.pt].

É o que se passa a fazer então. Assim:

O arguido dispôs-se a prestar declarações, narrando a sua versão do que se passou no dia em causa. Assim, sendo-lhe lida a acusação, foi esclarecendo que tinha que obedecer a seu pai, confirmando que a CC pagava 100,00 € de renda mensal e que esta tinha uma dívida para com o seu pai, de montante que desconhecia, mas não a ameaçou. Confirmou que o seu pai disse à CC para deixar a casa, tendo aquela combinado encontrar-se com o seu pai. Esclareceu que, nesse dia estava com o seu pai, que lhe mandou ir buscar o FF, estando entretanto ambos a consumir cocaína. Depois o seu pai disse-lhe que tinham que ir buscar a CC e foi então o arguido e seu pai no BMW, enquanto o FF e a CC iam no Fiat. Iam para um sítio mais calmo e perderam-se, mas acabaram por se encontrar ao pé da estação de comboios de ..., tendo ouvido o FF dizer que tinha entregue à CC a quantia de 860,00 €, para ela pagar uma parte da dívida, tendo o pai do arguido interpelado a CC e o FF, como referido na acusação, tendo a CC pedido mais tempo para pagar. Confirmou que o seu pai lhe pôs a arma à frente, dizendo-lhe para matar a CC e que ou a matava, ou levava um tiro. Que efectivamente disparou a arma, com a pressão que seu pai exercia nem pensou. Depois, o seu pai disse-lhes para se irem embora, tendo o GG, que tremia, olhado para trás e dito que a CC tinha uma mala, tendo o seu pai metido a arma dentro da mala, indo-a esconder num pinhal. Depois foram a uma estação de lavagem auto, pois o carro tinha ficado com sangue, tendo o seu pai dito ao GG para ir a pé para casa. O seu pai disse-lhe a si para ir tomar banho e depois foram esconder a arma num pinhal. Esclareceu ainda que foi depois ao local para ver se a CC ainda estava viva e à procura do seu cão, quando apareceu a GNR. Perguntaram-lhe o nome e começaram a algemá-lo e atiraram-no para o chão. Meteram-no no carro e levaram-no para o posto, onde estava o seu cão. Explicou ainda que, quando o seu pai lhe disse para matar a CC, opôs-se e “fez peito”, mas o seu pai meteu-lhe a arma debaixo do braço. Explicou ainda que, quando tinha 8 ou 9 anos de idade, o seu pai deu-lhe uma arma para ele dar uns tiros para o ar. Instado, esclareceu que era o seu pai quem lhe dava a cocaína, sendo consumidor de estupefacientes desde os 14 anos de idade. Na sua infância, o seu pai ameaçava-o e batia-lhe frequentemente, tendo o arguido assistido uma vez a uma cena do seu pai com uma arma.

Quanto às testemunhas, atentas as declarações do arguido, apenas foram ouvidas:

LL, avó da vítima mortal, explicou que a vida da sua filha acabou com a morte da neta. A sua filha vai ao cemitério todos os dias e perdeu a alegria de viver, vive em desespero, o mesmo acontecendo ao pai da CC, que era filha única. A sua neta estava praticamente sempre com a mãe, mas tinha um cão e arranjou um espaço onde o podia ter. Também já tinha estado na ..., mas tinha uma casa ode tinha o cão.

FF, amigo do arguido, conheceu o pai deste através dele, assim como a CC. Pediram-lhe para ir buscar a CC à .... Foi buscar o GG e depois foram ao MacDonald`s da ..., onde estava o arguido AA e seu pai, tendo aquele pedido para a testemunha ir a sua casa, tendo depois dito que a CC ia buscar as coisas dela, para a testemunha esperar lá, mas depois já não era preciso. Voltou a pôr o GG em casa e ia sozinho no Fiat Punto, mas perdeu-se e depois, perto da ..., voltou a encontrá-los estando já o GG com eles. Admitiu que sabia que o encontro era para ajustar contas de estupefaciente, mas não sabe da dívida. No local, estava a CC, o AA, o BB e o GG, no carro desta testemunha. O depoente foi urinar ou ouviu o BB a dizer ao AA: “ou amanhas tu, ou amanho eu.” Quase se matavam e o BB exibia uma arma de fogo, que antes trazia numa sovaqueira. Depois ouviu tiros, o AA a disparar, mas não viu como a arma passou para as mãos dele. Como não estava à espera, o depoente fugiu de carro para casa, com as luzes apagadas. Depois, não manteve qualquer contacto com eles. A CC ficou caída em cima do BMW, pensando a testemunha que o primeiro tiro foi para a deixar surda e os outros para a matar; a testemunha ainda viu a cabeça da CC a espirrar sangue.

GG, conhece os arguidos e conhecia a CC, tendo conhecido aqueles através desta. A CC falou-lhe, na semana dos factos em causa, por alto, de uma dívida para com os arguidos, relacionada com droga. Os arguidos quiseram falar com ela e a testemunha estava com a CC e pensa que lhe ligaram para o efeito. Quando se encontrou com ela, a CC estava com o BB, na estação de .... Houve uma discussão por causa da dívida, para saberem se ela pagava ou não. O BB perguntava-lhe se ela pagava e ela disse que não tinha dinheiro para lhe dar. O BB disse então ao AA para dar um tiro na CC, pegando numa arma que trazia e entregando-a ao AA, dizendo-lhe uma ou duas vezes para o fazer: “Dás um tiro à senhora, se não deres tu, dou-te eu a ti e à CC”, mas não tem a certeza desta última parte. O BB obrigou o AA a [pegar na] arma e este deu os tiros. Depois entraram no carro e deixaram a testemunha na lavagem do Elefante Azul. O BB foi guardar e esconder a arma, tendo a testemunha sabido depois que trouxeram as coisas da CC. Esta estava encostada ao carro e ficou sangue na parte traseira. Esclareceu ainda que a CC não lhe contou que estivesse a ser ameaçada, mas a testemunha ajudou-a com cerca de 300,00 € para saldar parte da dívida; não sabe se ela pagou ou não, mas possivelmente não. Depois do sucedido, nunca mais esteve com os arguidos. Foram-lhe lidas as declarações prestadas em Inquérito (fls. 586, 587), onde a testemunha disse não ter visto os tiros, por se ter afastado um metro, referindo ainda uma discussão entre o AA e o pai. Esclareceu ainda que quando a CC foi baleada, a sua mala estava dentro do carro e acha que ela não ficou viva. Explicou ainda que foi o AA quem lhe disse para ir ter com a CC, mas não fez perguntas a esta sobre a dívida.

II, militar da GNR, relatou que estava de patrulha e, por curiosidade, passou pelo local do crime e viu um individuo, a assobiar, que lhe pareceu suspeito. Abordaram-no, mas ele começou a correr e mandaram-no parar. O suspeito disse que andava à procura do seu cão, tendo o depoente pedido para ele se identificar, dizendo-lhe ainda que o cão estava no posto. Nessa altura, o arguido AA começou a correr e tiveram que o imobilizar, tendo depois ido ao hospital para receber tratamento. O arguido tentou dar cotoveladas e murros, mas o depoente imobilizou-o; encetou a fuga quando lhe disseram que tinha que ir ao posto e só o algemou quando ele estava deitado. Explicou ainda que, no dia 3, foram ao local e viram a vítima a gemer e tentaram falar com ela, mas ela não reagia. O cão estava por lá, a lamber-lhe a cara. Deslocaram-se lá na sequência de uma denúncia no posto, de um popular que tinha ouvido os tiros e visto um carro.

MM, arrolado pelo arguido, de quem é amigo e que conhece desde os tempos da escola. Viveu um tempo na casa ao lado, quando o AA vivia com a mãe e a avó. Não havia um dia agradável entre o AA e o pai, havia sempre uma agressividade verbal e física e o arguido ia para casa do pai, como se fosse obrigado. É um bom rapaz, bem educado, mas quando estava com o pai ficava diferente. Tinha muitas amizades, era um rapaz livre e simples. Conheceu também a CC, com quem esteve algumas vezes e era uma boa rapariga.

NN, tia do arguido e arrolada por este, explicou que o AA frequentava a sua casa e ela e o marido frequentavam a casa daquele. O AA era afável e carinhoso, mas o seu pai tratava os filhos por igual, era muito rígido e severo; de uma vez, o AA vomitou e o pai fê-lo comer o vomitado. A relação que ele tinha com o pai era de medo; o AA não trabalhava e dependia do pai e da mãe.

EE, mãe do arguido, esclareceu que se encontra divorciada do pai dos seus dois filhos, desde há seis anos. O BB era autoritário com os filhos, era à base da violência; por qualquer parvoíce era logo agressões. Uma vez, o BB disse para o AA ir buscar as botas e de outra vez abriu-lhe a cabeça com um pau; o AA não podia não obedecer ao pai, tinha que obedecer. Na altura estavam a ponderar se o AA deveria ir trabalhar para o estrangeiro; ele tinha deixado de estudar pelos 16 ou 17 anos. Esclareceu ainda que antes do AA ter 18 anos, não havia regime de visitas estabelecido.

OO, tia do arguido, acompanhou a vida deste desde que ele nasceu até ter 16 anos. O BB era um pouco mais rígido com o AA, era à base de pancada, desde pequeno. Quando batia havia sangue e o AA urinava-se; o pai do AA era muito agressivo e este tinha medo dele.

O tribunal teve ainda em conta a seguinte prova:

- Pericial:

- Relatório de Inspecção Judiciária do Gabinete de Perícia Criminalística de fls. 50 a 76; - Relatório de exame pericial de fls. 979 a 980;

- Relatório de exame pericial de fls. 999;

- Relatório de autópsia médico-legal de fls. 1003 a 1008 v.so; - Relatório de Exame Pericial de fls. 1066 a 1071;

- Relatório de Exame pericial de fls. 1074 a 1082;

- Exame médico-legal efectuado a II de fls. 390 a 392; - Documental:

- Comunicação de notícia de crime de fls. 2;

- Relatório de inspecção judiciária de fls. 5 a 11; - Reportagem fotográfica de fls. 6 a 19;

- Identificação da vítima de fls. 20 a 21;

- Ficha biográfica da vítima de fls. 22 a 23; - Auto de diligência de fls. 24 a 26;

- Autos de apreensão de fls. 77 a 81;

- Auto de revista e apreensão a FF de fls. 117 a 118; - Auto de apreensão de fls. 142;

- Autos de apreensão de fls. 198 e 199; - Auto de apreensão de fls. 250 a 251; - Auto de apreensão de fls. 461;

- Auto de apreensão de veículo de fls. 516; - Auto de apreensão de fls. 630;

- Auto de apreensão de fls. 855;

- Auto de notícia do inquérito n.º 136/21.4... de fls. 87 a 98; - Auto de diligência de fls. 115, 124 a 125;

- Auto de diligência de fls. 140 a 141;

- Pesquisa de disparos de arma de fogo e zaragatoas bocais de fls. 185 a 196; - Reportagem fotográfica de fls. 200 a 220;

- Reportagem fotográfica de fls. 221 a 232;

- Auto de diligência e respectiva reportagem fotográfica de fls. 235 a 249; - Reportagem fotográfica de fls. 253 a 269;

- Documentação clínica de fls. 300 a 325;

- Informação Departamento de Armas e Explosivos da P.S.P. de fls. 451 a 452 e de fls. 457 a 460; - Imagens de videovigilância de fls. 457 a 460;

- Auto de visionamento de imagens de fls. 525 a 529;

- Ficha de registo automóvel da viatura com a matrícula ..-..-LZ de fls. 530; - Seguro da viatura automóvel com a matrícula ..-..-LZ de fls. 531;

- Ficha de inspecção do veículo ..-..-LZ de fls. 532; - Auto de diligência de fls. 533 a 534;

- Auto de diligência de fls. 623 a 625;

- Auto de exame directo de fls. 637 a 640;

- Auto de busca domiciliária de fls. 649 a 657; - Auto de diligência de fls. 853 a 854;

- Auto de notícia que deu origem aos autos principais com o NUIPC 911/21.0JALRA, de fls. 21 a 23 do apenso com o NUIPC 110/21.0...;

- Auto de notícia do NUIPC 110/21.0..., apensado aos autos principais, de fls. 26 a 28 do referido apenso;

No que concerne à situação pessoal do arguido, no que se refere ao seu enquadramento sócio económico (factos provados 35 a 56), o mesmo resulta do relatório social de fls. 1361, cujos pontos mais importantes se transcreveram, completado com as declarações das testemunhas arroladas pelo arguido.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido (facto provado 57), foi relevante o CRC de fls. 1463.

Ou seja, tendo o arguido confessado uma grande parte dos factos (ainda que criando uma narrativa, segundo a qual se não disparasse contra a vítima seria ele morto pelo seu pai), não foi difícil ao tribunal, recorrendo a simples regras de experiência e usando da sua livre convicção, concluir ter sido o arguido quem, com a sua acção, causou a morte da malograda vítima – o que, aliás, o arguido admitiu. A causa da morte encontra-se minuciosamente descrita no relatório de autópsia supra referidos – que foram tidos em conta e permitiram concretizar de forma mais pormenorizada os respectivos factos provados. Foi também importante a perícia que permitiu estabelecer a conexão entre a arma apreendida e as balas que atingiram a vítima, que o arguido também admitiu ter usado. Os depoimentos das testemunhas FF e GG, supra resumidos, contribuíram para completar o quadro factual do crime de homicídio, mas nenhum deles confirmou a tese do arguido, de que seria morto por seu pai se não disparasse contra a vítima CC; com efeito, apenas GG se referiu a essa ameaça, mas acabou por declarar não ter a certeza. Por outro lado, a testemunha II, ainda que tenha relatado que o arguido se tentou escapar à sua acção, deixou algumas dúvidas sobre a efectiva resistência que o arguido tenha oferecido – dúvidas essas que se adensam perante a notória superioridade física da testemunha face ao arguido.

Ora, “não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.” [Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/03/2009, Proc. 07P1769, www.dgsi.pt].

Assim, deram-se como não provados alguns dos factos imputados ao arguido, como descriminado supra, no que concerne aos actos de resistência do arguido à sua detenção, bem como à causalidade da sua actuação no dano corporal sofrido pelo militar que procedeu à detenção, atenta a dúvida insanável quanto ao que se terá passado.

Quanto aos outros factos dados como não provados, não foi produzida prova suficiente, ou suficientemente credível dos mesmos.

Finalmente, a dor, desgosto e sofrimento da mãe da CC em especial, mas também do pai, resultantes da morte prematura daquela, foram bem retratados pela testemunha LL, nos termos supra descritos.

(…)”

*

2.3.2- Desta fundamentação e já em sede de direito, salientamos o que aquele tribunal considerou:


“(…)


É manifestamente o caso dos autos, bem demonstrado na violência empregue pelo arguido, que disparou cinco tiros praticamente à queima-roupa sobre a cabeça da vítima, pessoa que ele bem conhecia- só porque o seu pai o mandou. Não faltariam alternativas ao arguido, desde recusar-se a disparar, disparar para o ar ou para o chão esgotando a munição, atirar a arma para longe, fugir do local, ou até apontando a arma a seu pai, ameaçando-o. Mas nada disso o arguido fez e não se inibiu de agir de forma a causar a morte à infeliz CC, vencendo o que seria uma normal barreira (social e afectiva).


(…)


- Em audiência de julgamento, o arguido admitiu a maior parte dos factos imputados, ainda que tenha tentado, sem sucesso, passar uma versão de acordo com a qual agiu apenas sob ameaça de morte e que, se não matasse, seria morto pelo seu pai- o que não foi confirmado por ninguém. De todo o modo, tal postura não exclui a confissão, ainda que parcial. Já quanto ao arrependimento, este deve ser demonstrado em factos concretos; segundo o próprio arguido: se não tivesse morto a vítima, não estaria vivo, mas tal está longe de se verificar, como se explicou- o que denota uma ausência de sentido crítico por parte do arguido. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial;


- Por fim, nada traduz nos autos que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, pelo que, também por aí, o mesmo não demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas (…).”


2.3.3 - Fazendo agora frente ao concreto problema acerca da questão da pretendida qualificação como homicídio privilegiado e convocado no recurso (onde mereceu as primeiras 35 páginas das 85 que integram a peça e conclusões I a XII) foi ela exposta nos seguintes termos:


(…) quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal a quo, não relevaram ponderaram convenientemente a situação pessoal do Arguido à data da prática dos factos, acima de tudo, não tiveram em consideração a subjugação deste ao seu pai.


julgaram o Recorrente como se fosse um jovem normal de 19 anos de idade não atendendo à concreta situação que resultou dos presentes autos. Foi manifesto e evidente, ao longo de todo o julgamento, o Ascendente que o pai tinha no Arguido, o qual não podemos esquecer, é, ainda, um jovem de 19 anos. No caso sub judice, é o próprio Tribunal a quo a reconhecer que o Recorrente foi colocado numa “tensão extrema nesse transe” … não lhe permitia ter o discernimento que o Venerando Tribunal da Relação entendia que o mesmo deveria ter e isto porque, voltemos a frisar, as Instâncias analisaram o comportamento do Recorrente à luz daquilo que seria a atuação de um jovem de 19 anos com uma formação cerebral e crescimento


o Tribunal a quo tratou e exigiu do Recorrente um comportamento e uma reação a uma situação de grande stress, como se estivéssemos perante um jovem que cresceu num ambiente normal, o que não era manifestamente o caso.


O Tribunal a quo pretendeu limitar o seu julgamento única e exclusivamente aos factos em investigação nos presentes autos, descurando, por completo, aquilo que era o enquadramento do comportamento do Recorrente, o qual no caso sub judice, por tudo o que acima se encontra exposto, era de especial importância. Estamos, portanto perante um jovem claramente condicionado por uma infância de maus tratos, resultou provado que:


“4- O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai.


48º - No dizer da testemunha FF, o Recorrente e o seu pai:


” Quase se matavam e o BB exibia uma arma de fogo, que antes trazia numa sovaqueira.”


49º - Sendo certo que, conforme acima se referiu, todos os que ali se encontravam presentes, não tiveram dúvidas em reconhecer que as ameaças efetuadas ao Recorrente assumiam um grau de seriedade.


O Recorrente, aquando da prática dos factos, se encontrava dominado por compreensível emoção violenta e desespero, situações que diminuem sensivelmente a sua culpa.


O verdadeiro responsável pela morte da infeliz vítima não foi o Arguido, mas sim o seu pai.


o Recorrente agiu numa situação de profunda afetação mental, de domínio psicológico de seu pai dominado por compreensível emoção violenta.


(…)


Por sua vez, neste segmento, também analisado pelo Tribunal da Relação em via de recurso, considerou-se ali alinhar a seguinte perspectiva:

“(…) 3.41. A argumentação do recorrente corre em seguida, e de forma sucessiva, pela sustentação do privilegiamento do crime ou, quando menos, da sua não qualificação nem agravamento, mantendo-se a condenação no âmbito do tipo base, do art.º 131.º, do CP. Naturalmente, isso passa por no primeiro caso verificar se pela positiva podem afirmar-se os pressupostos da forma privilegiada (art.º 133.º, do CP), e no segundo e pela negativa se se não podem afirmar os da qualificação (art.º 132.º, n.º 1 e 2, do CP), que aliás são logicamente excludentes daquele privilegiamento, e/ou da agravação (art.º 86.º, n.º 3, do RJAM). Adiantamos já que se nos afigura não poderem estas pretensões colher provimento, e começando pela que tem lógica precedência e em que essa falência é apesar de tudo mais clara, temos, quanto ao tipo privilegiado, que depende, nos termos do citado art.º 133.º, do CP, de na acção de matar outra pessoa o agente ter sido dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral que diminuam sensivelmente a sua culpa. E naturalmente, o que significa uma diminuição sensível de culpa, não pode ser uma qualquer sua atenuação ponderável nos quadros da moldura típica do tipo base segundo os critérios do art.º 71.º, n.º 1 e 2, do CP, ou como atenuante modificativa geral nos do art.º 72.º, n.º 1 e 2, do CP; necessário é que seja uma tal que a coloque claramente abaixo dos limites mínimos pressupostos naquela moldura típica e com que por isso se pode lidar sem ofensa do princípio da culpa como limite das penas (art.º 40.º, n.º 2, do CP).

3.42. Pois bem, as únicas coisas que o recorrente pode mobilizar em abono do pretendido enquadramento dos factos no tipo privilegiado são, tendo agido sob instigação do pai, o medo que lhe tinha e o ascendente de que o mesmo sobre si dispunha, em termos de habitualmente lhe obedecer e aderir às ordens. Damos por óbvio que têm de excluir-se tanto a compaixão pela vítima (!) quanto uma qualquer motivação de relevante valor social ou moral (!), o que nos deixa em mãos a possibilidade abstracta da compreensível emoção violenta ou do desespero, causados pelas ditas ordens e seus termos, que é o que com efeito vem invocado. Sucede contudo que, mesmo concedendo em que nas circunstâncias concretas, a isso aliás inteiramente propícias, o recorrente se achasse sob grande tensão, posto o contexto e a insistência daquelas ordens do pai, não se vê sequer como a isso atribuir um nível de intensidade emocional tamanho que devesse levar a tê-lo como verdadeiramente dominado pela emoção ou em desespero que, significativamente, lhe erodissem a capacidade de avaliar a gravidade da conduta ou de determinar-se de acordo com essa avaliação e segundo o dever-ser. Além de considerarmos uma vez mais óbvio que podia e devia ter agido de outro modo que não passasse por matar a vítima a tiros na cabeça, desferidos quase “à queima-roupa”, não podemos esquecer que o recorrente foi um dos criadores daquele contexto, nada se lobrigando nas condicionantes da opção por ele tomada que lhe diminuísse a culpa naquela medida qualificada (“sensivelmente”) que seria pressuposto do privilegiamento.

3.43. E com o que antecede sem mais afastando a hipótese de condenação pelo crime privilegiado (…)”


2.3.3 - Caberá de antemão avançar desde já duas notas a fim de equacionar correctamente a extensão da questão no que respeita ao âmbito de conhecimento por parte deste Supremo Tribunal.


A primeira, no sentido de, efectivamente, sublinhar que no ponto 4º dos factos provados, ficou assente que: “O arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai”


Esta foi a única alteração (na parte do texto sublinhada) à matéria de facto decorrente da decisão de recurso por parte do Tribunal da Relação.


A segunda nota atém-se à necessidade de salientar que, no entanto, não ficou provado que:

“8- BB apontou a arma na direcção da cabeça do arguido e disse-lhe: “ou dás um tiro na CC ou dou eu a vocês os dois.”

9- Caso o arguido não actuasse conforme ordenado pelo BB, o mesmo seria morto por este.

10- O arguido agiu com o único objectivo de salvar a sua própria vida.

11- O arguido estava convencido que o seu pai o mataria.”

Ou seja, no recurso em apreciação e no qual a defesa discute a aplicação da qualificação do crime, visando a opção pelo tipo de homicídio privilegiado, a mesma confunde na argumentação produzida questões de facto e de direito.


Consequentemente, a análise deste Supremo Tribunal irá ater-se e cingir-se-á à questão da subsunção jurídica apenas a partir dos factos provados e não dos que o recorrente entende que deveriam ter ficado demonstrados pois isso seria entrar numa área de competência apreciativa que lhe está subtraída ao abrigo do art.º. 434º do CPP


E, na verdade, esta distinção é essencial, porquanto, se bem interpretamos a posição da defesa, o núcleo fundante da sua posição radica quase todo exactamente a partir daquela matéria de facto não provada e não apenas do facto que o Tribunal da Relação entendeu dever, no ponto 4, ficar alterado como se explicitou anteriormente.


Dito isto, ao que agora importa reter para a economia do recurso, de modo claro ficou consignado como provado que:

“ 4ºO arguido AA tinha medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai”.

(…)

13- BB, que se tinha dirigido àquele local já munido de uma arma de fogo tipo revólver, com o n.º de série 37326, totalmente carregada com seis munições de calibre .22, retirou-a do coldre na qual a trazia acondicionada, por debaixo do braço esquerdo, e estendeu o seu braço na direcção do arguido AA, segurando a dita arma.

14- Ao mesmo tempo que o interpelava, em tom elevado e com foros de seriedade, e referindo-se à vítima CC, da seguinte forma: “Dá-lhe um tiro”, “ou tratas tu ou trato eu”.

15- Após discutirem, o arguido AA recebeu da mão estendida de BB o revólver que o seu pai lhe apresentou, e, de seguida, em execução da ordem que lhe foi transmitida e a qual acatou, apontou-o com o braço esticado na direcção da cabeça da CC, que se encontrava parada e virada de frente para o arguido e BB, a uma distância entre 1 m e 1,5 m destes.

16- Então, o arguido AA, por volta das 23h25, na presença de GG e de FF, naquele local público, premiu repetidamente o gatilho do revólver que empunhava, disparando e atingindo a CC por cinco vezes na sua cabeça.

(…)

29- Com a conduta supra descrita, bem sabia o arguido AA que a mesma era apta a provocar a morte da vítima CC, porquanto atingia órgãos vitais para a subsistência da vida humana, que representou, quis e logrou alcançar.

30- O arguido não se coibiu de agir da forma descrita, em local público e à frente dos restantes presentes, GG e FF.

31- O arguido conhecia as características da arma de fogo e munições acima descritas que tinha na sua posse, sabendo igualmente que não lhe era permitida a sua detenção e utilização sem a respectiva licença de detenção, uso e porte de arma, e, não obstante, agiu com a intenção alcançada de as usar.

(…)

33- Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

(…)”


Do exposto resultará que o arguido agiu como autor material de um crime de homicídio, mas privilegiado, p.p. nos termos do art.º 133º do CP? 2


Dispõe esta norma penal:


Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”


Importa, pois, averiguar se ficou provada alguma das razões indicadas com diminuição sensível da culpa do arguido. Como veremos, não ficou. O arguido, aliás, teve um comportamento, ainda que posterior aos factos, totalmente incompatível com algum sinal que lhe merecesse ser tido como menos culpado. Não só não revelou arrependimento algum, como até ainda voltou à zona do crime…à procura do cão! E, ainda por cima, ofereceu resistência activa contra os agentes de autoridade quando interpelado.


Ademais, por ocasião dos factos, não se provou que tivesse agido sob ameaça iminente do pai, não obstante o ascendente deste sobre si. E não se coibiu de matar a vítima, não com um tiro, mas com vários disparos, o que demonstra a intensidade do seu desapego do valor-vida da vítima, também uma jovem ainda, multiplicidade de disparos essa reveladora da efectiva e clara intenção de lhe tirar a vida.


Na jurisprudência, a citar aqui entre alguns exemplos (publicados no site da DGSI), tem sido entendimento:


a) Ac. STJ de 20-06-2012 :


IX. A compreensível emoção violenta a que se refere o art.º 133.º do CP consiste na ocorrência de um estado de alteração ou de perturbação emocional, estado este que condiciona as faculdades e capacidades do agente, designadamente a sua capacidade de escolha e de determinação. O agente, face a uma alteração do seu estado psicológico, resultante de um forte abalo emocional provocado por uma situação pela qual não pode ser censurado e à qual o homem normalmente 'fiel ao direito' não deixaria de ser sensível, conquanto mantenha a imputabilidade, vê limitada ou comprometida a capacidade de controlo dos seus actos, sendo empurrado ou conduzido para o crime.


X. Exige-se, assim, uma relação de causalidade entre o crime e a emoção, uma conexão que, conquanto não implique, em princípio, que a vítima seja pessoa estranha ao desenrolar da emoção, consabido que o que está na base do ilícito típico não é a provocação da vítima, mas sim a diminuição da culpa do agente. A culpa só deverá ter-se por sensivelmente diminuída quando o agente, devido ao seu estado emocional, seja colocado numa situação de exigibilidade diminuída, ou seja, quando actue dominado por aquele estado, isto é, seja levado a matar, no sentido de que não lhe era exigível, suposta a sua fidelidade ao direito, que agisse de maneira diferente, que assumisse outro comportamento.


XI. O requisito da compreensibilidade da emoção consiste no entendimento de que a emoção só será relevante quando aceitável, sendo avaliada em função do padrão de homem médio, colocado nas condições do agente, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, sem perder de vista o agente em concreto.”


b)- Ac. STJ de 12-09-2013 :


” I. A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.
II. A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e á qual também o homem normalmente «fiel ao direito» não deixaria de ser sensível.
III.O preceito do art.º 133.º do CP coloca á cláusula da emoção violenta maiores exigências do que em relação ás restantes cláusulas, sofrendo uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo: tem de ser compreensível (sendo que nem a compaixão, nem o desespero estão sujeito á cláusula da compreensibilidade), e tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente; um duplo controlo a avaliar e ponderar nos limites de determinação da culpa.”

Nenhuma circunstância de facto se retira dos factos provados que permita se infira que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral. Ainda que o pai do arguido pudesse ter sobre ele, também no momento, algum ascendente como era normal ter, nele provocando medo, nas circunstâncias da acção contidas na narrativa de facto assente o tribunal a quo foi muito claro na explicação da respectiva convicção:

“(…)”as únicas coisas que o recorrente pode mobilizar em abono do pretendido enquadramento dos factos no tipo privilegiado são, tendo agido sob instigação do pai, o medo que lhe tinha e o ascendente de que o mesmo sobre si dispunha, em termos de habitualmente lhe obedecer e aderir às ordens.

Damos por óbvio que têm de excluir-se tanto a compaixão pela vítima (!) quanto uma qualquer motivação de relevante valor social ou moral (!), o que nos deixa em mãos a possibilidade abstracta da compreensível emoção violenta ou do desespero, causados pelas ditas ordens e seus termos, que é o que com efeito vem invocado.

Sucede contudo que, mesmo concedendo em que nas circunstâncias concretas, a isso aliás inteiramente propícias, o recorrente se achasse sob grande tensão, posto o contexto e a insistência daquelas ordens do pai, não se vê sequer como a isso atribuir um nível de intensidade emocional tamanho que devesse levar a tê-lo como verdadeiramente dominado pela emoção ou em desespero que, significativamente, lhe erodissem a capacidade de avaliar a gravidade da conduta ou de determinar-se de acordo com essa avaliação e segundo o dever-ser.

Além de considerarmos uma vez mais óbvio que podia e devia ter agido de outro modo que não passasse por matar a vítima a tiros na cabeça, desferidos quase “à queima-roupa”, não podemos esquecer que o recorrente foi um dos criadores daquele contexto, nada se lobrigando nas condicionantes da opção por ele tomada que lhe diminuísse a culpa naquela medida qualificada (“sensivelmente”) que seria pressuposto do privilegiamento.”

O arguido não foi colocado na impossibilidade de resistir ao comando do pai, de modo tal que até acabou por receber a arma das mãos daquele. Podia ter usado a mesma para ameaçar o pai caso o quisesse obrigar a disparar sobre a vítima e até a ir-se embora. Não vamos ao ponto de dizer, como fez o tribunal a quo, que poderia optar por matar o pai em vez da CC, mas pelo menos poderia ter usado a mesma para se defender de maior mal que aquele lhe quisesse infligir em caso de desobediência.

Não vemos, assim, que a situação do arguido fosse emocionalmente violenta ao ponto de ser compreensível para se optar por uma diminuição sensível da culpa De todo o modo, essa circunstância nem sequer resulta da matéria de facto provada quer quanto à sua existência quer quanto ao nexo essencial da mesma com uma inevitabilidade dos disparos desferidos sobre a vítima. Tudo isso, não obstante a ocorrida vivência de maus tratos e o ascendente psicológico sobre o arguido por parte do pai.

Não houve factualidade provada que pudesse configurar que o arguido estivesse controlado por uma linha de acontecimentos que lhe exigisse de forma “diminuída um comportamento diferente”- cfr Dias, Figueiredo, in Comentário Conimbricense ao CP, Tomo I. Parte Especial, Coimbra editora, pags 47.

Nada ficou assente em como tivesse ficado de tal modo dominado pelo pai ou afectado sensivelmente no seu poder de agir de forma diferente ou de resistência contra aquele e que o impedisse de agir de outra forma.

Assim, ainda que o estado de tensão gerado possa ser tido em atenção na fase de graduação da pena dentro da moldura do crime de homicídio qualificado, o que se pode concluir sem dificuldade é que não houve facto algum provado que diminuísse sensivelmente a sua culpa ao ponto de afectar a definição da própria moldura no sentido de uma alteração para um crime privilegiado.

Acrescentaremos ainda, que apesar dos conceitos em semântica aberta enunciados no tipo do art.º 133º do CP, não se consagra ali uma cláusula geral de menor exigibilidade pois que, até pelo elemento literal, aquela tipificação de circunstâncias diminuidoras sensivelmente da culpa é taxativa e não exemplificativa, seguindo-se aqui de perto também a mesma posição daquele autor citado ( op.cit, pag 49, § 6, ao contrário do que certa jurisprudência entendia ao tempo do texto originário do CP de 1982 (v.g. Ac TRC de 2.5.85 e do STJ de 16.1.90, ali citados)

Na compreensão do estado de emoção atendível para o efeito da configuração de uma acção típica homicida privilegiada tem sido interpretado que será necessário existir uma adequada relação de proporcionalidade entre o facto desencadeador (como por exemplo a provocação ou, diremos nós, uma fortíssima relação de dependência de alguém que afecte interesses vitais do agente), e o facto provocado, (ibidem, Comentário, pagª 51§ 9) mas, ao invés, o que se pretende é que não sendo propriamente um caso de proporcionalidade será, antes, de exigência de um mínimo de gravidade ou peso da emoção que estorva o cumprimento das intenções normais do agente e determinada pelo facto que lhe não é imputável (sic.)”

No caso dos autos, bem ou mal, o certo é que não se provou um nexo causal relevante para efeitos de privilegiamento entre o nível de acção emocional do arguido e a atribuída “influência” ou “temor” por parte dele em relação ao pai e nas circunstâncias concretas que desencadearam a morte da vítima.

Cuidaremos ainda em terminar esta reflexão dizendo que da matéria de facto e da fundamentação não se consegue inferir a mínima impressão de que o próprio arguido, ainda que psicologicamente estivesse (hipoteticamente) sob influência do pai dominador, face ao afastamento e separação deste da família não tivesse tido um mínimo de oportunidade em se destacar dessa “vinculação” ou influência o suficiente e sequer não ter conseguido não alinhar em se deslocar com ele e os restantes no sentido de exigirem o dinheiro supostamente em dívida.

Posto isto, é de concluir que a qualificação por crime de homicídio privilegiado não tem apoio mínimo em factos assentes, ainda que passíveis de valorações extrajurídicas 3 subsumíveis a esse tipo penal. Conclusão bem diferente se retiraria, estamos em crer, caso se tivesse provado a versão do arguido acerca da forte pressão (tensão) e suposta ameaça exercida pelo pai sobre si nos momentos que antecederam os disparos.

Não se provou, pois, na génese da conduta e acção do arguido uma emoção violenta compreensível, sensivelmente diminuidora da culpa, capaz de levar àquela pretendida tipificação.

2.3.2 - Não estão preenchidas as circunstâncias previstas nas als. e) e j) do n.º 2 do art.º. 132.º do Código Penal?

Como já se mencionou antes, o arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º, 132.º, n.º 2, als. e) e j), ambos do Código Penal, agravado nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de feverei­ro), na pena de 21 anos de prisão (ref.ª citius .......12, de 14 de dezembro de 2023)

As alíneas e) e j) do nº2 do art.º 132º dispõem:


“(…)


e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;


(…)


j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;”


O tribunal a quo considerou, como se viu, que o arguido agiu por motivo fútil e com frieza de ânimo:

• Na 1ª instância:


“(…)


«O exemplo-padrão constante da alínea e) é, diferentemente do que sucede com os anteriores, estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente (assim correctamente a nossa jurisprudência dominante, pela qual pode ver-se o Ac. do STJ de 23-7-86, BMJ 359º 395), em termos essencialmente análogos aos que o CP alemão prevê no § 211-2: cf. por último S/S/ESER § 211 15 ss. e M/S/ MAIWALD I § 2 30 ss. (…); por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação,' avaliado segundo as concepções éticas e natais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (equívoca a repetida afirmação da nossa jurisprudência de que motivo fútil “é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo”: cf. por outros o Ac. do STJ de 6-6-90, BMJ 398º 269), de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.»


«”Motivo fútil é aquele que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente". É "o motivo sem valor, irrelevante, insignificante". É "aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e, muito menos, portanto, de algum modo justificar) a conduta". É "aquele que não tem importância, é insignificante, irrelevante"»


Ora, no caso dos autos, o arguido disparou a arma da forma supra descrita, fundamentalmente porque o seu pai mandou. Não se provou que a infeliz vítima devesse ao arguido o que quer que fosse, ou que o pai do arguido o ameaçasse de morte. Mas não se pode dizer que não houve um motivo, hipótese em que a alínea se não verificaria, pois para tal tem que haver um motivo. E esse motivo existiu: ainda que tenha discutido a ordem do pai, o arguido executou-a simplesmente. Estamos pois perante um motivo torpe ou fútil.


Finalmente, quanto à al. j), “A formulação da agravante da frieza de ânimo encontra o seu fundamento na «firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada», numa «forte intensidade criminosa»; a mora habens mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contramotivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade, e sobretudo que a força criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução, pratica o respectivo crime sem hesitação, como mero déclancher da decisão tomada prévia e longinquamente – é a doutrina do Prof. Eduardo Correia, que norteou a inclusão típica daquela agravante (Direito Criminal, II, 1965, págs. 301-303).”14 Ora, também esta alínea se preenche, pois o arguido- realce-se- disparou cinco das seis balas que o revólver continha, a uma curtíssima distância, directamente sobre a cabeça da malograda vítima. Ou seja, não falhou um único dos cinco tiros que disparou, não vacilou em nenhum deles; em nenhum momento se deixou penetrar pelos contramotivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio. Logo, dúvidas não restam que também esta alínea se preenche.


Verificado o efeito de indício relativamente a estas alíneas do tipo, pode-se sem qualquer dificuldade concluir que estamos perante uma especial perversidade e especial censurabilidade.


“A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor de que fala Binder, que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade – cf. Comentário Conimbricense do CP, pág. 29 e Teresa Serra, op. cit., pág. 63. (…) A especial perversidade releva de um egoísmo abominável, assentando a decisão de matar em grande reprovação, deixando-se o agente motivar por factores desproporcionados, aumentando a intolerância colectiva ante o facto; a especial censurabilidade denota que o agente se não deixou vencer por factores que o deviam levar a abster-se de actuar, traduzindo um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos– Ac. deste STJ, de 18-09-2006, Proc. n.º 062679” (in http://www.dgsi.pt/jstj).”15


É manifestamente o caso dos autos, bem demonstrado na violência empregue pelo arguido, que disparou cinco tiros praticamente à queima-roupa sobre a cabeça da vítima, pessoa que ele bem conhecia- só porque o seu pai o mandou. Não faltariam alternativas ao arguido, desde recusar-se a disparar, disparar para o ar ou para o chão esgotando a munição, atirar a arma para longe, fugir do local, ou até apontando a arma a seu pai, ameaçando-o. Mas nada disso o arguido fez e não se inibiu de agir de forma a causar a morte à infeliz CC, vencendo o que seria uma normal barreira (social e afectiva).


(…)”

• No TRC:


“(…) O recorrente não matou a jovem DD (em rigorosa verdade: ainda mais jovem do que ele, por cerca de sete meses e meio), porque algo pessoalmente contra ela o movesse, por um qualquer agravo que lhe imputasse, por uma dívida que para consigo tivesse, por um interesse relevante que com essa morte visse satisfeito ou pelo que quer que fosse que, naturalmente sem justificar matá-la, permitisse ao menos, e sempre nos quadros da actuação criminosa, perceber essa conduta: matou-a, por muito que isso a todos custe aceitar, simplesmente porque o pai lho ordenou, para cumprir a ordem que este nesse sentido com insistência lhe deu, agarrando na arma e disparando-a – e dificilmente poderia encontrar-se melhor correspondência com a previsão de motivo fútil constante do art.º 132.º, n.º 2, al. e), in fine, do CP. De resto, livrou-se assim das insistências do pai com não um tiro, e porventura em parte do corpo em que sofrê-lo não causasse tão previsivelmente a morte da vítima (cuja tensão extrema nesse transe podemos isso sim imaginar), mas com cinco tiros, quase “à queima roupa” e todos certeiros na cabeça (sendo quatro fronto-laterais, atingindo-a na região parietal esquerda, e um por trás, atingindo-a no occipital) – sendo que se isto não integrar o conceito de acção com frieza de ânimo prevista na al. j) do n.º 2 daquele art.º 132.º, do CP (que ao contrário do que o recorrente ensaia, nem se confunde com a reflexão ou persistência na intenção, previstas na mesma norma, nem é afastada pela brevidade do acto), então dificilmente se concebe o que ali pudesse integrar-se.

3.46. Cremos que será já quase ocioso, mas não podemos deixar de referi-lo, brevemente embora, que às coisas deste jeito postas nada adianta a insistência do recorrente no apelo à sua juventude, ao seu receio relativamente ao pai, ao ascendente deste sobre si e ao costume de acatar as suas vontades e determinações, fruto de uma infância e adolescência condicionadas por autoritarismo violento daquele, e enfim à tensão causada pelas insistentes ordens para matar que o mesmo lhe dava. Compreende-se a aposta e o esforço com ela despendido, vista a posição de arguido que enfrenta as consequências de um crime muito grave, mas tentar postular que qualquer daquelas realidades afasta, no caso concreto, a especial censurabilidade e perversidade que a correspondência dos factos aos indícios padrão logo sugere, quando o que sobra, vista a conduta em causa, é uma sua inusual brutalidade gratuita ou quase, um assassinato sanguinário, não passa, sempre guardado o respeito devido, de uma longa mas fruste tergiversação com a avaliação que a comunidade e o legislador, seu intérprete, não podem deixar de fazer sobre o caso. Insistimos: uma fria e sangrenta brutalidade, para mais gratuita ou quase, reveladora de um chocante desprezo pela vida humana, tudo em termos que são o cerne mesmo da afirmação das especiais censurabilidade e perversidade. Ainda aqui decididamente, a punição tem de ter lugar nos quadros do tipo qualificado de homicídio, estando fora de questão que por preenchido se desse apenas o tipo base.”

Perante esta narrativa dos tribunais recorridos, defende-se o recorrente pela desqualificação.

E constrói em seu favor a seguinte argumentação:


“Foi no contexto de medo do seu pai, de ascendente psicológico deste, que se revela claramente em submissão, e não subordinação, que ocorreram os factos. Estamos a falar de um jovem de 19 anos que, ao longo da sua vida, foi educado para obedecer intransigentemente à vontade de seu pai, conforme resultou demonstrado. O qual, num quadro de tensão extrema, conforme ordenado pelo seu pai, disparou indiscriminadamente sobre a infeliz vítima. Ora, como acima tivemos oportunidade de referir, e decorre da diversa literatura analisada, é precisamente em situações de tensão extrema que uma vítima de violência infantil, perde a capacidade de discernimento. O Tribunal a quo considerou que o Recorrente se limitou apenas a cumprir uma ordem do seu pai, contudo, e com o devido respeito, isso é uma forma minimalista de analisar a situação. No caso sub judice, estamos perante factos praticados por um jovem de 19 anos, motivados pela conduta coativa e de domínio do seu pai, que lhe provocavam limitação clara na capacidade de decisão. É portanto, no modesto entendimento da defesa, manifesto que atento o modo como os factos ocorreram, a idade do Recorrente, o ascendente psicológico do seu pai, o homicídio em causa, no que ao Recorrente diz respeito, não pode configurar uma especial censurabilidade ou perversidade, isto porque, conforme o Tribunal a quo reconheceu o Recorrente agiu num estado de medo do seu pai, BB, que sobre si exercia ascendente psicológico, costumando obedecer e assim aderir às ordens de seu pai.”


A tensão extrema em que o Recorrente foi colocado pelo seu pai, o ascendente psicológico que tinha sobre este, associados ao comprovado medo que o mesmo tinha, à sua tenra idade, 19 anos, marcada por uma infância e adolescência de maus tratos físicos e psicológicos, os quais, como está cientificamente demonstrado condicionam e afetam irremediavelmente as capacidades cognitivas, nunca pode ser considerado que agiu por motivo fútil.


E o mesmo se diga quanto à alegada frieza de ânimo. Da matéria de facto dada como provada resulta que o Recorrente não teve qualquer intenção perpetrada de matar a infeliz jovem. Sendo certo que, o disparar da arma surge no seguimento de toda a tensão vivenciada num momento de profunda perturbação, de revolta e raiva. No caso sub judice os factos precipitaram-se de um momento para o outro sem que existisse qualquer reflexão, num comportamento de segundos.


Num, momento, como o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra reconheceu, de tensão extrema e transe. Não estamos, portanto, perante uma formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo cauteloso, calmo na preparação e execução, toda a dinâmica dos factos vai em sentido diverso.


(…)”

Deste complexo argumentativo resulta desde logo que o recorrente continua a confundir e a repetir as coisas, afirmando uma realidade que de todo não se provou como insiste em expôr, na esteira de como fez em relação com a pretendida caracterização do homicídio privilegiado.

Não é verdade que se retire, literal ou sequer interpretativamente, da factualidade assente, que se tenha provado que:


-Foi no contexto de medo do seu pai, de ascendente psicológico deste, que se revela claramente em submissão, e não subordinação, que ocorreram os factos;


-Num quadro de tensão extrema (…) disparou (…)”


-Estamos perante factos (…) motivados pela conduta coativa e de domínio do seu pai, que lhe provocavam limitação clara na capacidade de decisão.


- “Como o Tribunal a quo reconheceu o Recorrente agiu num estado de medo do seu pai”.


- A tensão extrema em que o Recorrente foi colocado pelo seu pai”.


- O Recorrente não teve qualquer intenção perpetrada de matar


- O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra reconheceu, de tensão extrema e transe.


Ora, estas afirmações, sobretudo nos segmentos sublinhados, não constam dos textos decisórios de facto nem da motivação neles exarada.


A acção do arguido sem motivo de relevo ou minimamente compreensível num caso que nem sequer o envolvia e só porque o pai lhe pediu para disparar, sobre uma jovem ainda mais jovem que ele próprio, aparentemente por causa de uma dívida de montante sem significado importante, assumindo indubitavelmente uma ressonância ética de peso muito negativo, inaceitável, sem o mínimo de justificação.


Acerca da caracterização da futilidade do motivo, a configuração que lhe foi dada a quo é a que tem correspondido similarmente na jurisprudência corrente e com acerto, de que são exemplos os casos infra citados:


“(…) sendo motivo fútil aquele que não se pode razoavelmente explicar ou justificar, sem qualquer tipo de valor ou em que este se mostre insignificante ou irrelevante- Ac. STJ de 7-12-2011, CJ (STJ), 2011, T.III, pág.227


-Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo «frívolo, leviano, a ninharia» que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente desadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática- Ac. STJ de 18-01-2012


- O motivo fútil tem sido caracterizado pela jurisprudência como o motivo frívolo, leviano, ou mesmo o motivo que não tem qualquer relevo, o que não chega sequer a ser motivo. Ac. STJ de 18-09-2013


-O conceito de «motivo fútil» assenta numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade.


- O vector fulcral que identifica o «motivo fútil» não é, pois, tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva.


Ac. STJ de 19-02-2014


- Motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, fundado num profundo desprezo do valor da vida humana, que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta, sendo frívolo e revelador da desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou”


Aqueles critérios fundantes da “futilidade de motivo” como “(…) não se poder razoavelmente explicar ou justificar (…);inadequação e desproporcionalidade; insensibilidade; particularmente reprovável e incompreensível; profundo desprezo (…) etc, resultam com evidência de ambas as decisões em causa como demonstrados e assentam em interpretações correntes, válidas e consensuais na jurisprudência, tendo sido adequadamente aplicadas às constatações de facto provadas. Resulta pois da acção do arguido uma motivação enormemente desproporcionada e um acentuado desprezo pela vítima segundo as “concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, pesadamente gratuita” (4)


No que se atém à frieza de ânimo:


Embora o preceito neste segmento historicamente se tenha construído à volta da reflexão prévia e sobretudo da chamada premeditação (5) , temos de retirar da matéria de facto que, (vide pontos 14 e 15) se não houve evidência de um acto previamente pensado e elaborado e tendo até em conta que houve um momento de discussão entre pai e filho (na circunstância da indicação de quem mataria a vítima) o facto de o arguido, ainda assim, mesmo que se aceitasse por hipótese que tivesse demonstrado indecisão, atirou à queima roupa disparando cinco vezes e também deixando a vítima abandonada à sua sorte revela uma “inusual brutalidade gratuita, um assassinato sanguinário” (na expressão do acórdão recorrido) elevada intensidade de desejo de morte e, pelo desprezo inerente que acompanhou a sequência de disparos, uma elevada capacidade de frieza de ânimo e de ponderação concomitante à execução do desejo transmitido pelo pai. Essa atitude e modo de agir revelam assim, implicando-a, uma especial censurabilidade face à inerente perigosidade da personalidade do arguido.


Por isso, entendemos dever manter as aludidas duas qualificativas do homicídio em causa, soçobrando também aqui o recurso interposto.


2.3.3- A circunstância agravante do art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições não pode ser aplicada em virtude de o homicídio ter sido qualificado pelo uso da arma?


Desde logo, esta afirmação da defesa não é exacta pois a qualificação do homicídio operou nos termos mencionados segundo aquela tipificação das circunstâncias “frieza de ânimo e motivo fútil”. A agravação da moldura, já por si qualificada no art.º 132º nº 1 e 2 e) e j), opera a partir da intervenção normativa do art.º 86, nº3 do RJAM:


“3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.”


Neste conspecto, lembramos de imediato, a apreciação, acertada, do TRC:

“(…) A primeira nota que esta redacção da norma impõe é no sentido de que à agravação são estranhas considerações de concreta culpa do agente; o legislador, tomando o uso de arma como um factor agravante da ilicitude, assinalou um correspondente aumento de pena a esse dado objectivo, e isso resulta ainda mais claro quando só exceptua do dito efeito os casos em que o uso da arma já é elemento do crime em causa ou em função dele já estiver prevista agravação das penas dele. Nesta vertente, a oposição do recorrente ao decidido, aliás desconsiderando a todavia evidente circunstância de não ter havido lugar a punição autónoma por crime detenção/uso de arma proibida (que se não entendeu cabalmente preenchido), passa essencialmente pela insurgência contra uma alegada valoração dúplice, e por isso indevida, do inequívoco emprego da arma de fogo: com ele é que já teriam sido considerados verificadas as circunstâncias agravantes da culpa do art.º 132.º, n.º 2, als. e) e j), do CP, e por isso seria ilegítimo com ele chegar-se também à agravação. Salvo o devido respeito, uma tal linha argumentativa simplesmente falseia em jeito grosseiro a realidade. O que serviu para preencher aqueles conceitos de motivo fútil e de frieza de ânimo, foi no primeiro caso a futilidade do motivo (mera obediência ao pai) e a frieza de ânimo (uma actuação brutal e muito além do necessário para causar a morte mas que virtualmente a assegurava). O uso de arma de fogo foi para isso absolutamente irrelevante, bastando notar que se em lugar de empregá-la ele se tivesse servido de uma faca, de uma enxada, de um bastão, de um tijolo ou do que fosse, o resultado seria exactamente o mesmo – uma actuação marcada pela quase gratuitidade e, não obstante, pela brutalidade dos cinco ataques, que não seria menor se porventura desferidos com qualquer desses objectos alternativos ou outros que pudessem cogitar-se. Breve, sem já sequer contar com num caso ser a culpa o que releva e noutro ser a ilicitude, dizer que o uso da arma (no caso, de fogo) fora já determinante para a qualificação do crime, por isso impedindo a agravação, como faz o recorrente, mostra-se, sempre com o devido respeito, um abuso linguístico com que se desvia da realidade do processo. E o afastamento do argumento implica, só por si, total prejuízo da arguição de inconstitucionalidade da norma dos art.º 86.º, n.º 3, do RJAM, e 132.º, n.º 2, do CP, se interpretados no sentido de consentir esse dúplice efeito do uso da arma, por suposta violação dos art.º 2.º e 29.º (este sem indicação de número…) da CR; discutível como fosse essa consequência, certo e decisivo é que no acórdão recorrido se não surpreende aplicação das normas com uma tal dimensão interpretativa.

(…)”


Ora, in casu, é claro e evidente que o porte ou uso de arma não foi elemento do concreto tipo de crime nem a lei previu agravação mais elevada dentro do tipo qualificado em função do uso ou porte de arma. A agravação de mais 1/3 ( ou seja, em concreto, passando de um mínimo de 12 para 16 anos) opera, contudo, apenas sobre esse limite mínimo de 12 anos de prisão, já que o máximo (25 anos) estaria sempre atingido com a qualificação do homicídio” e em face do limite imposto pelo art.º 41º nºs 2 e 3 do CP.


Por isso, parece-nos espúrio e sem fundamento ou razão lógica a afirmação contida na defesa sobre uma dupla agravação.


2.3.4 - Deve ser aplicado o art.º 4.º do Regime Penal dos Jovens Delinquentes (Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro)?


Considera o recorrente, tenho em conta os factos de natureza socio-familiar provados, no que diz ser arrependimento e confissão relevante bem como ter agido numa idade muito jovem (19 anos) que existe uma prognose favorável à sua recuperação na abrangência contida no DL 401/82.


Em primeiro lugar, sendo certo que o arguido agiu com idade inferior a 21 anos, não se mostra de todo expressivo que se manifestasse arrependido, ainda que tenha contribuído, mas mitigadamente, para o apuramento dos factos, assumindo porém uma constante atitude de desculpabilização. Depois, embora primário à data dos factos, foi condenado, dois meses depois por crimes ocorridos poucos meses antes, em pena de multa.

a) No âmbito do Proc. 22/21.8..., do Juízo de Competência Genérica da ..., por decisão de 13/12/21, foi condenado pela prática, em 10/03/21, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €;

b) No âmbito do Proc. 81/21.3..., do Juízo Local Criminal de ..., por decisão de 14/12/21, foi condenado pela prática, em 10/07/21, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, nº 1, al. d) , da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

Trata-se de ilícitos criminais que tiveram uma expressividade censurativa de muito menor importância e bem diferente da ressonância ético-jurídica da contida e discutida no caso dos presentes autos de recurso mas significa pelo menos que o arguido teve entretanto contacto com o sistema de justiça.

De todo o modo, atentemos ao que a instância recorrida (TRC) refectiu a propósito deste segmento:


“(…) iii. Da aplicabilidade ou não do regime penal especial para jovens


“(…)


É pois com essa moldura de dezasseis a vinte e cinco anos de prisão em pano de fundo que importa agora ponderar se deve ter lugar, como o recorrente sustenta, ou não, como decidiu o tribunal recorrido, a atenuação especial prevista pelo art.º 4.º do DL 401/82, de 23/09 – que aprovou o Regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, adiante apenas RPEJ), atenuação da qual resultaria, enfim, e de acordo com o art.º 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, uma moldura final entre o mínimo de três anos e quatro meses de prisão (os dezasseis reduzidos a um quinto), e um máximo de dezasseis anos e oito meses (os vinte e cinco reduzidos de um terço).


3.50. O que a abordagem inicial ao problema impõe, é que essa atenuação, nos termos do dito art.º 4.º, do REPJ, tendo como pressuposto primeiro e formal uma idade do agente entre os 16 e os 21 anos (pressuposto que se verifica), apresenta-se ao tribunal como um dever, e não uma mera faculdade, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.


Por outras palavras, não é, e absolutamente nada consente que como tal se entenda, uma consequência necessária e automática da mera verificação daquele pressuposto formal, antes reclamando a conclusão pela verificação de um pressuposto material que, embora menos apertado e até com foco não coincidente com os genericamente previstos no art.º 72.º, n.º 1 e 2, do CP, o tribunal terá de apurar a partir da verificação dos factos e com um juízo de prognose sobre a evolução futura do recorrente. E a este respeito, consignou-se no acórdão recorrido (de novo o fazemos aqui presente):


« (…)


Ponderando a imagem global do facto (de elevadíssima gravidade), entendemos não ser de aplicar tal atenuação especial, pois não se descortinam sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. »


3.51. Tem de reconhecer-se algum laconismo da ponderação do tribunal recorrido, no fundo limitada à afirmação de se não descortinarem razões sérias para concluir que a atenuação especial da pena resultassem vantagens para a reinserção social do recorrente, mas na verdade essa afirmação de ausência de razões corresponde a uma avaliação correcta das coisas, o que sempre deixaria muito pouco a dizer. É bem certo, como se tira da norma, que no caso da atenuação do art.º 4.º do RPEJ, se cura apenas de assegurar a satisfação de exigências de prevenção especial positiva, de ressocialização, aceitando aqui o legislador, em homenagem à juventude dos visados e ao particular esforço que a respectiva reintegração reclama da comunidade, que possam até ficar por cumprir satisfatoriamente o que nos termos gerais seriam as exigências mínimas de prevenção geral, isto é, que as expectativas comunitárias de reafirmação da efectiva vigência da norma penal tenham de nestes casos bastar-se com menos, coisa de resto compreensível à luz daquela juventude do condenado, que sempre aumenta as possibilidades de sucesso da reintegração que a pena (também) visa – e quanto à medida da culpa sendo de todo estranha à equação. Simplesmente, considerações desta ordem, indiscutivelmente correctas como são, não podem é ser levadas ao ponto de tornar afinal a juventude do condenado em factor de desencadeamento necessário e automático da atenuação.


3.52. Sempre terá de haver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, como proclama a lei, e isso implica desde logo três coisas: uma, que o horizonte do problema se define com o correcto sentido da reinserção pretendida; outra, que o juízo a fazer, consistente no prescrutar de realidades futuras, e portanto sempre sujeito a uma considerável margem de incerteza, não podendo exigir-se inteira segurança de conclusões, seja ainda assim estribada em motivos racionalmente escrutináveis e, sobretudo, sérios, isto é, especialmente qualificados para formar a convicção sobre aquela reinserção e as vantagens que a atenuação lhe faculte; e outra enfim, que esses motivos hão-de em todo o caso assentar na factualidade disponível segundo adquirida no processo, porque só o conhecimento do passado e do presente pode ser a premissa sobre que a razão formule prognósticos, de outra maneira reduzidos a alvitres decisionistas.


3.53. E assim postas as coisas, como cremos que devem ser, comecemos por sublinhar que o objectivo não é cumprido com o mero regresso à vida em liberdade, que obviamente a atenuação facilitaria, tornando-o mais pronto. Essa seria uma visão redutora do objectivo de reinserção social do condenado, que é sim o da sua reintegração na comunidade como cidadão obediente ao direito. Tendo isto presente, logo se alcança que central será saber se pode assumir-se no condenado uma medida já significativa de capacidade crítica sobre os factos, passível de dar consistência à expectativa de cabal interiorização do desvalor da conduta, e uma personalidade intimamente predisposta à efectiva condução da vida futura naquela conformidade com o direito, que consolide a convicção de ser menor a necessidade da pena como motor disso. Não sendo o caso, a atenuação que aqui se pondera simplesmente não deve ter lugar, sob pena de afinal ser meramente premial da juventude, coisa indevida porque frustrante dos fins das penas e mesmo injusta para a comunidade e suas expectativas, em particular para a vítima e os que lhe sejam mais próximos.


3.54. O recorrente, concitando a esse respeito os factos provados sob 35 a 56, o que da motivação da decisão de facto consta sobre as suas declarações a respeito dos factos, e até as suas declarações mesmas no que tange a como os sente, procura estribar a sua pretensão àquela atenuação com apelo às atribulações do seu percurso de vida enquanto criança e adolescente, especialmente marcado pela disfuncionalidade da relação do pai consigo, e bem assim à confissão, ao arrependimento, ao comportamento adequado que vem tendo em meio prisional e ao apoio familiar (da mãe) de que goza. Pensamos que, compreensivelmente embora, nisso encarece demasiada e injustificadamente o que pudesse favorecê-lo, desviando-se dos correctos critérios de formação do juízo de prognose no sentido correspondente. Na verdade, a sua confissão foi em boa verdade nada mais do que o reconhecimento de ter sido quem matou a vítima, sobre ela desfechando os tiros, coisa que aliás e em face da prova disponível seria fruste negar ou sequer calar, e em todo o caso acompanhado da construção de uma narrativa exculpatória cujos termos são em si mesmos a demonstração de não ter sequer começado a interiorizar, minimamente, o profundo desvalor da sua conduta: entende mesmo que deveria ser absolvido, por actuar em estado de necessidade desculpante, uma vez que só matou outra pessoa (outra jovem) por o pai o ter a isso pressionado…


3.55. E com o que antecede não é apenas à putativa confissão que descartamos neste plano o valor, é também ao alegado arrependimento, que entende ter ficado plasmado na declaração de “às vezes até pensar que mais valia o meu pai me ter dado o tiro, assim acabava este sofrimento, e este terror todo que eu tenho passado”. Lamentamos observá-lo, mas isto que diz traduzir profundo e sincero arrependimento, de que “desejar estar no lugar da vítima” seria o acabado penhor, dizemos nós ser é focado em si mesmo, sem uma palavra para a pessoa que matou e seus entes queridos, uma declaração totalmente autocentrada, em discurso no qual prossegue a tomar-se como vítima, como sujeito de “sofrimento” e “terror” (que assim não hesita em expropriar à vítima e seus pais!), tudo funcionalizando ao objectivo exculpatório da narrativa (a incluir uma suposta ameaça séria do pai de alvejá-lo a si), sempre esquecendo que no fim a arma estava na sua mão e foi ele o senhor do facto, o decisor último da morte de outrem. Aliás, bem se percebe, a esta luz, é que as supostas confissão e arrependimento a que se agarra, em boa verdade nem mesmo os tivesse o tribunal recorrido levado ao elenco dos factos provados (sem que nisso especificamente houvesse impugnação da decisão de facto sequer), pois que não pode deles falar-se, muito menos como relevante exteriorização de reconhecimento do desvalor da conduta e autocrítica por ela; bem ao contrário, o recorrente deixou absolutamente claro que está firme no entendimento de a sua actuação lhe não ser sequer censurável, de ter feito o que nas circunstâncias tinha de fazer ou, pelo menos, de não lhe ser exigível que tivesse feito outra coisa!


3.56. Contra isto, tomamo-lo por evidente, acabam por nada relevar, como potencial fundamento de um juízo de prognose favorável à atenuação especial do art.º 4.º do RPEJ, as atribulações do percurso de vida do recorrente, difíceis como foram, o apoio familiar (materno) de que dispõe ou ainda o comportamento regular que em meio prisional vem assumindo: nem têm peso bastante para sobrepujarem o que se afigura já claro ser uma personalidade refractária à interiorização da responsabilidade criminal pela própria actuação (apesar da máxima gravidade desta), nem, em todo o caso bastariam, por si sós, para considerar já em qualquer medida como que aberto o caminho para torná-la mais receptiva a uma tal interiorização. Enfim, seria certamente razoável considerar que ao estado actual dessa personalidade, manifestada nos factos e na postura sobre eles assumida, teria o recorrente sido conduzido mais pelo modelo educativo (chamemos-lhe isso…) de que a seu tempo foi vítima do que por uma má condução própria do seu desenvolvimento pessoal, e assim que, afastado do exemplo e do ascendente do pai, se mostrassem algo mais promissoras as expectativas de genuína reinserção social; e contudo, o que vimos já é que grande parte do problema actual do recorrente, e mesmo a maior, radica na sua aparente incapacidade de perceber a gravidade do desvalor da sua conduta.


3.57. Acresce, não o esqueçamos, que a primariedade do recorrente, indiscutível enquanto ausência de condenações anteriores aos factos aqui em apreço, não pode camuflar que em última análise tinha já antes deste cometido outros dois crimes, um de condução de veículo sem habilitação e outro de detenção de arma proibida. Nada impede considerá-los quando se trata de ajuizar sobre a hipótese de atenuação especial, e com efeito considerando, o certo é que, passando por alto o de condução sem habilitação, com o devido respeito revela-se algo esdrúxulo classificar o de detenção de arma proibida, como o faz o recorrente, de “bagatela penal”. A verdade é que se não vê como em si mesmo havê-lo desse modo, mas menos ainda e no que ao caso concreto importa, quando se tratou afinal de menos de três meses antes de matar a vítima a tiro ter já praticado um crime de detenção de arma proibida (arma diversa que fosse), coisa que à luz de todo o mais contexto reforça, e em muito, a percepção da já de si grande perigosidade pessoal do recorrente e a dita impreparação grave para reconhecer o desvalor das suas acções.


3.56. Concluindo, sob o dito laconismo do acórdão recorrido nesta matéria, jaz uma insofismável verdade: nada nas circunstâncias do caso e nas características pessoais do recorrente pode isolar-se como motivo sério para crer que da atenuação especial prevista pelo art.º 4.º do RPEJ resultassem vantagens para a reinserção social dele, que por isso não é devida e, pelo contrário, no contexto da elevadíssima gravidade dos factos, de que não parece interiorizar de forma minimamente significativa o desvalor, se revelaria sumamente prejudicial ao cumprimento das finalidades preventivas gerais, causando dano severo na expectativa comunitária de reafirmação da efectividade da vigência da norma, sem nenhum particular ganho no cumprimento dos fins de prevenção especial que o pudesse justificar. Naturalmente, também nisto improcedem as argumentações de recurso, não se lobrigando no decidido violação alguma da norma do art.º 4.º, do RPEJ.”


Pelas razões indicadas, optou-se assim por afastar a atenuação pela aplicação do RPEJ e, sobretudo, porquanto :


“(…) no contexto da elevadíssima gravidade dos factos, de que não parece interiorizar de forma minimamente significativa o desvalor, se revelaria sumamente prejudicial ao cumprimento das finalidades preventivas gerais, causando dano severo na expectativa comunitária de reafirmação da efectividade da vigência da norma, sem nenhum particular ganho no cumprimento dos fins de prevenção especial que o pudesse justificar.”


Avultou ainda:


“(…) a percepção da já de si grande perigosidade pessoal do recorrente e a dita impreparação grave para reconhecer o desvalor das suas acções” (…) focado em si mesmo, sem uma palavra para a pessoa que matou e seus entes queridos, uma declaração totalmente autocentrada, em discurso no qual prossegue a tomar-se como vítima, como sujeito de “sofrimento” e “terror” (que assim não hesita em expropriar à vítima e seus pais!), tudo funcionalizando ao objectivo exculpatório da narrativa (a incluir uma suposta ameaça séria do pai de alvejá-lo a si), sempre esquecendo que no fim a arma estava na sua mão e foi ele o senhor do facto, o decisor último da morte de outrem.(….)


O Tribunal recorrido ponderou, e bem, ao discorrer sobre a avaliação da possibilidade atenuativa através daquele regime especial, a necessidade de “(…) no prescrutar de realidades futuras, e portanto sempre sujeito a uma considerável margem de incerteza, não poder exigir-se inteira segurança de conclusões (…) bem como que “(…) considerações desta ordem, indiscutivelmente correctas como são, não podem é ser levadas ao ponto de tornar afinal a juventude do condenado em factor de desencadeamento necessário e automático da atenuação (…)”


Ora, sabemos pois que o art.º 9.º do Código Penal estatui que aos maiores de 16 anos e menores de 21 anos são aplicáveis normas fixadas em legislação especial, cuja justificação consta do preâmbulo do Código Penal:


“Esta ideia corresponde, por um lado, à consciencialização do que há de arbitrário - mas não intrinsecamente injusto - na determinação de certa idade como limite formal para distinguir o imputável do inimputável. É justamente para atenuar os efeitos deste corte dogmático e praticamente imprescindível que se vê com bons olhos um direito de jovens imputáveis que vise paredes meias, nos princípios e nas medidas protectivas e reeducadoras, os fins do direito de menores. Mas, se esta seria, já por si, uma razão que levaria ao acatamento legislativo daquele direito para jovens imputáveis, outras motivações e razões mais arreigam a nossa convicção. Salientem-se não só as que decorrem dos efeitos estigmatizantes que este direito acarreta como também - em conexão com aquelas sequelas e no seio deste ramo do direito - a maior capacidade de ressocialização do jovem se que se abre ainda para zonas não traumatizadas, como tal perfeitamente lúcido e compreensivo às solicitações justas e adequadas da ordem jurídica."

Instituído um regime especial através do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23.09, estatuíram-se no seu preâmbulo os objectivos pretendidos, isto é, sempre que possível e adequado às exigências concretas de prevenção especial e geral, se optar, relativamente aos jovens imputáveis, por medidas ou sanções que, tendo em conta o processo real de desenvolvimento do jovem, promotoras da sua responsabilização e socialização, sem os riscos evitáveis de efeitos de estigmatização e de marginalização (sempre empobrecedores para o indivíduo e para a comunidade) frequentemente ligados às medidas institucionais, designadamente às penas de prisão.

A sua aplicabilidade não assume carácter obrigatório; ou seja, é possível aplicar ao jovem maior de 16 anos pena de prisão sempre que tal se torne necessário para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade.

O art.º 4.º do diploma dispõe que se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal - actualmente, após a revisão do CP, a remissão deve ser efectuada para os art.ºs 72º e 73º -, sempre que subsistirem sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, mediante a formulação de juízo que assente em factos concretos que apontem num e noutro sentido.

Para além da idade, importa considerar as circunstâncias do crime, a personalidade do jovem delinquente, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as suas condições de vida onde se incluem condições pessoais, familiares e profissionais, que permitam, além do mais, apurar se é ou não sensível à aceitação dos valores tutelados pelo direito penal.

Pois bem.

O arguido posicionava-se ainda dentro da faixa etária que possibilita a atenuação especial prevista para jovens (entre os 16 e os 21 anos) tendo 19 anos à data dos factos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não tem sido uniforme quanto ao sentido da aplicação deste regime. As posições dividem-se: por um lado, no sentido de que a atenuação deveria operar sempre perante a juventude do condenado salvo em presença de factores negativos; pelo outro, no sentido de que a atenuação não deveria acontecer a não ser em presença de circunstâncias positivas a acrescer à juventude do condenado (v. Souto Moura, in A jurisprudência do STJ sobre fundamentação e critérios de escolha e medida da pena, Revista do CEJ, nº 13, pp. 112-113).


Orientamo-nos para a posição de que “a aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos não constitui uma faculdade do juiz mas, antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos; a aplicação é tanto obrigatória como oficiosa”.

“Ela constitui o regime regra aplicável a todos os arguidos que estejam compreendidos nas categorias etárias que prevê, verificados os pressupostos que condicionam a sua aplicação; constitui no rigor um regime específico e não um regime especial.

É o que resulta do art.º 2.º do D.L. 401/82” (acórdão do STJ de 07.11.2007, rel. Henriques Gaspar).

Este regime específico de jovens, ou regime-regra para jovens, não deixa, no entanto, de ser de aplicação não automática.


Exige, concomitantemente, a ponderação dos factos em conjunto com a personalidade do jovem condenado, dado que é pressuposto fundamental que existam sérias razões que convençam que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social. Estamos pois perante um poder-dever vinculado e não uma faculdade, mas não de aplicação automática.

Acompanhamos assim de muito perto e em síntese o acórdão do STJ de 31.3.2011 (rel. Raul Borges) (…) “não se dispensando a equacionação da pertinência ou inconveniência da sua aplicação, devendo ser fundamentada a não aplicação”.

Na estruturação do juízo de ponderação são prementes razões de prevenção especial positiva ou de reintegração social do arguido jovem. Contudo, elas não podem deixar de estar igualmente subordinadas às exigências de prevenção geral. Ou seja, tem de haver razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social do jovem delinquente, e sempre sem prejuízo das necessidades de prevenção geral.


Na verdade, o preâmbulo do D.L. n.º 401/82 exprime a aplicação - como última ratio - da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a 2 anos”.


No acórdão afastou-se a aplicação do regime, pelas razões já transcritas e que não se torna necessário repetir.


No que respeita aos factos que concretamente relevam para a culpabilidade, está em causa um crime de elevadíssima gravidade praticado com um grau de dolo intenso e uma energia criminosa de ampla ressonância ética implicando uma censura com peso e fortemente assertiva.


A punibilidade do crime atinge o máximo previsto no ordenamento jurídico penal. Das concretas condições pessoais do arguido retira-se que embora tenha um ambiente familiar com algum suporte de apoio, carece porém de forte acompanhamento no seu processo de ressocialização. A sua “dependência” do pai esbate-se mais facilmente com o afastamento do mesmo o que irá permitir certamente uma atenuação dos efeitos educacionais negativos. Mas estes actuaram ao nível da sua formação e personalidade desde criança. O arguido revela desadequação social, escolar e profissional desde muito cedo. Apresentou um percurso escolar com dificuldades de aproveitamento a partir da adolescência, concluíu o 9º ano de escolaridade com 14 anos de idade, inscreveu-se no 10º ano na escola ..., em ..., grau de ensino que não concluiu por ter reprovado três anos consecutivos. Estava inactivo há vários meses, sendo o seu sustento assegurado pela mãe, empregada num hotel da região, que aufere um vencimento equivalente ao salário mínimo nacional. Portanto, uma debilidade económica contida e sem grandes perspectivas. AA assumiu que neste período atravessava uma fase de instabilidade emocional, principalmente devido aos consumos regulares de haxixe e cocaína.


No estabelecimento prisional começa a apresentar maior estabilidade mas não aceita ser necessário tratamento à sua toxicodependência.


Contudo, é consabido que os estabelecimentos prisionais dispõem de um conjunto de respostas dirigidas às necessidades específicas de reclusos com problemas de natureza psicológica e também em caso de dependência de consumo de estupefacientes.


Os problemas de personalidade revelando já uma certa frieza na acção e a desvalorização de importantes bens jurídicos como a vida de outrém, ainda por cima uma jovem ainda mais jovem que ele, um percurso como o dos autos já sofrido apontam para enormes reservas de prognóstico de ressocialização. O arguido não revelou sinais de inequívoco arrependimento.


Reagiu à detenção com oposição física aos agentes e fuga subsequente. Continuou, nas palavras do acórdão recorrido, a estar “focado em si mesmo, sem uma palavra para a pessoa que matou e seus entes queridos, uma declaração totalmente autocentrada, em discurso no qual prossegue a tomar-se como vítima, como sujeito de “sofrimento” e “terror” (que assim não hesita em expropriar à vítima e seus pais!), tudo funcionalizando ao objectivo exculpatório da narrativa (a incluir uma suposta ameaça séria do pai de alvejá-lo a si), sempre esquecendo que no fim a arma estava na sua mão e foi ele o senhor do facto, o decisor último da morte de outrem (…)”.


Assim, as expectativas de uma atenuação pelo regime especial para jovens não são sólidas nem consistentes, e não assentam em razões sérias, convincentes, sendo certo que não podemos olvidar “o contexto da elevadíssima gravidade dos factos, de que não parece interiorizar de forma minimamente significativa o desvalor, (…) sumamente prejudicial ao cumprimento das finalidades preventivas gerais, causando dano severo na expectativa comunitária de reafirmação da efectividade da vigência da norma, sem nenhum particular ganho no cumprimento dos fins de prevenção especial que o pudesse justificar.(…)”


Ou seja, para concluir então derradeiramente que não há evidência de razões sérias para acreditar que a atenuação possa ter em si um efeito ressocializador operante já que é a partir do próprio arguido que se deduz uma personalidade e comportamento do qual não se consegue vislumbrar que apresente uma alteração minimamente convincente em se querer e até conseguir sequer a médio prazo pautar-se por uma perspectiva de mudança sobre a desvalia irreversível que causou com a morte da ofendida.


Neste conspecto concordamos totalmente com a logicidade da narrativa seguida na fundamentação do tribunal recorrido.


Improcede também por aqui o recurso.


2.3.5 – A pena aplicada é excessiva ?


Como vimos o arguido foi condenado em 21 anos de prisão dentro de uma moldura que partiu de um mínimo de 16 anos até um máximo de 25 anos de prisão.


A pena concreta situou-se no patamar intermédio em co-autoria com seu pai.


A acção do mesmo foi intensa, mais interessada e até revelando uma atitude de desprezo pelo próprio filho, ainda na força da juventude.


Num relação de equivalência, nota-se aqui alguma desproporcionalidade, não repugnando que, não obstante a não intervenção atenuativa do regime especial para jovens antes enunciado, se mitigue um pouco a pena concreta aplicada fazendo apelo exactamente à juventude do arguido e ao seu menor grau de maturidade, dando algum ensejo a uma mais rápida ressocialização e readaptação social ainda em idade disso passível.


O tribunal a quo considerou que não era possível dizendo:

“(…)

3.57. Dando enfim por assente que é por um crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. pelos art.º 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. e) e j), do CP, e 86.º, n.º 3, do RJAM, que o recorrente tinha de ser condenado, a pena concreta correspondente há-de achar-se dentro da já referida moldura de dezasseis a vinte e cinco anos de prisão, e neste pano de fundo o que desde logo sobressai é que a determinada pelo tribunal recorrido, de vinte e um anos de prisão, se situa apenas algo acima da linha média daquela moldura, dada pelos vinte anos e seis meses.

Nunca será demasiada a insistência em que a graduação das penas não pode ser um mero exercício de matematismo, mas também não pode perder-se de vista que o objectivo das molduras abstractas é precisamente facultar uma escala de mínimos e máximos em que, segundo os respectivos patamares de gravidade, hão-de determinar-se aos concretos factos as sanções que proporcionadamente lhes caibam, de tal sorte que os limites mais elevados se reservem aos casos de mais gravidade e os mais baixos aos que a tenham menor – tendencialmente se situando uma pena aproximadamente na linha mediana quando mediana se dever apreciar aquela gravidade, sem prejuízo da adequada consideração da culpa do condenado como concreto limite máximo absoluto, do imprescindível à satisfação das exigências de prevenção geral como concreto limite mínimo, e do necessário à satisfação das de prevenção especial como ponto óptimo dentro dessas balizas, para o efeito tendo em conta os específicos factores relevantes (tudo em conformidade com os art.º 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, n.º 1, do CP, e nisso).

3.58. Partindo daí, formemos desde logo o que nos parece ser a melhor descrição global da essencialidade dos factos: o recorrente e mais dois indivíduos, jovens os três mas capitaneados por um quarto que era o pai daquele, levaram consigo uma outra jovem (então com ainda 18 anos de idade) para um lugar relativamente ermo, de noite, a fim de aí a pressionarem ao pagamento de suposta dívida, presuntivamente contraída em aquisição de estupefacientes àquele capitão desse grupo; ali com efeito lhe exigindo o pagamento, e como ela não fizesse menção de pagar de imediato, por não querer ou por não ter como como, tanto monta, pedindo tempo para pagar, o dito pai do recorrente, que estava armado com arma de fogo, manifestou a vontade de que que ela fosse morta e instou o recorrente a com efeito matá-la, pressionando-o nesse sentido e estendo-lhe a mão com a dita arma, para que lhe pegasse e a usasse para matar a rapariga; o recorrente, que tinha medo ao pai e sobre quem este tinha ascendente, mostrou-se de início renitente, discutiu até essa ordem, mas acabou por, obedecendo, pegar na arma; e de posse dela, apontou-a à cabeça da vítima e a uma distância entre 1 e 1,5 m disparou cinco tiros sobre a respectiva cabeça, sendo que quatro a atingiram fronto-lateralmente, no parietal esquerdo, e um posteriormente, no occipital, de tudo vindo a com efeito resultar a morte; na sequência, ausentaram-se os quatro, deixando a vítima prostrada e ainda a agonizar.

3.59. Com o maior sintetismo que logramos, foi isto; e isto, que à comunidade não pode inspirar senão viva repugnância (medimos a palavra) e mesmo seriíssima insegurança, parece com efeito mais um relato tirado da filmografia sobre as infelizmente bem difundidas barbaridades dos cartéis mexicanos, do que um crime real que pudesse esperar-se numa comunidade relativamente tranquila e pacífica. Ilustrações à parte, o que transmite é uma violência e desprezo pela vida humana verdadeiramente surpreendentes, e não podemos senão imaginar o grande terror que, ela sim, terá sentido a infeliz vítima, e o sofrimento que passam e longamente passarão, eles sim, os pais dela, com terem desse jeito perdido a jovem filha. Tudo isto, claro está, vem a propósito de sublinhar o elevado grau da ilicitude do facto, medido desde logo por ser o culminar de um outro objectivo primeiro, que era já à partida ilícito (verdadeiramente, e como mencionámos, dando corpo a uma extorsão – art.º 223.º, n.º 1, do CP), com evidentes reflexos na acentuação das exigências de prevenção geral e da culpa do recorrente, esta além disso, e sendo o dolo directo, agravada também pela evidência de que a qualificação do crime se verifica a dois diferentes títulos (futilidade do motivo e frieza de ânimo, cabendo nas als. e) e j) do n.º 2 do art.º 132.º do CP), apenas ligeiramente a atenuando a tensão a que o pai o submetera, com o ascendente de que sobre ele gozava e com o medo que ele lhe tinha.

3.60. E se o panorama é desolador pelo que respeita às exigências de prevenção geral e à culpa, ambas consideravelmente elevadas, não fica muito melhor quando se ponderem as exigências de prevenção especial. Neste plano, sem dúvida militam a favor do recorrente a sua juventude, desde logo, e bem assim o afastamento do pai e dos respectivos maus exemplos e ascendente, facilitando a reversão do seu passado de disfuncional submissão, de resto actualmente com apoio da mãe; como ainda, e apesar de tudo, conceda-se, a confissão parcial, e por último e em bom rigor a primariedade, no estrito sentido de que à data dos factos não tinha ainda sido penalmente censurado por crime algum. Todavia, avultam em desfavor dele, muito impressivamente de resto, a já referida incapacidade de assunção crítica do desvalor da acção e suas justas consequências, com persistente construção de narrativa exculpatória, mesmo contra a mais elementar evidência, e a mais disso a constatação de que o seu percurso de vida vinha já há muito sendo desviante: com a comissão daqueles crimes por que depois veio a ser condenado, e isso no contexto de um quotidiano de ociosidade, tendo deixado de estudar mas não trabalhando, vivendo às custas da mãe e sendo consumidor habitual de cannabis e cocaína, acompanhando pessoas com o mesmo estilo de vida e o pai, de quem apesar de lhe inspirar medo recebia drogas e por fim acatou ordem de matar terceiro como se outra coisa lhe não fosse exigível – tudo a revelar não somente a completa ausência de uma qualquer medida relevante de arrependimento, como também grave impreparação para manter conduta lícita.

3.60. Temos pois, ponderadas as circunstâncias relevantes à luz do art.º 71.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e) e f), do CP, serem elevadas a culpa e as exigências de prevenção geral, e não serem significativamente menores as de prevenção especial, o que, à luz dos art.º 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, n.º 1, do CP, não apenas justifica a pena determinada pelo tribunal recorrido, de vinte e um anos, como até, e assumindo uma irredutível margem de imprecisão nestas coisas, continuaria porventura a justificar uma pena que tivesse algo mais elevada. Breve, não vê no decidido violação daquelas normas, apresentando-se improcedente a argumentação com putativo desequilíbrio e mesmo desproporcionalidade da pena, também nisto devendo ser negado provimento ao recurso, com a consequente manutenção da pena que no acórdão recorrido foi achada.”

Não obstante a correcta análise que antecede e que sufragamos, não deixa de ser impressivo que, além de alguma diferenciação da responsabilidade do mandante pai (de paradeiro, aliás, desconhecido) se possa encontrar ainda na definição da pena concreta uma margem de alguma esperança e oportunidade, colocando a acção do arguido num plano com culpa ligeiramente menor que a daquele ( “o capitão dos factos”), dando mais ênfase aos aspectos positivos ainda alcançados, usando aqui as palavras do tribunal :“militam a favor do recorrente a sua juventude, desde logo, e bem assim o afastamento do pai e dos respectivos maus exemplos e ascendente, facilitando a reversão do seu passado de disfuncional submissão, de resto actualmente com apoio da mãe; como ainda, e apesar de tudo, conceda-se, a confissão parcial, e por último e em bom rigor a primariedade, no estrito sentido de que à data dos factos não tinha ainda sido penalmente censurado por crime algum.”


Nestes termos, ponderando os factos e a personalidade do arguido no seu conjunto, as exigências de prevenção geral e especial, consideramos suficiente, adequada e proporcional apenas uma pena de prisão a situar nos 18 (dezoito) anos.


III- DECISÃO


3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente provido e, mantendo embora a condenação nos termos mencionados, altera-se a decisão recorrida apenas quanto ao quantum da pena concreta, reduzindo-a, fixando-a em 18 (dezoito) anos de prisão.


Lisboa, 26 de Outubro de 2023


Os Juízes Conselheiros


(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (art.º 94º do CPP)


Agostinho Torres- (Relator)


Leonor Furtado (1ªadjunta)


Eduardo Sapateiro (2º adjunto)


__________________________________________________

1. vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95↩︎

2. Sobre a génese deste artº 133º do CP, por todos, vide págs 81 a 89, de Margarida Sousa Pereira/ Amadeu Ferreira, in Dto penal II-Textos- Os homicidios , Lições ao 5º ano jurídico 1996/97, Ed AAFDL, 1998.↩︎

3. Sobre a questão da natureza dos conceitos-tipo “emoção violenta e restantes enunciados no artº 133º do CP, e a sua colocação somente ao nível da matéria de facto e do entendimento objectivo com que devem ser tomados, sem intervenção de valorações jurídicas, vide op. cit. de Margarida Pereira, págs. 84 e 85. E também, a pags 94 e ss in Homicídio Privilegiado, Amadeu Ferreira, Edª Almedina,1996; vide ainda Teresa Serra, Jornada de Dto Criminal, Vol II. Ed CEJ, 1998, págs 158/168.↩︎

4. Na expressão de Figueiredo Dias in Comentário.., Tomo I, pag 32, §13 in fine, 1999.↩︎

5. Ibidem, Fig Dias, op cit, pag 39, §38 e 39.↩︎