Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
37/23.1YFLSB
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDTO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
EXTEMPORANEIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/ RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Os mecanismos dos impedimentos, recusas e escusas têm em vista garantir a imparcialidade do juiz. Concretizando, os impedimentos consistem nos fundamentos objetivos previstos nos arts. 39.º e 40.º, do C.P.P., e, por sua vez, as recusas e escusas têm por base os motivos não típicos que no caso concreto integram a cláusula geral consagrada no art. 43.º n.º 1, obstando à intervenção de um juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II. Ora, no caso sub judice, estamos perante um pedido de recusa de um arguido relativamente a uma Senhora Juíza Desembargadora, que interveio, como adjunta, num recurso que correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa e que, por acórdão proferido, de forma unânime, em 21/12/2022, rejeitou o seu recurso.

III. Porém, constata-se dos elementos constantes dos autos, que o arguido requereu, em 01/02/2023, naquele Tribunal da Relação, o incidente de recusa da referida Senhora Juíza Desembargadora.

IV. Nesta conformidade, considerando o estatuído no art. 44.º, do C.P.P., tal pedido é extemporâneo, uma vez que não foi requerido até ao início da Conferência, ou seja, antes da decisão coletiva das Senhoras Desembargadoras.

V. Termos em que, fica, deste modo, prejudicado o conhecimento das razões invocadas pelo requerente e rejeita-se, por intempestividade, o pedido de recusa em apreço.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O Senhor Advogado AA, arguido no processo que correu termos no Tribunal da Relação de ..., ... Secção, sob o nº 4500/20.8... veio requerer, nos termos do art. 43.º, do C.P.P., incidente de recusa da Senhora Juíza Desembargadora BB, que interveio como 2.ª Adjunta naqueles autos, com os seguintes fundamentos, que passamos a transcrever:

1.º Em 9/12/2022, o A. interpôs recurso, do despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de ... - Juiz ..., notificado em 16.05.2022, que rejeitou, por extemporaneidade, o Requerimento de Abertura de Instrução que apresentou.

2.º O Recurso foi distribuído à 3ª Secção do Tribunal da Relação de .... Relatora: MM.ª Senhora Desembargadora, Dr.ª Adelina Barradas de Oliveira 1.ª Adjunta: MM.ª Senhora Desembargadora, Dr.ª CC 2.ª Adjunta: MM.ª Senhora Desembargadora, Dr.ª BB

3.º Em 21/12/2022, foi proferido Acórdão, que rejeitou o recurso interposto em 9/12/2022. Sucede que,

4.º O A. é patrono do estágio da Ordem dos Advogados, de uma Advogada-estagiária, filha da Senhora Desembargadora Dr.ª. BB, 2.ª Adjunta.

5.º O A. apenas constatou tal facto, após ser notificado do Acórdão supra referido.

6.º Consequentemente, em 01.02.2023, suscitou incidente de recusa no Tribunal da Relação de .... O qual foi indeferido, com fundamento no esgotamento dos poderes jurisdicionais daquele Tribunal.

7.º Ora, o processo irá ter continuidade noutras instâncias e naturalmente poderá ser suscitada a questão da eventual imparcialidade do julgador, relativamente ao A., em razão de ser patrono da filha da Senhora Desembargadora Adjunta.

8.º Mais poderá, no âmbito do presente processo, ser um Recurso interposto distribuído á Senhora Desembargadora, Dr.ª. BB. Ora,

9.º Nos termos do art. 43.º, do CPP, a intervenção do juiz num processo pode ser recusada, ou pode ser autorizada a escusa por ele pedida, quando houver o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, em favor ou desfavor de um qualquer interveniente processual.

10.º Como se refere no Ac. do STJ, de 9/ 11/ 2011 (P. 100/11.1YFLSB.S1): «Embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições» (n.º 4 do preceito).

11.º Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz; como os impedimentos, tem uma função de garantia da imparcialidade (…).

12.º A escusa constitui um dos instrumentos reativos, uma das vias para atacar a suspeição.

13.º Há suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que existe um motivo sério e grave suscetível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz se este vier a intervir no processo.

14.º Nos termos do art.º 6.º C da Lei n.º 21/85 de 30/07, “Os magistrados judiciais, no exercício das suas funções, devem agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir.”

15.º E, por outro lado, atento o facto de a razão para recusa, por superveniência de risco de ser considerada suspeita, por ocorrer motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade é um expediente sério, tanto mais que dele resulta a afetação do princípio sagrado e inalienável, com dignidade constitucional, no art.º 32.º n.º 9, da CRP, do juiz natural, enquanto manifestação do direito de defesa.

16.º Conforme refere a Decisão do Tribunal Constitucional com o proc. 227/97: "A Constituição portuguesa impõe aos próprios órgãos e agentes administrativos que actuem, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (art. 266º, nº 2). Se esta imposição se aplica a órgãos e agentes administrativos, fácil é de compreender que os juízes, titulares dos órgãos de soberania que são os tribunais, hão-de necessariamente agir subordinados ao dever de imparcialidade, visto que as suas funções de "dizer o direito" implicam naturalmente a sua independência e a sua imparcialidade (art. 205º, nºs 1 e 2). Só assim se poderá assegurar o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13º da Constituição).»

17.º A imparcialidade é, assim, uma condição e qualidade estrutural da função de julgar.

18.º O conceito de "tribunal imparcial" vem sendo associado pela doutrina e jurisprudência nacionais, na esteira do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a uma dupla dimensão composta pela: - imparcialidade subjectiva [depende de motivos pessoais e do foro íntimo do juiz, no fundo visase averiguar se o juiz esconde qualquer razão para favorecer uma das partes]; - imparcialidade objectiva [depende de circunstancias relacionais ou contextuais objectivas susceptíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria em causa]."

19.º É precisamente a inexistência desta imparcialidade subjectiva da Senhora Desembargadora Dr.ª. BB, 2.ª Adjunta, que impedia que a mesma decidisse o recurso, e a impede de, doravante, intervir no processo,

20.º O A., que até à data da prolação do Acórdão, ignorava que a Senhora Desembargadora integrasse a seção criminal, e fosse adjunta no processo.

21.º A Senhora Desembargadora não suscitou a respetiva escusa.

22.º O facto de a Senhora Desembargadora ser mãe de uma advogada estagiária que tem o arguido como patrono, constitui claramente uma situação que pode suscitar dúvidas sobre a imparcialidade, a independência e a seriedade dos intervenientes processuais e suscitar dúvidas sobre situações de favor ou de desfavor.

23.º Estabelece o n.º 3 do artigo 41º que: «Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo».

24.º Do que resulta que o Acórdão, assim proferido, por juiz recusado, é nulo, de nenhum efeito, com as devidas consequências processuais e legais.

Termos em que, deve ser declarado o impedimento da Senhora Desembargadora Dra. BB, de intervir nos autos, devendo em consequência, ser declarada a nulidade do Acórdão.

2. Notificada a Senhora Juíza Desembargadora visada para se pronunciar sobre o requerido, nos termos do disposto no art. 45.º n.º 3, do C.P.P., a mesma veio dizer, através de requerimento de 18/10/2023, que efetivamente tinha aprovado e assinado o mencionado acórdão, ignorando, porém, que o recorrente era o patrono do estágio da sua filha.

Mais refere que, ainda que fosse do seu conhecimento, tal não teria interferido na sua opinião sobre a sua adequação e legalidade.

Todavia, não se opõe à concessão da recusa solicitada, neste processo ou em qualquer outro em que o Senhor Dr. AA seja interveniente, não porque isso interfira no exercício da sua função de julgar, mas para sossego do próprio e dos demais intervenientes processuais.

3. Submetidos os autos à Conferência, cumpre, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Como é sabido, os mecanismos dos impedimentos, recusas e escusas têm em vista garantir a imparcialidade do juiz.

Os impedimentos consistem nos fundamentos objetivos previstos nos arts. 39.º e 40.º, do C.P.P., e, por sua vez, as recusas e escusas têm por base os motivos não típicos que no caso concreto integram a cláusula geral consagrada no art. 43.º n.º 1, obstando à intervenção de um juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Ora, no caso sub judice, estamos perante um pedido de recusa de um arguido relativamente a uma Senhora Desembargadora, que interveio, como Adjunta, num recurso que correu termos no Tribunal da Relação de ... e que, por acórdão proferido, de forma unânime, em 21/12/2022, rejeitou o seu recurso.

Conforme se constata dos elementos constantes dos autos, o arguido requereu, em 01/02/20231, naquele Tribunal da Relação, o incidente de recusa da referida Senhora Juíza Desembargadora.

Nesta conformidade, considerando o estatuído no art. 44.º, do C.P.P., tal pedido é extemporâneo, uma vez que não foi requerido até ao início da Conferência, ou seja, antes da decisão coletiva das Senhoras Desembargadoras2.

Em consequência, fica, deste modo, prejudicado o conhecimento das razões invocadas pelo requerente.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar, por intempestividade, o presente pedido de recusa da Senhora Juíza Desembargadora, nos termos e para os efeitos solicitados.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 25 de outubro de 2023

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Sénio Alves (Adjunto)

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1. Neste Tribunal, deu entrada em 15/6/2023, tendo sido reencaminhado, em 16/6/2023, para o TR… .

2. Cfr. nesse sentido as anotações no Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de Paulo Pinto de Albuquerque (Org.), Vol. I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pg. 157, e os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 25/1/2015, do qual é relator o Senhor Conselheiro Manuel Augusto de Matos, no Proc. n.º 10/11.2JALRA.C1.S1, e de 24/1/2023, relator o Senhor Conselheiro António Latas, Proc. n.º 299/22.1YRPRT-A.S1-A, ambos in www.dgsi.pt.