Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | SECÇÃO CONTENCIOSO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | JUIZ PROCEDIMENTO DISCIPLINAR SUSPENSÃO INFRAÇÃO DISCIPLINAR SANÇÃO DISCIPLINAR SUSPENSÃO DE EXERCÍCIO PRESCRIÇÃO VIOLAÇÃO DE LEI CONTRADIÇÃO FUNDAMENTAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 07/04/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | AÇÃO ADMINISTRATIVA | ||
Decisão: | JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE A ACÇÃO. | ||
Sumário : |
I- Nos termos do n.1 do art.83º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais (com a redação introduzida pela Lei n.67/2019, entrada em vigor em janeiro de 2020), o direito que ao CSM cabe de instaurar procedimento disciplinar caduca passado um ano sobra a data em que a infração tenha sido cometida. II- Antes da entrada em vigor do art.83º-B do EMJ idêntica solução era aplicável às infrações cometidas por magistrados judiciais por remissão para o art.178º, n.1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (a qual fala em prescrição da infração disciplinar). III- Na ausência de norma transitória, às infrações disciplinares cometidas antes da entrada em vigor do art.83º-B do EMJ aplica-se o art.178º da LGTFP. IV- Tendo os factos imputados ao autor ocorrido em 2014 e 2015 e tendo o CSM instaurado procedimento disciplinar em 2020, o direito de instaurar esse procedimento disciplinar já se encontrava prescrito, pelo que a deliberação que sancionou o autor com base em tais factos tem de ser anulada, quanto a essa matéria, por vício de violação de lei. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.22/21.8YFLSB Autor: Juiz Desembargador AA Entidade recorrida: Conselho Superior da Magistratura Ato impugnado: Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de ... de ... de 2021, que (na sequência do processo disciplinar nº 2020/05/PD) aplicou ao Juiz Desembargador AA, pela violação continuada e muito grave dos deveres de imparcialidade e de prossecução do interesse público, previstos, no art.º 6º-C do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, e nos artigos 73º, n.º 2, alíneas a) e c) e nºs 3 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, ex vi artigos 83º-E e 188º do mesmo EMJ, a sanção disciplinar de 120 (cento e vinte) dias de suspensão de exercício; e suspendeu o procedimento disciplinar relativamente à matéria constante dos factos provados sob o ponto IV, alíneas a) a f), respeitantes à cedência do uso e fruição do espaço físico do Tribunal da Relação... para funcionamento de um Tribunal..., até decisão da autoridade judiciária competente no inquérito NUIPC 16/20.0... Acordam na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA, juiz Desembargador, propôs a presente ação administrativa, com base nos artigos 166º e 169º do EMJ e artigos 192º e 78º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, impugnando a Deliberação do Conselho Superior da Magistratura, de ........2021, supra referida. O autor pediu, em síntese, que fosse julgada «procedente a excepção da prescrição, ou se assim não se entender, procedentes as nulidades invocadas, ou se assim não se entender, provada e procedente esta acção quanto à inexistência de infracção disciplinar, tudo com as legais consequências, revogando-se a deliberação do Plenário do CSM de .../.../2021, ordenando o arquivamento do processo disciplinar na sua totalidade e condenando o demandado a repor a legalidade, com restituição do Autor à situação em que se encontraria sem essa deliberação, nomeadamente, com a devolução de vencimentos e restantes quantias devidas.» 2. O Conselho Superior da Magistratura apresentou contestação, sustentando a improcedência da ação, com as inerentes consequências legais. 3. O autor apresentou ainda diversos requerimentos solicitando a junção aos autos, pela entidade recorrida, de vários documentos. 4. Findos os articulados, foi proferido despacho, em ........2023, que, considerando que o processo já continha os elementos suficientes para o Tribunal conhecer das questões da causa e que já se mostrava plenamente assegurada a discussão de facto e de direito, dispensou a realização de audiência prévia, com os fundamentos que se expuseram nesse despacho. Dados os vistos, cumpre apreciar e decidir. * II. SANEAMENTO: O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território. A petição inicial não é inepta. O processo é o próprio e é válido. As partes têm capacidade e personalidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas. III. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA AÇÃO São as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente: 1. Saber se existe prescrição da infração disciplinar ou caducidade do procedimento disciplinar (artigos 36.º a 51.º e artigos 71.º a 91.º da petição inicial); 2. Saber se existe vício de violação de lei, alicerçando-se tal invocação: - na ilícita introdução de alteração substancial de factos na deliberação impugnada (artigos 52.º a 70.º da petição inicial); - na ilicitude da decisão de suspender o procedimento disciplinar no segmento atinente à realização de julgamento de Tribunal... nas instalações do Tribunal da Relação... (artigos 91.º a 108.º e 117.º da petição inicial); - na omissão de pronúncia sobre factos vertidos na defesa apresentada (artigos 145.º, 146.º e 165.º a 172.º da petição inicial); - na preterição do direito de defesa sobre a sanção disciplinar aplicada (artigos 173.º a 179.º da petição inicial); - na ofensa aos princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade em sentido amplo (artigos 180.º a 182.º da petição inicial); - na ofensa ao princípio da igualdade (artigos 4.º a 27.º do articulado junto a 31 de março de 2022). * IV. FUNDAMENTOS DA DECISÃO 1). A factualidade assente: Com relevo para a apreciação das questões suscitadas, dão-se como assentes os seguintes factos: 1. O processo n.º 755/13.2... foi distribuído no dia ... de ... de 2014 no Tribunal da Relação.... 2. O processo n.º 244/11.0... foi distribuído no dia ... de ... de 2015 no Tribunal da Relação.... 3. Em ... de ... de 2020, deu entrada nos serviços do Conselho Superior da Magistratura certidão remetida pela Sra. Procuradora Coordenadora do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, e extraída do processo n.º 19/16.0..., da qual consta que o Sr. Desembargador BB foi interrogado por factos relacionados com a distribuição manual do processo n.º 1/05.2... no Tribunal da Relação... e do processo referido no ponto n.º 1 deste elenco, os quais consubstanciariam a prática, como co-autor, de um crime de corrupção, pp. pelo artigo 26.º, pelo n.º 1 do artigo 373.º e pelos n.º 2 e 3 do artigo 374.º - por referência à alínea b) do artigo 202.º - e de um crime de abuso de poder, pp. pelo artigo 26.º e pelo artigo 382.º, todos do Código Penal. 4. Em ... de ... de 2020, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura deliberou «(…) instaurar processo disciplinar ao Exmo. Sr. Juiz Desembargador, Dr. AA, pelos factos constantes da certidão remetida pela Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta Coordenadora do Ministério Público, extraída dos autos de processo de inquérito crime n.º 19/16.0... que deu entrada neste CSM em .../.../2020 e pelos factos constantes do relatório elaborado pelo Exmo. Sr. Inspetor Judicial Extraordinário (…) datado de .../.../2020, no âmbito da averiguação sumária a irregularidades na distribuição de processos no Tribunal da Relação... (…)». 5. Em ... de ... de 2020, o Sr. Inspetor Extraordinário nomeado no âmbito do procedimento disciplinar mencionado no ponto n.º 4, remeteu aos serviços do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça participação contra o Autor, a qual versava sobre factos atinentes à cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação... para realização de julgamento em Tribunal.... 6. A participação referida no ponto n.º 5 veio a dar origem ao inquérito n.º 16/20.0..., tendo nele sido proferido despacho de arquivamento e, subsequentemente, despacho a ordenar a respetiva reabertura. 7. Em ... de ... de 2021, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura tomou a deliberação agora impugnada com os seguintes fundamentos: «(…) III – Apreciação dos requerimentos apresentados pelo arguido: Como vimos, o Senhor Desembargador arguido apresentou diversos requerimentos após a elaboração do Relatório. Ora, estando a actividade do Senhor Inspector Judicial nomeado extraordinariamente limitada à realização das diligências instrutórias necessárias e, findas estas, à elaboração do Relatório, nos termos do disposto no artigo 120º do EMJ (sem prejuízo da participação do instrutor na audiência a que alude o artigo 120º-A do EMJ), todos os requerimentos apresentados posteriormente já não puderam ser objecto de apreciação por parte do Senhor Juiz Conselheiro CC. Impõe-se, assim, a sua análise neste momento, de modo a que a deliberação final do CSM venha ter em conta todas as posições manifestadas pelo arguido no procedimento, independentemente do momento em que foram produzidas. (…) 3. Requerimentos de ... de ... de 2021 No primeiro dos requerimentos apresentados nesta data, o arguido vem alegar que, após ter sido notificado do Relatório Final elaborado pelo Senhor Instrutor, constatou que nele vinha proposta a aplicação de uma sanção de suspensão do exercício de funções pelo período de 200 dias quando, na acusação contra si deduzida, não era proposta “qualquer sanção disciplinar e muito menos indicava os seus fundamentos (…)”, tendo em consequência, ficado “impedido de se defender, exercendo o contraditório, contrapondo factos e oferecendo provas a este elemento fulcral do processo disciplinar, qual seja, a concreta sanção aplicável e a sua adequação, entre outros, à factualidade dos autos e à personalidade do requerente, com o que se mostram e são violados os artºs 32º, nº10, 266º, nº2, 268º, nº4 e 269º, nº3, da Constituição da República Portuguesa”. Alega, também, que “a sanção proposta se mostra de todo desajustada, como, aliás, decorre do relatório do processo disciplinar nº17/2020 (…) no qual, além do mais, pelos fundamentos aí expostos, se propõe uma sanção disciplinar de multa suspensa na sua execução”, alegando ainda que “a aplicação de qualquer sanção de suspensão de funções, não só deveria fixar-se em tempo inferior ao meio da respectiva moldura, como a sua execução deveria ser suspensa por prazo razoável”. Pronuncia-se o arguido, ainda, contra determinadas passagens do Relatório, nomeadamente na descrição que faz das funções por ele anteriormente exercidas, considerando, ainda, que o mesmo não espelha que o arguido foi eleito Presidente do Tribunal da Relação..., repetindo alguns dos argumentos já expendidos na defesa apresentada e concluindo que, actualmente desempenha “a contento de todos” as suas funções de Juiz Desembargador na ... Secção ... daquele tribunal superior. Termina dizendo que “para os devidos efeitos, no exercício do seu direito ao contraditório à sanção agora proposta”, oferecendo cinco testemunhas, “a toda a matéria”, requerendo que as mesmas sejam ouvidas sobre o “requerimento e do capítulo “Medida da Pena” do relatório final, “nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 503º, nº 2, al. c) e 505º, nº 2, do C.P.Civil. Dados os seus termos, este requerimento configura claramente um instrumento de defesa do arguido. Na verdade, no seu requerimento o arguido expõe a sua posição sobre determinados aspectos do Relatório Final, que identifica, nomeadamente os relativos à espécie e à medida da sanção proposta pelo Senhor Instrutor, afirmando o arguido, expressamente, que pretende exercer “o contraditório” sobre esses aspectos, chegando ao ponto de requerer a inquirição de testemunhas relativamente a estas matérias. Ora, como é elementar, o procedimento disciplinar não comporta qualquer fase de defesa, ou de resposta, ao Relatório previsto no artigo 120º do EMJ. A fase de defesa do arguido decorre em fase prévia à da elaboração do Relatório, o qual deve já espelhar a posição do instrutor sobre a mesma, nos termos do disposto nos artigos 118º, 119º e 120º do EMJ. Assim, não tem também cabimento, nesta fase processual, a pretendida inquirição de testemunhas, designadamente a matérias não factuais, como a espécie ou a medida da sanção aplicar. Em procedimento disciplinar, o direito ao contraditório por parte do arguido é exercido após a notificação da acusação, ou nota de culpa, podendo o arguido apresentar documentos e requerer diligências, designadamente a inquirição de testemunhas. No caso dos autos, o direito ao contraditório foi exercido pelo arguido, tendo, no momento próprio e dentro do prazo que lhe foi concedido, apresentado a sua defesa escrita, e requerido a junção de documentos e a inquirição de testemunhas que, aliás, responderam especificadamente aos artigos da defesa indicados pelo arguido, no caso das testemunhas com direito de depor por escrito. Não há, assim, que reabrir a fase da defesa, há muito concluída, não comportando o procedimento disciplinar qualquer fase de contraditório relativamente ao Relatório Final, previsto no artigo 120º do EMJ, pelo que se indefere o pedido de inquirição de testemunhas formulado pelo arguido. Por outro lado, sendo verdadeira a alegação de que a Acusação “não propunha qualquer sanção disciplinar”, verdade é também que não a podia nem devia propor, uma vez que só na fase do Relatório é que o Instrutor do procedimento disciplinar deve propor ao órgão decisor a aplicação de uma sanção concreta, em face dos elementos recolhidos, quer da acusação, quer da defesa. No caso dos autos foi isso, exactamente que sucedeu, uma vez que, na acusação, o Senhor Instrutor se limitou, como lhe competia, a articular discriminadamente os factos constitutivos da infracção disciplinar, as circunstâncias de tempo, modo e lugar da sua prática e os factos que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes, indicando os preceitos legais e as sanções aplicáveis, tudo como preceitua o nº 3 do artigo 117º do EMJ. Seguiu-se a fase da defesa, na qual o arguido exerceu o seu direito ao contraditório, na qual, aliás, foram admitidas todas as provas, documentais e testemunhais apresentadas pelo arguido, não existindo, assim, qualquer limitação aos seus direitos de defesa. No segundo requerimento, apresentado na mesma data, o arguido veio arguir a “omissão de pronúncia” relativamente a um dos requerimentos anteriores que, como vimos, não tem qualquer fundamento, sendo que o pedido de que fosse dado conhecimento de todos os requerimentos e documentos entretanto juntos mereceu decisão favorável do relator, como consta do despacho da mesma data, oportunamente notificado ao arguido (fls. 2551). 4. Requerimento de ... de ... de 2021 Neste requerimento no qual alega que existe “mais uma nulidade” no Relatório final, pelo facto de haver uma “alteração substancial dos factos apresentados na acusação que mereceram oportuna contestação, com grave violação do seu direito de defesa”, manifestando a sua oposição “ao acrescentamento de factos às als. z) e aa), (…) como também se opõe às graves imputações e conclusões que com base nesse acrescentamento o Instrutor já teceu no relatório final (…) requerendo que umas e outras sejam declaradas não escritas e retiradas do processo com as legais consequências”. O pedido do arguido formulado neste requerimento não merece acolhimento, pelas seguintes razões. Primeiro, porque não existe qualquer “alteração substancial dos factos a considerar”. A circunstância de alguns factos dados como provados no relatório não coincidirem, ipsis verbis, com os correspondentes artigos da acusação não significa que tenha havido uma “alteração substancial de factos”, no sentido previsto no artigo 359º do CPP. Quando muito, poderia falar-se numa alteração não substancial dos factos, na acepção do artigo 358º do CPP, uma vez que as expressões que o arguido alude e que não constavam da acusação, não são susceptíveis de poderem ser consideradas substanciais, sendo meros pormenores que, de si, não alteram de forma profunda os factos assentes relativamente aos constantes da acusação. Todavia, embora o Código de Processo Penal seja aplicável subsidiariamente ao processo disciplinar, nos termos do artigo 83º-E do EMJ, tal não significa que todas as regras do processo penal tenham aplicação no processo disciplinar, de forma directa e sem as devidas adaptações. No caso dos autos, as expressões utilizadas na acusação nas alíneas z) e aa) sofreram ligeira correcção, aliás em sentido que entendemos mais favorável ao arguido, em resultado da prova produzida após a acusação, quer resultante da própria defesa do arguido, quer dos elementos carreados de outros processos, nomeadamente através das certidões que foram extraídas de outros processos disciplinares e juntas aos presentes autos. Assim, em conclusão, nem existiu qualquer alteração substancial dos factos que obrigasse a qualquer notificação do arguido, designadamente para efeitos do disposto no nº1 do artigo 358º ou nº3 do artigo 359º, do CPP, sendo que nem todas as normas do direito subsidiário, nomeadamente do direito processual penal devem ser directamente aplicáveis ao procedimento disciplinar, como é o caso das normas contidas nos referidos artigos do CPP. Não se verifica, assim, qualquer nulidade ou motivo para considerar “não escritas” as referidas alíneas do Relatório Final, como vinha peticionado. Apreciados e decididos, no que havia preliminarmente para decidir, os diversos requerimentos apresentados pelo arguido posteriormente à elaboração do Relatório previsto no artigo 120º do EMJ, passa-se à apreciação deste e da respectiva proposta. IV – Apreciação Nos termos do disposto no artigo 120º, parte final, do EMJ, a proposta de deliberação a formular pelo relator ao Conselho Superior da Magistratura pode ser feita por remissão. Assim, ao abrigo desta disposição, dá-se por reproduzido o Relatório de fls. 2362 a 2465 dos autos, que se adopta, com excepção das partes que seguidamente se explicitarão. Principiaremos, no entanto, para melhor sistematização, por transcrever a matéria de facto considerada provada no aludido Relatório e com a qual se concorda, na íntegra. Destarte, considera-se provada a seguinte matéria de facto: I. O Juiz Desembargador Dr. BB, actualmente jubilado, exerceu funções no Tribunal da Relação..., onde foi Presidente desde ... de ... de 2005 até ... de ... de 2016. O Juiz Desembargador Dr. AA exerce funções no Tribunal da Relação... e foi Vice-presidente do mesmo Tribunal desde ... de ... de 2014 até à sua posse como Presidente daquele Tribunal da Relação o que ocorreu em ... de ... de 2016. Renunciou ao exercício do mesmo cargo em ... de ... de 2020. II. Neste Tribunal Superior, como nos demais Tribunais Judiciais, a distribuição de Processos é efectuada por via electrónica, com sujeição à regra da aleatoriedade desde ........2009, data em que entrou em uso no Tribunal da Relação... a aplicação informática "Habilus" para registo e distribuição de processos (conf. artigo 204 e seguintes do Código de Processo Civil). Entrado um processo novo no mesmo Tribunal adquire, além dos algarismos e letras que formam a sua designação, a letra "..." correspondente a "..." e um algarismo que corresponde ao número de vezes que aquele inquérito deu entrada no referido Tribunal da Relação. Nesta conformidade o número "1" corresponde a um processo novo, o "2" a um processo reentrado pela primeira vez, e assim, sucessivamente. Caso o expediente seja apensado ao Processo Principal o sistema acrescenta uma letra aos supra referidos elementos de identificação, "A", "B", a um processo que já esteja a ser tramitado no Tribunal da Relação.... Existem no citado Tribunal mais duas formas de distribuição, nomeadamente a distribuição manual e o sorteio manual. A primeira destas formas corresponde à distribuição de um processo reentrado que o presidente da distribuição decida distribuir ao Juiz Desembargador que tenha já proferido decisão no processo porquanto tal resulta da aplicação das regras de processo civil e processo penal. Nesse caso, surgirá, nas listas de distribuição a indicação "Manual-atribuição" Quanto à segunda forma, trata-se de situações em que é distribuído apenas um processo, sendo que nesse caso. a aplicação informática sorteia o nome do Juiz a quem distribuirá o processo. Nesse caso, surgirá a indicação "Manual sorteio" nas listas de distribuição. III. a) Por decisão proferida pelo Conselho Superior da Magistratura em ... de ... de 2019, e confirmada por decisão da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça proferida em ... de ... de 2020, foi aplicada ao então Juiz Desembargador Dr. DD a pena de demissão em virtude da prática de uma infracção disciplinar, na forma continuada, consubstanciada na violação dos deveres de prossecução do interesse público, no sentido de criação no público de confiança no sistema judicial, de imparcialidade e isenção e, ainda, os deveres de integridade, rectidão e probidade inerentes às funções de magistrado judicial, p. e p. pelos arts 82º 85º nº1, g), 90 º nº2, 95º nº 1 al. b), 96º, 99º e 107º do EMJ e pelo art. 73º nº 2 als. 2 a), b) e c) e nº 3, 4 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), ex vi do art.131 do Estatuto dos Magistrados Judiciais. b) Até à aplicação da pena suprarreferida o Dr. DD exercia funções no Tribunal da Relação.... c) Considerou-se provado naquela decisão que o mesmo Dr. DD consentiu que fossem depositadas nas contas bancárias tituladas por si, e pela sua esposa, elevados montantes provenientes de contas tituladas por terceiro e, também, depósitos em numerário, sem que existisse qualquer justificação legal para tal. d) Parte dos depósitos suprarreferidos foram provenientes de empresas controladas pelo empresário EE (cf. pontos nº 111 a 128 e 148 a 153 da matéria considerada provada em decisão a que se reporta certidão de fls 1510 e seg). e) O mesmo empresário transferiu entre ... de ... de 2012 e ... de ... de 2013 a quantia de 250.000€ para a conta do mesmo terceiro referido em a) a qual foi transferida para as contas do Dr. DD e mulher. f) O referido empresário em ........2012, meses antes de algumas das referidas transferências e depósitos, deu conhecimento ao mesmo Dr. DD, por intermédio de funcionário judicial e antes da respectiva distribuição, do recurso por ele interposto de um acórdão de 1ª instância no processo 1/05 que o condenara a pena de prisão suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento de avultada quantia (cf nºs 167 e 168 de matéria considerada provada na mesma certidão). g) Por solicitação do Dr. DD formulada ao então Presidente do Tribunal da Relação... Dr. BB, e por intervenção pessoal deste, o mesmo processo foi objecto de distribuição manual, à revelia das regras legais que condicionam a distribuição processual de recursos nos Tribunais Superiores. h) Em ... de ... de 2013 foi publicitado acórdão da Relação ... que julgou procedente o recurso do referido empresário e outros arguidos, absolvendo-o. i) Igualmente é certo que, posteriormente, pelo menos em relação a três processos distintos, o então Desembargador Dr. DD, agindo com o mesmo propósito, e sempre à revelia dos deveres que lhe impunham as suas funções, diligenciou no sentido de que os mesmos processos lhe fossem distribuídos como relator ou que fossem distribuídos especificamente a um determinado relator. j) Tais diligências ilegítimas, visando subverter a ordem normal da distribuição, tiveram lugar junto do Presidente do Tribunal da Relação... Dr. BB, solicitando a sua intervenção pessoal. l) Tal aconteceu nomeadamente no processo 755/13.2... (Revista) em que o Dr. DD era autor e réus P..., SA e outros e no qual foi decretada em sede de primeira instância a absolvição dos mesmos réus. m) Tendo sido interposto recurso para o Tribunal da Relação... em ... de ... de 2014 o mesmo Dr. DD solicitou ao Presidente da Relação ... Dr. BB que o referido processo fosse objecto de distribuição manual, o que efectivamente aconteceu por intervenção pessoal daquele Presidente, sendo atribuído como relator ao ora arguido Dr. AA. n) Em ... de ... de 2015 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação..., sendo relator o Dr. AA que, concedendo provimento ao recurso do Dr. DD, condenou a ré ... no pagamento da quantia de 50.000 €. (conf. certidão de fls 1721 e seg). o) Tal decisão foi revogada por decisão do Supremo Tribunal de Justiça de ... de ... de 2017 (conf. certidão de fls 142). p) Em ... de ... de 2015 no processo penal 244/11.0... foi interposto recurso pelos recorrentes FF e outros o qual teve por objecto decisão do Tribunal ... que decretou o arresto preventivo de trinta bens imóveis de avultado valor económico pertencentes àquele primeiro recorrente. q) Fundamentou tal decisão a existência de um juízo indiciário de desvio de dinheiros da conta do ... e do ... em moldes que admitiriam a indiciação dos crimes de abuso de confiança e burla qualificada p.ºp.º nos artigos 217,218 e 205 do Código Penal. r) Também na distribuição deste processo, e a solicitação do Dr. DD, interveio pessoalmente o Presidente do Tribunal da Relação... que, sem que tal atribuição tivesse qualquer fundamento legal, determinou a atribuição manual do mesmo processo àquele Dr. DD. s) Em ... de ... de 2015 foi proferido Acórdão no Tribunal da Relação..., sendo relator o citado DD, concedendo provimento ao recurso e determinando o levantamento do arresto decretado em ... de ... de 2015. t) Igualmente no processo 188/11.5..., em que figuram como recorrentes GG e outros, foi interposto recurso visando a alteração da pena unitária de dez anos de prisão em que o arguido HH fora condenado em sede de primeira instância em resultado do cúmulo jurídico da pena de seis anos de prisão pela prática de um crime de um crime de burla qualificada pº e pº nos artigos 217 nº1 e 218 nº2 alínea c) do Código Penal e da pena parcelar de sete anos de prisão pela prática um crime de branqueamento pº e pº nos termos dos artigos 368 nº1,2, e 3 do mesmo diploma. u) Recebido no Tribunal da Relação... foi determinado por quem que detinha poderes inerentes à presidência do acto de distribuição processual, que o mesmo processo fosse atribuído como relator ao referido Dr. DD através de distribuição manual, sem que existisse qualquer fundamento legal para tal. v) Em ... de ... de 2016 foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação..., em que foi relator o Dr. DD, na qual se diminuíram as parcelares para cinco anos de prisão e a pena unitária para seis anos prisão. Igualmente foi determinado a revogação dos despachos de fls 8301 (ponto 1.2.3, fls 8468 8510, do mesmo acórdão, fls 27), de 11s 12610 (ponto 1.2.4.,fls 12918 a 12928, do mesmo acórdão, fls. 43) e de 11s 13236 a 13237 (ponto 1.2.6., fls 13619 a 13 629, fls 75, do mesmo acórdão), respectivamente, o primeiro, na parte em que foi apreendido o montante de 500.000,00€; o segundo que indeferiu o requerimento no sentido de serem autorizados a movimentar as suas contas bancárias; e o terceiro que determinou a apreensão das quantias, títulos ou outros valores associados às contas bancárias no ..., com os nºs..., após, o trânsito em julgado, deste acórdão. x) Quando ocorreram as distribuições dos processos referidos em III l) p) e t) o ora arguido Dr. AA era, como se referiu, Vice-presidente do Tribunal da Relação... encontrando-se delegada no mesmo a competência para presidir às mesmas distribuições (Documento fls 435). z) A distribuição manual dos processos referidos em III l) e p) nas circunstâncias descritas, e sem qualquer fundamento legal para tal, só foi possível porquanto o arguido, à revelia dos deveres que sobre si impendiam derivados da presidência de tal acto, devendo assegurar a obediência das normas legais aplicáveis, e tendo conhecimento da intervenção pessoal do Dr. BB com o intuito de atribuição ilegal de processos ao então Juiz Desembargador Dr. DD, permitiu que tal acontecesse, sendo certo que tinha conhecimento das irregularidades de que padecia a mesma distribuição. aa) Agiu o arguido de forma voluntária, sabendo que tal atribuição manual, efectuada de forma ilegal e com o seu aval, colocava em causa princípios fundamentais da organização judiciária, como o do juiz natural, bem como afectava valores nucleares dos deveres dos juízes e da sua responsabilidade perante a comunidade como a imparcialidade e independência. IV. a) Igualmente é exacto que em ... 2017 o Dr. AA, na qualidade de Presidente do Tribunal da Relação..., cedeu uso e fruição do espaço físico do mesmo Tribunal para funcionamento do Tribunal... na acção arbitral em que era requerente A..., SA e requerida S..., SA (Documento de fls 375 e seg.) b) Tal imóvel integra um bem do domínio público do Estado e, como tal, está sujeito a regime jurídico próprio. c) O arguido Dr. AA, investido naquela qualidade, não só permitiu que as várias sessões de julgamento, que se realizaram ao longo de um ano, tivessem lugar no salão nobre daquele tribunal, como igualmente anuiu em que a sede do mesmo tribunal ficasse sedeada nas instalações do Tribunal da Relação.... d) O mesmo arguido tinha perfeito conhecimento de que não detinha quaisquer poderes legais que lhe permitissem ceder aquele espaço para uso pelo referido Tribunal... e que, ao agir da forma descrita, beneficiava sem qualquer justificação uma entidade totalmente alheia ao domínio público do Estado. e) Por despacho de ... de ... de 2018 proferido pelo Dr. AA, e ao abrigo do disposto no artigo 10º nº4 da Lei 63/2011, o Desembargador Jubilado Dr. BB foi nomeado para presidir àquele Tribunal.... f) Em sede de constituição de Tribunal... foram fixados os honorários de 700.000 € sendo 40% para o respectivo ... Presidente e 30% para cada um dos restantes. V. a) O Sr. Juiz Desembargador Dr. AA foi ... no ... Curso Especial do Centro de Estudos Judiciários. Exerceu funções no ... entre ...-...-1985 e ...-...-1988; no Tribunal de Comarca ... entre ...-...-1988 e ...-...-1988; nos juízos Correccionais de ... entre ...-...-1988 e ...-...-1990; nos Juízos Cíveis de ... entre ...-...-1990 e ...-...-1992 entre ...-...-1992 e ...-...-1995 exerceu funções no Tribunal do Trabalho....; entre ...-...-1995 e ...-...-2004 exerceu sucessivamente funções como Juiz ... no Tribunal Militar ... e no Tribunal Militar ...; entre ...-...-2004 e ...-...-2005 exerceu funções no ...; entre ...-...-2005 e ...-...-2008 exerceu funções no Tribunal da Relação ...; entre ...-...-2008 e ...-...-2014 exerceu funções como Inspetor-geral da Administração Local. A partir desta reassumiu funções no Tribunal da Relação.... Neste Tribunal foi Vice-presidente desde ... de ... de 2014 até à sua posse como Presidente. b) Foi objecto das seguintes classificações: Bom- Juízos Correccionais de ... De 1989... a 1990... Bom com Distinção-Tribunal da Comarca ... De 1988... a 1988... Muito Bom Tribunal do Trabalho ... De 1992... a 1994... Muito Bom Tribunal do Trabalho ... De 1994... a 1995... Muito Bom Tribunal Militar ... De 1995... a 2004.... c) O Juiz Desembargador Dr. AA exerceu funções como Inspetor-geral da Administração Local (IGAL); Como Presidente do Tribunal da Relação... desempenhou as suas funções com dedicação e empenho, procurando prestigiar e optimizar o funcionamento da Instituição. Desempenhou as funções de: Presidente da Comissão Nacional de ...) entre 1996 e 2008; Vogal da Comissão ...) e da Comissão ...) entre ... 1996 e ... 2004; Membro do Conselho ...) entre de ... de ... de 2008 a ... de ... de 2011, nos termos do disposto no art.º3.°, al. c), da Lei n." 54/2008, de 4 de Setembro; Membro do Conselho Consultivo da Faculdade ... desde ... 2017); Membro do Grupo de ...; Integrou os órgãos nacionais dirigentes da Associação ... ; Portugueses, no mandato de 1994-1996 (doe 23-A, junto com a nota curricular); Foi condecorado pelo Estado ... com a Medalha de D. Afonso Henriques Mérito do ... Classe pelo seu exercício no 1º Tribunal Militar ... o candidato. Foi condecorado pelo Estado ... com a Medalha Militar da Cruz ... classe pelo seu exercício no Tribunal Militar .... V - FUNDAMENTAÇÃO Fixada a matéria de facto com relevância para decisão do procedimento, procedeu o Senhor Inspector Judicial Extraordinário ao respectivo enquadramento jurídico-disciplinar, principiando por analisar e resolver as questões processuais suscitadas pelo Senhor Desembargador arguido na sua defesa. A primeira dessas questões tem a ver com a sucessão de leis no tempo. Na sua Defesa o arguido manifesta-se contrário à solução preconizada pelo Senhor Instrutor na Acusação, alegando que só “depois de ficar julgada, apreciada e decidida a matéria de facto” é que “se pode e deve ser equacionada a questão da lei que menos penaliza o autor desses factos julgados e tidos como provados”. No seu Relatório o Senhor Inspector Judicial Extraordinário trata essa matéria de forma suficientemente clara, e que merece a nossa total concordância (…) No caso vertente, avaliados os dois regimes estatutários sancionatórios, concluiu o Senhor Instrutor que “se em relação ao regime substantivo e em abstracto, a alteração por último verificada não consignou um regime mais favorável susceptível de justificar a sua aplicação, igualmente é exacto que, em termos de direito processual, a nova versão estatutária tem aplicação imediata”, entendimento que, sem necessidade de outras considerações, o Conselho Superior da Magistratura acolhe. A segunda questão processual suscitada na Defesa tem a ver com a caducidade/prescrição do procedimento disciplinar. O arguido vem invocar a prescrição/caducidade do procedimento disciplinar em relação às infracções relativas à distribuição dos processos nº 755/13; nº 244/11 e nº 188/11 e à matéria relativa à cedência de um espaço do Tribunal da Relação... para a realização de um julgamento arbitral, por ter decorrido mais de um ano sobre os factos com referência à data de instauração do procedimento, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 178º da LTFP e artigo 83ºB do EMJ. Relativamente ao segmento da cedência de instalações do TR... para a arbitragem, o arguido alega, ainda, que o direito de instauração de procedimento disciplinar caducou, por terem decorrido mais de 60 dias sobre o conhecimento dos factos, nos termos do disposto no nº 2, do artigo 83º-B do EMJ. Relativamente a estas excepções o Senhor Instrutor esclarece que (…) e que “tal conhecimento deve ser transmitido com a fiabilidade e a consistência necessária que permita formular um desígnio de agir disciplinarmente nos limites daquilo que se pode considerar como uma discricionariedade vinculada” (…). Assim, aplicando a referida jurisprudência ao caso concreto, considera o Senhor Instrutor, em resumo, que “o Conselho Superior da Magistratura apenas teve conhecimento da eventual infracção disciplinar quando os factos que a integram lhe foram transmitidos em toda a sua amplitude, nomeadamente no que toca às circunstâncias de tempo, lugar e modo. Não é uma mera notícia de jornal publicada sem qualquer escrutínio, ou contraditório, que configura tal conhecimento”, motivo pelo qual não se verifica nem a caducidade do direito de instauração de procedimento disciplinar, nem a prescrição deste, conclusão com que se concorda. Todavia, sem prejuízo da concordância acima assumida, a questão da caducidade/prescrição do procedimento disciplinar na parte relativa à cedência de instalações do TR... será apreciada seguidamente, tendo já em conta os elementos juntos aos autos posteriormente à elaboração do Relatório Final, nomeadamente a decisão do Ministério Público de arquivamento do inquérito NUIPC 16/20.0... e a posterior decisão hierárquica da Senhora Procuradora-Geral da República de determinar a reabertura do mesmo. (…) Considera o Senhor Instrutor que “a razão da atribuição de relevância aos prazos prescricionais criminais está ligada a uma maior gravidade dos factos integrativos de infracção disciplinar e não, necessariamente, com a perturbação na sociedade. Alarga-se o prazo prescricional, não pela circunstância de os factos integrarem a prática de um crime, mas pela sua gravidade no plano do exercício das funções” (…) Ora, sem discordar das considerações do Senhor Instrutor no Relatório a este propósito, entendemos que o facto de o Ministério Público ter, inicialmente, arquivado o aludido inquérito NUIPC 16/20.0..., no qual se averiguava, precisamente, a eventual prática de um crime de abuso de poder, consubstanciado em factos também imputados ao arguido na Acusação como constituindo infracção de natureza disciplinar, não podia deixar de ter um peso significativo na decisão a tomar, nomeadamente no sentido de considerar que a autoridade judiciária competente já havia tomado uma decisão segura de que os concretos factos em investigação não integravam a prática de um crime E, partindo dessa premissa, seria de seguir essa posição, também para efeitos disciplinares, o que nos conduziria à conclusão de que o direito de instaurar o procedimento disciplinar, por aqueles factos, teria caducado. Todavia, a posterior decisão da Senhora Procuradora-Geral da República, proferida ao abrigo do artigo 278º, nº1, do CPP, de reabertura do inquérito, veio alterar este ponto de vista, fazendo-nos recuar ao momento em que, na incerteza sobre a posição definitiva da autoridade judiciária sobre a qualificação daqueles factos como crime, se devem considerar os indícios existentes como suficientes para poder considerar aplicável ao caso o prazo, mais longo, previsto no nº3 do aludido artigo 83º-B do EMJ. Assim, consideraram-se provados, quanto a este segmento do procedimento, os seguintes factos: IV) a) Igualmente é exacto que em ... 2017 o Dr. AA, na qualidade de Presidente do Tribunal da Relação..., cedeu uso e fruição do espaço físico do mesmo Tribunal para funcionamento do Tribunal... na acção arbitral em que era requerente A..., SA e requerida S..., SA (Documento de fls 375 e seg.) b) Tal imóvel integra um bem do domínio público do Estado e, como tal, está sujeito a regime jurídico próprio. c) O arguido Dr. AA, investido naquela qualidade, não só permitiu que as várias sessões de julgamento, que se realizaram ao longo de um ano, tivessem lugar no salão nobre daquele tribunal, como igualmente anuiu em que a sede do mesmo tribunal ficasse sedeada nas instalações do Tribunal da Relação.... d) O mesmo arguido tinha perfeito conhecimento de que não detinha quaisquer poderes legais que lhe permitissem ceder aquele espaço para uso pelo referido Tribunal... e que, ao agir da forma descrita, beneficiava sem qualquer justificação uma entidade totalmente alheia ao domínio público do Estado. e) Por despacho de ... de ... de 2018 proferido pelo Dr. AA, e ao abrigo do disposto no artigo 10º nº4 da Lei 63/2011, o Desembargador Jubilado Dr. BB foi nomeado para presidir àquele Tribunal.... f) Em sede de constituição de Tribunal... foram fixados os honorários de 700.000 € sendo 40% para o respectivo ... Presidente e 30% para cada um dos restantes (…) Ora, embora o presente procedimento se tenha iniciado por deliberação do CSM de ... de ... de 2020, e a comunicação prevista no nº 2 do artigo 115º do EMJ tenha sido realizada em ... de ... de 2020 (cfr. fls. 125), a matéria respeitante à cedência de instalações só passou a ser objecto do processo em ... de ... de 2020, data em que o CSM, com base num pedido do Senhor Instrutor de ... de ... de 2020 (fls. 1500), deliberou alargar o âmbito do processo àquela matéria (cfr. fls. 1697). Assim, teremos de concluir que, quando se iniciou o procedimento por factos relativos à cedência das instalações do TR..., já havia decorrido mais de um ano sobre a prática dos mesmos. Mas, ainda que considerássemos que a infracção era de natureza permanente, e que a sua consumação só se verificaria no momento em que cessassem os actos delituosos, a conclusão a que chegaríamos seria a mesma. Ou seja, a de que, quando se iniciou o procedimento com esse fundamento, em ... de ... de 2020, já teria decorrido mais de um ano sobre o momento em que cessou a utilização das instalações, ou seja, em ... 2019. Assim, o direito de instaurar o procedimento por aqueles factos só não estaria caducado em ... de ... de 2020 se o facto qualificado como infracção disciplinar fosse também considerado infracção penal, nos termos do disposto nos nºs. 1 e 3, do artigo 83-B, do EMJ. Ora, sem deixar de ter em conta o princípio da autonomia do procedimento disciplinar relativamente ao procedimento criminal, consignado no artigo 83º do EMJ, e considerando ainda que, nos termos da jurisprudência citada no Relatório pelo Senhor Instrutor, cabe a este Conselho a competência para determinar se o facto qualificado como infracção disciplinar pode ser também qualificado como infracção penal, no caso concreto, mesmo tendo em conta os fundamentos que, a esse propósito, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta junto do STJ utilizou para proferir despacho de arquivamento do inquérito NUIPC 16/20.0..., que aqui damos por reproduzidos (de fls. 127 a fls 141 vº), somos forçados a concluir que o despacho da Senhora Procuradora-Geral da República, proferido ao abrigo do nº1 do artigo 278º do CPP, de ordenar a reabertura do inquérito, veio lançar de novo dúvidas sobre a posição da autoridade judiciária competente sobre se os actos praticados pelo arguido configuram ou não a prática de crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382º do CP e, mais importante, se o Ministério Público recolheu algumas provas sobre a eventual prática desse crime. Desconhecem-se, contudo, os fundamentos do despacho da Senhora Procuradora-Geral da República para determinar a reabertura do inquérito uma vez que, como vimos, a instâncias do relator para conhecimento desses fundamentos, o Ministério Público apenas respondeu que havia sido determinada a sujeição daquele inquérito a segredo de justiça. Esta questão é de particular importância para os presentes autos uma vez que, estando em causa saber se existem ou não provas suficientes para se poder concluir que os factos constantes da Acusação configuram a prática, pelo Senhor Desembargador arguido, de um crime de abuso de poder, previsto no artigo 382º do CP e punível com pena de prisão até 3 anos, ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por outra disposição legal, importa determinar se o prazo da prescrição para efeitos disciplinares será o do processo criminal, nos termos do nº3, do artigo 83-B, do EMJ, que, no caso, é de 15 anos conforme o disposto na alínea a), do nº1, e nº4, do artigo 118º do Código Penal, ou o prazo geral de um ano previsto no nº1 do mesmo artigo. Estando em curso, ainda, inquérito criminal relativamente a estes factos, não deverá o Conselho Superior da Magistratura decidir, desde já, o prosseguimento do procedimento disciplinar por esta infracção ou o seu arquivamento, pelo menos até se conhecerem as provas existentes ou que venham a ser recolhidas naquele inquérito. Na verdade, a finalidade que presidiu ao estabelecimento do princípio da autonomia do procedimento disciplinar relativamente ao procedimento criminal, com consagração normativa no artigo 83º do EMJ, deve ser a de que a instauração do procedimento disciplinar não tem de aguardar a decisão proferida no processo criminal que haja sido instaurado pelos mesmos factos, podendo ser imediatamente instaurado, logo que haja conhecimento (pelo órgão competente) de indícios da prática de infração disciplinar, até porque esta nem sempre configurará também um tipo legal de crime. E tanto assim é que o n.º 2 do art. 83.º do EMJ determina que «quando, em processo disciplinar, se apure a existência de infração criminal, o inspetor dá imediato conhecimento deste facto ao Conselho Superior da Magistratura e ao Ministério Público», a fim de que este desencadeie o competente processo criminal; e o n.º 3 do mesmo artigo estabelece que «proferido despacho de validação da constituição de magistrado judicial como arguido, a autoridade judiciária competente dá imediato conhecimento desse facto ao Conselho Superior da Magistratura», para que este delibere a instauração do competente processo disciplinar (pela secção de assuntos inspetivos e disciplinares do Conselho Permanente ou pelo Plenário, consoante a categoria dos magistrados – arts. 149.º, n.º 1, al. a), 151.º, al a), e 152.º-B, n.º 1, al. b), do EMJ), se o mesmo ainda não houver sido instaurado. Donde resulta que, em qualquer destas hipóteses, passarão a coexistir dois processos, de natureza diversa e por diferentes espécies de infrações, que correrão paralelamente, sem que, «em princípio», o processo disciplinar tenha «de aguardar o desfecho» do processo criminal – como se refere, a dado passo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção do Contencioso) de 30-06-2020 (Proc. n.º 46/19.5YFLSB). Esta interpretação, assente na teleologia da norma, não obsta a que o procedimento disciplinar possa ser suspenso quando, como sucede nos presentes autos, a convicção sobre a matéria de facto não seja formada com base no conhecimento integral dos elementos probatórios que podem contribuir para a descoberta da verdade, mas apenas naqueles que puderam ser recolhidos numa fase incipiente do procedimento disciplinar, com as limitações que são próprias dele, nomeadamente pela limitação dos meios de prova admissíveis. A própria jurisprudência admite que o Conselho Superior da Magistratura tem «a faculdade ou exercício discricionário de suspender o processo disciplinar enquanto decorre o processo-crime» (…). Como muito bem foi salientado nestes acórdãos, apesar de a suspensão do processo disciplinar, nos casos «sub judice», ter fundamento diverso –, «só assim [com a suspensão do processo disciplinar, por parte do órgão que o dirige] se conseguirá, por um lado, prevenir uma indesejável desarmonia, senão mesmo contradição, entre os desfechos alcançáveis nas duas sedes punitivas e, por outro lado, optimizar a atividade probatória com prevalência da investigação criminal em si mais ampla do que a disciplinar e, portanto, com vantagens acrescidas para a defesa do arguido, ainda que com alguns custos de celeridade». Especificamente quanto à utilização em processo disciplinar do material probatório recolhido no processo penal, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (…) não só se pronunciou no sentido de que «a importação probatória penal para o processo disciplinar é admissível, pois é esse o entendimento mais conforme à prossecução do interesse público a que a Administração Pública está constitucionalmente vinculada em qualquer das suas atividades», como ainda sustentou, com todo o fundamento, que «é a própria lei processual penal quem outorga ao direito disciplinar público o uso do material probatório colhido em processo crime, por força do art. 125.º do CPP, subsidiariamente aplicável ex vi do disposto no art. 83.º-E do EMJ: ‘são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei’». Justificar-se-á, assim, a suspensão dos autos quanto a essa matéria, até ser possível ter acesso à prova que venha ser recolhida no âmbito da investigação em curso no processo nº 16/20.0..., proferindo-se decisão apenas quanto à restante matéria objecto dos presentes autos uma vez que, relativamente a esta, existe já uma acusação do Ministério Público no Processo nº 19/16.0..., nomeadamente por crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do CP, a que corresponde, como vimos, um prazo prescricional de 15 anos. A suspensão do procedimento relativamente aos factos relativos à arbitragem, não deverá, contudo, interferir com o normal desenvolvimento do procedimento relativamente aos restantes factos. Assim, a fim de não se criarem situações de tramitação processual que possam entorpecer o normal desenvolvimento do procedimento, deverão autonomizar-se processualmente ambas as vertentes, extraindo-se certidão da parte suspensa, com vista a posterior apreciação e prosseguindo normalmente o procedimento nos autos principais na parte em que se irá deliberar. (…) Nos presentes autos de processo disciplinar, e como se referiu, não está em causa o funcionamento normal, e regular, do Tribunal da Relação... em sede de distribuição processual. O foco dos mesmos situa-se na situação de anormalidade configurada na circunstância de os processos, pelo menos os elencados na acusação deduzida, terem sido indevidamente distribuídos manualmente e por certeza. Na verdade, se um processo é distribuído manualmente, quando deveria ter sido por sorteio, tal só pode derivar de um erro involuntário ou de uma intervenção deliberada com tal intuito. Tal intervenção pode derivar de motu proprio do funcionário incumbido da distribuição ou do cumprimento por parte deste de instruções superiores que lhe foram dadas. Tal matéria está perfeitamente dilucidada neste momento com a assunção pelo então Presidente do Tribunal da Relação..., Juiz Desembargador Dr. BB da responsabilidade da atribuição manual nos processos Adquirido que sobre o Juiz Desembargador Dr. AA incumbia a responsabilidade de presidir à distribuição processual de processos na qualidade de Vice-Presidente com competência delegada a questão que, então, se coloca em termos probatórios é saber se o mesmo tinha, ou não, conhecimento das anomalias verificadas e, com a sua aquiescência, ter admitido, ou avalizado, uma indevida atribuição manual de processos ao então Desembargador Dr. DD. Analisando a prova produzida uma primeira, e evidente, constatação é a de que os depoimentos dos Drs. BB e Dr. AA constante dos autos se contradizem ou, dito por outras palavras, um dos mesmos depoimentos não corresponde à verdade. A decisão dos presentes autos num, ou noutro sentido, tem, necessariamente, como subjacente a atribuição de credibilidade a um daqueles depoimentos. O Dr. BB, admitindo a sua intervenção pessoal ao arrepio da lei, e escudado em pretensas justificações para tal circunstância, vem dizer que o arguido Dr. AA teve conhecimento da indevida atribuição manual ocorrida nos processos. Mais refere que a atribuição do processo 755/13 teve a seu montante uma conversa entre ambos visando aquela atribuição. Relativamente ao processo 244/11 refere que foi o mesmo método já seguido anteriormente. Por seu turno o Dr. AA nega qualquer intervenção nas referidas distribuições manuais e afirma que apenas se apercebeu da existência do referido processo quando o mesmo foi colocado no seu gabinete. Em abono das suas afirmações o mesmo arguido procurou distanciar-se da tarefa de distribuição distanciamento que culmina com a afirmação de que a delegação de competência para tal acto era “meramente de fachada”. Admite, porém, que as dúvidas dos funcionários adstritos à distribuição, nomeadamente a relativa aos processos reentrados no Tribunal da Relação..., eram por si resolvidas no âmbito das suas atribuições. Estamos em crer que os factos relacionados com o processo citado 755/13 constituem um paradigma da dinâmica procedimental seguida. Efectivamente, cabendo ao Dr. AA a tarefa de distribuição processual e, como tal, sendo sua obrigação vigiar a forma como a mesma decorria e com acesso a todas as operações físicas que integrava, não é crível que o então Presidente do Tribunal da Relação... lhe tenha atribuído um processo com a relevância que o mesmo apresentava sem lhe dar prévio conhecimento, sujeitando-se, por tal forma, a uma inevitável reacção por parte do arguido. Porquanto referida pelo arguido a maior atenção dedicada aos processos dotados de uma especial sensibilidade igualmente não é crível que o Dr. AA, ao longo do tempo, não se tenha apercebido da inusitada distribuição manual de processos ao Dr. DD, bem como não tivesse reagido perante a atribuição indevida como relator do processo cível em que aquele era autor, caso tal facto não tivesse a sua aprovação prévia. Sublinhe-se aqui que o processo em causa não só denotava a especial sensibilidade derivada da circunstância de estar em causa uma decisão que afectava um Juiz Desembargador do mesmo tribunal como, também, que uma leitura, mesmo primo conspecto, dos elementos relativos à distribuição permitirem a conclusão de existir uma atribuição por distribuição irregular. É inverosímil admitir, em face da responsabilidade pela distribuição que sobre o arguido impendia, que o Presidente da Relação Dr. BB repetidamente violasse as regras da distribuição, sem conhecimento do arguido, sujeitando-se a uma reacção por parte deste sobre quem impendia a responsabilidade de assegurar a legalidade do mesmo acto. Assim, Face à prova produzida, conferindo-se credibilidade à versão apresentada pelo Dr. BB conjugada com as testemunhas supra elencadas, entende-se que a prova produzida permite concluir que as indevidas distribuições processuais nos processos 755/13 e 244/11, ordenadas por aquele mesmo Dr. BB na qualidade de Presidente foram do conhecimento e tiveram a aquiescência, e aval, do ora arguido Juiz Desembargador Dr. AA. (…) Relativamente ao processo 188/11 em que é arguido GG encontramos objectivamente os seguintes elementos probatórios: - Foi indevidamente objecto de atribuição manual ao então Juiz Desembargador Dr. DD. - A decisão proferida diminuiu de dez para seis anos a pena de prisão aplicada e determinou levantamento de elevadas quantias apreendidas. Considerando os antecedentes em termos de ilegal atribuição processual ao Dr. DD, e enfileirando estes autos exactamente no mesmo tipo de procedimento, é lógico inferir que também aqui existiu uma determinação superior, como em relação aos antecedentes. Todavia, se em relação às distribuições relativas aos processos 755 e 244 existem, em nosso entender, elementos suficientes para indiciar que o arguido Dr. AA permitiu, com a sua aquiescência, a distribuição irregular dos mesmos, já no caso do processo citado não existem elementos objectivos que permitam inferir que também aqui existiu a sua aprovação. Consequentemente, em sede de materialidade que se considera provada, e em consonância com o princípio “in dubio pro reo”, exclui-se o conhecimento pelo arguido da irregular distribuição verificada nos referidos autos relativa àquele processo. Importa, ainda, sublinhar em sede probatória que existe um diferente patamar de intensidade de culpa entre a actuação do Dr. BB na qualidade de Presidente do Tribunal da Relação... e a actuação do arguido como seu Vice-Presidente. Na verdade, se aceitamos as declarações do Dr. BB como fonte nuclear da prova dos factos imputados ao arguido, também devemos considerar a assunção por este da iniciativa das determinações que originaram as distribuições ilegais. Efectivamente, o despoletar de qualquer uma das iniciativas tem a sua génese na conduta do Dr. BB, que foi determinante do procedimento sob censura, sendo certo que o mesmo obteve a aquiescência, expressa ou tácita, do arguido a quem competia presidir à respectiva distribuição.“ Transcreve-se, igualmente, uma síntese do Senhor Instrutor sobre a relevância disciplinar da conduta do arguido: (…) VI - Enquadramento jurídico-disciplinar O enquadramento jurídico-disciplinar da matéria relevante para decisão do presente processo, vertido pelo Senhor Instrutor no Relatório, merece a nossa inteira adesão, motivo pelo qual se efectua a transcrição das suas partes mais significativas, sem prejuízo do princípio, já acima afirmado, de integração do Relatório na presente deliberação, nomeadamente nos termos consentidos e para os efeitos previstos no nº1 do artigo 153º do CPA. “Decorre do art. 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, que constituem infração disciplinar os actos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos princípios, e deveres, consagrados no presente Estatuto e os demais actos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções. É entendimento uniforme da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça que o domínio do direito sancionatório disciplinar, tal como acontece no caso de uma imputação objectiva e subjectiva de um facto contrário ao ordenamento jurídico, ilícito e antijurídico, torna-se necessário, para que seja imputável a um sujeito a prática de um ilícito disciplinar, que: - tenha ocorrido um comportamento activo ou omissivo por parte de magistrado judicial que se traduza numa conduta formalmente desadequada e desconforme a um dever geral de conduta tal como ele se encontra definido e descrito na cartilha estatutária e de funcionamento e desempenho funcional dos magistrados;- que esse comportamento ou conduta revista a natureza de ilícita, ou seja, que ocorre uma situação subjectiva e objectiva de contraditoriedade da conduta revelada ao que está determinado numa norma jurídica relativamente à observância de deveres gerais ou especiais inerentes à função exercida;- que se verifique um nexo de imputação do facto ao agente; e, finalmente, que na substancialidade da conduta ressuma uma censurabilidade, a título de dolo ou negligência. Os deveres profissionais dos juízes são os afirmados pelos artigos 6.º e seguintes do EMJ e, também, por força do art. 83 E do mesmo EMJ, os alinhados no art. 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho). Entre os deveres associados ao exercício das funções de Magistrado Judicial assume uma especial relevância o dever de imparcialidade e o dever de prosseguir o interesse público. A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo, ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. Uma das vertentes da garantia da imparcialidade consubstancia-se no princípio do “juiz natural”. A mesma é a pedra angular sobre a qual se alicerça o princípio do processo justo, aplicável a todos os conflitos sujeitos à administração da Justiça. Quando essa imparcialidade se perde, ou está deteriorada por qualquer razão, todos os restantes elementos que integram aquele princípio não são mais do que meras formalidades que, ainda que se encontrem devidamente cumpridas só contribuem para esconder uma patologia sem solução que afecta toda a noção de justiça A imparcialidade implica a ausência de qualquer determinação, ou desígnio do juiz, para colocar a sua função judicial ao serviço do interesse particular de uma das partes. Efectivamente, a função jurisdicional consiste em proteger os direitos, e interesses das pessoas, por aplicação da lei em cada caso, e a imparcialidade implode quando o juiz tem o desígnio de não cumprir com a lei do caso concreto, mas, violando-a, colocar-se ao serviço de algo e não daquilo que é certo e justo. Falamos, assim, e, essencialmente, no caso vertente de imparcialidade subjetiva a qual se filia na ausência de preconceito subjetivo do juiz e se presume até prova em contrário. Quando é violado tal princípio, a parcialidade daí decorrente é a mais conhecida, temida e reprovada, pelos cidadãos uma vez que representa a perda do ideal de justiça. A violação da imparcialidade acarreta o descrédito dos Juízes e dos Tribunais. (…) Nos presentes autos foram violadas as regras que enquadram legalmente a distribuição processual com vista a uma atribuição a um determinado juiz em função de específicos, e ilegais, interesses. O arguido, de acordo com a convicção firmada através da prova produzida, tinha conhecimento de tal violação e conformou-se com a sua realização, não obstante impender sobre si o dever de presidir ao acto de distribuição e avalizar a sua legalidade. Tal violação tem por consequência directa, e imediata, a própria violação do dever de imparcialidade que impendia sobre o arguido tal como em relação a qualquer Juiz no exercício das suas funções. No caso concreto não se ignora o papel fulcral que desempenhou o então Presidente do Tribunal da Relação.... Porém, como o mesmo refere na sua declaração constante dos autos, tal aconteceu “sempre com conhecimento aos Senhores Vice-Presidentes que, em cada uma daquelas datas assinaram, aliás, as respectivas folhas de distribuição” sendo certo que sobre o arguido recaia o dever de que tal não acontecesse. Face ao exposto a questão que, então, se é a de saber se a infracção cometida pode ser imputada ao arguido a título de coautoria. (…) À face do direito penal português e, nomeadamente do artigo 26 do Código Penal, a teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação. Iniciada por Lobe, e impulsionada essencialmente por Roxin, tem como ponto de partida o conceito restritivo de autor com a sua vinculação ao tipo legal. (…) A coautoria consiste, assim, numa "divisão de trabalho" que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como cotitular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes. No aspecto objectivo, a contribuição de cada coautor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).O necessário subjectivo da coautoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem "actuar todos em cooperação consciente e querida" Um acordo de vontades em que se fixa a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes. Na coautoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Na coautoria várias pessoas dividem as tarefas e na fase executiva cada uma presta a sua contribuição para o êxito o plano comum. Por outro lado, para caracterizar a decisão conjunta não parece bastar a existência de um qualquer acordo entre os comparticipantes - acordo que em regra existe também entre o autor e o cúmplice, - exigindo uns que todos os coautores tenham uma "incondicional vontade de realização do tipo"; - impondo outros que o papel desempenhado por cada um revele objectivamente a sua participação no domínio do facto. Deste último ponto de vista, o essencial residirá então no segundo requisito da autoria: o exercício conjunto do domínio (funcional) do facto. Um domínio funcional do facto que existirá quando o contributo do agente - segundo o plano de conjunto - põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável ã realização do evento intentado, quando, assim, "todo o empreendimento resulta ou falha". (…) Em resumo, é indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. O acordo entre os agentes pode ser expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto. (…) No caso concreto, e em função da materialidade considerada provada, a actuação do arguido, em conjunção de esforços, foi determinante na violação das regras da distribuição na medida em que conscientemente postergou, ou omitiu, os seus deveres como Vice-Presidente do Tribunal da Relação... consentindo, ou permitindo, as determinações ilegais do respectivo Presidente. Se o arguido tivesse cumprido tais deveres que sobre si impendiam podia, e devia, ter obstaculizado a indevida actuação do mesmo Presidente do mesmo Tribunal da Relação. Tivesse observado as suas funções e nunca os processos em causa teriam sido distribuídos da forma discricionária como efectivamente foram.” E, mais à frente, no que respeita á qualificação da conduta ilícita do arguido como omissiva, escreve o Senhor instrutor: “Não se ignora, ainda, que, por alguma forma, o caso concreto convoca o conceito de conduta omissiva. Na verdade, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado o facto abrange, não só a acção, como também a omissão adequada à sua produção. A equiparação da omissão à acção, e, por outro, que a ligação da conduta ao resultado tem que ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de determinado resultado é a que for adequada, ou idónea, para o produzir, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer. Dito por outra forma pode-se concluir que, se um comportamento omissivo provocar um certo resultado típico, é de considerá-lo, para efeitos penais ou disciplinares, como se tivesse sido produzido por acção (ou seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido). A acção omitida encontra-se em conexão legal com o resultado produzido, ou seja, a afirmação de causalidade com a omissão do fazer positivo existe sempre que este acto hipotético tivesse impedido o resultado. Há que afirmar a causalidade quando não é possível imaginar a acção esperada sem que desapareça o resultado (duplex negatio est affirmatio) Para aproximar o mais possível o critério de constatação da causalidade que se em-prega com o fazer positivo, a jurisprudência exige que a acção imaginada evitasse o resultado com uma probabilidade consistente. Sem dúvida que na omissão não é possível exigir, como no fazer positivo, uma certeza absolu¬ta a respeito da causalidade, pois que a sua análise não pode fazer-se em relação a um acontecimento real, mas somente em relação a algo configurado como uma hipótese que se furta todo o cálculo seguro, ou seja, uma causalidade hipotética. Isto significa, que na omissão as conclusões da teoria de causalidade são menos fiáveis que no fazer positivo. Somente quando se constate com probabilidade séria e segura que a acção esperada teria evitado o resultado, haverá que questionar da mesma forma que em relação ao fazer positivo, se a produção do resultado era manifestamente improvável atendendo ao escasso grau de perigosidade da omissão. A questão é, então, determinar de que modo se podem determinar com segurança os deveres de garante decisivos para o direito penal. A classificação tradicional apoia-se na origem dos deveres jurídicos (teoria formal do dever jurídico). Recaindo sobre o arguido o dever de zelar pela legalidade do acto de distribuição processual é manifesto que a omissão de tal dever jurídico dá lugar à mesma censura jurídica do acto praticado por acção.” Quanto à contagem do prazo prescricional, e na esteira do que já atrás se afirmou e decidiu no tocante aos factos relativos à cedência das instalações do TR..., mas agora apenas no que respeita aos restantes factos, afirma o Senhor Instrutor: “Uma das questões suscitadas pelo arguido em sede de defesa incide sobre as características da infracção imputada como de consumação instantânea, ou continuada, o que relevará em termos do cômputo do prazo prescricional. No que concerne, e dado que o Estatuto dos Magistrados Judicias é omisso quanto à contagem do prazo prescricional do procedimento disciplinar quando esteja em causa uma falta disciplinar permanente ou continuada é, subsidiariamente, de aplicar o Código Penal. Por força da aplicação subsidiária do disposto no art. 119.º, n.º 2, als. a) e b), daquele diploma, o prazo de prescrição, nas infracções disciplinares continuadas ou permanentes, apenas inicia o seu curso na data em que estas cessam (veja-se nesse sentido o acórdão do STJ de 10-04-2014) Na verdade, a consideração sobre a contagem do prazo de prescrição tem subjacente uma prévia definição sobre a natureza da concreta infracção disciplinar. Caso estejamos perante uma infracção de consumação instantânea a violação do dever faz eclodir de imediato o início da contagem do tempo da prescrição o que já não acontecerá perante uma infracção continuada, ou de natureza permanente, em relação á qual o prazo será computado após a cessação da violação do dever disciplinar. Numa tentativa de caracterização dos conceitos agora chamados á colação, e tal como tivemos ocasião de referir em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 24 de Fevereiro de 2015, recorremos á importação de princípios transmitidos pelo ramo do direito que com o direito disciplinar apresenta maior convergência. Assim, no estabelecer dos contornos da infracção disciplinar continuada importa repristinar o que a propósito escreveu Eduardo Correia quando afirma que estamos perante uma infracção continuada em relação a actividade á qual presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções) que, todavia, devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma diminuição de culpa do agente. A razão de ser deste fundamento da diminuição da culpa deve encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Assim, pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade ilícita tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. Existe, assim, um denominador comum: a diminuição considerável da culpa do agente. Porém, para que se considerem verificadas quaisquer das condições exteriores não basta qualquer solicitação, mas é necessário que ela facilite de maneira apreciável a reiteração. Por outro lado, não poderá ser também suficiente que se verifique uma situação exterior normal, ou geral, que facilite a prática do crime pois que, sendo normais ou gerais, deve justamente o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos. (…) A pedra angular da infracção continuada reside, em suma, numa forte diminuição da culpa do agente justificada por determinada "disposição exterior das coisas para o facto", portanto pela "existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade "ilícita", tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito". Circunstâncias exteriores essas que se podem configurar de forma diversa: nomeadamente pela criação, através do primeiro acto ilícito, de uma certa relação, ou acordo, entre os seus sujeitos pela repetição da mesma oportunidade que conduziu o agente à prática da primeira infracção, ou a facilitação resultante da perduração do meio utilizado que o leva à reiteração. Por outro lado, exige-se, ainda, que o bem jurídico violado seja idêntico e que a actuação do agente apresente uma estrutura homogénea. No tocante à conexão temporal entre as diversas condutas ilícitas, como acentua Eduardo Correia, não se lhe poderá atribuir qualquer relevância especial. Apenas será tomada em conta na medida em que a distância no tempo que separa os vários actos seja tão extensa que afaste a possibilidade de perdurar a mesma configuração exterior das coisas, deixando, assim, de presidir à actuação plúrima do agente as mesmas circunstâncias exógenas que fundamentam a atenuação da pena. Por contraposição, e chamando à colação o Acórdão do STA de 7 de Setembro de 1992, não é infracção continuada, mas de execução prolongada no tempo, aquela em que todos os actos se integram num comportamento previamente subordinado a um fim. Neste caso, a prescrição só começa a correr após o último dos factos integrados na conduta punida. O delito permanente é aquele facto em que o delito não está concluído com a realização do tipo, antes se mantém pela vontade delituosa do autor, tanto tempo quanto subsiste o estado antijurídico criado por si mesmo. Como se refere no citado Acórdão de Abril de 1997 (…) . Na infracção continuada temos uma pluralidade de actos singulares unificada pela mesma disposição exterior das circunstâncias que determina a diminuição da culpa do agente; na infracção permanente uma omissão duradoura do cumprimento do dever de restaurar a situação de legalidade perturbada por um acto ilícito inicial. Nas infracções disciplinares integradas por uma conduta se prolonga no tempo só a partir da cessação da ocorrência dos factos que a integram poderá colocar-se a possibilidade de a prescrição ocorrer. (conf. Acórdão do STA de 14-03-2001) A manutenção duma situação de aquiescência, ou concordância, com situações de distribuição ilegal, que perduraram ao longo de um período de tempo, por parte de quem tinha o dever de fazer respeitar a lei a configura uma prática reiterada e ilegal que se prolongou no tempo, e de forma permanente, pelo que o início do respectivo prazo prescricional só se poderá iniciar em relação à consumação da última infracção praticada.” Assentes os factos e seu enquadramento jurídico-disciplinar, passa o Senhor Instrutor à apreciação da espécie de pena a aplicar e à sua medida, que culmina com uma proposta concreta, o que faz nos termos seguintes: “Dispõe o artigo 84º do Estatuto dos Magistrados Judiciais que na escolha e medida da sanção disciplinar o órgão decisor tem em conta todas as circunstâncias que, não estando contempladas no tipo de infracção cometida, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: a) O grau de ilicitude dos factos, o modo de execução, a gravidade das suas consequências e o grau de violação dos deveres impostos) A intensidade e o grau de culpa e os fins que determinaram a prática da infração) As condições pessoais do arguido, a sua situação económica e a conduta anterior e posterior à prática da infração. A pena aplicável deverá, assim, convocar os dois princípios constitucionais que entrecruzam, ou seja, a prossecução do interesse público e da proporcionalidade. Dos mesmos resulta que a pena disciplinar a aplicar deve ser a "justa medida" reclamada para salvaguarda do interesse público, o que necessariamente implicará que a sanção a aplicar seja a necessária para acautelar as exigências disciplinares inscritas no Estatuto dos Magistrados Judiciais e, simultaneamente, seja adequada a esse mesmo efeito e proporcional, ou equilibrada, em face dos interesses em presença o que significa que, se houver mais do que uma pena adequada à salvaguarda do interesse público, se deve aplicar a que for menos gravosa para o agente No caso concreto, em sede de factores de medida da pena disciplinar relativas ao facto praticado assinale-se que a violação do dever de imparcialidade assume uma dimensão nuclear em termos de ilicitude com a persistência numa conduta omissiva que viola um bem jurídico que consubstancia um dever primário de qualquer Magistrado Judicial. (…) A culpa exprime-se pela forma mais elaborada de dolo directo sendo patente o elemento subjectivo da infracção disciplinar. Em relação aos restantes factores a ponderar assume grande relevância o facto de o arguido, no decurso de uma carreira já longa e de mérito, ter demonstrado qualidades profissionais que o colocam em patamares muito elevados tal como demonstram as classificações de mérito de que foi objecto e o apreço e a consideração de que é objecto. Igualmente releva o fato de ter exercido funções de liderança enquanto Presidente do Tribunal da Relação... contribuindo para o prestígio do mesmo Tribunal. O seu registo disciplinar apresenta-se sem qualquer mácula. Como se referiu as faltas disciplinares cometidas, nomeadamente no que concerne violação das regras de distribuição, assumem um conteúdo de grande gravidade, desprestigiante para a administração da justiça, constituindo uma infracção muito grave nos termos e para os efeitos do artigo 83º-G do referido Estatuto. Importa, porém, sublinhar que, para além do referido patamar de ilicitude, releva o facto de, sendo a culpa expressa na forma mais densa, igualmente ser exacto que transparece da prova feita que o arguido foi mobilizado para uma actuação ilegal pela conduta do então Presidente do Tribunal da Relação... Dr. BB a qual esteve na génese dos actos ilegais praticados Ao arguido faltou a determinação para se opor àquelas solicitações e, consequentemente, negar o seu aval aos procedimentos ilegais com origem em tais solicitações. Ainda em termos de medida de pena disciplinar aponta-se a circunstância de o arguido, em relação aos factos relacionados com a distribuição processual ter recusado a admissibilidade de qualquer responsabilidade disciplinar. Tal exercício corresponde a um direito de defesa que integra o seu estatuto como arguido e, como tal, não pode ser valorado nem num sentido positivo nem em sentido negativo. Nesta conformidade, ponderando os enunciados factores de medida da pena disciplinar, os artigos 84º e 102º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e a circunstância de existir uma grave violação dos deveres inerentes ao exercício da função, entende-se por adequada a medida de aposentação compulsiva. Porém, Ponderando a carreira do arguido que, sem qualquer mácula e com elevado prestígio exerceu funções na Magistratura ao longo de décadas, numa carreira de mérito, e tendo ainda em conta a dimensão da culpa nos termos referidos, entende-se por correcta a aplicação do artigo 85º do referido Estatuto e, atenuando especialmente aquela sanção disciplinar, considera-se adequada, e propõe-se, a aplicação da sanção de suspensão do exercício de funções, a que aludem os artigos 91º e 95º do mesmo Estatuto, pelo período de duzentos dias. VII - Da escolha e da medida concreta da pena disciplinar Fixada a matéria de facto relevante e a sua incidência em termos disciplinares, há que proceder à escolha da espécie e da medida da pena a aplicar ao caso concreto. O art. 91º, nº 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais determina que os magistrados judiciais estão sujeitos às sanções de advertência, multa, transferência, suspensão de exercício, aposentação ou reforma compulsiva e demissão. Também o artigo 85º do EMJ, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 67/2019, de 27 de Agosto, previa esta escala de sanções, então denominadas penas, para além da de inactividade eliminada com a nova redacção. Na versão do Estatuto dos Magistrados Judiciais aprovada pela Lei nº 67/2019, de 27 de Agosto, diz-se expressamente, no seu art. 83.º-F que: “As infracções disciplinares cometidas pelos magistrados judiciais assumem a categoria de muito graves, graves e leves, em função das circunstâncias de cada caso.” A sanção de advertência é aplicável a infracções leves; a sanção de multa é aplicável às infracções graves em que não se mostre necessária ou adequada, face às circunstâncias do caso, a aplicação de outra sanção disciplinar mais gravosa; a sanção de transferência é aplicável a infracções graves ou muito graves que afectem o prestígio exigível ao magistrado e ponham em causa a sua manutenção no meio social em que desempenha o cargo ou no juízo ou tribunal onde exerce funções; a sanção de suspensão de exercício é aplicável a infracções graves e muito graves que revelem a falta de interesse pelo exercício funcional e manifesto desprestígio para a função jurisdicional, ou quando o magistrado judicial for condenado em pena de prisão; as sanções de aposentação ou reforma compulsiva e a de demissão são aplicáveis quando se verifique uma das seguintes circunstâncias: definitiva ou manifesta e reiterada incapacidade de adaptação às exigências da função, conduta desonrosa ou manifestamente violadora da integridade, isenção, prudência e correcção pessoal que lhe é exigida, condenação por crime praticado com evidente e grave abuso de função ou com manifesta ou grave violação dos deveres a ela inerentes e abandono de lugar, a que corresponderá sempre a sanção de demissão (cfr. os arts. 98.º a 102.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais). No caso em análise estamos, como vimos, perante uma infracção muito grave, com manifesta e grave violação do dever de isenção inerente à função e manifesto desprestígio para a função jurisdicional, conduta desonrosa que é punível com sanção de demissão ou de aposentação compulsiva, nos termos do disposto no artigo 95º, nº1, do EMJ na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 67/2019, de 27 de Agosto e nos artigos 102º, nº1, alínea c) do EMJ actual. O Senhor Instrutor, contudo, para além de não equacionar a aplicação da sanção de demissão e entender ser suficiente a pena de aposentação compulsiva, vai mais longe e, lançando mão do instrumento da atenuação especial da sanção previsto no artigo 85º do EMJ, e no artigo 97º na redacção estatutária anterior, propõe a aplicação da sanção de escalão inferior àquela, ou seja, a de suspensão de exercício, propondo a sua fixação concreta em 200 dias. Em face dos elementos resultantes dos autos e, designadamente em função do comportamento do arguido e das circunstâncias atenuantes enunciadas pelo Senhor Instrutor, manifestamos concordância com a proposta de que a sanção de aposentação compulsiva abstractamente aplicável possa ser especialmente atenuada, considerando-se suficiente a aplicação de uma sanção de suspensão de exercício. De acordo com o art. 95.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais na redacção actual e no nº2 do artigo 89º na redacção anterior, a sanção de suspensão pode oscilar entre os 20 e os 240 dias, propondo o Senhor Instrutor a sua graduação em 200 dias. Ponderando os supra enunciados factores que serviram para a proposta quanto à medida da sanção, a qual incluía os factos respeitantes à cedência de instalações do TR... que, como vimos, não deverão ser agora considerados e ficar suspensos até decisão da autoridade judiciária no processo nº 16/20.Y..., entendemos ser justo e adequado situar a sanção em medida inferior à proposta e fixá-la num período de 120 (cento e vinte dias). VIII - DELIBERAÇÃO Tudo ponderado, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura delibera: 1º - Suspender o presente procedimento disciplinar relativamente à matéria constante dos factos provados sob o ponto IV, alíneas a) a f), até decisão da autoridade judiciária competente no inquérito NUIPC 16/20.0...; 2 º - Relativamente aos restantes factos, aplicar ao Senhor Juiz Desembargador AA, pela violação continuada e muito grave dos deveres de imparcialidade e de prossecução do interesse público, previstos, no artigo 6º-C do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho e nos artigos 73º, nº2, alíneas a) e c) e nºs 3 e 5, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 35/2014, de 20 de Junho, ex vi artigos 83º-E e 188º do mesmo EMJ, a sanção disciplinar de 120 (cento e vinte) dias de suspensão de exercício. (…)». * 2.) Motivação da decisão de facto Os factos contidos no ponto n.º 1 e no ponto n.º 2 foram tidos como demonstrados por acordo entre as partes. A convicção do tribunal quanto aos factos inscritos no ponto n.º 3 foi alicerçada na valoração da certidão judicial cuja cópia consta de fls. 2 e ss. do processo disciplinar apenso. A convicção do tribunal quanto aos factos inscritos no ponto n.º 4 foi alicerçada na valoração da deliberação cuja cópia consta de fls. 117 e seguintes. Os factos inscritos no ponto n.º 5 foram tidos como demonstrados com base na valoração do douto despacho exarado a fls. 798 e seguintes e no termo de remessa de fls. 950, ambas do processo disciplinar apenso. A convicção do tribunal quanto aos factos inscritos no ponto n.º 6 foi alicerçada na valoração da cópia do douto despacho do Ministério Público constante de fls. 2486 e seguintes e da informação prestada a fls. 2620, ambas do processo disciplinar apenso. * 3. Fundamentação de direito 3.1. Importa, desde já, ter presente que a deliberação impugnada decidiu suspender o processo disciplinar n.º ...2...-05/PD «(…) relativamente à matéria constante dos factos provados sob o ponto IV, alíneas a) a f) até decisão da autoridade judiciária competente no inquérito n.º 16/20.0... (…)». Os factos aí em causa consistem, em síntese, na imputação ao Autor, na qualidade de Presidente do Tribunal da Relação..., da cedência do uso e fruição de uma sala desse Tribunal para a realização de julgamento arbitral. Assim, como se depreende do teor da deliberação impugnada e do respetivo segmento decisório, a questão da violação dos deveres profissionais e deontológicos aí elencados e a consequente aplicação de uma sanção disciplinar baseou-se unicamente na restante factualidade tida como demonstrada. Tal factualidade corresponde, em síntese, à imputação ao Autor (então na qualidade de Vice-Presidente do Tribunal da Relação..., com competências delegadas no domínio da distribuição de processos) de omissão dolosa no cumprimento dos deveres funcionais no que respeita à distribuição manual do processo n.º 755/13.2... e do processo n.º 244/11.0... nesse Tribunal Superior. 3.2. A primeira questão a resolver respeita, assim, à extinção da responsabilidade disciplinar imputada ao Autor, pelo decurso do prazo que o Conselho Superior da Magistratura dispunha para a fazer valer. Está em causa o decurso do prazo de 1 ano sobre as datas em que ocorreu a distribuição desses processos, invocando o Autor, para o efeito, tanto o disposto no n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, como o disposto no n.º 1 e no n.º 3 do artigo 83.º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais. O n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas prevê (sob a epígrafe “Prescrição da infracção disciplinar e do procedimento disciplinar”) o seguinte: «1 - A infracção disciplinar prescreve no prazo de um ano sobre a respectiva prática, salvo quando consubstancie também infracção penal, caso em que se sujeita aos prazos de prescrição estabelecidos na lei penal à data da prática dos factos. (…)». Por sua vez, no n.º 1 e no n.º 3 do artigo 83.º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais (sob a epígrafe “Caducidade do procedimento disciplinar”), prevê-se que: «1 - O direito de instaurar procedimento disciplinar caduca passado um ano sobre a data em que a infração tenha sido cometida. (…) «3 - Quando o facto qualificado como infração disciplinar seja também considerado infração penal, o direito previsto no n.º 1 tem o prazo e o regime da prescrição estabelecidos na lei penal.». 3.3. Sustenta-se, na deliberação impugnada, que a questão deve ser apreciada à luz desta última norma. Pese embora este aspeto não assuma, como se verá, relevância decisiva, crê-se não ser esse o enquadramento correto. Vejamos. O estabelecimento de limites temporais ao exercício da ação disciplinar é uma imposição cujos fundamentos repousam nos valores basilares da certeza e da segurança jurídicas e na necessidade de prevenção do arbítrio da perseguição disciplinar, mas também em exigências relacionadas com a eficácia desse exercício. O decurso desses limites temporais implica, como corolário lógico, a extinção da responsabilidade disciplinar imputável ao agente. No domínio da responsabilidade disciplinar pública, a consagração de prazos de prescrição para o exercício da ação disciplinar remonta ao Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado, tendo sido mantida no Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local pelo Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. Inicialmente, o único prazo previsto reportava-se à instauração do procedimento disciplinar e iniciava-se na data em que a infração disciplinar tivesse sido cometida. Subsequentemente, foi aditado o prazo para instaurar o procedimento disciplinar, a contar do conhecimento da infração e, posteriormente, o prazo para a conclusão do procedimento disciplinar instaurado. Por não existirem no Estatuto dos Magistrados Judiciais normas que regessem esse aspeto, aqueles três últimos diplomas foram sendo subsidiariamente aplicados ao exercício do poder disciplinar contra magistrados judiciais (cfr. o artigo 131.º daquele diploma na sua versão original). A 1 de janeiro de 2020, entrou em vigor a Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto (artigo 10.º desse diploma), por via da qual foi realizada uma profunda reforma do Estatuto dos Magistrados Judiciais. No aspeto que mais interessa aos presentes autos, esse diploma teve em vista definir um Estatuto dos Magistrados Judiciais «(…) tendencialmente ordenado pelos princípios da autossuficiência regulatória e da unidade estatutária (…) dispensando a aplicação subsidiária do regime contido na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. (…)» É nesse contexto que surge o artigo 83.º-B, do qual se destaca a opção legislativa pela qualificação do exercício do poder disciplinar como um «direito» que assiste ao Conselho Superior da Magistratura. Neste quadro, deve ter-se presente que as distribuições dos mencionados processos judiciais ocorreram, respetivamente, a ... de ... de 2014 e a ... de ... de 2015 (cfr. ponto n.º 1 e ponto n.º 2 do elenco supra). Assim, à data dos factos e à data em que, segundo o Autor, se verificou a prescrição, era ainda subsidiariamente aplicável às infrações disciplinares cometidas por magistrados judiciais a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. A Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto não consagrou qualquer norma de direito transitório que determinasse a aplicação do disposto naquele artigo 83.º-B a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Cotejados os elementos das previsões normativas do n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e dos números 1 e 3 do artigo 83.º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais, constata-se a respetiva similitude. Assim, não se pode concluir que a aplicação desta última disposição se revele, em concreto, mais favorável ao Autor. Daí que, convocando o princípio geral no n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, conclui-se que o artigo 83.º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais, não é aplicável a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Impõe-se, assim, que a apreciação da questão em apreço se faça no quadro delineado pelo artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e, em particular, pelo n.º 1 desse preceito. Faz-se, aqui, um breve parêntesis para notar que, quanto à prescrição do procedimento disciplinar (art.83º-B, n.2 do EMJ), apesar de fazer alusão ao prazo do conhecimento dos factos, o Autor não elencou quaisquer factos que permitam apurar que decorreram mais de 60 dias entre a data em que o Plenário do Conselho Superior da Magistratura teve conhecimento do indevido recurso à distribuição manual dos aludidos processos e a data em que decidiu instaurar o processo disciplinar em apreço. E, em todo o caso, valorando os factos provados sob os números 3 e 4, é patente que tal invocação não poderia merecer qualquer acolhimento. 3.4. Retomando a análise da questão da prescrição da infração disciplinar, dir-se-á que, em geral, a prescrição, enquanto fundamento da extinção do jus puniendi disciplinar, assenta na falta de diligência na prossecução da ação punitiva. No âmbito da previsão do n.º 1 do artigo 178.º, a prescrição do direito de reação contra a infração disciplinar assenta no decurso do prazo de um ano sobre a data dos factos. As distribuições dos mencionados processos ocorreram, respetivamente, a ... de ... de 2014 e a ... de ... de 2015. O procedimento disciplinar em que tais factos foram apreciados foi instaurado em ... de ... de 2020 (cfr. ponto n.º 4 do elenco factual). É assim manifesto que, nesta data, o prazo de prescrição em causa já se mostrava integralmente transcorrido. E, para esta conclusão, é irrelevante qualificar os referidos factos (necessariamente conjugados com os demais que foram tidos como provados na deliberação impugnada) como duas infrações instantâneas ou, pelo contrário, como uma infração permanente1 como parece ter sido entendido na deliberação impugnada. Mesmo que se perfilhasse este entendimento e que, consequentemente, se considerasse, como termo inicial relevante o momento em que cessou a conduta violadora dos deveres funcionais, tal não alteraria a conclusão sobre a prescrição. 3.5. Defende o Conselho Superior da Magistratura que, em virtude de os aludidos factos integrarem, simultaneamente, um ilícito disciplinar e um ilícito criminal, deveria, em conformidade com o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, ser considerado o correspondente prazo de prescrição da responsabilidade penal a que alude o artigo 118.º do Código Penal. Vejamos. O preconizado alargamento do prazo de prescrição sustenta-se na acrescida gravidade que, no plano funcional, é associável a factos que integrem, simultaneamente, uma infração disciplinar e um ilícito criminal, sendo, paralelamente, convocáveis razões que se prendem com a «(…) homenagem às relações entre processo disciplinar e processo penal e à eventualidade de, em situações limite, os resultados deste se repercutirem de modo determinante no sucesso daquele, sem prejuízo da sua autonomia e independência. (…)»2 O único requisito de que depende esse alargamento resume-se à circunstância de os factos integrantes de uma infração disciplinar consubstanciarem, em abstrato, a prática de um crime3. Porém, sem prejuízo de se reconhecer que essa valoração se insere nas competências próprias da entidade detentora do poder disciplinar4, a mesma inscreve-se nos aspetos vinculados do respetivo exercício e, como tal, é suscetível de ser sindicável em juízo. Neste quadro, percorrido o processo disciplinar e valorado tanto o teor da deliberação impugnada como o da contestação apresentada, constata-se que não existe qualquer menção à imputação ao Autor, no âmbito do processo n.º 19/16.0..., ou em qualquer outro inquérito, da prática de qualquer ilícito criminal relacionável com a distribuição daqueles dois processos. Tenha-se também presente que o Conselho Superior da Magistratura cingiu a participação que remeteu aos serviços do MP junto do Supremo Tribunal de Justiça aos factos atinentes à cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação... (cfr. pontos números 5 e 6 do elenco factual). Deve, ainda, ter-se em consideração que na própria deliberação impugnada e no precedente relatório final (para o qual aquela remete) não foi identificado qual o concreto ilícito criminal em cuja prática o Autor teria incorrido mediante a dolosa preterição, no contexto da distribuição daqueles dois processos judiciais, do cumprimento dos respetivos deveres funcionais que lhe vem imputada. Repare-se que a menção ao crime de abuso de poder (pp. pelo 382.º do Código Penal) surge sempre associada aos factos imputados ao Desembargador BB no inquérito criminal em que figura com o arguido e/ou àqueles outros factos. Deste quadro extraem-se as seguintes conclusões: A eventual relevância penal respeitante aos factos concernentes à cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação... pelo do Autor não é extensível aos demais factos a este imputados no processo disciplinar apenso. Desde logo, porque tais factos não se apresentam, na economia da deliberação impugnada, como estando correlacionados com os demais, quer pelo lapso temporal que mediou entre aqueles, quer pela distinta índole de todos eles, não sendo, portanto, integráveis no conceito de infração permanente a que se fez menção na contestação. Como aponta o Autor, e porque foi decidida a suspensão do procedimento disciplinar quanto a esse segmento de autoria, sempre seria de considerar a subsunção jurídico-criminal desses outros factos para efeitos de alargamento do prazo de prescrição quanto à remanescente facticidade que lhe vem imputada. Deve também notar-se que, nos termos do n.º 4 do artigo 179.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e, paralelamente, do n.º 2 do artigo 83.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, impende sobre a entidade detentora do poder disciplinar o dever de comunicar ao Ministério Público quando os factos apurados forem suscetíveis de constituírem crime. O Conselho Superior da Magistratura adotou a atuação imposta por este preceito relativamente aos factos atinentes à cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação..., mas não o fez relativamente à factualidade respeitante às distribuições processuais a que vimos aludindo e à comparticipação que, por via da omissão da conduta devida, nelas imputou ao Autor. Ora, sabendo-se que essa factualidade, no que ao Autor diz respeito, não foi nem estará a ser investigada em sede criminal, é imperioso reconhecer que a qualificação jurídico-criminal que lhe foi atribuída se revela, afinal, inconsequente. Posto isto, cabe ainda considerar se, como sustenta o Conselho Superior da Magistratura na contestação, a conduta imputada ao impugnante integra, como co-autor, o tipo de crime de corrupção passiva, pp. pelo n.º 1 do artigo 373.º do Código Penal ou o tipo de crime de abuso de poder, pp. pelo artigo 382.º do mesmo diploma, a fim de apurar se justifica o alargamento do prazo de prescrição. A factualidade atinente às distribuições processuais e o contexto fáctico em que se insere é a seguinte: «(…) O Juiz Desembargador Dr. BB, actualmente jubilado, exerceu funções no Tribunal da Relação..., onde foi Presidente desde ... de ... de 2005 até ... de ... de 2016. O Juiz Desembargador Dr. AA exerce funções no Tribunal da Relação... e foi Vice-presidente do mesmo Tribunal desde ... de ... de 2014 até à sua posse como Presidente daquele Tribunal da Relação o que ocorreu em ... de ... de 2016. (…) b) Até à aplicação da pena suprarreferida o Dr. DD exercia funções no Tribunal da Relação... (…) g) Por solicitação do Dr. DD formulada ao então Presidente do Tribunal da Relação... Dr. BB, e por intervenção pessoal deste, o mesmo processo foi objecto de distribuição manual, à revelia das regras legais que condicionam a distribuição processual de recursos nos Tribunais Superiores. (…) i) Igualmente é certo que, posteriormente, pelo menos em relação a três processos distintos, o então Desembargador Dr. DD, agindo com o mesmo propósito, e sempre à revelia dos deveres que lhe impunham as suas funções, diligenciou no sentido de que os mesmos processos lhe fossem distribuídos como relator ou que fossem distribuídos especificamente a um determinado relator. j) Tais diligências ilegítimas, visando subverter a ordem normal da distribuição, tiveram lugar junto do Presidente do Tribunal da Relação... Dr. BB, solicitando a sua intervenção pessoal. l) Tal aconteceu nomeadamente no processo 755/13.2... (Revista) em que o Dr. DD era autor e réus ... L..., SA e outros e no qual foi decretada em sede de primeira instância a absolvição dos mesmos réus m) Tendo sido interposto recurso para o Tribunal da Relação... em ... de ... de 2014 o mesmo Dr. DD solicitou ao Presidente da Relação ... Dr. BB que o referido processo fosse objecto de distribuição manual, o que efectivamente aconteceu por intervenção pessoal daquele Presidente, sendo atribuído como relator ao ora arguido Dr. AA (…) p) Em ... de ... de 2015 no processo penal 244/11.0... foi interposto recurso pelos recorrentes FF e outros o qual teve por objecto decisão do Tribunal ... que decretou o arresto preventivo de trinta bens imóveis de avultado valor económico pertencentes àquele primeiro recorrente. (…) r) Também na distribuição deste processo, e a solicitação do Dr. DD, interveio pessoalmente o Presidente do Tribunal da Relação... que, sem que tal atribuição tivesse qualquer fundamento legal, determinou a atribuição manual do mesmo processo àquele Dr. DD. (…) x) Quando ocorreram as distribuições dos processos referidos em III l) p) e (…) o ora arguido Dr. AA era, como se referiu, Vice-presidente do Tribunal da Relação... encontrando-se delegada no mesmo a competência para presidir às mesmas distribuições (Documento fls 435). z) A distribuição manual dos processos referidos em III l) e p) nas circunstâncias descritas, e sem qualquer fundamento legal para tal, só foi possível porquanto o arguido, à revelia dos deveres que sobre si impendiam derivados da presidência de tal acto, devendo assegurar a obediência das normas legais aplicáveis, e tendo conhecimento da intervenção pessoal do Dr. BB com o intuito de atribuição ilegal de processos ao então Juiz Desembargador Dr. DD, permitiu que tal acontecesse, sendo certo que tinha conhecimento das irregularidades de que padecia a mesma distribuição. aa) Agiu o arguido de forma voluntária, sabendo que tal atribuição manual, efectuada de forma ilegal e com o seu aval, colocava em causa princípios fundamentais da organização judiciária, como o do juiz natural, bem como afectava valores nucleares dos deveres dos juízes e da sua responsabilidade perante a comunidade como a imparcialidade e independência. (…)». Prevê o n.º 1 do artigo 373.º do Código Penal: «1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de um a oito anos.». Crê-se que, da valoração desta facticidade à luz deste preceituado emerge, sem necessidade de desenvolver adicionais considerandos, a constatação de que a conduta imputada ao Autor não integra qualquer um dos elementos típicos requeridos para o preenchimento integral do tipo de crime, mormente a aceitação ou solicitação de vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida ou promessa desta. Com maior propriedade se poderia chamar à colação o disposto no artigo 382.º do Código Penal, no qual se prevê que: «O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» Sem que, para efeitos de prolação da presente decisão, devamos considerar em detalhe a interpretação deste tipo de crime, importa ter presente que o integral preenchimento do tipo de ilícito demanda, no prisma objetivo, o abuso de poderes ou a violação de deveres funcionais e, no prisma subjetivo, e a par do dolo genérico, a intenção específica5 de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. Deve-se entender benefício ilegítimo como uma qualquer vantagem, de cariz patrimonial ou não patrimonial, mas necessariamente ilícita. Nessa medida, a «(…) ilegitimidade do fim prosseguido vem sublinhar a ilicitude decorrente do comportamento do agente, ganhando todavia autonomia enquanto parâmetro normativo susceptível de afirmar a sua responsabilidade (aqui a recusa daquelas posições para as quais a ilicitude decorreria tão somente do abuso de funções por parte do funcionário, sendo todo e qualquer benefício ou vantagem daí decorrentes necessariamente ilegítimos)6 (…)» Também o prejuízo pode assumir uma dimensão não patrimonial, mas é imperioso que se vise prejudicar o destinatário do ato ou aqueles que de algum modo são afetados pelos seus efeitos7. Apreciando aquela factualidade à luz das considerações supra tecidas é claramente constatável que nem sequer é atribuído ao Autor o propósito de obter um concreto proveito ou o intuito de causar um prejuízo a uma ou mais pessoas8. Por outro lado, não existem quaisquer elementos objetivos que externamente manifestem a atitude interna do Autor potencialmente integrante da sobredita intenção específica. Com efeito, a factualidade tida como provada pela deliberação em causa não evidencia a «(…) relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro (…)» aptos a constituírem «(…) índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna. (…)9» Em face destas considerações, conclui-se que os factos tidos como provados pela deliberação impugnada não poderiam ser subsumíveis ao designado elemento subjetivo do tipo de crime supra enunciado. Por isso, mesmo que fosse viável reconhecer que aquela factualidade seria suscetível de integrar os elementos objetivos, e que esta era atribuível ao Autor, pelo menos, a título de co-autoria, seria patentemente inviável concluir pelo integral preenchimento daquele tipo de crime. E não existem nos autos elementos para concluir que os mesmos factos preencham qualquer outro tipo de crime. Consequentemente, e em face de tudo quanto se expôs, são de afastar os prazos de prescrição previstos na lei penal. * 3.6. Resta concluir pela prescrição do direito a instaurar procedimento disciplinar à luz do disposto no n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. O n.º1 do artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo prevê que são «anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção». Por isso, pode-se afirmar que a violação da lei se deteta «na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis»10 constituindo, por outras palavras, «o vício de que enferma o acto administrativo, cujo objecto, incluindo os respectivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar.11» Pelo exposto, é de concluir que, ao não reconhecer a prescrição ocorrida, a deliberação impugnada não respeitou a estatuição do n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, incorrendo, pois, em vício de violação de lei, o que determina, nesse segmento, a sua anulabilidade. Deste modo, a procedência da arguição do vício de violação de lei apenas implica a anulação da deliberação impugnada no aludido segmento. E, não se divisando que, desse segmento, tenham decorrido quaisquer perdas de vencimentos e restantes quantias devidas ou outros efeitos, carece de fundamento o pedido condenatório formulado. A decisão tomada implica, necessariamente, que não se deva tomar posição sobre os vícios procedimentais que nele terão ocorrido ou sobre os factos nele apurados. Como tal, é inviável apreciar e decidir as questões suscitadas pelo Autor que se relacionavam com a ilícita introdução de alteração substancial de factos na deliberação impugnada, com a omissão de pronúncia sobre factos vertidos na defesa apresentada, com a preterição do direito de defesa sobre a sanção disciplinar aplicada e com a ofensa a princípios constitucionais. A apreciação de tais questões fica, assim, prejudicada. * 3.7. Cabe, agora, apreciar a questão respeitante à decisão de suspender o procedimento disciplinar no segmento atinente à cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação... para realização de julgamento de Tribunal.... Deve notar-se, desde logo, que tal decisão assenta num exercício discricionário da administração12 pelo que a respetiva sindicabilidade judiciária se cingirá, necessariamente, aos aspetos vinculados desse ato. Entende o Autor, em síntese, que a deliberação impugnada não poderia ter deliberado a suspensão, porquanto estava prescrito o direito de instaurar o procedimento disciplinar relativamente a estes factos, e ainda porque a prova produzida em processo disciplinar impunha a não demonstração de tais factos. Vejamos. Começa o Autor por invocar uma «(…) nulidade por contradição entre a deliberação e seus fundamentos e da impugnação do decidido (…)». Coloca-se, em primeiro lugar, a questão de saber se uma deliberação daquele órgão da administração judiciária carece, em absoluto, de fundamento e referenciação de conceitos e normas pertinentes. Em segundo lugar, impõe-se considerar que, a acolher-se a alegação do Autor, a conclusão seria sempre a anulabilidade da decisão impugnada13 e não a sua nulidade. Tecidas estas considerações, impõe-se indagar se a decisão recorrida padece de contradição na sua fundamentação. Vejamos. O dever de fundamentação dos atos administrativos tem consagração na segunda parte do n.º 2 do artigo 268.º da Lei Fundamental e no artigo 152.º do Código do Procedimento Administrativo. A fundamentação consiste essencialmente na expressão dos motivos que encaminharam a decisão para um determinado sentido e na exposição dos pressupostos de facto e de direito que conduziram ao pronunciamento. Como emerge do n.º 1 do artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo, a fundamentação deve ser expressa, sucinta, suficiente, clara e coerente14. Em síntese, os «(…) actos administrativos devem apresentar-se formalmente como disposições conclusivas/lógicas de premissas correctamente desenvolvidas, de molde a permitir aos respectivos destinatários, tomando por referência o destinatário concreto, pressuposto (pela ordem jurídica) ser cidadão diligente e cumpridor da lei – e, através da respectiva fundamentação expressa – a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade emitente ao decidir como decidiu (…)”15. A fundamentação visa a submissão dos órgãos da Administração e dos seus agentes “(…) em toda a sua actuação, a regras de direito e ao respeito dos direitos fundamentais do cidadão, motivando as respectivas decisões, de forma a que, por um lado, o destinatário delas perceba as razões que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objectivos e racionais, proscrevendo a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, se possibilite o controle da decisão pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso para eles interposto (…)”16, sendo um dos vetores pelos quais melhor se revela a transparência e a correção da atividade administrativa17. Desse modo, são tidos como vícios do ato a falta de fundamentação e, por outro lado, a insuficiência, a obscuridade ou a incongruência da fundamentação que sejam manifestas (cfr. n.º 2 do artigo 153.º do Código de Procedimento Administrativo). A incongruência ou contradição detetar-se-á na fundamentação em que sejam empregues razões de facto e de direito que se contradigam entre si ou que contrariem a conclusão adotada18. No caso dos presentes autos, é inegável que a deliberação impugnada fixou os factos atinentes à indevida cedência do uso das instalações do Tribunal da Relação.... Porém, fê-lo a título meramente provisório e assente apenas nos elementos probatórios «(…) que puderam ser recolhidos numa fase incipiente do procedimento disciplinar, com as limitações que são próprias dele, nomeadamente pela limitação dos meios de prova admissíveis. (…)», justificando-se a suspensão para que seja «(…) possível ter acesso à prova que venha ser recolhida no âmbito da investigação em curso no processo nº 16/20.0... (…)», ou, por outras palavras, para a «(…) utilização em processo disciplinar do material probatório recolhido no processo penal (…)». Face a esta transcrição da deliberação impugnada, não se pode concluir que exista uma contradição lógica entre a fixação de determinados factos, com recurso à prova recolhida, e a premência de aguardar o acesso à prova obtida no processo criminal para, como se depreende do enunciado motivador, solidificar e/ou complementar esse juízo probatório. É pertinente constatar que as dificuldades de prova no procedimento disciplinar constituem razões atendíveis para a decisão suspensiva19, impondo-se, em todo o caso, salientar que o eventual demérito do juízo fundante não se confunde com os vícios formais assacáveis à fundamentação decisória. Pelo exposto, desatende-se a pretensão do recorrente. 3.8. Quanto à invocada prescrição do procedimento suspenso, cabe reafirmar que as questões respeitantes à prescrição devem ser apreciadas à luz do disposto no artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. A factualidade relevante para este efeito tem o seguinte teor: «(…) a) Igualmente é exacto que em ... 2017 o Dr. AA, na qualidade de Presidente do Tribunal da Relação..., cedeu uso e fruição do espaço físico do mesmo Tribunal para funcionamento do Tribunal... na acção arbitral em que era requerente A..., SA e requerida S..., SA (Documento de fls 375 e seg.) b) Tal imóvel integra um bem do domínio público do Estado e, como tal, está sujeito a regime jurídico próprio. c) O arguido Dr. AA, investido naquela qualidade, não só permitiu que as várias sessões de julgamento, que se realizaram ao longo de um ano, tivessem lugar no salão nobre daquele tribunal, como igualmente anuiu em que a sede do mesmo tribunal ficasse sedeada nas instalações do Tribunal da Relação.... d) O mesmo arguido tinha perfeito conhecimento de que não detinha quaisquer poderes legais que lhe permitissem ceder aquele espaço para uso pelo referido Tribunal... e que, ao agir da forma descrita, beneficiava sem qualquer justificação uma entidade totalmente alheia ao domínio público do Estado. e) Por despacho de ... de ... de 2018 proferido pelo Dr. AA, e ao abrigo do disposto no artigo 10º nº4 da Lei 63/2011, o Desembargador Jubilado Dr. BB foi nomeado para presidir àquele Tribunal.... f) Em sede de constituição de Tribunal... foram fixados os honorários de 700.000 € sendo 40% para o respectivo ... Presidente e 30% para cada um dos restantes. (…)» Neste quadro, deve ter-se presente que o Conselho Superior da Magistratura apresentou ao Ministério Público a competente participação. Valorados os elementos factuais à luz do tipo de crime de abuso de poder e das considerações supra tecidas, pode concluir-se que a factualidade perfunctoriamente fixada é, em abstrato, idónea a poder preencher aquele tipo de ilícito. E, como resulta do ponto n.º 6 do elenco dos factos provados, a referida participação veio a dar origem ao inquérito n.º16/20.0YGLSB, tendo nele sido proferido despacho de arquivamento e, subsequentemente, despacho a ordenar a respetiva reabertura. Não se pode, portanto, concluir que a falta de preenchimento daquele tipo de crime haja sido inapelavelmente demonstrada naquela decisão, como o Autor afirma no artigo 98.º da petição inicial. O prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de abuso de poder é de 15 anos [alínea a) do n.º 1 do artigo 118.º do Código Penal]. Datando tais factos de ... 2017, é inequívoco que tal prazo ainda não decorreu. Daí que, por efeito da aplicação da parte final do disposto no n.º 1 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, se deva concluir que o prazo de prescrição da infração disciplinar não se mostra ainda transcorrido. Por outro lado, afirma o Autor ter já decorrido o prazo de prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar a que alude o n.º 2 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. Está em causa o prazo de 60 dias de que a administração dispõe para, depois de tomar conhecimento do facto gerador de eventual sanção disciplinar, instaurar o respetivo processo, dentro do prazo de um ano a que se refere o n.º 1 do mesmo preceito. Consta, a este respeito, da deliberação que «(…) Ora, embora o presente procedimento se tenha iniciado por deliberação do CSM de ... de ... de 2020, e a comunicação prevista no nº 2 do artigo 115º do EMJ tenha sido realizada em ... de ... de 2020 (cfr. fls. 125), a matéria respeitante à cedência de instalações só passou a ser objecto do processo em ... de ... de 2020, data em que o CSM, com base num pedido do Senhor Instrutor de ... de ... de 2020 (fls. 1500), deliberou alargar o âmbito do processo àquela matéria (cfr. fls. 1697). (…)». O Autor advoga, porém, que o Plenário do Conselho Superior da Magistratura tomou conhecimento destes factos em ... de ... de 2020, «(…) quando deliberou abrir procedimento disciplinar ao Juiz Desembargador BB, pela realização de um julgamento arbitral nas instalações do Tribunal da Relação..., como resulta do texto da deliberação e de fls. 60 e segts. do PD a que respeita a deliberação sob impugnação (…)» [artigo 99.º da petição inicial]. Firma a sua convicção na consideração de que «(…) Ao deliberar abrir processo disciplinar ao Juiz Desembargador BB, em .../.../2020, pela realização de um julgamento arbitral nas instalações do Tribunal da Relação... um cidadão com a diligência própria de um bonus pater familae não podia deixar de, concomitantemente, ter conhecimento de eventual infracção por parte do ora Autor, então Presidente do TR..., nos mesmos termos em que teve conhecimento da eventual infracção por parte de BB. (…)» [artigo 102.º da petição inicial]. Perante este enunciado, crê-se que o Autor pretende que o STJ lance mão de uma presunção judicial (artigo 349.º do Código Civil) para demonstrar a alegada factualidade. Porém, desconhece-se, em concreto, o teor dos elementos levados ao conhecimento do Plenário do Conselho Superior da Magistratura que determinaram a decisão de instaurar o procedimento disciplinar contra o Sr. Juiz Desembargador BB. E, em todo o caso, é certo que nem sequer se alega que deles decorra que o Autor teria, de alguma forma, tomado parte nos factos então comunicados àquele ente. Daí que se mostre inviável estabelecer, com recurso às regras da experiência corrente que, usando da diligência do cidadão médio, o Conselho Superior da Magistratura, em ... de ... de 2020, tomou “conhecimento” de factualidade respeitante ao Autor. Por outro lado, tem sido constante e pacificamente entendido que, para efeitos do n.º 2 do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, apenas releva o «(…) real e efetivo conhecimento do facto e do circunstancialismo que o rodeia, de molde a poder fazer o seu enquadramento como ilícito disciplinar, sendo, pois, insuficiente a mera participação ou denúncia não suficientemente concretizada (…)»20 ou a mera suspeita da infração21. Por isso, não se tendo alegado (e, muito menos, demonstrado) que, naquela ocasião, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura adquiriu efetivamente o conhecimento da aludida factualidade e, consequentemente, a devida perceção do circunstancialismo que a rodeia (o que lhe permitiria fazer o seu enquadramento como ilícito disciplinar), sempre caberia concluir pela falta de fundamentação da pretensão em apreço. Afirma o Autor a sua discordância com a valoração dos meios de prova constantes do procedimento disciplinar, que conduziu à fixação da facticidade supra enunciada, sustentando ainda o aditamento de factos que considera como dirimentes da respetiva responsabilidade disciplinar. Face à fundamentação empregue na deliberação, constata-se que o elenco factual pertinente que foi fixado na deliberação impugnada não se encontra estabilizado, podendo ainda vir a ser alterado ou, pelo menos, modificado, complementado ou reforçado pela consideração da prova recolhida no inquérito que corre termos sob o n.º 16/20.0... Desse modo, concluiu-se que o controle da insuficiência probatória invocada pelo Autor (cfr. artigos 110.º a 112.º e 115.º) é, nesta fase e por manifesta precocidade, absolutamente inviável. Paralelamente, também a apreciação da apontada insuficiência do quadro fáctico fica afetada pela respetiva falta de definitividade. Em suma, não se identifica, no supra analisado segmento da deliberação impugnada, qualquer vício de violação de lei que determine a sua anulação. Concluiu-se que, nos termos e para os efeitos previstos pelo n.º 3 do artigo 95.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não se identifica qualquer outro motivo de invalidação da deliberação impugnada. * Decisão: Pelo exposto, acorda-se na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em: - julgar a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, anular a deliberação adotada pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura em ... de ... de 2021, no segmento em que aplicou «(…) ao Senhor Juiz Desembargador AA, pela violação continuada e muito grave dos deveres de imparcialidade e de prossecução do interesse público, previstos, no art.º 6º-C do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, e nos artigos 73º, n.º 2, alíneas a) e c) e nºs 3 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, ex vi artigos 83º-E e 188º do mesmo EMJ, a sanção disciplinar de 120 (cento e vinte) dias de suspensão de exercício (…)»; - em julgar, no mais, a presente ação improcedente, absolvendo o Conselho Superior da Magistratura do demais peticionado. Das custas: Sendo Autor e Réu parcialmente vencidos, ambos suportam as custas da presente ação na proporção de metade cada um (n.º 1 do artigo 527.º do CP). Sendo o valor da ação de € 30.000,01 (n.º 2 do artigo 34.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), a taxa de justiça é de 6 unidades de conta (Tabela I - A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais e n.º 1 do artigo 7.º deste diploma). Lisboa, 04.07.2023 Maria Olinda Garcia (Relatora) Ferreira Lopes António Magalhães Catarina Serra Nuno Gonçalves Orlando Gonçalves Maria dos Prazeres Beleza (Presidente da Secção) Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC. ________________________________________________
1. Sobre os termos desta distinção vd., exemplificativamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de outubro de 2012 - proferido no proc. n.º 125/11.7YFLSB e acessível em www.dgsi.pt -, segundo o qual «(…) A infracção assume natureza instantânea quando não se prolonga no tempo e se define como um ponto. E assume a natureza permanente ou continuada quando se prolonga no tempo e se define como uma linha ou uma série de pontos. (…)». Em moldes similares, vd. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de fevereiro de 2015 e de 23 de junho de 2016, proferidos, respetivamente, no proc. n.º 50/14.0YFLSB no proc. n.º 16/14.0YFLSB e acessíveis em www.dgsi.pt.↩︎ 2. Cita-se o Parecer n.º 24/1995 do Conselho Consultivo da PGR, acessível em https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/8906.↩︎ 3. Neste sentido, vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de abril de 2018 e de 30 de junho de 2020, proferidos, respetivamente, no proc. n.º 14/18.4YFLSB e proc. n.º 62/19.7YFLSB e sumariados em www.stj.pt e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de fevereiro de 1995, proferido no proc. n.º 028674 e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ 4. Vd. o citado Parecer do Conselho Consultivo e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo aí citada, bem como, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de outubro de 1999 - proferido no proc. n.º 042460 e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ 5. Neste sentido, v. o Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de janeiro de 2008 - proferido no proc. n.º 07P4279 e acessível em www.dgsi.pt - e de 4 de dezembro de 2008 – proferido no processo n.º 2823/08 e sumariado em www.stj.pt. No sentido de que se trata de um dolo específico, v. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbrincense do Código Penal, tomo III, Coimbra, pág. 780 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de outubro de 2001 - proferido no processo n.º 1262/98 - e de 28 de fevereiro de 2019 - proferido no proc. n.º 2/16.5TRPRT -, ambos sumariados em www.dgsi.pt.↩︎ 6. Vd. Paula Ribeiro de Faria, loc. cit.↩︎ 7. Idem, nota 20, pág. 779.↩︎ 8. Atente-se que a lesão da imagem pública da justiça não é enquadrável no prejuízo tipicamente relevante. Neste sentido, a respeito da imagem da Administração, v Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., pág. 779.↩︎ 9. Cita-se o mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de janeiro de 2008.↩︎ 10. Assim, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, pág. 390 e, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009 – proferido no proc. n.º 2472/08 – e de 19 de setembro de 2012 – proferido no proc. n.º 10/12.5YFLSB -, ambos sumariados em www.stj.pt.↩︎ 11. Cita-se Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. I., Coimbra, pág. 501.↩︎ 12. Neste sentido, v. o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de junho de 2020.↩︎ 13. É ponto assente que a preterição ou defeituoso cumprimento do dever de fundamentação é gerador de mera anulabilidade do ato impugnado. Neste sentido, v., inter alia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2013, proferido no processo n.º 93/12.8YFLSB e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ 14. A respeito dos requisitos da fundamentação, vd., em geral, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª Edição, Coimbra, pág. pág. 826; e Mário Esteves De Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco De Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª Edição, Almedina, págs. 600 a 602. A este propósito, observa Ana Fernanda Neves, ob. cit., pág. 333, que a decisão suspensiva deve explicitar suficientemente os fundamentos em que assente.↩︎ 15. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 2005, proferido no processo n.º 2381/04 e sumariado em www.stj.pt.↩︎ 16. Acórdão do STJ de 12 de fevereiro de 2009, proferido no processo n.º 1601/08 e sumariado em www.stj.pt.↩︎ 17. Vd. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, págs. 351 e 352.↩︎ 18. Vd. Mário Esteves De Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco De Amorim, loc. cit., e, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 dezembro de 2002, proferido no processo n.º 01654/02 e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ 19. Neste sentido, Ana Fernanda Neves, loc. cit., pág. 333.↩︎ 20. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2015, proferido no proc. n.º 117/14.4YFLSB e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ 21. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de janeiro de 2021, proferido no proc. n.º 45/19.7YFLSB e acessível em www.dgsi.pt.↩︎ |