Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1439/16.5T8PTG.E2.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
SEGMENTO DECISÓRIO
OBJETO DO RECURSO
RECLAMAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Inexistindo dois segmentos decisórios autónomos pelo facto de a matéria em causa ser unitária e incindível, “estando a decisão [ ] irremediavelmente ligada”, a decisão é única para o efeito de apreciação da dupla conformidade.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Notificados do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 2.02.2023, veio a recorrida Caixa Geral de Depósitos S.A., reclamar para a Conferência, invocando a nulidade do acórdão reclamado, por excesso de pronúncia.

A reclamação é do seguinte teor:

1. À luz da causa da pedir tal como configurada pela Recorrida, esta peticionou, a título principal, que «[sejam] anuladas as hipotecas voluntárias realizadas pelas escrituras públicas, juntas como docs. 3 e 4, lavradas entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu AA e de BB no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., das inscrições C-1 e C-2 referentes a esse mesmo prédio descrito sob o n.º 670 –..., lavradas a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA.».

2. Em alternativa e para o caso de assim não se entender, «ser anulada a hipoteca voluntária realizada pela escritura pública, junta como doc. 4, pelos factos alegados nos artigos 31.º a 39.º da presente petição inicial, lavrada entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu AA e de BB no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., da inscrição C-2 referente a esse mesmo prédio descrito sob o n.º 670 – ..., lavrada a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA».

3. Cumpridos os formalismos legais, por sentença proferida a 09 de janeiro de 2020, a Primeira Instância, julgou parcialmente procedente, por provada, a presente acção, e, em consequência, «[anulou] a hipoteca voluntária constituída por escritura pública outorgada em 26 de Fevereiro de 2002 entre a caixa Geral de Depósitos, S.A. e AA e BB, no Cartório Notarial ..., a fls. 27 a 29, do Livº 26 - C, determinando-se o cancelamento do registo da hipoteca inscrita pela inscrição C-2, Ap. 4 de 2002/02/20, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o nº 670/19940706, improcedendo o demais peticionado».

4. Com efeito, a Primeira Instância apenas deferiu o segundo dos pedidos formulados pela aqui Recorrida, mantendo válida a hipoteca respeitante à inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001).

5. Não se conformando com o decidido, a CGD interpôs recuso de apelação, tendo como pedido a anulação daquela sentença, substituindo-a por Acórdão que julgasse válida a constituição da hipoteca anulada (C-2, Ap. 4 de 2002/02/20).

6. A Recorrida apresentou contra-alegações e, também, recurso subordinado, peticionado pela nulidade da douta sentença, por omissão de pronúncia, no que respeita à alegada ofensa da legítima.

7. Por Acórdão proferido a 11 de março de 2021, foi a Apelação interposta pela CGD julgada procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte que decidiu anular a referida hipoteca (C-2, Ap. 4 de 2002/02/20), julgando, ainda, improcedente o recurso subordinado.

8. Inconformada, a Recorrida interpôs recurso para esse Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão proferido a 27 de janeiro de 2022, julgou a revista parcialmente procedente, determinando-se a baixa dos autos ao Venerando Tribunal da Relação para apreciação – exclusiva – da questão objeto do recurso subordinado enunciada no ponto 14, isto é, a invocada ofensa da legítima, apesar de o enquadramento normativo invocado pela Recorrida ser diferente daquele que o Supremo Tribunal de Justiça apontou.

9. Em cumprimento do doutamente determinado, por Acórdão proferido a 24/03/2022, o Venerando Tribunal da Relação de Évora julgou o recurso subordinado improcedente, essencialmente com a mesma fundamentação da 1.ª Instância e sem voto de vencido, ou seja, julgou procedente o recurso principal interposto pela CGD e negou provimento – novamente – ao recurso subordinado.

10. Novamente inconformada, a Recorrida - BB -, interpôs recurso de revista para esse Supremo Tribunal de Justiça, peticionando pela anulação das hipotecas por alegada ofensa da sua legítima, nos termos do disposto nos artigos 877.º e 939.º, ambos do CC.

11. A revista interposta seguiu o regime normal, nem foi invocado qualquer normativo legal que justificasse a revista excecional.

12. Por Acórdão proferido a 02/02/2023, essa Alta Instância Judicial, julgou a revista procedente e ordenou o cancelamento das duas hipotecas.

Sucede que,

13. Apesar de a CGD não ter invocado nas suas contra-alegações, nem está processualmente obrigada a fazê-lo, sem que isso implique qualquer efeito cominatório, salvo melhor e douta opinião, não podia esse Supremo Tribunal de Justiça conhecer e ordenar o cancelamento da hipoteca respeitante à inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001), porquanto está submetida inexoravelmente ao regime da dupla conforme, nos termos do n.º 3 do art. 671.º do CPC.

14. Pois, como assinalou esse Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido a 28/01/2016 (Proc. n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1), «a dupla conformidade exige, assim, que aquestãocrucial para o resultado declarado tenha sido objecto de duas decisões “conformes”», ou seja, «existirá dupla conforme quando não houver inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos aduzidos no Acórdão recorridorelativamente aos utilizados na sentença apelada, com suporte no segmento decisório, no pedido e na causa de pedir» (sublinhado e realces nossos -disponível em www.dgsi.pt).

15. Dito de outro modo, na senda da lição do Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, «(..) existirá um quadro de fundamentação essencialmente diferente nos casos em que “a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico”, ou quando “uma eventual condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de determinado contrato, sendo confirmada pela Relação mas ao abrigo de normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato (…)”(sublinhado e realces nossos - Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, 3ª Edição, pág. 316).

Ora,

16. Compulsadas a sentença de Primeira Instância e o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, proferido a 24/03/2022, concluímos que ambas as Instâncias pugnaram pela validade da hipoteca com inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001), à luz do mesmo quadro normativo e sem voto vencido, quadro este que foi repristinado e apreciado por esse Supremo Tribunal de Justiça, embora em termos distintos.

17. Dito de outro modo, o Acórdão da Relação de Évora – 24/03/2022 – confirmou, sem voto de vencido e com base em fundamentação substancialmente idêntica a decisão da 1.ª Instância, no que respeita à validade da hipoteca com inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001).

Com efeito,

18. Salvo melhor e douto entendimento, o Acórdão sob reclamação é nulo, por excesso de pronúncia, na parte respeitante à apreciação da questão da (in)validade da hipoteca com inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001), por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), aplicável ex vi dos arts. 666.º e 685.º, todos do CPC.

19. Destarte, estando vedado a esse Supremo Tribunal de Justiça conhecer a questão da (in)validade da hipoteca com inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001), não podia ordenar a sua anulação, impondo-se reforma do douto Acórdão sob reclamação”.

2. A autora / recorrente BB respondeu à reclamação dizendo:

1. Pede a R que: “Termos em que roga a V. Exas. se dignem declarar a nulidade do Acórdão proferido a 02/02/2023, substituindo-o por outro, que reconheça a existência de dupla conforme quanto à questão da validade da hipoteca com inscrição C-1 (AP. 1 de 16/07/2001), apreciado a outra conforme Direito.”

2. Ora a R mais não pretende do que uma outra decisão, que vá de encontro aos seus interesses, ilegítimos diga-se;

3. Tanto assim que alega existir dupla conforme quanto a uma das hipotecas mas pede também “nova” decisão quanto à outra!

4. Ora quanto ao pedido de “apreciando a outra conforme Direito”, cumpre lembrar à R que ela está apreciada, decidida, conforme do Direito e muitíssimo

Doutamente decidida!

5. O mesmo se diga quanto à primeira hipoteca e que a R numa litigância que raia a má fé vem alegar que quanto a esta primeira hipoteca existe dupla conforme, bem sabendo que é falso o que alega!

6. Pois não existe dupla conforme!

7. Mas se existisse não era agora, que a decisão não lhe agradou, o tempo para a alegar, pelo que, tal alegação não só é manifestamente infundada como é manifestamente extemporânea;

8. De facto se a R entendia que quanto à primeira hipoteca se verificava uma situação de dupla conforme e que por isso não era admissível o recurso quanto a ela, não era quando conheceu o Mui Douto Acórdão, que o alegava,

9. Mas sim quando foi interposto o recurso para o STJ, e qua abrangeu as duas hipotecas!

Mais,

10. O recurso que o Mui Douto Acórdão decidiu foi interposto da primeira e única decisão que recaiu sobre o pedido de anulação das hipotecas por a ora Recorrente, irmã de quem contraiu o crédito que as mesmas garantiam, não ter dado o seu consentimento para as mesmas e este ser necessário;

Vejamos,

11. A sentença da 1ª Instância decidiu-se pela anulação da 2ª hipoteca por falta de poderes do irmão da A para a constituir, decidindo que o mesmo tinha poderes para constituir a primeira;

12. Nada decidindo esta sentença quanto à ofensa da legitima da Autora ora Recorrente;

13. Em sede de recurso alegou a Autora a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre esta matéria e relativamente ao pedido subsidiário – anulação da 2ª hipoteca – pugnou pela manutenção da decisão da anulação da mesma;

14. No Acórdão da Relação de 11 de Março de 2021, decidiu-se que:

“Decidiu que não havendo norma jurídica que atribua à Autora, enquanto herdeira da sua mãe, legitimidade substantiva que suporte a sua pretensão de ver anulada a segunda escritura de hipoteca, ou melhor dizendo, não se alcançando norma jurídica que confira á Autora legitimidade substantiva para, ao abrigo do disposto no nº 1 do Artigo 287º do CC, e tendo por referência ao disposto no nº 1 do art. 268º do CC, ver declarada a ineficácia dessa hipoteca relativamente a seus pais, a acção tem que naufragar completamente”

15. Ou seja, por este Acórdão decidiu-se que acção improcedia na sua totalidade por falta de legitimidade substantiva da autora para pedir a anulação das hipotecas…

16. Este Acórdão foi igualmente omisso quanto ao pedido principal – a nulidade das hipotecas por ofensa à legitima da Autora e a mesma não ter dado o necessário consentimento para a constituição das hipotecas para garantia de créditos bancários concedidos ao seu irmão;

17. O Mui Douto Acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 2022, decidiu que:~

“Confirma-se, porém, que padece o acórdão recorrido de nulidade por omissão de pronúncia da questão objecto do recurso subordinado de apelação (saber se deve considerar-se que, tendo as hipotecas voluntárias dos autos, constituídas sobre bem imóvel dos pais da autora, servido de garantia a empréstimos bancários contraídos pelo irmão da autora, tal exigia o seu consentimento, na qualidade de herdeira legitimária, nos termos do art. 877.º do CC, norma que, alegadamente, seria aplicável à constituição de tais hipotecas ex vi art. 939º do CC).”

18. Mais ordenando o mesmo a baixa do processo à Relação para apreciação da referida questão:

“A questão controvertida visa assim apurar se deve prevalecer a tese que, tendo as hipotecas em causa sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão da Autora, era exigível o consentimento da Autora, na qualidade de herdeira legitimária nos termos do artigo 877º do Código Civil, aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi do artigo 939º2 do mesmo diploma.”

19. Os autos baixaram à Relação e por Acórdão de 24 de Março de 2022, decidiu- se, pela primeira vez, a questão em causa, constando do Acórdão entre o mais que:

“A questão controvertida visa assim apurar se deve prevalecer a tese que, tendo as hipotecas em causa sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão da Autora, era exigível o consentimento da Autora, na qualidade de herdeira legitimária nos termos do artigo 877º do Código Civil, aplicável à constituição de hipotecas voluntárias ex vi do artigo 939º2 do mesmo diploma.”

20. E decidindo este Acórdão que:

“Todavia, temos aqui de fazer uma distinção entre a hipoteca a favor dos filhos ou dos netos e a hipoteca constituída a favor de terceiro. Estamos aqui claramente perante uma hipoteca a favor de terceiro que se destina a garantir um crédito de uma instituição bancária – ainda que para garantir o pagamento de uma dívida contraída junto dos filhos ou dos netos – e isso afasta a hipótese concreta de aplicação da disciplina do artigo 877º, ex vi do artigo 939º, ambos do Código Civil19.

No que se reporta à aplicabilidade do artigo 939º do Código Civil, a esfera de protecção da norma apenas poderia abranger o estabelecimento de encargos em benefício dos respectivos descendentes e não já constituição de hipotecas a favor de terceiros, que é aquilo que se trata na presente situação.

A hipoteca constituída pelos pais para garantir o crédito de um filho, sem o assentimento dos outros, não contende com o artigo 877º, salvo se provar que, através do negócio formalizado, as partes pretenderam em desvio da vontade que realmente declararam, transmitir os bens a alguns dos filhos, com exclusão dos outros, prejudicando-os.”

21. É este Acórdão da Relação de 24 de Março de 2022 que decide sobre o pedido principal da Autora: a nulidade das hipotecas por não ter dado o seu consentimento para a constituição das mesmas;

22. Deste Acórdão da Relação recorreu a Autora para o Colendo STJ e desse recurso resultou o Mui Douto Acórdão que julgou o pedido principal da Autora procedente, decidindo pela anulabilidade das hipotecas:

“Em conclusão, os contratos de constituição de hipoteca dos autos apresentam características que tornam adequada (ou mais adequada) a aplicação do regime dos contratos onerosos, podendo dizer-se que a norma do artigo 977.º do CC não só não está em contradição com a disciplina que lhe sé aplicável como que, pelas razões expostas acima, representa o regime que as necessidades de tutela dos interesses da recorrente exigem ou reclamam”

Pelo exposto, concede-se provimento à revista e, revogando-se o Acórdão recorrido, anulam-se as hipotecas.”

23. Ora o Acórdão recorrido, revogado pelo Mui Douto Acórdão do STJ, foi o primeiro que decidiu sobre a questão em apreço, pelo que, não se verifica a dupla conforme alvitrada pela R/Recorrida;

24. Anteriormente as Instâncias pronunciaram-se e decidiram sobre os poderes que as procurações concederam ou não ao irmão da Recorrente para as hipotecas, sobre o regime da simulação e consequente anulação dos negócios, e até sobre a ilegitimidade substantiva da A/Recorrente para pedir a anulação das hipotecas…

25. Tanto assim é, e a R/Recorrida tem perfeita consciência de não existir dupla conforme, que apresentou alegações e não alegou existir qualquer situação de dupla conforme;

26. Acresce que nem se alcança como é que a R pode genuinamente considerar ter havido dupla conforme formada por Acórdão considerado nulo por omissão de pronúncia ou então pelo Acórdão agora revogado!

27. Reitera-se: não existe dupla conforme, e a Recorrida sabe-o muito bem, tanto assim que não a alegou nas suas contra-alegações de recurso;

28. Igualmente também não se alcança como é que, genuinamente e de boa fé, a Recorrida pode considerar que se fez a alvitrada dupla conforme pelo Acórdão de 24 de Março de 2022, revogado pelo Mui Douto Acórdão de 2 de Fevereiro de 2023! Mas a Recorrida considera que existem duplas conforme com base em decisões revogadas?! É que o Acórdão de 24 de Março de 2022 foi revogado.

29. Certamente que não! A Recorrida sabe bem que um dos Acórdãos da Relação não podia fazer dupla conforme porque foi declarado nulo por omissão de pronúncia e o outro (24 de Março de 2022) também não porque foi revogado!

30. A Recorrida sabe bem não existir uma situação de dupla conforme e não a alegou nas suas contra-alegações do recurso para o STJ;

31. Fê-lo agora porque a Mui Douta decisão não lhe é favorável!”.


*

Como bem se recorda no Acórdão de 2.02.2023 (ora impugnado), CC e DD intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Caixa Geral de Depósitos S.A., e AA e mulher, EE, peticionando o seguinte:

a) Que sejam “anuladas as hipotecas voluntárias realizadas pelas escrituras públicas, juntas como docs. 3 e 4, lavradas entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu, AA e BB no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., das inscrições C-1 e C-2 referentes a esse mesmo prédio descrito sob o n.º 670 – ..., lavradas a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA.”.

b) Que seja “anulada a hipoteca voluntária realizada pela escritura pública, junta como doc. 4, pelos factos alegados nos artigos 31.º a 39.º da presente petição inicial, lavrada entre a Ré Caixa Geral de Depósitos SA e o irmão das Autoras, o aqui Réu, AA e BB no Cartório Notarial ..., respeitantes ao prédio melhor identificado supra, com as devidas e legais consequências e ser determinado o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial ..., da inscrição C-2 referente a esse mesmo prédio descrito sob o n.º 670 – ..., lavrada a favor da Ré Caixa Geral de Depósitos SA”.

Na sentença decidiu-se julgar parcialmente procedente o pedido, anulando-se (apenas) a hipoteca C-2, com base no segundo fundamento.

Em sede de apelação, a ré CGD impugnou a decisão de procedência parcial do pedido (a anulação da hipoteca C-2), pugnando pela improcedência do segundo fundamento.

Em sede de recurso subordinado, a 1.ª autora impugnou a decisão de procedência (apenas) parcial do pedido (a anulação da hipoteca C-2), insistindo na procedência do primeiro fundamento.

A final, a sentença veio a ser revogada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.03.2022, proferido na sequência do Acórdão deste Supremo Tribunal de 27.01.2022, que determinou que se suprisse a omissão de pronúncia em que havia incorrido o anterior Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.03.2021.

Com efeito, neste último aresto não havia sido apreciada totalmente a questão suscitada no recurso subordinado ou, por outras palavras, a questão do recurso subordinado havia sido indevidamente circunscrita à anulação da hipoteca C-2.

O certo é que, não se conformando, a autora veio ainda recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, insistindo na anulabilidade de ambas as hipotecas com base no primeiro fundamento.


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Cumpre apreciar.

Como é do conhecimento geral, não há acção sem petição (não há concessão oficiosa da tutela jurisdicional)[1], sendo, justamente, a petição – a petição inicial – o articulado cuja função específica é a propositura da acção, em que o autor formula a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expõe as razões de facto e de direito em que a fundamenta.

Explica Lebre de Freitas que é na petição inicial que o autor deve formular o pedido [cfr. artigo 552.º, n.º 1, al. e), do CPC], isto é, solicitar ao tribunal a providência processual quer julgue adequada para tutela da situação jurídica ou do interesse que afirma materialmente protegido, e deve indicar a causa de pedir [cfr. artigos 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 4, do CPC], isto é, identificar o(s) facto(s) constitutivo(s) da situação jurídica material que o autor quer fazer valer ou, numa fórmula mais genérica, o(s) facto(s) concreto(s) que terão constituído o efeito pretendido[2].

Tendo em conta estes ensinamentos, e independentemente das formulações que possam ter sido adoptadas pelas instâncias e pelas partes, verifica-se que o objecto processual, determinado pelo pedido e pela causa de pedir é único (não plural ou desdobrável em vários objectos [3]) e abrange as duas hipotecas. Se não veja-se.

 O pedido das autoras (a providência processual quer as autoras julgam adequada para a tutela da situação jurídica) é um único – a declaração de invalidade / anulação das hipotecas – e a causa de pedir (o facto constitutivo da situação jurídica material que as autoras querem fazer valer) é o vício da invalidade / anulabilidade das mesmas.

É preciso distinguir o pedido e, sobretudo, a causa de pedir dos fundamentos –fundamentos ou razões de direito[4] – em que normalmente se apoia a exposição desta última.

Ora, como bem se esclareceu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 27.01.2022, os fundamentos para a pretensão das autoras são dois:

(i) Terem as ditas hipotecas sido constituídas para garantir empréstimos bancários contraídos pelo irmão das autoras, aqui 2.º réu, o que, em seu entender, e de acordo com o regime da venda de pais a filhos do artigo 877.º do CC, aplicável ex vi do artigo 939.º do CC, regime que se destina proteger os herdeiros legitimários, exigiria o consentimento das autoras, que não foi prestado;

(ii) De qualquer forma, as procurações outorgadas pelos pais das autoras ao irmão destas, aqui 2.º réu, apenas concediam poderes para constituir a primeira hipoteca (doravante designada C1); em consequência, o acto de constituição da segunda hipoteca (doravante designada C2) foi realizado em representação sem poderes; não tendo sido ratificado, nos termos do artigo 268.º, n.º 1, do CC, é ineficaz em relação aos representados.

Como se viu acima, o Tribunal de 1.ª instância julgou válida a hipoteca C1 e inválida a hipoteca C2; o Tribunal da Relação julgou válidas ambas as hipotecas; por fim, o Supremo Tribunal de Justiça veio a julgá-las inválidas.

Tudo isto é muito importante para o efeito da dupla conforme pois, como se explica no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, proferido em 20.09.2022 (doravante AUJ n.º 7/2022), “[e]nquanto causa impeditiva da revista normal, a dupla conforme é aferida na parte dispositiva da decisão final e em função do objecto do processo, o qual é delimitado pela(s) pretensão(ões) formulada(s) pela(s) parte(s), que indica(m) a(s) medida(s) de tutela pretendida(s); como tal, não é possível separar a questão da exigência de sobreposição das decisões da fisionomia da decisão em concreto”.

O reclamante diz, em suma, que na revista (admitida por via normal) poderia apreciar-se da validade da hipoteca C-2 mas não da validade da hipoteca C-1, pois em relação a esta existia dupla conforme, tendo ambas as instâncias decidido no mesmo sentido, ou seja, pela sua validade.

A verdade, porém, é que, considerando o que se disse atrás, a decisão que foi submetida à revista e apreciada no Acórdão de 2.02.2023 – a decisão recorrida – dizia respeito à validade, não de uma, mas das duas hipotecas.

Assim sendo, e ao contrário do que entende a reclamante, não há na decisão recorrida dois segmentos decisórios autónomos, respeitantes a cada uma das hipotecas, que possam ter destinos diferentes para efeito da dupla conforme[5].

E não há – não pode haver – dois segmentos decisórios autónomos porque a matéria em causa é unitária e incindível, “estando a decisão de ambas irremediavelmente ligada[6].


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DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


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Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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Lisboa, 22 de Junho de 2023

Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Graça Trigo

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[1] Cfr., neste sentido, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 243-244.
[2] Cfr. Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 37 e s., e Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, Coimbra, Gestlegal, 2017 (4.ª edição), pp. 66 e s. Cfr. ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), pp. 373-374.
[3] Sobre a pluralidade de objectos processuais autónomos e cindíveis cfr. Carlos Lopes do Rego (coord.), Cadernos do STJ – Secções Cíveis – A dupla conforme, Supremo Tribunal de Justiça, 2021 (1.ª edição), pp. 24 e s.
[4] Como diz Manuel de Andrade (Noções elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 111), essencial para a causa de pedir é somente a exposição dos fundamentos de facto; não é necessária a exposição das razões de direito.
[5] Se houvesse, como se esclarece no AUJ n.º 7/2022, a dupla conforme teria de ser apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.
[6] Usa-se aqui a expressão do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2015 (Proc. 258/09.0TBSCR.L1.S1). A situação abordada neste Acórdão era (ainda mais) paradigmática, estando em causa a incindibilidade de pretensões deduzidas na acção e na reconvenção.