Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
648/23.5JAPRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE EXPULSÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Inexiste nulidade do acórdão por falta de fundamentação ou omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP) quando a invocação desta nulidade consubstancia uma confusão entre “falta de fundamentação” e “divergência relativamente ao decidido”, resultando do próprio recurso, no confronto com a decisão, que este tão só respeita a uma impugnação material da decisão

II. O facto de o tribunal ter ou não atendido a determinadas circunstâncias para a determinação da pena, circunstâncias que o arguido pretende ver apreciadas de determinada forma, não configura omissão de pronúncia, já que no acórdão se procedeu realmente à ponderação do regime penal previsto para jovens delinquentes, cuja aplicação foi afastada fundamentadamente.

III. O processo de determinação da pena é uma “actividade judicialmente vinculada”, vinculação que obriga ao prosseguimento de determinados passos sequenciais no processo aplicativo da pena.

IV. O iter inicia-se com a determinação da pena abstracta - determinação da medida legal da pena - e o tipo de crime da condenação fornece a moldura legal. Mas há seguidamente que determinar se, em concreto e se for caso disso, opera alguma circunstância modificativa - circunstância modificativa comum/geral ou especial, agravante ou atenuante -, que é a que altera a moldura abstracta, fornecendo uma nova moldura abstracta. Só então se encontra finalizado o processo de determinação da pena abstracta e achada a moldura legal onde se fixará então a pena concreta.

V. Assim, no iter aplicativo da pena, o tribunal de julgamento deveria ter procedido à ponderação da circunstância modificativa geral atenuante prevista no art. 4.º do DL n.º 401/82 antes de determinar a pena concreta; e, não, ter só justificado posteriormente o afastamento da circunstância modificativa atenuante.

VI. Mas se a fundamentação do acórdão, globalmente considerada e mau grado o entorse detectado, oferece resposta clara a toda a impugnação da pena efectuada em recurso, a deficiência de fundamentação não se repercute na decisão do recurso e não impede a apreciação.

VII. Justifica-se a confirmação da pena de 5 anos e 2 meses de prisão aplicada no acórdão, pena enquadrada também no referente, constatando-se que não excede (ou pelo menos não excede de modo a justificar a intervenção correctiva do Supremo na medida da pena) as penas aplicadas para casos idênticos ao presente, ou seja, casos de correios de droga, primários, que, num acto isolado, transportam estupefaciente de características semelhantes quanto ao grau de nocividade para a saúde pública e às quantidades envolvidas.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 648/23.5JAPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Criminal de... - J... ., foi proferido acórdão a condenar AA como autor de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, e na pena acessória de expulsão do território nacional, pelo período de 6 (seis) anos.

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico

de estupefacientes, p.e.p. pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto Lei n.º 15/93 de 22.01, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão,

II. Face à prova produzida, e com o devido respeito, entende o Recorrente que, a pena aplicada foi manifestamente desproporcionada e excessiva, levando a uma condenação perfeitamente injusta.

III. O Arguido confessou os factos de forma livre e de espontânea vontade, esclarecendo as razões que o motivaram a realizar o transporte de cocaína.

IV. Demonstrou uma postura humilde e de arrependimento sincero no seu comportamento.

V. O Recorrente apresenta uma forte censura quanto ao crime que cometeu e apresenta-se consciente das consequências, o que manifesta um juízo de prognose favorável à sua reintegração.

VI. Colaborou com a Justiça e com todas as autoridades judiciárias envolventes ao longo do processo, quer no momento da detenção, quer em sede de inquérito (na identificação dos “angariadores”) bem como em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

VII. O recorrente demonstra uma sensibilidade à pena aplicada, uma vez que o facto de se encontrar preso preventivamente desde fevereiro de 2023, fê-lo repensar na sua vida e desenvolver a capacidade de procurar alterar as suas atitudes, identificando claramente os comportamentos e hábitos que deve alterar, para mudar de vida, demonstrando um esforço sério para iniciar o seu processo de reintegração na sociedade, que é exatamente o objetivo fundamental do direito penal na recuperarão do delinquente.

VIII. Demonstra ter um comportamento responsável e adequado no estabelecimento prisional, ajustado ao normativo disciplinar vigente e encontra-se a trabalhar como “faxina” dos Serviços Clínicos – vide Relatório Social junto aos autos.

IX. O Recorrente é consumidor de cocaína desde os seus 17 anos, de forma regular, e está abstémico de estupefacientes, desde a entrada no estabelecimento prisional e a beneficiar de acompanhamento em consultas de psicologia

X. O recorrente era um jovem, com apenas 20 anos de idade, no tempo do cometimento do crime, de que vem acusado.

XI. Não tem antecedentes criminais.

XII. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do C.P., artigo 369º e seguintes do Código Processo Penal e artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa e em consequência, violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena, tornando-a excessiva, desajustada, desproporcional e injusta,

XIII. Na determinação concreta da pena, deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do arguido e contra ele, designadamente, e não desconsiderando o superior saber deste Tribunal, se destacam, o modo, execução e a gravidade das consequências do ilícito praticado, o grau de ilicitude, a intensidade do dolo, os fins ou motivos pessoais que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados, as condições pessoais, familiares, sociais e económicas do arguido, a conduta anterior e posterior do facto ilícito, a sua confissão integral e sem reservas, o arrependimento e a sua postura em tribunal e o seu comportamento no estabelecimento prisional.

XIV. O grau de ilicitude não é elevado.

XV. O dolo não é intenso nem a culpa grave.

XVI. Tratou-se de um acto isolado na vida do aqui Recorrente, por se encontrar num estado de desespero e necessidade grave.

XVII. Pertence a um agregado familiar numeroso com carência efetiva, dificuldades económicas graves

XVIII. Circunstâncias estas que não foram tidas em conta, na determinação da medida da pena.

XIX. Não se compreende em que factos ou provas o Tribunal a quo se sustentou, para formular a sua convicção relativamente à condenação nesta pena tão excessiva.

XX. Na audiência de discussão e julgamento, demonstrou uma postura humilde e consternação pela sua conduta.

XXI. O Recorrente, apresenta uma forte censura quanto ao crime que cometeu.

XXII. O Recorrente demonstra sensibilidade à pena aplicada, a qual o fez repensar na sua vida e desenvolver a capacidade de procurar alterar as suas atitudes, identificando claramente os comportamentos e hábitos que deve alterar para mudar de vida, demonstrando um esforço sério para iniciar o seu processo de reintegração na sociedade, que é exatamente o objetivo fundamental do direito penal na recuperação do delinquente.

XXIII. O art. 71º do Código Penal fornece os critérios da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

XXIV. Também nessa medida, e no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao Recorrente, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no art. 71º do Código Penal.

XXV. É entendimento do Recorrente, que o Tribunal deverá condená-lo numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa, face às circunstâncias acima expostas, em primeiro lugar, aplicando, em conformidade com o direito então violado.

XXVI. As circunstâncias e critérios do predito artigo 71º, devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, como as condições pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, e ao mesmo tempo que também transmitem indicações exogéneas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente, e foi aqui que o Tribunal recorrido falhou.

XXVII. Deve pois o Acórdão que condenou o arguido na pena de 5 anos e 2 meses de prisão ser alterado, por esta pena ser desproporcional às finalidade da punição e ser aplicado em conformidade o regime do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

XXVIII. O regime especial dos jovens delinquentes, consignado no Decreto Lei n.º 401/82 de 23 de setembro fundamenta-se num direito mais reeducador do que sancionador.

XXIX. E ao equacionar, a aplicabilidade do regime especial para jovens delinquentes, mas ao não fundamentar o porquê da sua não aplicação, verifica-se uma falta de fundamentação ou motivação da sentença que determina a sua nulidade (artigo 374.º n.º 2 e artigo 379 alinea a) do CPP).

XXX. Por outro lado, o não aplicar o regime especial para jovens e delinquentes ao caso concreto, sem fundamentar o porque da sua não aplicação, violou o Tribunal recorrido os artigos 72.º, 73.º, 374 n.º 2 e 379.º alinea a) todos do CPP.

XXXI. Assim, o Acórdão recorrido deve ser declarado nulo por insuficiência de fundamentação ou, em alternativa, ser aplicado ao recorrente o regime especial para jovens delinquentes consignado no Decreto Lei n.º 401/82 de 23 de setembro, devendo assim a pena aplicada ser especialmente atenuada.

XXXII. Até porque, a atenuação especial da pena prevista no artigo 4 do Decreto Lei n.º 401/82 de 23 de setembro não se funda nem exige uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente, nem contra ela poderá invocar-se a gravidade do crime praticado e/ou a prevenção da criminalidade.

XXXIII. “(…)bastará para a conceder a presença de sérias razões para crer que, da sua aplicação, resultam vantagens para a reinserção”- Ac. Rel. Porto de 3/2/2010, relator Maria Leonor Esteves Assim, a gravidade da ilicitude não é, por si, impeditiva de tal atenuação.

XXXIV. Sabe-se que a prisão acarreta malefícios que se exponenciam nos jovens adultos, que por si só, se tratam de indivíduos particularmente influenciáveis, e ao retirar o jovem do meio em que é suposto ir inserir-se progressivamente, produz-se antes, efeitos dessocializadores devastadores, estigmatização e marginalização que devem ser acautelados e evitados.

XXXV. Uma das formas de prosseguir esta finalidade é exatamente a imposição ao juiz do dever de atenuar especialmente a pena “quando tiver razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reintegração social do jovem condenado.

XXXVI. A atenuação especial da pena não implica a aplicação de uma pena meramente simbólica ou sequer aligeirada, antes o reconhecimento de que a imaturidade, própria de quem tem a personalidade ainda em desenvolvimento, merece da sociedade, em regra, uma menor severidade do que aconteceria se os mesmos crimes fossem cometidos por um adulto.

XXXVII. Também não se pode esquecer que a criminalidade de hoje é muito diferente do que era no passado, que os fenómenos juvenis são agora diversos e que há um maior acesso ao conhecimento por parte dos mais novos; mas a maturidade só se adquire com a experiência de vida e tudo isto deve ser ponderado pelo Juiz na determinação da medida da pena.

XXXVIII. O tribunal a quo não valorou devidamente os pressupostos que determinariam pela formulação de um juízo positivo nem tão pouco fundamentou tal juízo, argumentando de forma geral a não aplicação deste regime.

XXXIX. E os elementos que usou, por si só, revelam-se, porém, insuficientes para habilitar o tribunal a formular semelhante conclusão.

XL. O comportamento do aqui Recorrente bem poderá, por si e nas circunstâncias em que ocorreu, ser considerado, por si mesmo, no domínio das hipóteses, apenas uma manifestação de delinquência juvenil, de carácter transitório, como episódio próprio do período de latência social, propiciador de comportamentos desviantes.

XLI. e que só com a experiência de vida e muitas vezes com os seus próprios erros é que assumem a responsabilidade.

XLII. A mera circunstância de ter praticado o crime de trafico de estupefacientes, na circunstância e contexto em que o fez, e que vem provado, não permite por si mesma, considerar que a personalidade do Recorrente está desconforme com a ordem jurídica e que a desvaloriza.

XLIII. os elementos existentes não são, pois, suficientes para decidir a questão relativa à aplicação do regime penal especial para jovens, nomeadamente para permitir a prognose sobre as vantagens para a reinserção social do jovem.

XLIV. Não obstante a falta de elementos suficientemente fundamentadores, o Acórdão recorrido decidiu-se negativamente quanto à aplicação do regime penal relativo a menores de 21 anos, constante do Decreto Lei n.º 401/82 de 23 de setembro, quando na verdade, de todo o exposto e da prova produzida, vislumbra-se vantagens na atenuação da pena, com vista a potenciar a sua reintegração.

“a atenuação (…) não se funde nem exige uma diminuição acentuada da ilicitude ou da culpa: bastará para a conceder a presença de sérias razões para crer que, da sua aplicação, resultam vantagens para a reinserção”- Ac. Rel. Porto de 3/2/2010, relator Maria Leonor Esteves.

Assim, a gravidade da ilicitude não é, por si, impeditiva de tal atenuação.

Assim, por efeito desta atenuação especial aplicável, deve aplicar-se ao Recorrente uma pena em conformidade.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“afigura-se-nos justificada a medida concreta das penas aplicadas pelo acórdão sub judice, pelo que o Tribunal a quo respeitou os artigos 40.º, 69.º, 71.º do Código Penal, não assistindo qualquer razão ao recorrente.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, acompanhando a resposta ao recurso e pronunciando-se também no sentido da confirmação da pena, rematando: “a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da escolha e medida da pena, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação de todos os factores reputados relevantes à luz do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, e, em função disso, aplicada uma pena de prisão efectiva justa e adequada, não merecendo qualquer censura”.

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. Os factos provados do acórdão são os seguintes:

“2.1 – FACTOS PROVADOS:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 31-01-2023, pelas 13h40, o arguido desembarcou no Aeroporto ..., sito em ..., nesta cidade da ..., passageiro do voo TP 80, procedente de ..., no ..., com destino ao ..., encontrando-se em trânsito com destino final a ....

2. O arguido transportava na sua bagagem de mão, nas circunstâncias supra referidas, 2.789,934 gramas de cocaína, com o grau de pureza de 87,5%, suficiente para 12.206 (doze mil e duzentas e seis) doses.

3. Além do referido produto estupefaciente, o arguido detinha ainda 1 (um) telemóvel de marca Motorola e ainda a quantia em numerário, no montante de €800,00 (oitocentos euros).

4. O arguido conhecia as características e natureza do produto estupefaciente que detinha e que transportava por via aérea, bem sabendo que a sua detenção e transporte não lhe eram permitidos, querendo actuar desta forma.

5. O arguido destinava o referido produto estupefaciente para cedência e venda a terceiros, mediante contrapartida monetária.

6. O arguido procedeu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.

8. Confessou a prática dos factos e declarou-se arrependido.

9. O arguido não tem quaisquer familiares ou pessoas amigas em Portugal, tendo entrado em território nacional com o único propósito de efectuar o transporte daquele estupefaciente para França.

* Condição socioeconómica do arguido:

10. AA é natural do município de ..., ... -..., local onde decorreu o seu processo de socialização, em agregado familiar de humilde condição socioeconómica, composto pelos progenitores, ambos laboralmente ativos, e 6 irmãos, 4 germanos e 2 consanguíneos, e uma dinâmica intrafamiliar marcada pelas dificuldades económicas, pelo alcoolismo paterno e pelo uso de castigos físicos deste sobre os descendentes, enquanto a progenitora assumia uma atitude mais protetora sobre os menores.

11. AA efectuou o seu percurso escolar até ao nível equivalente ao 10º ano de escolaridade do ensino português, marcado por alguma desmotivação e absentismo, acabando por abandonar a escolarização aos 19 anos de idade, após ter experimentado a paternidade no decurso de uma relação de namoro iniciada nessa altura.

12. Nesta sequência, o arguido iniciou atividade laboral na construção civil, com o avô materno, e manteve-se a residir com o seu agregado familiar de origem, ao qual se juntou a companheira e o descendente, nascido a .../04/2020.

13. Iniciou o consumo de substâncias estupefacientes (cocaína) aos 17 anos de idade, de forma regular, até à aplicação da medida de coação de prisão preventiva. Este comportamento provocou alguma instabilidade na dinâmica do seu agregado familiar constituído, tendo o casal estado separado entre 2021 e 2022. Após a reconciliação optaram por se autonomizar, tendo arrendado uma habitação inserida em aglomerado habitacional onde residiam também os familiares do arguido (pais, tios e avós), continuando a beneficiar do apoio destes.

14. O casal vivenciava uma condição económica precária, sendo os únicos rendimentos os seus, enquanto trabalhador na construção civil em regime informal, auferindo cerca de 60 reais por dia. Por seu lado, a companheira, agora com 23 anos de idade, não desenvolvia nenhuma atividade laboral, beneficiando de apoio estatal em valor que não foi quantificado. A despesa mais significativa apresentada foi a renda da habitação, no valor de 350 reais.

15. O quotidiano era centrado na sua atividade laboral, na vida familiar e também no consumo de estupefacientes.

16. Pretende regressar ao ... e ao seu núcleo familiar de origem, por parte de quem refere continuar a beneficiar de apoio.

17. Após a sua reclusão, a companheira entregou a casa que tinham arrendado e voltou a residir, em conjunto com o filho menor, com a família de origem do arguido. O menor desconhece a atual situação jurídico-penal do pai/arguido.

18. Em meio prisional, o arguido tem mantido um comportamento ajustado ao normativo disciplinar vigente e foi colocado a trabalhar como faxina dos Serviços Clínicos, em 13/03/2023.

19. Refere estado abstémico de estupefacientes desde a entrada no E.P.P. e está a beneficiar de acompanhamento em consultas de psicologia.

20. Não recebe visitas, mantendo apenas contactos telefónicos com os seus familiares de origem e companheira.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam à pena. Pela ordem da prejudicialidade, são elas: (a) nulidade do acórdão por falta de fundamentação da não aplicação do regime especial previsto para jovens delinquentes; (b) aplicação do regime especial previsto para jovens delinquentes (art. 4.º do DL n.º 401/82); e (c) medida da pena de prisão.

Alega o Recorrente que a pena aplicada é desproporcional, exagerada e altamente penalizante, pelo que deve ser reduzida na sua medida, desde logo porque lhe deveria ter sido aplicado o regime especial previsto para jovens delinquentes, o que não sucedeu; e ao não aplicar o regime especial para jovens e delinquentes sem fundamentar o porquê da sua não aplicação, violou o tribunal recorrido os artigos 72.º, 73.º, 374 n.º 2 e 379.º al. a), todos do CPP.

Conclui que o acórdão recorrido deve ser declarado nulo por insuficiência de fundamentação ou, em alternativa, ser aplicado ao recorrente o regime especial para jovens delinquentes consignado no DL n.º 401/82, devendo assim a pena aplicada ser especialmente atenuada.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação total da decisão sobre a pena, por esta se mostrar “bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da escolha e medida da pena, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação de todos os factores reputados relevantes à luz do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do CP, e, em função disso, aplicada uma pena de prisão efectiva justa e adequada, não merecendo qualquer censura”.

2.(a) Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação da decisão de não aplicação do regime especial previsto para jovens delinquentes

Em primeira linha, o recorrente peticiona a anulação do acórdão por insuficiência de fundamentação, devido a, sempre na sua alegação, não ter sido explicado “o porquê da não aplicação do regime especial para jovens e delinquentes”, pelo que o tribunal recorrido teria “violado os arts. 72.º, 73.º, 374 n.º 2 e 379.º al. a), todos do CPP”.

Sucede que a impugnação efectuada, no confronto do acórdão recorrido, fica neste ponto por compreender. Senão, releia-se mais atentamente a decisão recorrida, mormente no excerto que passa a transcrever-se, por oferecer logo resposta à inusitada alegação do arguido.

Lê-se no acórdão:

“Regime Penal Especial para Jovens:

O art. 9.º do Código Penal estatui que aos maiores de 16 anos e menores de 21 anos são aplicáveis normas fixadas em legislação especial, cuja justificação consta do preâmbulo do Código Penal “Esta ideia corresponde, por um lado, à consciencialização do que há de arbitrário – mas não intrinsecamente injusto – na determinação de certa idade como limite formal para distinguir o imputável do inimputável. É justamente para atenuar os efeitos deste corte dogmático e praticamente imprescindível que se vê com bons olhos um direito de jovens imputáveis que vise paredes meias, nos princípios e nas medidas protectivas e reeducadoras, os fins do direito de menores. Mas, se esta seria, já por si, uma razão que levaria ao acatamento legislativo daquele direito para jovens imputáveis, outras motivações e razões mais arreigam a nossa convicção. Salientem-se não só as que decorrem dos efeitos estigmatizantes que este direito acarreta como também – em conexão com aquelas sequelas e no seio deste ramo do direito – a maior capacidade de ressocialização do jovem se que se abre ainda para zonas não traumatizadas, como tal perfeitamente lúcido e compreensivo às solicitações justas e adequadas da ordem jurídica.".

Neste pressuposto, o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos de idade foi instituído através do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23.09, estatuindo-se no seu preâmbulo os objectivos do regime aí consagrado, isto é, sempre que for possível e adequado às exigências concretas de prevenção especial e geral, se optar, relativamente aos jovens imputáveis, por medidas ou sanções que, tendo em conta o processo real de desenvolvimento do jovem, promovam a sua responsabilização e socialização, sem os riscos evitáveis de efeitos de estigmatização e de marginalização (sempre empobrecedores para o individuo e a comunidade) frequentemente ligados às medidas institucionais, designadamente às penas de prisão.

A sua aplicabilidade não assume carácter obrigatório; ou seja, é possível aplicar ao jovem maior de 16 anos pena de prisão sempre que tal se torne necessário para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade.

O art. 4.º do diploma prevê então que se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal -actualmente, após a revisão do CP, a remissão é para os arts. 72º e 73º -, sempre que subsistirem sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, mediante a formulação de juízo que assente em factos concretos que apontem num e noutro sentido.

Para tanto e, para além da idade, importa atentar às circunstâncias do crime, a personalidade do jovem delinquente, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as suas condições de vida onde se incluem condições pessoais, familiares e profissionais, que permitam, além do mais, apurar se é ou não sensível à aceitação dos valores tutelados pelo direito penal.

No caso do arguido, face a todo o circunstancialismo e gravidade, revelados, somos a concluir que é de afastar tal regime Especial para Jovens por não vislumbrar benefícios da sua aplicação na reinserção social do mesmo.

São evidentes as fragilidades sociais, familiares, profissionais e de personalidade que apresenta.

Em boa verdade, só a idade à data da prática dos factos nos obriga a esta equação. Todo o restante circunstancialismo o repudia.

As circunstâncias em que perpetrou o crime são passíveis de integrar a categorização de delinquência tradicional, para lá da iniquidade juvenil, agravadas pelo facto de ter tido intervenção em actividade de tráfico intercontinental.

Como confessou, sabia bem o que fazia, conhecia as características estupefacientes do produto que detinha e sabia das consequências nocivas para a saúde dos consumidores.

A sua conduta, anterior e posterior à prática dos factos, revela desagregação e sedimentada na sua desresponsabilização.

É quanto basta para não nos permitirmos formular juízo favorável relativamente à interiorização da gravidade da sua conduta e subsequente autocensura, constatando-se, outrossim, relevante indiferença por valores jurídicos fundamentais à vida em sociedade e desrespeito pelas instituições, face à personalidade desvaliosa revelada.

No cerne do corrente exercício residem essencialmente preocupações de prevenção especial positiva ou de reintegração social; contudo, no caso deste arguido, ponderar a atenuação da pena de prisão equivaleria a pôr em causa as prementes necessidades de prevenção geral que a gravidade e o forte alarme social do crime de tráfico, congregam, o que não se concede.

Com efeito, é consabida a gravidade intrínseca do crime de tráfico, adensada pelo facto de o arguido ter revelado considerável determinação e disponibilidade para correr riscos com vista à obtenção dos ganhos que procurava.

Destarte, perante as condições pessoais evidenciadas, inequivocamente dirigidas para a necessidade de o consciencializar do dever-ser ético-jurídico, não se anteveem quaisquer vantagens na atenuação da pena cominada, com vista a potenciar a sua reinserção social.

Consequentemente, não beneficiará o arguido de tal regime.”

Do exposto resulta com meridiana clareza que inexiste a apodada nulidade do acórdão por falta de fundamentação ou omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP), cuja invocação será mero resultado de uma eventual confusão entre “falta de fundamentação” e “divergência relativamente ao decidido”.

Assim, a situação apresentada no recurso não configura uma “nulidade por omissão de pronúncia”, antes resultando do recurso, no confronto com a decisão, que aquela respeita tão só a uma impugnação material da decisão.

O facto de o tribunal ter ou não atendido a determinadas circunstâncias para a determinação da pena, circunstâncias que o arguido pretende agora que sejam apreciadas de determinada forma, não configura uma omissão de pronúncia, já que no acórdão se procedeu realmente à ponderação do regime penal previsto para jovens delinquentes, afastando-o fundamentadamente.

Como se refere no CPP Comentado pelos Senhores Juízes Conselheiros do STJ, a omissão de pronúncia ocorre “quando o tribunal viola os seus poderes de cognição”. “A nulidade por omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – art. 660.º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi art. 4º do CPP”.

“A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide pois sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe a tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou o problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão”» (Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e Outros Almedina, 2021, 3.ª ed. revista, p. 1156/7).

Mas dessa (diversa) questão (da divergência relativamente ao decidido) se curará no ponto seguinte.

2.(b) Da (não) aplicação do regime especial previsto para jovens delinquentes (art. 4.º do DL n.º 401/82)

Da ausência de nulidade não resulta, porém, que o acórdão não mereça um pequeno reparo de ordem formal no que à fundamentação da decisão sobre a pena se refere. Esse reparo, no entanto, não se repercutirá materialmente na decisão sobre o recurso. O Supremo encontra-se em condições de detectar e suprir a referida deficiência do acórdão no que respeita à determinação da pena.

Assim, da leitura do acórdão resulta que o tribunal procedeu primeiramente à determinação da pena concreta de prisão aplicada ao arguido, dentro da moldura abstracta prevista no tipo legal da condenação; e só depois, num segundo momento, procedeu à ponderação (e à justificação do afastamento) do regime especial previsto para jovens delinquentes (art. 4.º do DL n.º 401/82).

Sucede que o processo de determinação da pena é uma “actividade judicialmente vinculada”, na expressão de Figueiredo Dias, vinculação que obriga ao prosseguimento de determinados passos sequenciais no processo aplicativo da pena.

Assim, o iter inicia-se com a determinação da pena abstracta - determinação da medida legal da pena. E o tipo de crime da condenação fornece a moldura legal, mas há seguidamente que determinar se, em concreto e se for caso disso, opera alguma circunstância modificativa - circunstância modificativa comum/geral ou especial, agravante ou atenuante -, que, como se sabe, é a que altera a moldura abstracta, fornecendo uma nova moldura abstracta. Só então se encontrará finalizado o processo de determinação da pena abstracta, e achada a moldura legal onde se determinará então a pena concreta.

Do exposto resulta que, no iter aplicativo da pena, o tribunal de julgamento deveria ter aqui procedido à ponderação da circunstância modificativa geral atenuante prevista no art. 4.º do DL n.º 401/82 antes de determinar a pena concreta, e, não, ter só posteriormente justificado o afastamento da circunstância modificativa atenuante.

No entanto, e como se adiantou, esta deficiência de fundamentação não se repercute negativamente, e em concreto, na decisão do recurso, pois a fundamentação do acórdão, globalmente considerada e mau grado o entorse detectado, ainda oferece resposta clara a toda a impugnação da pena efectuada em recurso.

Assim, a decisão sobre a pena encontra-se materialmente sustentada no acórdão, percebendo-se adequadamente a razão por que o tribunal afastou a atenuação especial na pena (abstracta). Essa justificação está na fundamentação do acórdão, encontra-se transcrita no ponto precedente, dispensa repetição. Dela se constata que se procedeu à correcta aplicação do quadro legal, tendo sempre por base os factos provados do acórdão, mormente no que respeita aos factos pessoais do arguido. E não oferecendo reservas, e sendo aqui de acompanhar, o que se consigna, passam a aditar-se apenas algumas razões que confluem no sentido da decisão do acórdão.

O arguido nasceu a....04.2002 e praticou os factos em 31.01.2023, ou seja, a três meses de completar os 21 anos de idade. Assim, posicionava-se ainda dentro da faixa etária que possibilita a atenuação especial prevista para jovens (entre os 16 e os 21 anos), mas situado próximo do limite máximo dessa faixa etária.

De acordo com a norma que foi afastada, o juiz deve atenuar especialmente a pena nos termos dos arts 72.º e 73.º do CP quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não tem sido uniforme quanto ao sentido da aplicação deste regime. As posições dividem-se: por um lado, no sentido de que a atenuação deveria operar sempre perante a juventude do condenado salvo em presença de factores negativos; pelo outro, no sentido de que a atenuação não deveria acontecer a não ser em presença de circunstâncias positivas a acrescer à juventude do condenado (v. Souto Moura, A jurisprudência do STJ sobre fundamentação e critérios de escolha e medida da pena, Revista do CEJ, nº 13, pp. 112-113).

Perfilha-se a posição de que “a aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos; a aplicação é tanto obrigatória como oficiosa”. “Ela constitui o regime regra aplicável a todos os arguidos que estejam compreendidos nas categorias etárias que prevê, verificados os pressupostos que condicionam a sua aplicação; constitui no rigor um regime específico e não um regime especial. É o que resulta do art. 2.º do D.L. 401/82” (acórdão do STJ de 07.11.2007, rel. Henriques Gaspar).

Este regime específico de jovens, ou regime-regra para jovens, não deixa, no entanto, de ser de aplicação não automática. E implica sempre a ponderação dos factos em conjunto com a personalidade do jovem condenado, já que a norma exige a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social. É um poder-dever vinculado e não uma faculdade, mas não é um regime de aplicação automática.

No síntese do acórdão do STJ de 31.3.2011 (rel. Raul Borges), a atenuação especial ao abrigo do regime visando os jovens adultos não é de aplicação necessária e obrigatória, não opera de forma automática, é de conhecimento oficioso, a consideração da sua aplicação não constitui uma mera faculdade do juiz mas um poder-dever vinculado, de concessão vinculada, de aplicar sempre que procedam sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado, não se dispensando a equacionação da pertinência ou inconveniência da sua aplicação, devendo ser fundamentada a não aplicação.

E na ponderação sobre a aplicação do art. 4.º relevam razões de prevenção especial positiva ou de reintegração social do arguido jovem, as quais, no entanto, não podem deixar de estar igualmente subordinadas às exigências de prevenção geral. Ou seja, tem de haver razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção social do jovem delinquente, e sempre sem prejuízo das necessidades de prevenção geral. Pois refere-se no preâmbulo do D.L. n.º 401/82 que “As medidas propostas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a 2 anos”.

No acórdão afastou-se a aplicação do regime, pelas razões já transcritas e que não oferecem reparo, como se disse.

No que respeita aos factos que concretamente relevam para a culpabilidade, está em causa um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º do Dec. Lei 15/93, punível com prisão de 4 a 12 anos. A actividade desenvolvida respeita a um tipo de estupefaciente com grande potencial de erosão no tecido social, ou seja, com um elevado grau de lesão do bem jurídico “saúde pública” –cocaína. O grau de ilicitude é elevado e o dolo, directo e persistente.

Das concretas condições pessoais do arguido retira-se que carece de forte acompanhamento no seu processo de ressocialização, como se detalha no acórdão. Note-se que os estabelecimentos prisionais dispõem de um conjunto de respostas dirigidas às necessidades específicas de reclusos com problemas de dependência de estupefacientes (de que o arguido era consumidor), numa abordagem de cariz médico e medicamentoso e de programas de cariz cognitivo comportamental visando a dissuasão do consumo de drogas. O cumprimento de uma pena de prisão efectiva será naturalmente orientado para o tratamento dessa dependência, sempre dentro dos limites da (e uma vez confirmada a) voluntariedade do detido.

Tudo ponderado, considera-se ser de aceitar a decisão do tribunal, no sentido da não aplicação do regime penal para jovens delinquentes, justificando-se a ponderação da pena concreta à luz da moldura abstracta de quatro a doze anos de prisão. Ou seja, mostra-se compreensível a posição sufragada no acórdão no que toca ao afastamento da atenuação especial da pena.

2.(c) Da medida da pena de prisão

Numa moldura penal de 4 a 12 anos de prisão, o arguido foi condenado na pena de 5 anos e 2 meses de prisão. E cabendo ao tribunal de recurso sindicar a decisão com vista à detecção de eventuais erros de julgamento – que, também em matéria de pena, têm de ser erros evidentes, atenta a margem de liberdade sempre reconhecida ao juiz de 1.ª instância enquanto componente individual do acto de julgar -, na ausência de erro a decisão tomada é de aceitar e confirmar.

E dentro da moldura abstracta da pena, constata-se que a penas aplicada se situa relativamente próximo do limite mínimo, ainda dentro do primeiro quarto, no que não deixou de relevar, agora como atenuante geral, a juventude do condenado. A pena aplicada mostra-se fixada na medida necessária à garantia das finalidades da punição e contem-se na medida da culpa do arguido.

Desde logo, evidenciam-se razões de prevenção geral elevadíssimas, que as penas têm, em concreto, de satisfazer. Como se pode ler, entre muitos, no acórdão do STJ de 05-02-2016 (Rel. Manuel Matos), “o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado que na fixação da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade”.

Também no último Relatório Europeu sobre Drogas, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (Relatório de 2021), em sede de “Infrações à legislação em matéria de droga” pode ler-se, no que respeita à cocaína:

“As apreensões recorde de cocaína são um sinal preocupante de um potencial agravamento dos danos para a saúde. A cocaína continua a ser a segunda droga ilícita mais comummente consumida na Europa, e a procura dos consumidores faz dela uma parte lucrativa do comércio europeu de droga para os criminosos. O número recorde de 213 toneladas de droga apreendida em 2019 indica um aumento da oferta na União Europeia. A pureza da cocaína tem vindo a aumentar na última década e o número de pessoas que iniciam tratamento pela primeira vez aumentou nos últimos 5 anos. Estes e outros indicadores indicam um potencial aumento dos problemas relacionados com a cocaína. (…) A cocaína foi a segunda substância comunicada com mais frequência pelos hospitais Euro-DEN Plus em 2019, estando presente em 22% dos casos de intoxicações agudas relacionadas com droga.”

Com as exigências de prevenção geral confluem necessidades de prevenção especial, como se disse.

No mais, constata-se que no acórdão se observaram as regras de fundamentação em matéria de pena: as exigências de facto, selecionando-se e discorrendo-se sobre todos os factos que realmente relevavam na determinação da sanção, e as exigências de direito, enunciando-se o quadro legal a cuja aplicação se procedeu. E assim se chegou, materialmente, a medida de pena compreensivelmente justificada, ainda relativamente próxima do mínimo da moldura abstracta, como se disse, e respeitadora do referente jurisprudencial.

A preocupação com o referente jurisprudencial, evidenciada no acórdão, contribui decisivamente para a atenuação das disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena. E o acórdão justifica também a pena à luz desse referente, constatando-se que a pena concretamente determinada não excede (ou pelo menos não excede de modo a justificar a intervenção correctiva do Supremo na medida da pena) as penas aplicadas para casos idênticos ao presente, ou seja, casos de correios de droga, primários, que, num acto isolado, transportam estupefaciente de características semelhantes quanto ao grau de nocividade para a saúde pública e às quantidades envolvidas (muitas vezes superiores até à presente).

Senão, reveja-se a fundamentação da pena no acórdão:

“(…) O grau de ilicitude é elevado.

O modo de execução do facto apresenta-se de relevante ilicitude, para o que temos em devida conta a quantidade (se considerarmos que foi por via aérea e que, habitualmente, não excede os cerca de 5 Kg) e os padrões comportamentais para este tipo de crime se ponderada a dinâmica do seu transporte internacional, viajando como se de mero passageiro se tratasse com o intuito de iludir as autoridades alfandegárias.

O dolo é directo e intenso, e a culpa grave; o arguido disponibilizou-se para transportar o que lhe pediram para transportar e lhe colocaram na bagagem, sabendo tratar-se de estupefaciente.

A natureza da substância apreendida – cocaína – consubstancia uma das denominadas “drogas duras” que mais nefastas consequências acarreta para a saúde dos consumidores.

São, assim, consideráveis as exigências de prevenção geral dado estar em causa o transporte intercontinental de cocaína, por via aérea, concretamente, do Brasil para país europeu com escala por Portugal, tendo sido especificamente contratado para o efeito por indivíduo(s) não identificado(s), mediante contrapartida monetária, transportando a droga na sua bagagem.

Ou seja, está-se perante a típica atuação dos chamados “correios de droga”, os quais assumem um papel determinante nos circuitos de tráfico internacional.

Atentou-se igualmente à sua juventude ao tempo da prática dos factos.

Tais exigências fazem-se igualmente sentir por força da natureza do bem jurídico violado, o alarme social e a insegurança gerados pela actividade de tráfico e consequências gravosas para a comunidade, especialmente, ao nível da saúde pública.

Além disso, a quantidade de droga na posse do arguido representa um valor económico relevante, traduzido nas 12.206 doses diárias a que se destinava, sendo aqui de realçar o elevadíssimo grau de pureza apurado.

Tais circunstâncias não podem deixar de pesar, negativamente, em termos de medida da pena.

No âmbito das exigências da prevenção especial, importa salientar que não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido, aspecto conjugado com a sua razoável inserção social e familiar, habilitações literárias e modo de vida, conhecidos até á detenção, mas que, no entanto, não foram suficientes para o fazerem recusar o transporte proposto.

Regista-se, por outra via, a confissão integral dos factos, todavia, sem relevo acrescido se atentarmos à sua intercepção em plena execução dos mesmos e à natureza concludente da prova produzida.

«Por outro lado, as circunstâncias invocadas (…) em seu favor não se mostram de especial valor.

Na verdade, a confissão dos factos, num caso, como o dos autos, em que foram detetados em flagrante delito, é quase irrelevante.

Por outro lado, as alegadas “graves dificuldades financeiras” sentidas pelo arguido também não revestem o caráter de atenuante, já que constituem a situação típica dos “correios”, normalmente recrutados entre pessoas carenciadas economicamente e por isso disponíveis para serem seduzidas por propostas de obtenção de uma remuneração elevada e rápida, embora com alguma margem de risco.

A situação em que o arguido se encontrava, dispondo de apoio familiar, não era de uma carência tão extrema que possa relevar, ainda que minimamente, em termos de atenuante. Doutra forma, o direito penal sofreria um sério revés na sua função de proteção dos bens jurídicos tutelados.» - Ac. cit. do STJ.

Sem prejuízo, milita a favor do arguido a postura assumida em tribunal.

Tudo ponderado, não olvidando a personalidade, condição económica, social e familiar do arguido, antes e depois dos factos, e em linha com os ditames da generalidade da jurisprudência no tocante às penas cominadas (vd. “lista” de decisões do STJ no acórdão proferido no Proc. 475/19.4JELSB.S1 de 28.10.2020), crê-se ajustada a pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.

Por todos os motivos, decorrentes das exigências de prevenção geral e especial que no caso se reconhecem, é de manter a pena de prisão aplicada no acórdão.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

Lisboa, 11.10.2023

Ana Barata Brito, relatora

Sénio dos Reis Alves, adjunto

Teresa de Almeida, adjunta