Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5251/19.1T8PRT-A.P2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
FIADOR
DEVEDOR
INCONSTITUCIONALIDADE
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
ABUSO DO DIREITO
JUROS DE MORA
LIQUIDEZ
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Não actua com abuso de direito o credor hipotecário que após adquirir, numa execução fiscal movida contra o devedor, o prédio objecto de hipoteca, posteriormente move uma execução contra o devedor principal e o fiador para haver destes o remanescente da divida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a Caixa Geral de Depósitos, S.A. lhe moveu, veio o executado AA deduzir os presentes embargos, alegando:

Interpôs contra a Exequente ação declarativa, na qual peticionou a sua liberação como fiador da dívida exequenda.

Aí alegou que o imóvel foi vendido à ora embargada por cerca de metade do valor comercial, nada tendo oposto quanto ao fixado para venda, em claro prejuízo dos fiadores.

Naquele âmbito, foi decidido que embora o alegado não fosse fundamento de liberação dos fiadores, poderia equacionar-se, se a aqui embargada acionasse os fiadores, o abuso do direito.

Não foram interpelados da mora da devedora principal e para procederem ao pagamento das prestações em mora.

Mostram-se prescritos os juros.

Conclui pedindo a procedência dos Embargos.

2. A Embargada apresentou contestação alegando a inadmissibilidade legal de reclamar do valor a anunciar para venda em sede de processo de execução fiscal; ser de € 60.000,00 o valor, à data da venda; ter apresentado proposta pelo valor de € 45.000,00, superior ao valor mínimo anunciado para venda que se cifrava em € 33.838,00.

No dia 12.11.2007, a devedora principal e os fiadores reuniram no escritório do mandatário da exequente, tendo sido pessoalmente informados da situação de incumprimento do empréstimo e dos valores em atraso que, à data, ascendiam a apenas € 355,54.

Foram ainda informados que se não regularizassem a dívida do exequente C... no processo 824/2002, o imóvel seria vendido, facto que, aliás, o embargante não podia ignorar, por decorrer da lei.

Reuniram, ainda, no dia 23.5.2011, após a venda do imóvel e, em 20.6.2011, ocorreu nova reunião.

A execução deu entrada, no dia 26.2.2019, pelo que a prescrição se interrompeu em 3.3.2019, e não em 18.6.2019.

Conclui pela improcedência dos embargos.

3. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do formalismo legal aplicável.

A final foi proferida decisão que julgou os embargos procedentes e, em consequência declarada extinta a execução.

4. Inconformado com o decidido, a Exequente/embargada interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 23 de Maio de 2022 decidido:

«acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, consideram que a quantia exequenda é composta do capital em dívida de € 20.404,05; dos juros vencidos entre 4.3.2014 e 3.3.2019, à taxa legal de 10,246%, no montante de € 10,455,00, bem como os que posteriormente se venceram e vencerem até integral pagamento; das comissões, no montante de € 553,59».

5. Inconformado veio AA, Embargante/Executado interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

1 - Vem o presente recurso interposto da Douto Acórdão proferido em 22/05/2022 , com a referencia citius 15773579, notificado ao Recorrente em 26/05/2022, que decidiu julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando a sentença recorrida, considerando-se que a quantia exequenda é composta do capital em dívida de € 20.404,05; dos juros vencidos entre 4.3.2014 e 3.3.2019, à taxa legal de 10,246%, no montante de € 10,455,00, bem como os que posteriormente se venceram e vencerem até integral pagamento; das comissões, no montante de € 553,59.

2 - Mais decidiu que não se verifica o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

3 - Entendeu o Acórdão Recorrido que “De facto, o embargante não impugna o capital reclamado no requerimento executivo (€ 20.408,05), mas o montante de juros reclamados (€ 36.032,70), por considerar que apenas lhe são exigíveis € 10.455,00.”

4 - Sucede que, ao contrário do entendimento do Tribunal da Relação no Acórdão em crise, o Recorrente impugnou toda a dívida e a sua liquidação como resulta dos factos dados como provados Pontos 3.1.10.21, 3.1.10.22, 3.1.10.23 e 3.1.10.25, que foram alegados pelo Recorrente e na impugnação constante no artigo 47.º da Petição de Embargos, com a alegação de que o Recorrente nada deve à Recorrida sendo que só subsidiariamente e por mera cautela de patrocínio é que alegou a prescrição dos juros.

5 - Tem sido entendimento da jurisprudência que à interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no artigo 295.º do CC, os princípios da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos artigos 236.º, n.º 1, do CC, o declaratório normal ou razoável deva retirar das declarações nelas escrita sendo que, relativamente aos articulados, não se devendo seguir os rigores formalistas vedados pelos princípios do moderno direito adjectivo e, bem assim ,pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. Artigo 20.º da CRP), devendo ser interpretados no sentido mais favorável à parte. Isso mesmo, resulta do artigo 574.º nº 2 do CPC, segundo o qual se consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, artigo que se aplica à petição de embargos de executado.

6 - Ora, estando impugnada a dívida no seu conjunto, inclui-se nesta impugnação, como é obvio, a respetiva liquidação

7 - Assinala-se que a liquidação da dívida deve ser alegada e provada no Requerimento Executivo. A Exequente tinha o ónus de liquidação da obrigação, alegando os factos e as operações de cálculo que permitissem aos Executados, em sua defesa, a necessária verificação e ao Tribunal a sua sindicância. Tal ónus de liquidação encontra-se previsto nos artigos art.º 724.º, n.º 1, al.ª e) e 716 nº 2 do CPC .

8 - Por outro lado, o Tribunal da Primeira Instância podia ter conhecido tal matéria (deficiente alegação da liquidação) em sede de despacho liminar, nos termos do artigo 726.º do CPC., sendo pois, tal matéria, de conhecimento oficioso, podendo tal conhecimento ser feito na Sentença.

9 - Violou, pois o Douto Acórdão Recorrido o disposto nos artigo 295.º e 236.º nº 1 do Código Civil, nos artigos 724.º, n.º 1, al.ª e) e 716 nº 2 e 726.º do CPC e o artigo 20.º da Constituição da Républica Portuguesa.

sem prescindir, e caso assim não se entenda, (o que não se concede nem se admite, mas que se equaciona para efeitos de raciocínio)

10 - Em sede de petição de embargos, o ora recorrente invocou o abuso de direito da Recorrida, na vertente económica, resumindo a sua posição, exposta nos anteriores artigos daquela peça, no artigo 45.º da petição de embargos: Ora, mesmo que se entenda que a actuação da Exequente é formalmente correta - o que não se admite nem se concede mas que se equaciona apenas para efeitos de raciocínio - o certo é que tendo a Exequente obtido, com a adjudicação do imóvel, um ganho superior ao montante em dívida, o exercício do direito de crédito através da presente execução é um manifesto abuso de direito.”

11 - No entanto, quer o Tribunal de Primeira Instância, quer agora Tribunal da Relação do Porto, decidiram que não se verificava o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, modalidade que o Recorrente não invocou.

12 - Nos termos do artigo 334.º do CC há abuso de direito quando o titular exceda manifestamente: (i) os limites impostos pela boa fé, nos quais se incluem o venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio, o tu quoque. (ii) os limites impostos pelos bons costumes (iii) os limites impostos pelo fim social do direito (iv) os limites impostos pelo fim económico do direito.

13 - Ora, atento os factos provados nos Pontos 3.1.10.5,3.1.10.6, 3.1.10.13, 3.1.10.15, 3.1.10.16, 3.1.10.17, 3.1.10,18 e 3.1.5 , e aplicando os critérios proposto por Daniel Bessa de Melo, no artigo denominado “ O abuso do direito: contributos para uma hermenêutica do artigo 334.º do Código Civil português” publicado na Revista Julgar on line de outubro de 2020, paginas 50 a 52, obra supra citada, temos que resulta, que a aquisição, pela Recorrente, do imóvel que garantia o contrato de mútuo permitiu-lhe alcançar, de forma indireta, o beneficio económico que esperava obter do contrato de mútuo celebrado.

14 - Na verdade, a dívida reclamada na execução fiscal, era no montante 72.005,17 €, correspondente a capital, juros vencido, despesas e comissões e o valor comercial do imóvel adquirido pela Recorrida era de € 79.000,00.

15 - Acresce que, a Recorrida sabia, na data da celebração do contrato, que o aqui recorrente e sua mulher - não tinham outros bens para além do ordenado do Embargante, de cerca de € 650,00 e um veículo automóvel com cerca de 12 anos. (Ponto 3.1.10.6 da Douta sentença)

16 - Ora, a interposição da presente execução, tendo a Recorrente já obtido o benefício económico do contrato como se ele tivesse sido cumprido e tendo em conta a condição económica do Recorrente documentada nos autos -(pedido de apoio judiciário entregue com a petição de embargos e informações prestadas quer pela Segurança Social quer por outras entidades nos autos principais e no Apenso B que permitem constatar com o ora Recorrente não tem bens imóveis, tem um veículo com 22 anos e que o seu agregado familiar recebe anualmente a quantia de cerca de € 13.000,00 (ou seja, situação económica idêntica à que tinha quando celebrou o contrato como fiador)- piora a situação do Recorrente sem com isso melhorar a situação da Recorrida e, por isso, esta age abusivamente porque excede manifestamente os limites económicos do direito.

17 - Não descurando o facto de que o abuso de direito ser de conhecimento oficioso (conforme jurisprudência unânime deste Venerando Tribunal), o Recorrente entende, entendimento que pretende ver sufragado neste recurso, que a atuação da Recorrida configura abuso de direito, tendo sido violado, pelo Douto Acórdão recorrido, o disposto no artigo 334.º do Código Civil.

SEM PRESCINDIR, E CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, (O QUE NÃO SE CONCEDE NEM SE ADMITE, MAS QUE SE EQUACIONA PARA EFEITOS DE RACIOCÍNIO)

18 - Entendeu o Acórdão Recorrido que são devidos juros de mora desde 04.03.2014, pois não era necessária a interpelação do fiador ora recorrente para pagamento, porquanto os embargantes, na qualidade de fiadores solidários, assumiram também contratualmente, em detrimento da norma supletiva do artigo 782º do C.C., a responsabilidade imediata, em virtude da alienação do imóvel hipotecado sem consentimento da credora, pelo que a mesma não era, ab initio, necessária.

19 - ORA, resultou provado nos Pontos 3.1.10.20, 3,1.10.21, 3.1.10.22, 3.1.10.23, 3.1.10.24 , 3.1.10.25, 3.1.10.26 da Sentença, não alterados no Acórdão recorrido, que o Recorrente tudo fez para saber qual era o concreto valor em dívida, sendo que a Recorrida deu valores completamente discrepantes em diferentes momentos.

20 - Ou seja, a própria Recorrida desconhecia o valor em dívida, não tendo feito a imputação do valor recebido pelo imóvel garantia do contrato de mútuo, no âmbito do processo de execução fiscal ao alegado credito sobre o Recorrente.

21 - Sem uma tal liquidação, cujo ónus impendia sobre a credora aqui exequente e cuja falta não se mostra imputável aos fiadores ora embargantes, não é lícito que se considerem estes, desde logo, constituídos em mora como decorre do preceituado no 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC.

22 - Assim, a divida é ilíquida, nos termos do disposto no artigo 805.º nº 3, 1ª parte do Código Civil. Desta forma, entendeu o Acórdão da Relação do Porto datado de 18/11/2021, proferido no processo 2196/20.6...

23 - Em suma, caso não se considerem os anteriores argumentos apresentados nas Conclusões 2 a 17 deste recurso, os juros a contabilizar deverão ser contados apenas desde a citação pelo que violou o Douto Acórdão recorrido o disposto no artigo 805.º nº 3 primeira parte do Código Civil.

Conclui pedindo que o recurso seja julgado procedente, revogando-se o Douto Acórdão Recorrido, e mantendo-se na integra a Douta Sentença da Primeira Instância, ou caso assim não se entenda, revogando-se o Douto Acórdão e considerando-se verificado o abuso de direito, ou caso assim, não se entenda, que seja decidido que os juros de mora só devem ser contabilizados desde a data da citação do Recorrente revogando-se o Douto Acórdão nessa parte.

6. A Exequente/embargada, apresentou contra-alegações, não tendo formulado conclusões, mas pedindo que seja negada a revista e consequentemente deverá manter-se inalterada a decisão recorrida, com todas as consequências legais daí decorrentes.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

«3.1.1. A exequente tem por objeto o exercício da atividade bancária, nos termos definidos nos seus estatutos, publicados no DR nº 195, 1 Série – A, de 20 de agosto de 1993, e dentro limites legais aplicáveis às instituições financeiras.

3.1.2.1. Em 21.07.1999, no exercício da sua atividade creditícia, emprestou aos executados BB e CC a quantia de € 74.819,68, que eles receberam, de que se confessaram devedores, destinaram na aquisição de imóvel para a sua habitação própria e permanente, e se obrigaram a restituir à reclamante em 360 prestações mensais, de capital e juros, vencendo-se a primeira no dia 21.08.1999 e as restantes em igual dia dos meses seguintes.

3.1.2.2. A exequente e os executados convencionaram no contrato que, em caso de incumprimento, são devidas comissões e que a taxa de juros moratórios é de 8,246%, ao ano, acrescida da sobretaxa de 2%, a título de cláusula penal,

3.1.2.3. Mais convencionaram que são da conta dos executados as despesas relacionadas com a cobrança do empréstimo, incluindo os honorários e despesas de advogados e solicitadores.

3.1.3. Os executados AA e DD responsabilizaram-se como fiadores e principais pagadores por tudo o que seja devido à exequente em consequência do aludido empréstimo e deram o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juros, alterações do prazo ou moratórias.

3.1.4. Em garantia do pagamento do capital mutuado, dos juros e das despesas, os executados BB e CC constituíram hipoteca a favor da exequente sobre o imóvel identificado no título, sito na freguesia de ..., concelho de ..., o qual foi vendido (adjudicado à exequente), em 19.07.2010, pelo preço de 45.000 €, no âmbito da execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças de ... 2, sob o nº 2598/10.6...

3.1.5. A exequente reclamou créditos na aludida execução fiscal, pelo valor de 72.005,17 €, correspondente a capital, juros vencidos, despesas e comissões, os quais foram graduados por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal ... de 30.06.2015, para serem pagos pelo referido produto da venda do imóvel.

3.1.6. A exequente, do referido produto da venda do imóvel, recebeu, em 22.02.2018, a quantia de € 43.735,27, a qual foi aplicada, com data valor da data da venda, na liquidação parcial do capital em dívida do empréstimo.

3.1.7. A execução entrou em juízo em 06.03.2015, sob a forma sumária, e os executados foram citados em 18.06.2019, liquidando a exequente a obrigação nos seguintes termos:

Foram computados os juros, vencidos e não pagos, no montante de € 34.093,24, as comissões, no montante de € 553,59, e o imposto de selo respetivo, no montante de € 1.385,87, até 26.2.2019.

A partir de 26.02.2019, são devidos juros, à taxa de 10,246%, ao ano, despesas e imposto de selo, tudo até ao efetivo e integral pagamento, a liquidar a final Valor líquido € 20 408,05.

Valor dependente de simples cálculo aritmético: € 36 032,70.

3.1.8. Em 18/05/2012, o ora executado e sua mulher DD, intentaram ação declarativa em processo experimental contra a exequente, pedindo a extinção da fiança, executada nestes autos.

3.1.9. A referida ação correu termos no Tribunal Judicial da ..., na Instância Central, ... Secção Cível, J... com o nº 3388/12.7...

3.1.10. Resultaram provados na referida ação os seguintes factos;

3.1.10.1. A executada BB é irmã da mulher do Embargante, também executada DD e pediu-lhe, bem como ao embargante, o favor de lhe prestarem fiança, a si e ao seu marido, por forma a que a exequente lhes concedesse o empréstimo para compra de habitação própria correspondente à fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma habitação no rés do chão, com entrada pelo nº 45 da Rua ... em ..., lugar de aparcamento na cave com o número sete e com entrada pelo nº 41 da referida Rua, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 00287/dezoito zero nove oitenta e seis da freguesia de ... e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 3217.

3.1.10.2. O imóvel supra identificado foi hipotecado à exequente/embargada como garantia do contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança celebrado em 21/07/1999

3.1.10.3. A exequente/embargada conhecia, na data da celebração do contrato, a relação familiar entre fiadores e mutuários.

3.1.10.4. O ora embargante e sua mulher apenas aceitaram ser fiadores porque o valor do imóvel hipotecado era suficiente para pagar o valor emprestado.

3.1.10.5. Como se constata da certidão predial, a hipoteca assegurava o montante máximo de € 108.213,20 (Cento e oito mil duzentos e treze euros e vinte cêntimos).

3.1.10.6. A exequente/embargada sabia, na data da celebração do contrato, que os executados fiadores não tinham outros bens para além do ordenado do embargante de cerca de € 650,00 e um veículo automóvel com cerca de 12 anos.

3.1.10.7. Por força de uma dívida de Imposto Municipal sobre Imóveis ao Serviço de Finanças de ... 2 no montante de € 2.143,32 foi instaurado, por aquele serviço, um processo de execução fiscal contra a Executada BB com o nº ..............15 e apensos e no qual foi penhorado o imóvel hipotecado a favor da exequente/embargada.

3.1.10.8. A exequente/embargada foi citada como credora com garantia real no referido processo para reclamar os seus créditos, o que fez em 03/06/2008, sendo a única credora a reclamar créditos.

3.1.10.9. O respetivo processo de verificação e graduação de créditos correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... com o nº 2598/10.6...,

3.1.10.10. A exequente/embargante foi também notificada pelo Serviço de Finanças de ... da data da venda do imóvel hipotecado em 19/05/2008 bem como do respetivo valor base, no montante de € 48.340,00 (quarenta e oito mil trezentos e quarenta euros).

3.1.10.11. A exequente/embargada não reclamou contra a decisão das Finanças que fixou o valor base para venda.

3.1.10.12. A modalidade de venda utilizada foi a proposta em carta fechada tendo a exequente/embargada oferecido o valor de € 45.000,00 para aquisição do imóvel.

3.1.10.13. Em 19 de julho de 2010, o imóvel hipotecado foi adjudicado à exequente/embargada pelo Serviço de Finanças de ... no referido processo executivo pelo valor de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), tendo a exequente depositado o preço em 26 de junho de 2010.

3.1.10.14. O registo de hipoteca voluntária foi cancelado pela apresentação 9976 de 30/09/2010 e a aquisição a favor da exequente/embargada foi registada pela apresentação 9974.

3.1.10.15. O valor patrimonial do imóvel calculado nos termos do CIMI era, à data da venda judicial, de € 48.340,00 (quarenta e oito mil trezentos e quarenta euros).

3.1.10.16. O valor de mercado do imóvel à data da notificação da venda judicial à ré, em 19/05/2008, era de € 79.000,00 (setenta e nove mil euros).

3.1.10.16. O valor de mercado do imóvel à data da venda judicial, em 9/07/2010, era de € 79.000,00 (setenta e nove mil euros).

3.1.10.17. Em 26/05/2011, a exequente/embargada vendeu o imóvel ao Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional Caixa Arrendamento, pelo preço de € 52.000,00 (cinquenta e dois mil euros).

3.1.10,18. O referido Fundo é um património autónomo com 5 participantes do Grupo Caixa Geral de Depósitos SA, sendo a respetiva sociedade gestora detida indiretamente pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., e esta é a depositária do Fundo.

3.1.10.19. Em meados de 2011, os fiadores consultaram o Banco de Portugal e obtiveram a informação de que o contrato de mútuo ora executado, estava em situação de incumprimento e que se deviam dirigir à exequente/embargante para obter mais detalhes sobre a referida situação.

3.1.10.20. Em 23/05/2011, os fiadores, o aqui embargante e sua mulher, foram atendidos pelo mandatário da exequente/embargada no seu escritório, tendo sido informados da existência de incumprimento do contrato ocorrida após fevereiro de 2008 e que o imóvel que servia de garantia ao contrato havia sido vendido num processo de execução fiscal instaurado contra os mutuários.

3.1.10.21. Foram ainda informados que o valor em dívida pelos mutuários à exequente/embargada era de cerca de € 40.000,00, correspondente ao remanescente em dívida depois de descontado o valor da venda do imóvel hipotecado que ainda não havia sido devolvido à ré.

3.1.10.22. Pouco tempo depois, os fiadores dirigiram-se novamente aos balcões da Caixa Geral de Depósitos, em 27/06/2011, para obter informações sobre o valor concretamente em dívida, mas, desta feita, foram informados que esse valor era de € 63.825,63.

3.1.10.23. Face às discrepâncias de valores, e a conselho do funcionário que os atendeu e a quem explicaram a situação, o ora embargante e sua mulher DD voltaram a contactar a exequente/embargada, na pessoa da sua funcionária Srª Drª EE, com quem o embargante falou por telefone, tendo obtido a informação que o valor em dívida rondava os € 30.000,00.

3.1.10.24. Resolveram, então, contactar a subscritora desta oposição, que enviou à exequente/embargada a carta registada, solicitando informações sobre o valor que a exequente/embargada considerava em dívida respeitante a capital e juros bem como sobre as circunstâncias da compra e venda do imóvel hipotecado.

3.1.10.25. Em resposta, o embargante e sua mulher foram informados que, segundo a exequente/embargada, o capital em dívida à data da venda judicial era de € 63.825,63 (sessenta e três mil oitocentos e vinte e cinco euros e sessenta e três euros), que os juros remuneratórios calculados até essa data eram de € 7.625,04 e os moratórios de € 1.790,26, e que as despesas e comissões eram no valor de € 564,46, no total de € 73.805,39.

3.1.10.26. E que, considerando que o valor da dívida em 19/07/2010 era de € 73.805,39 e deduzido o valor estimado a receber dos Serviços de Finanças referente ao depósito do preço feito pela exequente/embargante no valor de € 40.664,00, o capital em dívida estimado à data de 19/07/2010 era de € 33.161,39 ao qual acresceriam juros contratuais à taxa de 10,246% até efetivo e integral pagamento.

3.1.10.27. À data da reclamação de créditos na execução fiscal, o crédito da exequente/embargante ascendia a € 72.005,17, sendo € 63.825,63 de capital, € 7.609,94 de juros, € 547,69 de despesas e comissões e 21,91 € de imposto de selo.

3.1.11. A ação intentada pelos fiadores, o aqui embargante e sua mulher, foi considerada improcedente, tendo o Tribunal da Relação do Porto, decidido em Acórdão datado de 30/01/2017, aliás publicado em www.dgsi.pt que não se verificavam os pressupostos previstos no artigo 653º do C.C. para a liberação dos fiadores.

3.1.12. Ali se decidiu que: “ Se o resultado da venda do imóvel hipotecado beneficiou a ré, que o adquiriu por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado, e prejudicou os fiadores que viram o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através do acionamento da hipoteca, estamos perante uma situação que poderá ser equacionada, à luz das regras da boa-fé, se a ré vier a exigir dos fiadores o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653º do C.C….

3.1.13. “Quanto à circunstância da ré não ter informado oportunamente os autores da existência de uma situação de incumprimento da obrigação afiançada e da venda do imóvel, cuja hipoteca garantia essa obrigação, tal omissão traduz uma violação de um dever acessório de informação, podendo a consequência desse incumprimento residir na reparação dos prejuízos dele resultantes para os fiadores ou no não agravamento da posição destes, em consequência da omissão de informação, não havendo, contudo, razões para que tal omissão determine a completa liberação da obrigação assumida pelos fiadores.

3.1.14. O embargante e a sua mulher, também executada, acompanhados da mutuária, reuniram, no dia 12.11.2007, no escritório do mandatário da exequente, tendo sido informados pessoalmente da situação de incumprimento do empréstimo e dos valores em atraso que, à data, ascendiam a apenas € 355,74.

3.1.15. Foram ainda informados que, se não regularizassem o atraso e a dívida do exequente (C...) no processo .24/2002, o imóvel seria vendido.

3.1.16. O produto da venda, pelo montante de 43.735,27 €, foi recebido em 22.2.2018, o qual foi aplicado com data valor da data da venda.

3.2. Factos não provados

3.2.1. Os executados, não obstante as interpelações, não pagaram as prestações mensais para o reembolso do capital e juros, estando em dívida as prestações vencidas desde 21.1.2008, nem liquidaram o remanescente em dívida após a aplicação do aludido valor recebido do produto da venda do imóvel dado em garantia.

3.2.2. O valor de mercado do imóvel era, em 21.5.2009, de € 60.000,00, conforme relatório de avaliação do imóvel.

3.2.3. A desarmonia de valores que possa ter existido na informação prestada ao embargante deveu-se a facto de a exequente, nas datas das mesmas, ainda não ter recebido e aplicado o produto da venda fiscal, sendo certo que o teve de depositar o preço em 2010, apesar de credora com garantia, por força do disposto no 256º, alínea h) do CPPT.

3.2.4. A Sra. Dra. EE, sendo gestora do processo em causa, sabia da existência da execução fiscal e da venda do imóvel, pelo que o embargante foi informado de uma estimativa do valor em dívida após aplicação do produto da venda do imóvel, que à data, ainda não havia sido recebido.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

As únicas questões concretas a apreciar e decidir são as seguintes:

1. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigo 295.º e 236.º nº 1 do Código Civil, nos artigos 724.º, n.º 1, al.ª e) e 716 nº 2 e 726.º do CPC e o artigo 20.º da Constituição da Républica Portuguesa?

2. A Exequente/embargada agiu com abuso de direito?

3. Os juros de mora são devidos desde 04.03.2014 como decidiu o Acórdão recorrido ou devem ser contados apenas desde a citação, como defende o Recorrente?

Vejamos

B) 1- O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigo 295.º e 236.º nº 1 do Código Civil, nos artigos 724.º, n.º 1, al.ª e) e 716 nº 2 e 726.º do CPC e o artigo 20.º da Constituição da Républica Portuguesa?

Defé inadmissível, pois não se verifica qualquer ofensa de caso julgado, pelo que não se conhece do seu objectoende o Recorrente que o Acórdão recorrido não podia ter considerado que o Recorrente/embargante não teria impugnado o capital reclamado no requerimento executivo (€ 20.408,05), mas apenas o montante de juros reclamados (€ 36.032,70), por considerar que apenas lhe são exigíveis € 10.455,00.

O Acórdão recorrido entendeu que «Por outro lado, no artigo 52º da petição de embargos, o embargante refere que, utilizando a taxa de 10,246% que a exequente alega ser a aplicável, apenas podia aquela reclamar a quantia de €10.455,00 a título de juros calculados, desde 18.6.2014 até à data da citação sobre o capital em dívida, e não a quantia de € 36.032,70, que vai impugnada para todos os efeitos legais».

Por isso, e bem, é que o Acórdão recorrido considerou na parte decisória «que a quantia exequenda é composta do capital em dívida de € 20.404,05; dos juros vencidos entre 4.3.2014 e 3.3.2019, à taxa legal de 10,246%, no montante de € 10,455,00, bem como os que posteriormente se venceram e vencerem até integral pagamento; das comissões, no montante de € 553,59».

Não vemos que o Acórdão recorrido tenha violado qualquer preceito legal, concretamente os invocados artigos 295.º e 236.º nº 1 do Código Civil, e 724.º, n.º 1, al.ª e) e 716 nº 2 e 726.º do CPC, que impusesse decisão contrária quanto ao facto de estar em divida certo capital e determinados juros.

Tão pouco se mostra violado qualquer preceito constitucional, concretamente o invocado artigo 20 da CRP pois que não se vislumbra – nem o recorrente invoca qualquer razão – que o direito do recorrente ao Acesso ao direito ou a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos tenha sido ofendida pela decisão recorrida.

Deste modo entendemos que se impõe a improcedência da primeira questão invocada pelo Recorrente.

2- A Exequente/embargada agiu com abuso de direito?

Dispõe o artigo 334 do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Da redacção deste preceito retira-se que para haver abuso do direito não é suficiente que o titular do direito exceda ou abuse (d)os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para que ocorra abuso do direito torna-se necessário algo mais. É preciso que aqueles limites sejam manifestamente excedidos, ou seja que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos.

Se o instituto do Abuso do Direito tem o seu campo de aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça, o certo é que o mesmo não pode ser usado de forma indiscriminada abrangendo situações em que apesar do exercício de um direito ser excessivo o mesmo não possa ser classificado como manifestamente excessivo.

Nos presentes autos a decisão recorrida conheceu do abuso do direito, para concluir que a Exequente/embargada não agiu com abuso do seu direito,

De igual modo, entendemos que não se verifica qualquer Abuso do Direito por parte da Exquente/embargada, seja na modalidade de “venire contra factum proprium” seja na vertente económica, como invocou o ora Recorrente.

Desde logo, ao contrário do que afirma o ora recorrente não é certo que «a Exequente tenha obtido, com a adjudicação do imóvel, um ganho superior ao montante em dívida».

Isso não está provado.

Nem o facto de o ora recorrente e sua mulher não terem outros bens para além do ordenado do Embargante, de cerca de € 650,00 e um veículo automóvel com cerca de 12 anos, o que era do conhecimento da Exequente pode levar-nos a concluir que ao exercer o seu direito de peticionar o montante em divida, a exequente o faz agindo com abuso de direito.

Em nosso entendimento não se verifica esse alegado abuso do direito.

A exequente com a presente execução não se encontra a violar o princípio da boa-fé nem age com abuso do direito, incluindo a modalidade de venire contra factum proprium ou na sua vertente económica.

Dos factos provados não resulta nenhum comportamento activo da exequente/recorrida que constitua um «abuso do direito».

Deste modo entendemos ser inequívoco que a conduta da Exequente/recorrida não constitui qualquer abuso do direito.

Em suma e em conclusão, impõe-se a procedência desta questão.

3 - Resta decidir a última questão:

Os juros de mora são devidos desde 04.03.2014 como decidiu o Acórdão recorrido ou devem ser contados apenas desde a citação, como defende o Recorrente?

Para responder a esta questão importa ter presente que o ora Recorrente assumiu a posição de fiador do devedor principal perante a Exequente.

E fê-lo na qualidade de fiador solidário, assumindo também contratualmente, em detrimento da norma supletiva do artigo 782º do C.C., a responsabilidade imediata, em virtude da alienação do imóvel hipotecado sem consentimento da credora.

Sobre a natureza da fiança remete-se para as considerações legais e doutrinárias que constam das decisões das instâncias, sendo desnecessário aqui repeti-las.

Dito isto, verifica-se que o Acórdão Recorrido entendeu que «são devidos juros de mora desde 04.03.2014, pois não era necessária a interpelação do fiador ora recorrente para pagamento, porquanto os embargantes, na qualidade de fiadores solidários, assumiram também contratualmente, em detrimento da norma supletiva do artigo 782º do C.C., a responsabilidade imediata, em virtude da alienação do imóvel hipotecado sem consentimento da credora, pelo que a mesma não era, ab initio, necessária».

E bem andou neste particular pois que apesar do invocado pelo Recorrente de que «tudo fez para saber qual era o concreto valor em dívida, sendo que a Recorrida deu valores completamente discrepantes em diferentes momentos», o certo é que está provados que o «embargante e sua mulher foram informados que, segundo a exequente/embargada, o capital em dívida à data da venda judicial era de € 63.825,63 (sessenta e três mil oitocentos e vinte e cinco euros e sessenta e três euros), que os juros remuneratórios calculados até essa data eram de € 7.625,04 e os moratórios de € 1.790,26, e que as despesas e comissões eram no valor de € 564,46, no total de € 73.805,39».

Mais está provado que «considerando que o valor da dívida em 19/07/2010 era de € 73.805,39 e deduzido o valor estimado a receber dos Serviços de Finanças referente ao depósito do preço feito pela exequente/embargante no valor de € 40.664,00, o capital em dívida estimado à data de 19/07/2010 era de € 33.161,39 ao qual acresceriam juros contratuais à taxa de 10,246% até efetivo e integral pagamento» e que «À data da reclamação de créditos na execução fiscal, o crédito da exequente/embargante ascendia a € 72.005,17, sendo € 63.825,63 de capital, € 7.609,94 de juros, € 547,69 de despesas e comissões e 21,91 € de imposto de selo».

Ou seja, ao contrário do que pretende o Recorrente a divida não é ilíquida, pelo que os juros não deverão ser contados apenas desde a citação, mas sim nos termos definidos no Acórdão recorrido.

Em suma e em conclusão, dúvidas não nos restam em como se impõe a improcedência desta questão e consequentemente da presente revista.

III - Decisão

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente o recurso do Recorrente/embargante e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 24 de Outubro de 2023

José Sousa Lameira (relator)

Conselheiro Nuno Ataíde das Neves

Conselheiro Nuno Pinto Oliveira