Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7962/21.2T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
DIREITO AO NOME
FACTO ILÍCITO
CAUSA DE PEDIR
DANO
RESIDÊNCIA HABITUAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do CPC, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome, imagem e caraterísticas físicas e pessoais, nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA, cidadão ..., a residir em Portugal, demandou Electronic Arts Inc.eguros, S.A, sociedade norte americana, com sede na ... tendo formulado pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de 341.000,00 euros, fundado na responsabilidade civil por facto ilícito consistente na utilização e divulgação não autorizada da sua imagem, enquanto... de futebol profissional na produção e comercialização de jogos de vídeo da FIFA, FIFA MANAGER FIFA, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE desde 2006 , 2007, 2010 e 2020, os quais alegadamente também são difundidos e vendidos em Portugal.

Formulou o correspondente pedido de indemnização no montante de 336.000,00 euros referentes a danos patrimoniais e de 5.000,00 euros para ressarcimento de danos não patrimoniais.

Foi deduzida contestação.

2. Foi proferida decisão que declarou o tribunal internacionalmente incompetente, a qual na sua fundamentação convocou diversa jurisprudência, quer a favor, quer contra a posição assumida.

3. Inconformado, apelou o autor, tendo o Tribunal da Relação deliberado o provimento do recurso e a revogação do saneador sentença, julgando internacionalmente competente o tribunal português para o mérito da causa, por força do disposto no artigo 62º, alínea b) do Código de Processo Civil, determinando o prosseguimento dos autos.

4. Electronic Arts Inc., ré nos presentes autos, tendo sido notificada do acórdão do Tribunal da Relação, de 04-05-2023, e com ele não se conformando, interpôs recurso de revista, com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º, n.º 3, parte inicial (violação das regras de competência internacional), 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, todos do CPC, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

«a) O presente recurso de revista impugna o acórdão de 04.05.2023 do TRP, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível de ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

– princípio da causalidade, princípio da coincidência, princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 62.º do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ; – art.º 351.º do CC.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5...; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7...

d) Sucede que o acórdão em crise declarou a competência internacional com base na existência da venda dos jogos FIFA em Portugal, ato que o autor não imputa à ré (localizando a atividade desta apenas nos EUA, Japão e Canadá).

e) Acresce que o acórdão revidendo, ao assumir a corrente do STJ, acaba por se basear em factos presumidos, factos não articulados na petição inicial, factos que não integram a causa de pedir e na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal.

f) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja a sua nacionalidade.

g) As vendas dos jogos FIFA não constituem conexão suficientemente relevante para se afirmar a competência internacional porque (i) não são imputadas à ré e (ii) não assumem nenhuma particularidade sobre todas as demais vendas noutros países.

h) A par deste erro de julgamento, dado que o acórdão do TRP adere aos fundamentos dos acórdãos do STJ aí citados, cumpre referir que é inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2 porque este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro e a ré tem sede nos EUA.

i) Ao abrigo do princípio interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não há que convocar a jurisprudência do TJUE sobre diplomas europeus, para interpretar a lei portuguesa.

j) Incluir no critério da causalidade do art.º 62.º, alínea b) do CPC, o centro do interesse do autor constitui violação manifesta das regras de interpretação jurídica e de normas e princípios constitucionais, como acima se detalhou e para onde se remete – reiterando-se o pedido de pronúncia expressa deste Tribunal.

k) Sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional, o qual tem de ser interpretado e aplicado de acordo comos critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

l) As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

m) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber~

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e – alínea c): critério da necessidade.

n) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) O autor indicou ser cidadão ... e ter nascido no ...;

(ii) Viveu sempre no estrangeiro, até vir para ... em 2006, desconhecendo-se onde mantém os laços familiares e o seu património;

(iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no ..., nos Estados Unidos da América;

(iv) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sàrl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que mostra que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;

(v) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA;

(vi) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial);

(vii) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor;

(viii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).

o) Destes factos, verifica-se que:

– nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor; – não se imputa à ré a prática de atos em Portugal;

– não há na petição inicial concretização de danos;

- não há na petição inicial nenhum facto que demonstre uma conexão pessoal relevante entre o autor e Portugal, para efeitos da demanda;

– não há alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos;

– não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;

– não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede.

p) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC, valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu.

q) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

r) Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

s) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

t) Sucede que não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

u) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

v) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

w) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao Tribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

x) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal.

y) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu a terceiros e não à ré, o que constitui uma competência exorbitante já que não é um fator que se distinga na nossa jurisdição sobre as demais, onde igualmente são comercializados os jogos FIFA.

z) A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

aa) A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente oque se visa evitar em homenagem ao princípio da soberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

bb) Acresce que não se pode inferir que o autor terá sofrido danos em Portugal, porque isso traduz o emprego de presunção judicial de factos, o que é vedado na apreciação da competência – art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e art.º 351.º do CC.

cc) É igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE, sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses.

dd) Sendo a existência ou não dum centro de interesses, numa determinada jurisdição, uma conclusão jurídica que assenta em determinados factos, não se identificam na petição inicial quaisquer factos que permitam suportar a existência desse centro de interesses em território nacional.

ee) O conceito de “centro de interesses” é uma figura trabalhada pela jurisprudência do TJUE e indevidamente aplicada pelo TRP pois não existe qualquer lacuna na lei portuguesa que requeira integração através daquela figura – vide Parecer do Ilustre doutrinário, Prof. Doutor Teixeira de Sousa.

ff) De igual modo, não é discernível, na disposição legal do art. 62.º, b) do CPC, o conceito de “centro de interesses”, que não se reconduz, nem se confunde com a prática, em território português, do facto que serve de causa de pedir ou de facto que a integre.

gg) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) inexistência de qualquer ligação relevante do autor a Portugal para efeitos da demanda, inexistem elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

hh) Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

ii) Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

jj) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

kk) O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

ll) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação e aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRP e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

mm) São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas)

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório); – princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e

– princípio do primado do direito europeu.

nn) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC e é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82 porque na interpretação abstrata da lei (e sua posterior concreta aplicação) do princípio da causalidade não cabe, por contrariar os princípios constitucionais acima elencados, o critério do centro de interesses, nem o emprego de factos presumidos, factos não alegados e factos que não integram a causa de pedir.

Nestes termos requer a V. Exas., face a tudo o que foi supra alegado, se dignem conceder provimento ao recurso, revogando a decisão sindicada e proferindo acórdão no sentido adrede pugnado».

5. O autor apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido.

6. Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), a questão a decidir é a seguinte:

I – Competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do fundo da causa;

II – Inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil a fim de reconhecer a competência internacional dos tribunais portugueses, por violação de normas e princípios constitucionais ínsitos nos artigos 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A - Os factos

O Autor na petição inicial articulou, para o que aqui releva, o seguinte:

1. A Ré Electronic Arts Inc., através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo.

2. O Autor que reside em Portugal tem uma longa e ilustre carreira como ... de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família.

3. O Autor atuou em centenas de partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição ..., como é conhecido internacionalmente, tendo atuado no N..., S..., F..., A..., B..., Pa... (Brasil) e P... (Grécia) entre outros.

4. Esteve vinculado aos seguintes clubes e nas seguintes épocas: - 2020/21 – B... - 2019/20 – B... - 2018/19 – B... - 2017/18 - A... - 2016/17 – A... - 2015/16 – A... - 2014/15 – P... (Grécia) - 2013/14 – P... (Grécia) - 2012/13 – S... e F... - 2011/12 – F... - 2010/11 – N... - 2009/10 – N... - 2008/09 – N... - 2007/08 – N... - 2006/07 – N... - 2005/06 – Pa... (Brasil).

5. O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2016, 2017, 2019, 2020 e 2021, FIFA MANAGER FIFA (inicialmente designado Total Club Manager), nas edições 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2010, 2011, 2012, 2013, 2017, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021, todos propriedade da Ré.

6. O Autor jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos eletrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e. FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE. (11º).

7. Tão pouco conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, especificamente para jogos eletrónicos, jogos de vídeo, aplicativos, ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma. (12.º).

8. A Ré é uma empresa mundialmente reconhecida pela produção e desenvolvimento de jogos para computadores, jogos de vídeo e aplicações diversas, exploradas, entre elas, através dos jogos de vídeo identificados nesta petição e que se tornaram mundialmente conhecidos, de modo que a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global. (13º).

9. O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (por exemplo o jogo FIFA 12 vendeu 5 milhões de unidades em apenas 30 dias por todo o mundo.

10. A exploração sem consentimento da imagem e do nome do jogador Autor é renovada a todos os anos por via do lançamento de novas versões dos jogos.

11. Ora, no caso dos autos, a Ré está a utilizar sem consentimento e explorar a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde 3 de novembro de 2006 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 2007) até aos dias de hoje, ao comercializar os jogos para consolas ou aplicativos e atualizações em todo o mundo.

12. E, tais jogos, mesmo de anos anteriores, continuam a ser difundidos e vendidos, em Portugal, e em todo o mundo, (25.º) “ ao ponto de o jogo FIFA 17 DELUXE EDITION PS3 em suporte físico ser vendido na Fnac” (artigo 201º ).

13. Nesse sentido, os jogos FIFA e FIFA MANAGER ainda hoje estão disponíveis no mercado para compra.

14. O Autor para instauração da presente ação procedeu recentemente à compra de várias versões do jogo FIFA (38.º).

B – O Direito

1. Aderindo a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça, em particular ao Acórdão de 15-02-2023 (Revista n.º 4239/20.4...), o acórdão recorrido reconheceu a competência internacional dos tribunais portugueses para a resolução do mérito do caso: uma ação de responsabilidade civil extracontratual contra uma empresa norte-americana produtora de vídeos, por violação de direitos de personalidade, designadamente o direito à imagem do autor.

Em síntese, a decisão recorrida baseou-se nos argumentos expostos no seu sumário, conforme se transcreve:

«1. - A competência do tribunal, como medida da sua jurisdição é aferida em função dos factos alegados na petição inicial, considerando o pedido do autor, não interessando quaisquer outros pressupostos processuais, ou os termos da contestação ou oposição deduzida

2. É à luz do disposto do aludido art. 62.º, do CPC que deve ser aferida a incompetência internacional dos tribunais portugueses se nada for estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários, ou outro instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária.

3. É de atender à jurisprudência do TJUE sobre normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno, na aplicação e interpretação do direito interno, sobre competência internacional em prol da certeza uniformidade e seguranças jurídicas, só assim se evitando soluções desencontradas com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria.

4.Numa ação de responsabilidade civil por facto ilícito, cujo processo causal foi iniciado nos Estados Unidos mas em que se produziram danos decorrentes da violação de direitos de personalidade do Autor, residente em Portugal a lesão verifica-se no local onde o bem da personalidade é explorado economicamente.

5. Se os danos invocados se prolongaram no tempo, localizando-se em diferentes Estados, mas também em Portugal, onde o A. exerce a sua profissão de jogador existem elos suficientemente fortes entre os factos da causa e os tribunais portugueses, devendo dar-se como verificado o critério da causalidade, constante da alínea b) do artigo 62º do Código de Processo Civil».

2. A especificidade da questão suscitada é que os factos reputados como ilícitos e danosos, que constituem a causa de pedir, têm conexão com distintas ordens jurídicas, pugnando o autor para que sejam competentes os tribunais do Estado português, onde reside e exerce a sua atividade profissional, ou seja, onde tem o seu “centro de interesses”, enquanto a ré sustenta que os tribunais competentes são os estadunidenses, local onde os vídeos foram produzidos.

A ré apresenta nas conclusões de recurso, em síntese, os seguintes argumentos:

1) Ilegalidade da decisão recorrida, com base na violação de lei substantiva, processual e da Constituição da República Portuguesa; 2) O acórdão recorrido, ao assumir a corrente do STJ, acaba por se basear em factos presumidos, factos não articulados na petição inicial, factos que não integram a causa de pedir e na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal; 3) Inaplicabilidade do regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2 porque este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro e a ré tem sede nos EUA, e irrelevância da jurisprudência do TJUE; 4) A inclusão no critério da causalidade do artigo 62.º, alínea b) do CPC, o centro do interesse do autor constitui violação manifesta das regras de interpretação jurídica e de normas e princípios constitucionais; 5) O Autor não alegou nenhum facto territorialmente localizado em Portugal, a petição inicial não concretiza os danos, não há facto que demonstre uma conexão pessoal relevante entre o autor e Portugal, não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede; 6) Aplicação da regra do artigo 71.º, n.º 2, do CPC, de acordo com a qual o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu; 7) A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando a circunstância de a ré não produzir o jogo em Portugal e aqui não praticar aqui qualquer ato; 8) Não se pode inferir que o autor terá sofrido danos em Portugal, porque isso traduz o emprego de presunção judicial de factos, o que é vedado na apreciação da competência – art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e art.º 351.º do Código Civil. 9) É igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE, sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses.

Quid iuris?

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Entende o recorrente que este Regulamento não é aplicável ao caso dos autos porque a ré não tem sede num Estado da União Europeia, mas nos EUA, e indica como não aplicável a noma do artigo 7.º, n.º 2, que estipula o seguinte: «As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…) 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (…)»

Todavia, este argumento, se bem que, em abstrato, esteja correto, de nada serve ao recorrente, nem permite alterar a solução do caso, pois a regra aplicável é de direito interno, tendo o acórdão recorrido decidido a questão com base no artigo 62.º, al. b), do CPC, conforme decorre, por exemplo, do seguinte excerto:

«O critério da causalidade, constante da alínea b) do art. 62.º, diz-nos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes desde que tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram, resultando de forma clara da parte final desta norma, a plena aplicação aos casos em que haja uma causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos relevantes com ligação a mais do que um ordenamento jurídico ou jurisdição nacional».

As normas do regulamento aparecem referidas na jurisprudência do TJUE de que o acórdão recorrido se serviu para interpretar o artigo 62.º, al. b) do CPC, mas não foram objeto de qualquer aplicação direta aos factos do caso, tendo sido invocada essa jurisprudência, como veremos adiante, apenas como critério auxiliar de interpretação da norma competente de direito nacional, de acordo com a ideia de segurança jurídica e preservação da unidade do sistema jurídico europeu de que faz parte o Estado português e os seus tribunais.

Aliás, como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, será à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do CPC, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

As normas do Código de Processo Civil aplicáveis dispõem o seguinte:

Artigo 59.º

Competência internacional

Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.

Artigo 62.º

Fatores de atribuição da competência internacional

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

No artigo 62.º do CPC são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

3. A competência do tribunal afere-se pelos “termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 88). Ou seja, “A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, atendendo-se, apenas, aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados” (cfr., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-12-2013, proc. 204/11.0... e de 08-06-2021, proc. n.º 20526/18.9...)

A competência internacional constitui a “fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras” (cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, p. 198).

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos. O Autor tem nacionalidade italiana e reside em Portugal, exercendo a sua atividade profissional em Portugal e noutros clubes de futebol europeus.

A Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no ...), tendo a produção dos jogos ocorrido precisamente nesse local.

A difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, e os sentimentos negativos experienciados pelo Autor sucederam nos locais onde ele se encontrava durante todo o período temporal em que os jogos foram difundidos.

4. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciaram pela competência internacional dos tribunais portugueses, em casos semelhantes ao destes autos, em que os autores são jogadores de futebol que invocam a violação do direito à imagem contra a mesma empresa produtora de vídeos, os seguintes Acórdãos: de 24-05-2022 (Proc. n.º 3853/20), de 07-06-2022 (Proc. n.º 24974/19), de 07-06-2022 (Proc. n.º 4157/20), de 23-06-2020 (Proc. n.º 3239/20), de 27-09-2020 (Proc. n.º 637/20), de 29-09-2022 (Proc. 2160/20), de 13-10-2022 (Proc. n.º 1014/20), de 10-11-2022 (Proc. n.º 1579/20).

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-05-2022, a que se seguiram muitos outros, sumariou o seguinte:

« I. São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.»

5. Dos factos alegados pelo autor são relevantes para o estabelecimento da competência internacional os seguintes:

O Autor reside em Portugal e tem uma longa e ilustre carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família (facto n.º 2). O Autor atuou em centenas de partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de Defesa Central, como é conhecido internacionalmente, tendo atuado no Nacional, S..., F..., A..., B..., Pa... (Brasil) e P... (Grécia) entre outros, e esteve vinculado a numerosos clubes de futebol (factos n.º 3 e n.º 4). A Ré é uma empresa mundialmente reconhecida pela produção e desenvolvimento de jogos para computadores, jogos de vídeo e aplicações diversas, exploradas, entre elas, através dos jogos de vídeo identificados nesta petição e que se tornaram mundialmente conhecidos, de modo que a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global (facto n.º 8). O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (facto n.º 9). No caso dos autos, a Ré está a utilizar sem consentimento e explorar a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde 3 de novembro de 2006 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 2007) até aos dias de hoje, ao comercializar os jogos para consolas ou aplicativos e atualizações em todo o mundo (facto n.º 10). E, tais jogos, mesmo de anos anteriores, continuam a ser difundidos e vendidos, em Portugal, e em todo o mundo (facto n.º 12). Nesse sentido, os jogos FIFA e FIFA MANAGER ainda hoje estão disponíveis no mercado para compra (facto n.º 13).

Estes factos alegados são, em tudo, semelhantes aos da jurisprudência já produzida por este Supremo Tribunal de Justiça, devendo este Supremo Tribunal, no presente acórdão, por respeito ao princípio da igualdade, adotar a mesma solução já adotada nos Acórdãos acima citados.

Afigura-se, desde logo, que não tem razão a recorrente quando invoca que o acórdão recorrido decidiu com base em presunções de facto para determinar a causa de pedir e que o autor não concretizou os danos, não estando verificados, em seu entender, os elementos de conexão necessários para fundamentar a competência internacional dos tribunais portugueses.

Analisado o acórdão recorrido conclui-se que este não padece de qualquer ilegalidade, pois não se baseou em quaisquer juízos presuntivos para firmar os factos em que fundamenta a decisão, mas apenas no alegado na petição inicial, tal como rigorosamente articulado na fundamentação de facto do acórdão recorrido, agora reproduzida (cfr. ponto II, A do presente acórdão).

A causa de pedir invocada é, suscetível de preencher, em abstrato, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual tal como decorrem dos artigos 483.º, 562.º e 563.º do Código Civil, bem como os conceitos de “gravidade” e de “merecimento de tutela do direito” previstos no artigo 496.º do Código Civil, dado que foi alegada a exploração de direitos de personalidade, sem consentimento do titular (ilicitude), e concretizados os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, para além de ter sido invocado também o enriquecimento sem causa da ré nos termos do artigo 473.º do Código Civil (artigos 173.º e 174.º da petição inicial) e a figura dos danos punitivos. Ou seja, mesmo que não se venha a provar a integralidade dos danos psicológicos alegados pelo autor, o tribunal pode condenar em montante superior aos danos efetivamente sofridos com objetivo sancionatório do comportamento ilícito da ré.

Importa uma palavra sobre a concretização do dano, o principal requisito da responsabilidade civil, na petição inicial do autor.

A título de compensação por danos não patrimoniais, o autor pede a quantia de 5000,00 euros (artigo 195.º da petição inicial), invocando a perturbação, o desgosto, a revolta e a tristeza pelo facto de a sua imagem e nome estarem a ser explorados para obtenção de lucros da ré, sem a sua autorização. Invoca também a gravidade das lesões por estarem em causa bens pessoalíssimos (artigo 176.º da petição inicial), pedindo o apagamento ou a atenuação do sofrimento causado, tendo em conta o seu relevo no quadro de vida do lesado e a repercussão sancionatória para a lesante (artigo 194.º da petição inicial).

Quanto aos danos patrimoniais invoca os avultados lucros da ré à custa da exploração sem consentimento da imagem dos atletas e o alto preço dos jogos de vídeo, especificando quais são os resultados, em dinheiro, obtidos pela ré com a comercialização dos jogos em que utiliza indevidamente a imagem e o nome dos atletas e os montantes indemnizatórios a que entende ter direito, bem como a forma de cálculo dos mesmos (artigos 172.º e 181.º a 186.º da petição inicial)

Quando se analisa a petição inicial e o pedido do autor, para o efeito de determinar o tribunal competente, não se exige a prova dos factos alegados, nem que ele tenha razão quanto ao mérito da questão. Não cabe, pois, fazer qualquer apreciação sobre o fundo da causa nem sobre a suficiência ou insuficiência do alegado, mas tão-só ponderar os contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na medida necessária para aferir do pressuposto da competência em causa.

Conclui-se, pois, que o acórdão recorrido, nos seus fundamentos, não invocou, diferentemente do afirmado pelo recorrente, factos não alegados ou apoiados em presunções judiciais. Foram, pois, considerados exclusivamente os factos alegados na petição inicial e foi com base unicamente em tais factos que o tribunal recorrido formou uma convicção relativamente ao que estava em causa para o efeito de estabelecer uma ligação entre o autor, jogador profissional de futebol, e o tribunal por ele escolhido para propor a ação.

6. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem invocado, para fundamentar a solução do caso, a jurisprudência do TJUE, nos moldes em que o fez o Acórdão de 24-05-2022, onde se exarou o seguinte:

«(…)

Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não devem conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas e uropeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.

O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, BB, I... Inc, C... SARL e C... Ltd contra P..., S.A. [14], relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal F..., à venda em vários países europeus, incluindo ..., onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta».

Ainda noutro Acórdão, de 25.10.2011 (C-509/09 e C-161/10), também citado no Acórdão deste Supremo, datado de 24-05-2022, “ED...contra X, e BB e CC contra M...”, o TJUE (Grande Secção), o TJUE já decidiu que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado.

No Acórdão do Supremo, de 24-05-2022, cita-se também o Acórdão do TJUE, de 17.10.2017 (Processo C-194/16, EU:C:2017:766), relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia. Entendeu o TJUE que uma pessoa coletiva, que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos, pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses.

Por último, é ainda citado o Acórdão do TJUE, de 21-12-2021, G... contra D..., relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação, em sítios e fóruns da Internet, de afirmações depreciativas da sociedade G... que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se o TJUE no sentido de que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.

O acórdão recorrido aderiu, no ponto II da sua fundamentação, para onde se remete, ao papel orientador da jurisprudência do TJUE, por razões de segurança jurídica e de coerência, sustentando que se trata de «(…) procurar interpretar e aplicar o direito interno “de forma sistematicamente coerente, evitando que as mesmas normas nacionais sejam entendidas de modo diverso consoante aplicadas no âmbito do Direito Europeu ou fora dele (…). Daqui que as normas internas sobre competência internacional devam ser interpretadas em conformidade com a jurisprudência do TJUE sobre normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno, só assim se evitando soluções desencontradas com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria».

6.1. Invoca a recorrente que esta jurisprudência é irrelevante e inaplicável ao caso dos autos, por pôr em causa a autonomia jurídica dos tribunais nacionais na interpretação das suas normas, bem como a soberania dos Estados Membros.

Ora, não pode deixar de se afirmar que esta tese está ultrapassada em face da forma como a relação entre a UE e os Estados Membros é definida na Constituição da República Portuguesa e na jurisprudência do TJUE. Desde logo, esta relação não é concebida num plano vertical, em moldes de superioridade/submissão, mas num plano horizontal, como uma relação de cooperação.

Importa afirmar, em primeiro lugar, que a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 8.º, n.º 4, estipula que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático», deduzindo a doutrina maioritária desta norma um princípio do primado do direito da União Europeia enquanto primado de aplicação, isto é, o tribunal nacional tem de desaplicar a norma nacional incompatível com o direito da União Europeia, mas não declara a sua invalidade, continuando esta a integrar o ordenamento interno (cfr. Gomes Canotilho/Vítal Moreira, “Anotação ao artigo 8.º”, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, pp. 265 e seguintes).

Apesar de não expressamente previsto nos tratados europeus, o Tribunal de Justiça da União Europeia reconhece o princípio do primado do direito da União Europeia e fundamenta-o na necessidade de homogeneidade na aplicação do direito europeu.

Mesmo que não esteja em causa, como não está no presente caso, um conflito entre uma norma de direito da União e uma norma de direito nacional, suscetível de conduzir à desaplicação da norma de direito nacional desconforme, o princípio do primado tem, também, por consequência que os tribunais nacionais devem adotar uma interpretação do direito nacional conforme aos princípios e normas de Direito da União, aqui incluindo a jurisprudência do TJUE. Como se afirma no Acórdão Marleasing, nas conclusões do advogado geral (n.º 8, pp. 4146-4147, processo n.º C-106/89), «o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite dar à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com a norma da União Europeia». Trata-se do princípio da interpretação conforme, segundo o qual «(…) o intérprete e aplicador do direito deverá, ainda quando deva aplicar apenas direito nacional, a atribuir a este uma interpretação que se apresente conforme com o sentido, economia e termos das normas europeias» (cfr. Miguel Gorjão-Henriques, Direito da União, Almedina, Coimbra, 2019, p. 393). Este princípio tem sido reconhecido também pela jurisprudência nacional de que é exemplo o Acórdão Uniformizador do STJ n.º 3/2004, de 25 de março, quando se refere a ele como um «(…) princípio estruturante do direito comunitário de interpretação, conforme definido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, órgão máximo da interpretação do direito comunitário, princípio que deriva do primado do direito comunitário sobre a ordem jurídica estatal, que significa, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a obrigação de os juízes nacionais interpretarem o seu direito nacional de modo a harmonizá-lo com o direito originário e derivado de origem comunitária, na medida do possível». Não se pode olvidar que a Constituição da República Portuguesa prevê, no artigo 8.º, n.º 4, uma cláusula de receção do direito da União Europeia, que implica relações de coordenação entre Estados e entre Estados e União, envolvendo o recurso à jurisprudência do TJUE e de outros Estados da União Europeia através de um diálogo entre tribunais numa lógica de cooperação.

Não se coloca, pois, qualquer renúncia à soberania do Estado nacional quando orienta a interpretação das normas de direito interno pelos critérios normativos de normas de direito comunitário, tanto mais que este método de interpretação está de acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Civil, que determina que o intérprete pode recorrer a uma multiplicidade de elementos de interpretação, históricos, teleológicos e sistemáticos. O único caso, mas que não está em causa neste processo, em que se colocam problemas de soberania do Estado, diz respeito ao conflito entre normas constitucionais e normas de direito comunitário, não renunciando os Estados, nesta hipótese, à defesa dos direitos e dos vetores básicos das correspondentes Constituições (Cfr. Jorge Miranda, “Anotação ao artigo 8.º da Constituição”, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 128). O Tribunal Constitucional português assumiu já uma posição em matéria de relacionamento entre os ordenamentos jurídico-constitucionais nacional e da União Europeia no Acórdão n.º 422/2020, a qual não tem aplicação no presente caso em que está em causa a aplicação de direito nacional compatível com direito da união europeia e de valor infraconstitucional.

6.2. Regressando ao caso concreto, verifica-se que decorre dos fundamentos do acórdão recorrido que este não considerou vinculativa a jurisprudência do TJUE, nem procedeu a uma aplicação direta e imediata da mesma. O que o tribunal recorrido fez foi utilizar, como elemento de interpretação do direito interno, a orientação do TJUE face a casos semelhantes ao destes autos. Trata-se de um procedimento adequado em face da circunstância de as normas de direito comunitário e os seus princípios jurisprudenciais integrarem o direito nacional, podendo servir de orientação ao julgador, de acordo com o elemento sistemático de interpretação que faculta ao intérprete o recurso às normas paralelas dentro do sistema e à unidade do ordenamento jurídico (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil). O Código Civil prevê também a possibilidade de uma interpretação atualista que conduz à ponderação como argumento hermenêutico das condições específicas do tempo em que a lei é aplicada, o que inclui a necessidade de harmonização do direito interno com o direito comunitário (cfr. artigo 9.º, n.º 1, in fine).

Vejamos:

Sobre este ponto afirmou o acórdão recorrido o seguinte:

«Sublinhando-se que não se visa a direta e imediata aplicação da jurisprudência do TJUE, mas sim como elemento essencial à atual e plena compreensão dos fatores de conexão estabelecidos no art. 62.º, no caso a alínea b), repetindo que o direito comunitário faz parte do direito interno, a interpretação sistemática e atualista da norma em causa também deve ser realizada, em termos de sistema, com recurso a direito comunitário, bem como a da orientação jurisprudencial do TJUE, e assim na observância da respetiva conformidade, indo aliás, ao encontro das regras interpretativas do art. 9.º do CC.

Assim, e já como se aludiu na breve nota Jurisprudencial do TJUE, vem-se consolidando um critério de interpretação segundo o qual o impacto da violação dos direitos de personalidade através de meios de exposição globais que lhe conferem conexão com mais do que um ordenamento jurídico e jurisdição nacional, verifica-se predominantemente no Estado onde o autor alega ter sofrido o atentado à sua reputação a sede da sua vida pessoal organizada, com atribuição da competência ao tribunal desse país para conhecer a totalidade dos prejuízos sofridos».

Perante o exposto, verifica-se que a invocação da jurisprudência do TJUE no texto da decisão do acórdão recorrido surge para fundamentar o critério regra da relevância do domicílio da vítima de violação de direitos de personalidade e da sede de organização da sua vida pessoal e, bem assim, o entendimento sufragado nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo.

Fica claro também da argumentação usada no acórdão recorrido que a sua ratio decidendi foi a alínea b) do artigo 62.º do CPC, norma em que o acórdão recorrido integrou a situação dos autos tal como foi alegada, conforme decorre do seguinte excerto:

«O critério da causalidade, constante da alínea b) do art. 62.º, diz-nos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes desde que tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram, resultando de forma clara da parte final desta norma, a plena aplicação aos casos em que haja uma causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos relevantes com ligação a mais do que um ordenamento jurídico ou jurisdição nacional.

Esta norma, que atribui aos os tribunais portugueses competência internacional para julgar uma ação na situação de «b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram», prevê as causas de pedir complexas e estipula que basta a conexão de algum dos factos com a ordem jurídica portuguesa para que esteja fundamentada a competência internacional dos tribunais portugueses. Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado. A circunstância de a ação lesiva dos direitos do Autor se iniciar nos EUA, local onde foi produzido o vídeo, não determina que sejam os tribunais estadunidenses os competentes. Há que ter em conta que os danos poderão ou não ocorrer no mesmo lugar em que se deu a produção dos vídeos. Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome e à imagem são realidades distintas do ato lesivo, devendo ter-se em conta a atividade de divulgação púbica generalizada. Apesar de os danos terem sido sofridos em várias ordens jurídicas onde o autor participava em jogos de futebol, para determinar o tribunal competente deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE acima citada, segundo o qual impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.

Como sublinha o Acórdão deste Supremo, de 24-05-2022, «Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping».

Ora, no presente caso, apesar de a nacionalidade do autor ser a ... e de os vídeos terem sido produzidos nos EUA, local onde se desencadeou o processo que deu origem ao facto danoso, há outros elementos a ter em conta e que estabelecem conexão com a ordem jurídica portuguesa: o autor reside em Portugal, onde tem a sua vida familiar e profissional organizada, e está vinculado, entre outros, a clubes de futebol portugueses para quem trabalha.

Podemos, pois, afirmar que foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem, caraterísticas físicas e pessoais, poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que o autor interveio como ... profissional em clubes que predominantemente eram portugueses. No caso de se terem verificado prejuízos para a vida profissional e pessoal do autor e porque foi em Portugal que o autor predominantemente estabeleceu residência e desenvolveu a sua atividade profissional, terá sido também em Portugal que poderá ter sofrido a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado (artigo 195.º da petição inicial).

O dano, que, diferentemente do afirmado pela recorrente, foi invocado na petição inicial, na sua dupla dimensão patrimonial e não patrimonial (artigos 165 e seguintes da petição inicial), produz-se no país onde o autor reside e tem o seu centro de vida – Portugal – sendo, portanto, legítima e fundada na lei a pretensão do autor de propor a ação de responsabilidade civil extracontratual em Portugal.

Assim, mantém-se a decisão recorrida, e fixa-se a competência dos tribunais portugueses para conhecer a causa.

II - Inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses, por violação de normas e princípios constitucionais ínsitos nos artigos 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.

7. Os pressupostos para que estejam reunidas as condições para o conhecimento de uma questão de constitucionalidade são exigentes e incluem a natureza normativa das questões suscitadas: (i) o seu caráter geral e abstrato, e a suscetibilidade de a resposta que lhe for dada valer para um número indeterminado de casos; (ii) a suscitação prévia e de modo processualmente adequado das questões de constitucionalidade normativa; e, por último, (iii) que a solução da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade normativa, submetida à apreciação, possa repercutir-se, de forma útil e efetiva, na decisão proferida pelo tribunal recorrido acerca do caso concreto a dirimir. Ou seja, só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 475/2023). Por isso, a utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal recorrido.

Ora, é precisamente o que sucede no presente caso. As pretensas interpretações normativas aqui impugnadas não foram aplicadas no acórdão recorrido, tal como, desde logo, decorre dos fundamentos da resposta à questão anterior, onde ficou exarado que o acórdão recorrido se fundou exclusivamente em factos alegados pelo autor na petição inicial e rigorosamente discriminados no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, agora impugnado em sede de revista. A orientação seguida no acórdão recorrido não foi a invocada pelo autor, que permitiria sustentar a competência internacional em presunções de facto, mas aquela, segundo a qual, a apreciação da competência internacional do tribunal se afere pelos termos em que o autor configura a relação material controvertida. É importante notar que não se verificou no acórdão recorrido qualquer juízo probatório, acompanhado da consequente fixação de quaisquer factos provados, mas tão-só a enumeração dos factos alegados que integraram a causa de pedir tal como foi delineada pelo autor. Avaliar da suficiência desta alegação e da sua veracidade probatória não compete aos tribunais nesta fase, em que está em causa unicamente a definição do tribunal competente, mas não o mérito da questão. Quem confunde ambas as vertentes é a recorrente na sua alegação de recurso de revista, não o acórdão recorrido e a jurisprudência que se tem pronunciado no sentido de reconhecer a competência internacional aos tribunais portugueses.

8. Pelo exposto, não se conhece da pretensa questão de constitucionalidade, por não constituir a interpretação normativa impugnada ratio decidendi do acórdão recorrido. Ou seja, ainda que fosse decidida a recusa de aplicação da norma impugnada, não teria a inconstitucionalidade da norma qualquer repercussão prática na decisão do caso concreto.

9. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 667.º, n.º 3, do CPC:

I. São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do CPC, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome, imagem e caraterísticas físicas e pessoais, nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 16-11-2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Jorge Arcanjo (1.º Adjunto)

Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)