Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
644/17.1T8STR-D.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
ATO INÚTIL
Apenso:


Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- Tendo sido qualificada como culposa a insolvência da sociedade da qual o requerido era sócio gerente, e tendo este sido, consequentemente, condenado a indemnizar os credores da insolvente, a medida da sua responsabilização face aos credores não é necessariamente decalcada da posição debitória da insolvente, pois comporta também uma dimensão pessoal que lhe confere um carater sui generis dentro do vasto campo da responsabilidade civil.


II- Não tendo havido sentença de verificação e graduação de créditos, porque a sua elaboração seria um ato inútil face à ausência de massa insolvente para distribuir pelos credores (constatada nos autos principais da insolvência), tal como inútil seria (pela mesma razão) a verificação ulterior de créditos, e não tendo sido posta em causa a qualidade de credor do requerente, só há que determinar o montante que foi condenado a pagar na sentença que qualificou a insolvência como culposa. Para o efeito é idóneo o incidente de liquidação de sentença apresentado pelo requerente.

Decisão Texto Integral:

Processo n. 644/17.1T8STR-D.E1.S1


Recorrente: SUPER BOCK BEBIDAS, S.A.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. Por apenso aos autos de insolvência de “C........., Ldª.”, veio a “SUPER BOCK BEBIDAS, S.A.” deduzir incidente de liquidação contra AA, tendo por base a sentença proferida no Apenso A, em 11.03.2019, que qualificou a insolvência como culposa e condenou o réu a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, correspondendo à totalidade dos créditos reconhecidos na lista do art. 129.º do CIRE. A requerente liquidou o seu crédito no valor de 58.363,17€, e peticionou a condenação do réu no pagamento do respetivo montante.


2. O réu contestou, alegando que o processo de insolvência havia sido encerrado por insuficiência da massa insolvente, motivo pelo qual o crédito da autora não foi reconhecido por sentença, concluindo que tal crédito não pode ser objeto de liquidação, não sendo o réu devedor de qualquer quantia.


3. Realizado o julgamento da causa, com observância das formalidades legais, foi proferida sentença, tendo o incidente sido julgado totalmente procedente, e sendo fixados os valores a pagar pelo réu à autora por força da sentença proferida no Apendo A em 11.03.2019 (já transitada em julgado) nos seguintes termos:


«1). 28.333,33€ (vinte e oito mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), correspondente à indemnização no valor de 1/3 do valor da contrapartida pela exclusividade, acrescida de juros de mora vencidos até 05/11/2021, no valor de 10.329,63€ (dez mil trezentos e vinte e nove euros e sessenta e três cêntimos), e vincendos até efectivo e integral pagamento;


2). 10.625,00€ (dez mil seiscentos e vinte cinco euros), correspondente à devolução da contrapartida, deduzida da parte proporcional correspondente ao período do contrato cumprido, acrescida de juros de mora vencidos até 05/11/2021, no valor de 9.075,21€ (nove mil e setenta e cinco euros e vinte e um cêntimos), e vincendos até efectivo e integral pagamento;


3). Sobre as quantias de 28.333,33€ e 10.625,00€ acrescem ainda juros de mora, à taxa de 5% ao ano desde a data do trânsito em julgado da presente sentença até efectivo e integral pagamento


4. O réu – AA – interpôs recurso de apelação, tendo obtido sucesso, pois o TRE revogou a sentença recorrida, julgando o incidente de liquidação improcedente.


5. A autora – “SUPER BOCK BEBIDAS, S.A.” – interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«1º A Recorrente SBB vem interpor recurso do douto acórdão de 21/04/2023, a processar-se como: a) de revista, nos termos gerais, (artº 17 nº 1 CPC; artº 671º nº 1 do CPC) ou, caso este não seja o douto entendimento, b) de revista excepcional (artº 14 nº 1 do CIRE), sempre, em qualquer caso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.


2º A matéria de facto encontra-se corretamente julgada, e consta das alíneas “A” a “V” do douto acórdão recorrido, que aqui se dão como integradas e reproduzidas para todos os efeitos legais.


3º O douto acórdão recorrido decidiu pela procedência do recurso de apelação interposto com base nos seguintes fundamentos: (1) anteriormente á presente liquidação, não existia qualquer crédito validamente reconhecido da A. sob a insolvente e consequentemente sob o ora Réu; (2) tal reconhecimento continua a não existir; (3) a Autora não provou a sua qualidade de credora e a existência do seu crédito. No entanto,


4º O douto acórdão recorrido decidiu contra a realidade processual dos autos.


5º O que está em causa neste incidente não é a liquidação do crédito da Recorrente SBB sobre o recorrido AA, mas a liquidação da indemnização em que este foi condenado no incidente de qualificação – coisas bem diversas!


6º Nunca ninguém, no processo de insolvência, pôs em causa a qualidade de credora da Recorrente SBB.


7º A douta decisão em apreciação é nula e como tal deve ser declarada, nos termos do disposto no artº 615 CPC. Subsidiariamente, caso assim se não entenda,


8.º Ao abrigo do disposto nos artºs 189.º, n.º 2, al. e), e n.º 4, do CIRE e artºs 358.º, 704.º e 716.º do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE), a Recorrente, na qualidade de credora, deduziu o incidente de liquidação em causa.


9.º Tendo sido proferida uma condenação genérica, a mesma pode e deve ser liquidada, nos termos do nº 4 do artº 189º do CIRE – o que foi feito pela Requerente.


10.º Tal pedido de liquidação foi sujeito a contraditório e, a final, foi julgado provado e procedente.


11.º Ao contrário do defendido no douto acórdão recorrido, a sentença não condenou o oponente AA a pagar um crédito reconhecido provisória ou definitivamente pelo Sr. Administrador de Insolvência.


12.º O Tribunal de 1ª instância entendeu apenas fazer uma explicitação de correspondência com a dita lista de créditos: no caso, a sentença limitou-se a fixar os critérios para quantificar o valor da indemnização a pagar.


13.º Uma coisa é uma sentença de reconhecimento de créditos; outra, bem diversa, é uma sentença de condenação de indemnização em incidente de qualificação (ainda que, para esta, o Tribunal tenha de julgar sobre a existência ou não de prejuízos, ou seja, tenha de julgar sobre a existência, ou não, de créditos não satisfeitos).


14º A condenação por insolvência culposa pode, até, (1) fixar um valor diverso dos créditos em causa (v.g. em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal); e, até, pode (2) nem sequer fixar um montante líquido – como aconteceu.


15º A douta sentença de 1ª instância limitou-se a proceder à liquidação a que alude o nº 4 do artº 189º do CIRE.


16º Não podia, portanto, ter sido revogada.


17º O douto acórdão recorrido, no final do mesmo, defende que a Recorrente SBB terá de instaurar “uma ação ulterior de verificação desses créditos”, consubstanciando (sempre salvo o devido respeito) alguma incomodidade na solução proposta, dada a indefinição de tal solução: ação de verificação de reconhecimento de créditos, nos termos dos artºs 146 a 148 do CIRE - depois do prazo de 6 meses? Ação autónoma a instaurar só contra o recorrido AA? Também contra os credores? Contra a sociedade C........., já extinta?


18º O deduzido incidente de liquidação foi processado por apenso a processo de insolvência, seguindo a forma de processo comum, com todas as garantias para o recorrido AA e restantes credores.


19,º Ora, se assim foi, mesmo a ser válida e tese do douto acórdão recorrido (no que se não concede) por que não aproveitar toda a utilidade e economia de meios que emergiram da liquidação realizada? E o valor extraprocessual das provas (artº 421 CPC)? Por que não evitar uma nova ação que sempre teria que repetir o esforço e o desempenho entretanto desenvolvidos, quando continua a estar em causa a mesma factualidade e as mesmas partes?


20.º Sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual (artº 130º CPC)?


21.º Dá-se aqui como integrado e reproduzido tudo quanto, infra, se desenvolverá quanto ao recurso de revista excecional.


22º O douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado.


23º Quando assim se não entenda, deve ele ser revogado, por ter violado, por erro de interpretação, o disposto nos artºs 358º, 360º nº 3, 421º, 615º, 704º e 716º do CPC, e artºs 17º, 129º, 146º, 147º, 148º, 189º, nº 2 al. e) e nº 4 do CIRE, e substituído por outro que julgue no sentido antes defendido.


Subsidiariamente,


Se for entendido não ser admissível recurso de revista nos termos gerais,


24.º Sempre seria de admitir RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL que se afigura necessária (1) por estar em causa a apreciação de uma questão que pela sua relevância jurídica se reveste de importância fundamental, (2) porque a decisão da questão concreta (processual) aqui em causa contribuirá claramente para a necessária melhor aplicação do direito, neste e em todos os demais casos congéneres e, ainda, (3) para efeitos de uniformização de jurisprudência por acórdãos contraditórios.


25.º Tudo quanto aqui se expõe relativamente ao recurso de revista excecional deve considerar-se também integrado e reproduzido no que concerne aos itens anteriores relativos ao recurso de revista interposto nos termos gerais.


26.º No caso, verificam-se as previsões das três alíneas supra identificadas do artº 672.º do C.P.C.


27.º Sendo a revista excepcional um recurso ordinário, a nulidade do douto acórdão recorrido pode ser fundamento da mesma – nº 4 do mesmo artigo 615º do CPC, dando-se aqui como integrado e reproduzido tudo quanto antes expôs nas conclusões 4, 5, 6 e 7 da presente peça. Subsidiariamente, se assim se não entender,


28.º Ainda que se entenda que o douto acórdão recorrido não é nulo, mesmo assim deverá, então, ser o mesmo revogado.


29.º Nos presentes autos não se discute: (1) a qualidade de credora da Recorrente SBB; (2) a qualificação da insolvência da sociedade C......... LDA como culposa; (3) os termos e razões que levaram a tal qualificação; (4) a identificação do requerido AA como pessoa afetada por tal qualificação culposa; (5) os efeitos e consequências que lhe foram associados como pessoa afetada);


30.º Discute-se, no entanto, a condenação, que também lhe foi imposta, de indemnizar, nos termos da alínea e) do artº 189º nº 2 do CIRE, v.g. os termos em que a mesma deverá ser efetivada.


31º A questão fulcral, em abstrato, que se coloca e suscita neste recurso é a da interpretação da alínea e) do art. 189º nº 2 e da sua conjugação com o nº 4 do mesmo artº 189º do CIRE, ou seja, quais os termos em que uma condenação indemnizatória num incidente de qualificação de insolvência deverá ser determinada e efetivada.


32º. Tal questão não tem tido, por parte da jurisprudência soluções uniformes.


33º Para uns, como é o caso do douto acórdão recorrido (1) adota-se o entendimento de que não cabe ao juiz considerar fatores ou circunstâncias que ultrapassem “a colagem” do crédito insatisfeito ao valor da indemnização, sendo despicienda, nomeadamente, a culpa manifestada nos factos determinantes da qualificação de insolvência; (2) para outros, faz-se uma notória diferenciação entre o crédito insatisfeito e a condenação indemnizatória (nomeadamente, salvaguardando o princípio da proporcionalidade, e o da ponderação da culpa do afetado) – como infra se desenvolverá quanto à apreciação do douto acórdão fundamento.


34.º Deve, pois, considerar-se estar preenchido o pressuposto da alínea a) do nº1 do artigo 672º CPC. Depois,


35.º Tendo, especialmente, em consideração o elevado número de processos de insolvência pendentes nos nossos Tribunais e a necessidade de moralização da atividade económica (que, aliás, esteve na base da alteração legislativa operada pela Lei n.º 16/2012, de 20/04 ao introduzir o nº 4 do artº 189 do CIRE), verifica-se também a previsão do nº 2 do artigo 672 CPC.


36. As questões em causa, no presente recurso, em abstrato, são as referidas na anterior conclusão 31ª.


38. Em concreto, as questões a resolver são as seguintes: neste processo insolvencial, no âmbito de uma condenação genérica indemnizatória por insolvência culposa, não estando em causa a qualidade de credora da Recorrente, mas, por outro lado, inexistindo sentença de reconhecimento, verificação e graduação de créditos, (1) é possível proceder a incidente de liquidação daquela condenação, ou, (2) pelo contrário, será necessário instaurar ação de verificação ulterior de créditos? E neste último caso, em que termos?


39. O douto acórdão recorrido, decidiu pela última solução: (1) não existe sentença de verificação e graduação de créditos; (2) não se reconhece, sequer, à Recorrente SBB a qualidade de credora.


40º E fê-lo, porque entendeu que “crédito sobre a insolvente” e “valor indemnizatório” são exatamente a mesma coisa!


41º. Concluindo que, não existindo “crédito sobre a insolvente” não existe “crédito indemnizatório”. Ora,


42. Em primeiro lugar, tal daria origem a um completo absurdo lógico e processual, nomeadamente: (1) até ao trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, nenhum interveniente seria “credor”, teria legitimidade para intervir nos autos; (2) por exemplo nos casos de insolvência com caráter limitado, terminando antecipadamente o processo de insolvência (artº 39º CIRE), inexistindo sentença de verificação e graduação de créditos, nenhum interessado poderia intervir no incidente de qualificação subsistente… porque não era credor reconhecido…


43. A qualidade de credora da SBB nunca foi colocada em causa, e foi sujeita ao contraditório: (1) quando requereu a insolvência; (2) quando reclamou créditos; (3) quando deduziu o incidente de qualificação; (4) quando deduziu o incidente de liquidação…


44º Finalmente, tal decisão vai contra jurisprudência conhecida, e, nos termos antes alegados, invoca-se como fundamento para a presente revista excepcional o seguinte acórdão: Acórdão proferido em 22/06/2021 no Proc. 439/15.7T8OLH-J.EI.S1, sendo Relator o Exº Conselheiro António Barateiro Martins, de que se junta cópia, publicado na base de dados www.dgsi.pt.


45º O douto acórdão recorrido e o douto acórdão fundamento decidem as referidas questões fundamentais de direito de modo diverso.


46º O douto acórdão recorrido entende que a condenação prevista no artº 189 nºs 2 e 4 estatui um sistema de responsabilidade civil contratual (o Requerido é responsável pelo crédito resultante de incumprimento contratual); pelo contrário, o douto acórdão fundamento entende que a afetação originada pela qualificação corresponde a uma responsabilidade patrimonial autónoma, condenação indemnizatória autónoma a ser matizada pelo princípio da proporcionalidade e do nexo de causalidade relativo à culpa do Requerido.


47º. Pelo primeiro, o Requerido responde por uma dívida própria; pelo segundo (artº 189 CIRE), por uma dívida alheia.


48. Pelo primeiro, estamos perante princípios e regras gerais sobre a alegação e prova de um dano e de uma relação de causalidade entre o comportamento ilícito do administrador e o dano; pelo segundo, defende-se que o artº 189 nº 2 al. a) do CIRE, conjugado com o artº 4 do mesmo diploma, consagra uma presunção de dano e de causalidade, a ser matizado pelos princípios da proporcionalidade e da culpa.


49º. Pelo primeiro, o regime da responsabilidade civil depende de uma ação declarativa; pelo segundo, a condenação prevista nos nºs 2 e 4 do artº 189 do CIRE depende apenas de um incidente.


50º Há, assim, uma diferença significativa entre aqueles dois acórdãos.


51º Os Acórdãos supra referidos foram proferidos no âmbito da mesma da mesma legislação.


52º Não se conhece nenhum Acórdão de uniformização de jurisprudência relativo a estas concretas questões de direito supra enunciadas.


53º No que concerne ao requisito da “mesma questão fundamental de Direito”, ele “deve considerar-se como verificado quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável seja idêntico”, ou seja, o conflito jurisprudencial verifica-se “quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos.


54º A Recorrente defende que, neste processo insolvencial, no âmbito de uma condenação genérica indemnizatória por insolvência culposa, não estando em causa a qualidade de credora da Recorrente, mas, por outro lado, inexistindo sentença de reconhecimento, verificação e graduação de créditos, é possível e legal proceder a incidente de liquidação daquela condenação, não sendo necessário instaurar ação de verificação ulterior de créditos.


55º Como se disse, o douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado.


56º Quando assim se não entenda, deve ele ser revogado, por ter violado, por erro de interpretação, o disposto nos artºs 358, 360 nº 3, 421, 615, 704 e 716 do CPC, e artºs 17, 129, 146, 147, 148, 189 nº 2 al. e/ e nº 4 do CIRE, e substituído por outro que julgue no sentido antes defendido, uniformizando-se jurisprudência no sentido do douto acórdão fundamento, assim se fazendo justiça


6. O recorrido apresentou resposta defendendo a inadmissibilidade da revista, bem como a sua improcedência. Sintetizou a sua tese, afirmando que o recurso devia ser: «considerado improcedente, por não provado, mantendo-se a na integra o douto Acórdão proferido pelo Venerado Tribunal da Relação de Évora, considerando-se que o pedido de liquidação do credito da A. sobre o Réu deve ser julgado improcedente, por se entender que da sentença de declaração de insolvência e da declaração de qualificação da mesma não resulta provada a existência de qualquer crédito, não podendo como tal a Recorrente provar a sua qualidade de credora e a existência do seu credito de outra forma, por não ter existido Lista do art.º 129 do CIRE valida e eficaz, e que caberia à Recorrente intentar uma ação ulterior de verificação desses créditos.».


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


1.1. Sendo o presente incidente de liquidação deduzido depois de proferida a sentença, seguem-se os termos do processo comum declarativo (art.360º, n.3 do CPC).


Embora estejam em causa problemas conexos com um processo de insolvência, não tem aplicação ao caso concreto o regime especial previsto no art.14º do CIRE, na medida em que se trata de matéria processada em apenso e não no próprio processo de insolvência ou em embargos opostos à sentença de declaração de insolvência. Aplica-se, portanto, o regime geral do recurso de revista, previsto no CPC.


Assim, tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável à recorrente, a revista é admissível nos termos do art.671º, n.1 do CPC.


1.2. Sendo o objeto do recurso traçado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4 do CPC), delas emergem duas questões: saber se o acórdão recorrido é nulo; e saber se na sequência da condenação no pagamento de indemnização por insolvência culposa, não existindo sentença de reconhecimento, verificação e graduação de créditos, será possível instaurar incidente de liquidação daquela condenação, ou se será necessário propor ação de verificação ulterior de créditos para reconhecimento do crédito da recorrente.


2. A factualidade relevante:


As instâncias deram como provada a seguinte factualidade.


«A) No exercício das suas actividades, a autora e a insolvente C........., Ldª celebraram o acordo escrito denominado de “Contrato de compra exclusiva”, datado de 03/04/2012, no âmbito do qual a primeira, na qualidade de fornecedora, se obrigou a fornecer à insolvente, na qualidade de revendedora, directamente ou através da sua distribuidora da área, cervejas em barril, garrafa e lata, refrigerantes em dispenser, garrafa e lata e águas lisas e com gás, obrigando-se a segunda a comprar lhe tais produtos, ininterruptamente durante o período de vigência do contrato, visando atingir, com as suas compras, a quantidade fixada na cláusula 9ª, n.1 do acordo, obrigando-se ainda a não vender e a não publicitar nos seus estabelecimentos cervejas em barril, garrafa e lata, refrigerantes em dispenser, garrafa e lata e águas lisas e com gás de marcas não comercializadas pela autora.


B) Consta do acordo que:


«7.ª n.1. Como contrapartida da exclusividade conferida pelo revendedor, o fornecedor pagar-lhe-á a quantia de 85.000,00€, acrescida de IVA à taxa em vigor, o que perfaz o montante de 104.550,00€. 2. Esta quantia é paga parcialmente por compensação conforme descrito no considerando c) supra com a dívida do revendedor no montante de 6.744,02€, sendo o remanescente, no montante de 97.805,98€, com IVA já incluído, pago mediante cheque do fornecedor emitido à ordem do revendedor.


8.3. 1. No caso de incumprimento ou mora no cumprimento de qualquer das obrigações decorrentes deste contrato, que não seja remediada dentro do prazo de 15 dias a contar da recepção da comunicação escrita que, para o efeito dirigir à contraente faltosa, poderá, a outra parte, resolver o contrato. 2. A resolução não terá efeito retroactivo. 3. O incumprimento dará lugar ao pagamento pela contraente faltosa, de uma indemnização que, por acordo, se fixa em 1/3 do valor indicado na cláusula 7.3, n. 4. Para além da indemnização prevista no número anterior, o incumprimento por parte do revendedor dará lugar à devolução da contrapartida concedida pelo fornecedor, deduzida da parte proporcional ao período do contrato entretanto já decorrido, considerando-se, para este efeito, a vigência com a duração máxima estabelecida no n.º 2 da cláusula seguinte. A contrapartida a devolver será acrescida de juros calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos artigos 559.º, 559.º-A e 1146.º, n.2 do Código Civil e computados, desde a data do pagamento previsto na cláusula 7ª e a data da respectiva devolução.


9.ª 1. O contrato terá início na presente data e durará até que hajam sido adquiridos, pelo revendedor ao distribuidor referido na cláusula 6.ª, pelo menos 220.000 litros dos produtos discriminados na cláusula 4.ª, salvo o disposto no número seguinte. 2. O contrato terá a duração mínima de 3 anos e máxima de 5 anos. 3. Para o cômputo do total de litros referidos no n.1 desta cláusula, serão consideradas as aquisições dos produtos feitas pelo revendedor para o estabelecimento “C..” desde 16 de novembro de 2011 e para o estabelecimento “S.... ....” desde 1 de agosto de 2011.


10.ª 1. Se, durante a vigência deste contrato, o revendedor trespassar ou ceder, por qualquer outro título, um ou ambos os estabelecimentos mencionados na cláusula 2.ª, ou a sua exploração, deverá o respectivo contrato incluir a transmissão dos direitos e obrigações decorrentes do presente contrato para o trespassário ou cessionário, ficando, porém, o revendedor solidariamente responsável pelo seu cumprimento e pelas consequências contratuais emergentes do incumprimento ou resolução. 2. A transmissão do estabelecimento ou a cessão da sua exploração deverá ser comunicada por carta registada dirigida ao fornecedor. 3. Não se verificando a transmissão dos direitos e obrigações conforme o convencionado no n.1 da presente cláusula e ainda nos casos de encerramento de um ou de ambos os estabelecimentos, cessação do contrato de cessão de exploração de um ou de ambos os estabelecimentos ou mudança do seu ramo para outro incompatível com as finalidades do presente contrato, este considerar-se-á imediata e automaticamente resolvido pelo revendedor sem necessidade de qualquer interpelação a este ou ao novo proprietário ou cessionário do estabelecimento, ficando essa resolução sujeita aos efeitos consignados nos n.ºs 2, 3 e 4 da antecedente cláusula 8ª, cfr. contrato junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido


C) Em 01/05/2012 a autora entregou à insolvente a quantia referida na cláusula 7.1 do acordo.


D) Em 29/09/2014, autora e insolvente acordaram em restringir o objecto do acordo referido em A) apenas ao estabelecimento denominado de “S.... ....”, passando o computo dos consumos a ser feito, a partir de então, por reporte a este estabelecimento.


E) Desde o início de vigência do acordo até Fevereiro de 2015, a insolvente adquiriu à autora e à sua distribuidora 43.447 litros dos produtos referidos em A).


F) Por diversas vezes, a autora tentou encontrar uma solução junto da insolvente para cumprimento do acordado entre ambas


G) Em Setembro de 2015 a insolvente deixou de explorar o estabelecimento denominado de “S.... ....”, encerrando-o, deixando de ali vender quaisquer produtos da autora.


H) A insolvente não comunicou à autora o referido em G).


I) Passando posteriormente um terceiro a explorar o estabelecimento comercial sito nesse local.


J) A insolvente não transmitiu os direitos e obrigações decorrentes do acordo referido em A) a esse terceiro.


K) A autora remeteu à insolvente duas cartas registadas, com A/R, datadas de 25/06/2016, uma para a morada indicada no acordo e outra para a nova sede, comunicando que, devido aos factos mencionados em G) a J), se não remediasse a falta no prazo de 15 dias, considerava o acordo resolvido, sendo-lhe devida uma indemnização no montante de 28.333,33€ e a devolução da contrapartida paga, deduzida da parte proporcional correspondente ao período do contrato cumprido, considerando-se, para este efeito, a vigência com a duração máxima de 5 anos, acrescida de juros calculados à taxa máxima legal computados desde a data da celebração do contrato até à do efectivo e integral pagamento da quantia em dívida, cfr. doc. junto como n.97 com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


L) Tais cartas foram devolvidas à remetente pelo menos até 27/07/2016, com as indicações de “mudou-se” e “não atendeu”, respectivamente.


M) Na mesma data, por carta registada, com A/R, a autora remeteu ao réu para a morada que indicou no acordo referido em A) cópia das referidas missivas.


N) A referida carta remetida para a morada indicada pelo réu foi devolvida à autora pelo menos até 27/07/2016 com a indicação de “desconhecido”.


O) Em 03/03/2017, a autora requereu a insolvência da C........., Ldª.


P) Por sentença proferida nos autos principais em 19/05/2017 foi declarada a insolvência de C........., Lda.


Q) Por sentença proferida em 14/09/2017 foi declarado encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente e dispensada a abertura do apenso de reclamação de créditos com fundamento no disposto no art.233.º, n.2, alínea b) do CIRE.


R) Por requerimento de 13/10/2017, o Sr. AI apresentou a lista de créditos a que alude o art.129.º do CIRE, reconhecendo à autora um crédito no montante de 47.684,61€, pelo incumprimento do acordo referido em A), correspondendo a quantia de 38.958,33€ a capital e a quantia de 8.726,28€ a juros vencidos.


S) Desde a sua constituição, o réu foi detentor de uma quota da insolvente, no valor de 5.000,00€, sendo também seu co-gerente e, a partir de 18/02/2013 passou a ser o seu único gerente e sócio.


T) Por sentença proferida no apenso A em 11/03/2019, já transitada em julgado, foi decidido: “a) Qualificar a presente insolvência como culposa; b) Julgar afectado pela qualificação da insolvência o gerente AA, inibindo-o quer para administrar patrimónios de terceiros, quer para exercer o comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 (QUATRO) anos; c) Condenar a pessoa afectada a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, correspondendo no caso à totalidade dos créditos reconhecidos na lista do art. 129º do CIRE.


U) Na ação de processo comum que correu termos sob o n.º 27/17.3..., no Juízo de Competência Genérica de ..., intentada por U..... ......., SA. contra o aqui réu e a insolvente relativamente ao crédito da primeira, foi proferida sentença a julgar improcedente a ação por inutilidade quanto à aí ré e absolvição do pedido quanto ao réu, posteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão datado de 23.04.2020 e transitado em 02.07.2020, cfr. docs. junto pelo réu em 28/02/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


V) Não obstante o referido em L) e M), até à presente data, nem a massa insolvente nem o réu entregaram à autora qualquer quantia.»


3. O direito aplicável


3.1. A recorrente começa por afirmar, nas suas alegações, que o acórdão recorrido é nulo, porque: “o douto acórdão recorrido decidiu contra a realidade processual dos autos”. E, por isso, conclui que: “a douta decisão em apreciação é nula e como tal deve ser declarada, nos termos do disposto no artº 615 CPC”.


É, assim, manifesta a insuficiência de argumentos e de fundamentos para se poder identificar alguma das causas de nulidade previstas nas várias alíneas do art.615º do CPC. Aliás, nenhuma dessas alíneas é, sequer, referida pela recorrente. Face a tal ausência de fundamentação, não é possível identificar qualquer causa de nulidade do acórdão recorrido.


*


3.2. Alega a recorrente que o acórdão recorrido deve ser revogado, por ter feito errada aplicação do direito. Vejamos se lhe assiste razão.


Como consta da factualidade provada (ponto T):


«Por sentença proferida no apenso A em 11/03/2019, já transitada em julgado, foi decidido: “a) Qualificar a presente insolvência como culposa; b) Julgar afectado pela qualificação da insolvência o gerente AA, inibindo-o quer para administrar patrimónios de terceiros, quer para exercer o comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 (QUATRO) anos; c) Condenar a pessoa afectada a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, correspondendo no caso à totalidade dos créditos reconhecidos na lista do art. 129º do CIRE.


Importa também ter presente o que consta da factualidade assente, nos pontos Q e R, onde se provou que:


«Por sentença proferida em 14/09/2017 foi declarado encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente e dispensada a abertura do apenso de reclamação de créditos com fundamento no disposto no art.233.º, n.2, alínea b) do CIRE.


Por requerimento de 13/10/2017, o Sr. AI apresentou a lista de créditos a que alude o art.129.º do CIRE, reconhecendo à autora um crédito no montante de 47.684,61€, pelo incumprimento do acordo referido em A), correspondendo a quantia de 38.958,33€ a capital e a quantia de 8.726,28€ a juros vencidos.»


Constata-se, portanto, que no processo de insolvência da sociedade “C........., Ldª”, da qual o recorrido (AA) era sócio gerente (ponto S dos factos provados), não chegou a existir decisão sobre verificação e graduação de créditos, dada a insuficiência da massa insolvente, tendo o processo de insolvência sido encerrado em 14.09.2017. Todavia, em 11.03.2019, o recorrido veio a ser condenado a indemnizar os credores da sociedade insolvente, em consequência da natureza culposa da insolvência.


Dado que a sentença que qualificou a insolvência como culposa não procedeu à quantificação do montante indemnizatório a que teria direito, a credora “Super Bock” (agora recorrente) apresentou o incidente de liquidação a que respeitam os presentes autos, o qual foi atendido por decisão da primeira instância.


O acórdão agora recorrido (revogando a decisão da primeira instância) entendeu que nenhum crédito havia a liquidar, pois no processo de insolvência não havia sido feita prova de qualquer crédito da requerente sobre a insolvente. E entendeu que a recorrente devia apresentar, no processo de insolvência um requerimento para verificação ulterior de créditos.


3.3. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos termos que se transcrevem:


«Em 21.07.2017, o Ex.mo Sr. A.I elaborou o respetivo Relatório do administrador, nos termos do art.º 155 do CIRE, e procedeu á junção aos autos do mesmo, no qual apresentou uma lista provisória de credores reclamantes, e identificou o alegado credito da recorrente no valor de € 38.958,33 euros, acrescido de Juros no valor de € 8.726,28 euros, num total de € 47.684,61 euros.


No mesmo relatório, o Ex.mo Sr. A.I, veio dizer que efetuadas diligências para o apuramento da existência de bens suscetíveis de apreensão para a massa insolvente, não se verificou que existissem;


Assim, nos termos dos n.ºs 1 alínea d) do art.º 230 e 2 do art.º 232 do CIRE, o Tribunal a quo, nos autos de Insolvência, declarou encerrado o processo, por sentença proferida em 14.09.2017 e publicada em 15.09.2017, como consta nos autos, determinando a cessação das funções do Ex.mo senhor A.I.


O tribunal recorrido dispensou ainda a abertura do apenso de reclamação de créditos, nos termos previstos no n. 2 alínea n) do art.º 233 do CIRE, bem como dispensou a abertura do apenso de reclamação de créditos, nos termos previstos no n.º 2 alínea n) do art. 233 do CIRE.


Subscreve-se na integra a argumentação constante das alegações de recurso.


Quando em 13.10.2017 o Exmo. Sr A.I., apresentou a lista de créditos reconhecidos, as suas funções já se encontravam cessadas desde 15.09.2017, conforme consta da sentença proferida no apenso B, para a qual se remete, e cujo teor se dá por parcialmente reproduzido: “Ora, do compulso da ação de insolvência, conforme se afere dos factos acima enunciados, resulta que foi proferida sentença de encerramento do processo por insuficiência da massa, da qual resulta, ope legis, a cessação de funções da administração judicial com efeito a 15 de setembro de 2017. No entanto, cessadas as respetivas funções, o Exmo. Senhor Administrador judicial apresenta lista de créditos reconhecidos, em (suposta) harmonia com o disposto no artigo 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


Mas o certo é que tal lista não só se revela inócua e ineficaz em face da cessação de funções do administrador judicial, como também não recebeu a devida tramitação, designadamente a que pudesse implicar o contraditório dos interessados e respetiva possibilidade de trânsito em julgado relativamente aos créditos reconhecidos e não reconhecidos (conferir artigo 129.º e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).


Na verdade, da mesma forma que só na ação de insolvência o crédito podia ser reconhecido, sendo indiferente o rumo ou desfecho da ação cível, também tal se revelou impossibilitado pelo trânsito da sentença de encerramento do processo por insuficiência da massa sem que se achasse reconhecido o crédito e com a inerente prossecução da liquidação da devedora, nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais.


Em suma, o Tribunal conclui que o direito indemnizatório a que alude a sentença de qualificação da insolvência pode ser acionado, se e quando houver reconhecimento do crédito da Exequente sobre a Insolvente, o que não ocorre no caso sub judicio ou se encontra, por ora, estabilizado na ordem jurídica por qualquer outra decisão judicial”.


Ou seja, o Tribunal entende, que “...o direito indemnizatório a que alude a sentença de qualificação da insolvência, pode ser acionado, se e quando houver reconhecimento do crédito da Exequente sobre a Insolvente, o que não ocorre no caso sub judicio pois esse reconhecimento não foi efetivamente válido, pelo facto da referida lista não ter sido considerada eficaz e válida não tendo sequer sido sujeita a contraditório, nem obedecido à tramitação subsequente prevista, nomeadamente dos art.s 130 e segs do CIRE.”


De modo, que essa obrigação, ou seja, o crédito que a A. vem pedir a liquidação e que arroga deter sobre o Réu, por se tratar de uma credora, que o executado tem obrigação de indemnizar por força do seu respetivo património, só “nasce” da referida sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência, “e portanto só subsiste na medida do reconhecimento do crédito operado na ação de insolvência”, pág. 4,12 parágrafo da sentença proferida no apenso B - embargos de executado.


Sendo então nessa sentença, que se poderia aferir da existência do eventual direito da requerente a ser indemnizada.


Tendo tido o mesmo entendimento este Venerado Tribunal da Relação, no Acórdão proferido em 30.06.2021, com a Referência: 7330614 no âmbito do apenso B (embargos de executado), e para o qual se remete, por mera economia processual, “evidente que tais créditos estão sujeitos a nova verificação na sentença de verificação de créditos, e podem ser objeto de impugnação; daí que possam vir a não ser reconhecidos e verificados. Não valendo a sentença em causa como título executivo, impõe-se confirmar a decisão recorrida.”


Pelo que não existia anteriormente á presente liquidação, qualquer crédito validamente reconhecido da A. sob a insolvente e consequentemente sob o ora Réu.


E continua a não existir, já que não seria neste incidente que deveria ter sido à A, reconhecido qualquer credito sobre o Réu.


O pedido de liquidação do credito da A. sobre o Réu, deve ser julgado improcedente por se considerar que da sentença de declaração de insolvência e da declaração de qualificação da mesma, não resulta provada a existência de qualquer crédito.


Não podendo provar a sua qualidade de credora e a existência do seu credito de outra forma, por não ter existido Lista do art. 129 do CIRE valida e eficaz, cabe à A. intentar uma ação ulterior de verificação desses créditos.


Por todo o exposto acordam os Juízes da Secção Cível do tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, em consequência revogam a decisão recorrida substituindo-a por outra que julga o presente incidente de liquidação improcedente.»


3.4. Deve, desde já, afirmar-se que o acórdão recorrido, face à factualidade do caso sub judice, não merece a concordância deste tribunal1. Nem o caso em apreço se apresenta particularmente complexo.


O regime indemnizatório traçado pelo art.189º, n.2, alínea e) e n.4 do CIRE, considerado na sua globalidade, não é isento de dúvidas interpretativas e facilmente se concede que, quando aplicado em toda a extensão resultante da sua formulação literal, possa conduzir a resultados dificilmente compreensíveis do ponto de vista do equilíbrio ou razoabilidade das soluções legais.


Dando nota das dificuldades respeitantes à compreensão deste regime, Soveral Martins resume a problemática nos seguintes termos:


«(…) o art.189º, 2, a) parece abrir a porta à existência de afetados sem culpa (“fixando, sendo o caso”). Mas o que dali resulta é que não se fixa o grau de culpa … se só há um culpado. Havendo dois ou mais afetados, o juiz fixará o grau de culpa. No entanto, essa culpa não diz respeito à existência de créditos não satisfeitos. Diz respeito, isso sim, à criação ou agravação da insolvência culposa.


Teremos, assim, uma responsabilidade dos afetados pela qualificação por créditos não satisfeitos que não parece depender nem da prova da existência de culpa pela não satisfação dos créditos, nem sequer da prova de um nexo causal entre o respetivo comportamento e essa não satisfação.


E daí falarmos de uma dimensão punitiva da responsabilidade em causa. Mas também é fácil de ver que esse regime pode ser bastante gravoso para os afetados. Até se pode perguntar se a desproporção não pode acabar por ser de tal ordem que conduza a um juízo de inconstitucionalidade2


Trata-se de um regime de responsabilização dos afetados pela qualificação da insolvência que apresenta caraterísticas sui generis, afastando-se dos típicos regimes de responsabilidade por factos ilícitos.


Estabelece o artigo 189º,


«n.º 2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:


e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.


(…)


n.4. Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença


Compreende-se que o legislador, ao responsabilizar, nos termos do art.189º, n.2, alínea e) e n.4, aqueles que (em maior ou menor medida) dão causa à insolvência culposa pretenda alcançar um efeito de “prevenção geral” quanto à observância das regras que devem nortear a atuação de um gestor criterioso.


Porém, tendo o processo de insolvência como objetivo primordial a satisfação do interesse dos credores, a responsabilização dos gerentes ou administradores afetados pela qualificação da insolvência acaba por cumprir, essencialmente, uma função ressarcitória por via sucedânea, tendo em vista o pagamento (total ou parcial) de créditos que não puderam ser satisfeitos em face da insuficiência da massa insolvente. O dano patrimonial a ressarcir será, tendencialmente, o crédito (total ou parcialmente) não satisfeito pela massa.


Tendo o recorrido sido condenado na sentença que qualificou a insolvência como culposa a indemnizar os credores, e tendo o requerente (agora recorrente) inequivocamente a qualidade de credor, resta apurar o concreto montante do dano a ressarcir. E para tal efeito serve o incidente de liquidação.


Efetivamente, existe uma sentença que condena o recorrido a indemnizar um dano e tal decisão não está posta em crise nos presentes autos, dado que se encontra transitada em julgado. Estando em causa o pagamento de uma indemnização, ou seja, de uma obrigação pecuniária, genérica, importa apenas determinar o concreto montante da obrigação a cumprir.


Dúvidas não existem de que o recorrido foi condenado a pagar aos credores da insolvente, pela sentença proferida em 11.03.2019. E dúvidas não existem de que a agora recorrente se encontra entre esses credores, sem que tal condição haja sido posta em causa pelo recorrido.


Naquela sentença o tribunal definiu o critério a seguir para o concreto calculo do montante da indemnização ao remeter para os “créditos reconhecidos na lista do art. 129º do CIRE”.


Se a remissão para essa lista, enquanto critério de calculo da indemnização, está certa ou errada (e se os montantes constantes dessa lista podiam ou não ser tidos em conta), é algo que não pode ser discutido no presente processo, pois foi definido numa decisão que se encontra transitada em julgado.


Era o afetado pela qualificação da insolvência que tinha o ónus de recorrer contra a condenação nessa indemnização, demonstrando a sua falta de fundamento de modo a obter ganho de causa. Mas tal resultado não se verificou, porquanto a Relação confirmou a sentença que qualificou a insolvência como culposa, com as inerentes consequências.


A sentença de verificação e graduação de créditos visa, em última análise, a definição da ordem pela qual os credores (reconhecidos) devem ser pagos pela massa insolvente. E a verificação ulterior de créditos (art.146º do CIRE) serve igualmente esse propósito. Tendo o processo de insolvência sido encerrado por insuficiência de património da insolvente para pagar aos credores, a verificação e graduação de créditos, incluindo a verificação ulterior, torna-se um ato desnecessário e inútil. Num caso, como o dos presentes autos, no qual não há que proceder à graduação de créditos, não existe fundamento legal para afirmar que aqueles meios são as únicas e exclusivas vias para provar que alguém é credor do insolvente (para todo e qualquer efeito).


No caso concreto, estando em causa apenas a determinação do montante indemnizatório estabelecido na sentença que qualificou a insolvência como culposa (já transitada em julgado) e impôs ao recorrido a obrigação de indemnizar o agora recorrente, não tendo havido sentença de verificação e graduação de créditos, porque a sua elaboração seria um ato inútil face à ausência de massa insolvente, tal como inútil seria (pela mesma razão) a verificação ulterior de créditos, a qualidade de credor do recorrente resultará de qualquer meio idóneo para o efeito.


Só há que determinar o montante a pagar, como bem entendeu a decisão da primeira instância.


*


DECISÃO: Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e ficando a prevalecer o decidido na sentença com as inerentes consequências.


Custas pelo recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, 02.11.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Maria Amélia Ribeiro


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1. E a remissão feita pelo acórdão recorrido para as decisões proferidas no Anexo B do processo de insolvência não interfere com o que se aprecia nos presentes autos, pois estão em causa objetos processuais distintos.↩︎

2. Um Curso de Direito da Insolvência (2ª ed.), páginas 436 e 437.↩︎