Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9650/21.0T8PRT-B.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
PRESCRIÇÃO
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Ainda que não ponha termo ao processo, é admissível o recurso de revista, ao abrigo do art. 671º nº 1 do CPC, de acórdão que julga improcedente a exceção perentória de prescrição.

II. Baseando-se a sentença e também o Acórdão de Relação fundamentalmente no mesmo quadro dos factos e também em espaço jurídico similar (art. 498º do CC), tendo a Relação julgado improcedente a excepção de prescrição, por aplicação do nº 3 daquele normativo, e fazendo-o em termos mais desenvolvidos e aprofundados do que o fez a decisão da 1ª instância, que, também no sentido da improcedência daquela excepção, concluiu no sentido da aplicação do nº 1 daquela norma (sem excluir a aplicação do nº 3), sem que uma e outra decisão tenham recorrido a outras disposições legais, interpretações normativas ou institutos jurídicos completamente diversos e autónomos, deverá concluir-se que o cerne da argumentação fáctico-jurídica das duas decisões e a solução jurídica que ambas deram ao caso são fundamentalmente idênticas, ou seja, a fundamentação das decisões das instâncias é essencialmente convergente, verificando-se dupla conforme, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 671º do CPC.

Decisão Texto Integral:

AA, casada, residente na Rua dos ..., ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, perante o juízo central cível do ... (J7), contra BB, solteiro, residente na Rua ..., ...; CC, residente na Rua Manuel ..., ..., ...; “Clinica..., Ldaª”, com sede na Avenida ..., ....

Resumidamente, na sua petição inicial, a autora invocou a responsabilidade civil dos réus por danos que alega terem resultado de diversas intervenções médicas a que, entre 12 de Dezembro de 2014 e 09 de Junho de 2014, aceitou submeter-se com vista a atingir a diminuição do seu peso, e conclui pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento de € 60 000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais e lucros cessantes.

Na sua contestação, o réu CC alega o decurso do prazo de prescrição por aplicação da norma consagrada no nº 1 do artigo 498º do Código Civil, excepção que o réu BB em seu benefício igualmente opôs na contestação que apresentou, e que a interveniente acessória “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA”, também veio invocar no seu articulado.

Para responder a esta excepção a autora apresentou articulado autónomo, defendendo a aplicabilidade do nº 3 do artigo 498º do Código Civil.

No despacho saneador proferido foi julgada improcedente a excepção de prescrição invocada.

Inconformado com esta decisão, dele veio apelar o réu CC, terminando no sentido da revogação da decisão recorrida e substituição por outra que julgue procedente a excepção de prescrição por si invocada.

Pela recorrida não foram apresentadas contra-alegações.

Apesar de inicialmente recusada a sua admissibilidade, o recurso veio a ser admitido na sequência do deferimento de reclamação apresentada pelo recorrente ao abrigo do disposto no artigo 643º do Código de Processo Civil, como de apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo [cfr decisão proferida no âmbito do apenso A].

Veio a ser proferido Acórdão que negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

É desde Acórdão que o Réu CC vem interpor a presente revista, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

1. O acórdão recorrido confirmou a decisão proferida pela 1.ª instância, mas fê-lo com fundamentos totalmente opostos.

2. No despacho saneador foi fixado o momento do início da contagem do prazo de prescrição em dezembro de 2014.

3. Foi igualmente considerado que o prazo de prescrição não havia decorrido à data da entrada da ação, por força da verificação de factos interruptivos.

4. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto fixou a data do início da contagem do prazo de prescrição em 17 de fevereiro de 2017, não se tendo pronunciado sobre a questão da interrupção do prazo de prescrição.

5. Entende o tribunal a quo que o recorrente alegou na contestação que o “die a quo” do prazo de prescrição deve corresponder à data em que a autora remeteu à Ordem dos Enfermeiros comunicação eletrónica denunciando o réu BB (artigos 22.º a 28.º da contestação), isto é, 17 de fevereiro de 2017.

6. Trata-se de uma interpretação que deturpa o alegado pelo Réu, retira-o do contexto, ignorando tudo quanto se alega do artigo1.º ao artigo 21.º da contestação.

7. Nestes artigos o Réu negou ter tido qualquer contacto com a Autora enquanto era Diretor Clínico da 3.ª Ré; alegou que só a lipoaspiração realizada em 12/12/2014 se situa temporalmente dentro do período em que foi Diretor Clínico; afirmou que a Autora sempre soube que o Réu BB era enfermeiro; alegou e juntou aos autos certidão de uma conversa datada de 1 de abril de 2015 em que a Autora trata o Réu por enfermeiro e solicita-lhe a realização de um novo procedimento; invocou o abuso de direito da Autora; reiterou que a Autora sempre soube que o recorrente não tem qualquer responsabilidade no sucedido.

8. Após alegar tudo isso, concluiu que PELO MENOS desde 17 de fevereiro de 2017, data em que apresentou a participação disciplinar junto da Ordem dos Enfermeiros, que a Autora tem conhecimento dos factos que integram a causa de pedir da presente ação.

9. A expressão PELO MENOS desde 17 de fevereiro de 2017, expressão que poderia ser substituída por um idêntico “ao menos”, significa que “se outra data não houvesse” desde 17/02/2017 a Autora tem conhecimento dos factos que integram a causa de pedir da presente ação.

10. Esta expressão é comumente utilizada nas peças processuais como forma de raciocínio e exposição dos factos e sempre com o sentido referido.

11. Sentido esse compreendido pela 1.ª instância.

12. Tendo em conta o alegado pelo Réu no 1.º do artigo 26.º da contestação, é absolutamente inquestionável que com o uso da expressão «pelo menos», o não quis de forma alguma excluir a data da realização da vibrolipoaspiração (12/12/2014) ou qualquer outra anterior a 17/02/2017 que venha a ser considerada para efeitos de contagem do prazo de prescrição, nomeadamente, a data em que terminaram os tratamentos ou data da conversa no Facebook em que a Autora apelida o Réu BB de enfermeiro.

13. O dia da vibrolipoaspiração (12/12/2014) foi sempre indicado como o relevante para o início da contagem do prazo de prescrição relativamente ao recorrente, uma vez que nenhum outro ato médico foi praticado enquanto era Diretor Clínico da 3.ª Ré e na tese da Autora terá sido esse procedimento que gerou os danos alegadamente sofridos.

14. No despacho saneador, foi precisamente essa a data considerada para o início da contagem do prazo.

15. Iniciando-se a contagem do prazo de prescrição em 12/12/2014, é irrelevante se o mesmo é de 3 ou de 5 anos, porquanto, aquando da entrada da presente ação (11/06/2021) estaria já totalmente decorrido, fosse ele qual fosse.

16. Em todo o caso, mantém-se que o prazo de prescrição é de 3 e não 5 anos.

17. Resulta documentado nos autos que a Autora não apresentou qualquer queixa-crime, nomeadamente por ofensas à integridade física, tendo-se limitado a participar disciplinarmente do Réu BB em 17/02/2017.

18. Não tendo sido apresentada queixa por ofensa à integridade física, aquele processo-crime versou apenas sobre a prática de atos médicos pelo Réu BB, enfermeiro de profissão.

19. O bem jurídico protegido pelo tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções publicas ou em profissões de especial interesse público.

20. O crime de usurpação de funções lesa interesses públicos.

21. A responsabilidade civil (neste se incluindo a que é conexa com a responsabilidade criminal nos termos do artigo 129.º do CP) decorrente do artigo 483.º, n.º1 do CC, respeita a direitos e a interesses juridicamente protegidos que possam ser individualizados, não a interesses públicos.

22. Por esse motivo não foi admitido o pedido de indemnização civil formulado pela Autora no processo-crime.

23. Os danos alegadamente sofridos pela Autora só seriam discutidos no processo-crime se esta tivesse apresentado queixa por ofensa à integridade física.

24. Se a Autora tivesse ficado totalmente satisfeita com o resultado do procedimento realizado pelo enfermeiro, ainda assim teria sido cometido um crime de usurpação de funções.

25. Não há relação entre o crime de usurpação de funções e a causa de pedir da presente ação.

26. O que importa apurar nos presentes autos é, grosso modo, se o Réu BB (independentemente das suas habilitações) causou danos à integridade física da Autora e se os demais RR. auxiliaram ou de alguma forma permitiram (por ação ou omissão) a verificação desses danos, estando obrigado a evitá-los.

27. O facto de ser um enfermeiro a praticar um ato médico, não dispensa a prova do nexo de causalidade entre o procedimento que executou e os alegados danos, porquanto o que está em causa não é a usurpação de funções, mas a ofensa da integridade física da Autora.

28. Ao julgar improcedente a exceção perentória de prescrição, confirmando a decisão da 1.ª instância, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 498.º, n.º 1 do CC.

Termos em que deve a presente Revista ser julgada provada e procedente e, em consequência, ser proferido acórdão que revogue a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, substituindo-a por outra que considere verificada a exceção perentória de prescrição invocada pelo recorrente na contestação ou, subsidiariamente, que considere não estarem ainda reunidos os elementos necessários para ser proferida decisão quanto a esta matéria, devendo a mesma ser relegada para a sentença.”

Não foram produzidas contra-alegações.

Foi ordenando o cumprimento do art. 655º nº 1 do CPC, por se entender que a revista não seria admissível, nos termos do art. 671º nº 1 do CPC.

Veio o recorrente sustentar a recorribilidade da decisão ao abrigo do art. 671º nº 1 do CPC, nos termos seguintes:

1. Estabelece aquele preceito legal que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”

2. O acórdão da Relação recorrido julgou improcedente a exceção de prescrição invocada pela recorrente, com fundamentação distinta da decisão proferida pela 1.ª instância.

3. A prescrição consubstancia uma exceção perentória que nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 576.º do CPC importa a absolvição total ou parcial do pedido.

4. Tal como se verificou com o despacho saneador, também o acórdão recorrido conhece do mérito da causa, porquanto a questão sobre a qual incide – a prescrição - ficará definitivamente decidida.

5. Trata-se, pois, de uma “decisão materialmente final” ou uma “decisão final em sentido material” que formará caso julgado e, por esse motivo, recorrível.

6. O raciocínio é exatamente o mesmo que subjaz à admissibilidade de recurso autónomo do despacho saneador que julga improcedente uma exceção como a prescrição.

7. Aliás, nestes mesmos autos, o tribunal a quo, já se pronunciou sobre esta questão, julgando procedente a reclamação apresentada pelo aqui recorrente com a seguinte fundamentação: “Este inciso da norma (decisão sobre o mérito da causa que não põe termo ao processo) abrange todas as decisões sobre a matéria de direito substantivo que integre o objeto do processo - trata-se da apreciação de pedidos formulados pelo autor ou da decisão sobre exceções perentórias suscitadas pelo réu, seja de procedência, seja de improcedência.”

8. Todas as decisões sobre matéria de direito substantivo que integrem o objeto do processo são suscetíveis de recurso.

9. A este propósito Abrantes Geraldes ensina: «a al. b) reporta-se apenas ao despacho saneador que, não pondo termo à causa, conhece do mérito relativamente a uma parcela do processado (máxime aprecia uma qualquer exceção perentória…) (…) Conhece do mérito da causa o despacho saneador (mesmo sem pôr termo ao processo, nos termos da alínea a)), que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou alguns dos réus ou que julga procedente ou improcedente alguma exceção perentória, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade. Assim, sempre que o despacho saneador tenha esse conteúdo, o respetivo segmento decisório é suscetível de impugnação mediante a interposição de recurso de apelação, respeitados que sejam os demais pressupostos formais, sob pena de transitar em julgado. O recurso é interposto no prazo de 30 dias, nos termos do art. 638.º, n.º 1, salvo se se tratar de um processo urgente. Sobe em separado e, em princípio, com efeito meramente devolutivo (arts. 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1)» (negrito da nossa autoria).

10. Tendo o tribunal recorrido admitido o recurso do despacho saneador considerando que se trata de uma decisão que conhece do mérito da causa, não pode, salvo o devido respeito, o tribunal ad quem não admitir o recurso de revista considerando que se trata de uma decisão que não conhece do mérito.

11. Porém, caso se entenda de outra forma, isto é que não se trata de uma questão de mérito, ainda assim terá o tribunal ad quem que admitir o recurso, revogar o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, ordenando que o processo prossiga os seus termos.

12. Pois só assim se possibilitará o recurso, a final, da decisão que julgou improcedente a prescrição (no despacho saneador).

13. De outra forma, verá o recorrente ser-lhe negado o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. 1 Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição) p. 240 14. Dito de outra forma, a decisão proferida será inconstitucional, o que se expressamente se invoca.

Face a tudo quanto se expôs deve ser admitida a presente Revista.”

A recorrida Autora pronunciou-se no sentido da não admissibilidade da revista, por inaplicabilidade do art. 671º nº 1 do CPC.

DA ADMISSIBILIDADE DA REVISTA

Tendo sido por nós ordenado cumprimento do art. 655º nº 1 do CPC, por entendermos então, numa primeira análise, que o recurso não teria cabimento nos termos do art. 671º nº 1 do CPC, reconhecemos agora, também ante o argumentário da recorrente, com o entendimento, que consideramos alargado neste âmbito, de Abrantes Geraldes, quando considera que o julgamento de improcedência da excepção de prescrição constitui decisão de mérito da acção, dizendo (, ob. cit., p. 397) que “(…) que ficam abarcados pelo respetivo segmento que consta do n.º 1 do art. 671º os acórdãos em que a Relação se envolva efetivamente na resolução material do litígio, no todo ou em parte, incluindo os casos em que julga procedente ou improcedente o pedido ou algum dos pedidos ou aprecia a procedência ou improcedência de alguma exceção perentória (v.g. prescrição, caducidade, nulidade, anulabilidade, compensação, etc.). Ainda que tal acórdão não ponha termo ao processo (por restarem ainda outras questões para decidir), o mesmo é recorrível de imediato, subindo a revista nos termos do art. 675º nº1.”

Aderindo agora, melhora analisando a questão, a tal entendimento, numa perspetiva lata de que o Acórdão põe termo à causa, embora o fazendo apenas na dimensão parcial da defesa deduzida por excepção, e não da acção propriamente dita na perspectiva da pretensão formulada pelo autor, entendemos dever aceitar aquela leitura, também por uma questão de ponderação mais cautelosa que sempre nos cumpre assumir, e, como tal, admitir a revista, mercê do seu cabimento no texto do art. 671º nº 1 do CPC.

Cumpridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

O objecto do recurso circunscreve-se a ponderar se no caso vertente se verificou a excepção de prescrição invocada pelos Réus.

Antes, contudo, apreciemos a QUESTÃO PRÉVIA DA DUPLA CONFORME.

Tendo ambas as instâncias decidido no sentido da inverificação de tal excepção peremptória, julgando a mesma improcedente, pese embora alguma diferença fáctico-jurídica se vislumbre das decisões em causa, afigura-se-nos que existe dupla conformidade decisória entre as mesmas, nos termos do art. 671º nº 3 do CPC.

Registe-se que o Réu recorrente aduziu argumentos no sentido da inexistência de conformidade entre as decisões das instâncias, pelo que entendemos desnecessário ouvi-lo de novo a tal respeito, mediante o mecanismo ínsito no art. 655º nº 1 do CPC

Vejamos, em primeiro passo, em que consiste a chamada dupla conforme:

Lançando mão às palavras sabedoras de Lopes do Rego acerca do conceito de dupla conforme, diremos que a mesma implica uma coincidência absoluta entre as decisões das instâncias – (em A dupla conforme – Cadernos do STJ – Secções Cíveis, 2021, págs. 19-20):

«No seu sentido natural ou normal, a dupla conformidade significará fundamentalmente que quatro juízes – o de 1ª instância, na sentença proferida, – e os três desembargadores que apreciaram a apelação, por unanimidade (isto é, sem voto de vencido) – dirimiram o litígio nos mesmos termos, segundo entendimento jurídico coincidente no que se refere ao segmento decisório que integra a sentença e o acórdão proferidos; era, aliás, esta unanimidade decisória que, no sistema instituído em 2007, legitimava a restrição substancial no livre acesso ao STJ, por tal coincidência decisória poder razoavelmente fazer presumir o acerto da decisão tomada, permitindo dispensar ou desconsiderar inclusivamente a identidade das respetivas fundamentações.

Numa primeira fase, a jurisprudência da Formação orientou-se no sentido de a dupla conforme pressupor a coincidência ou sobreposição total das decisões, implicando qualquer quebra ou dissidência da unanimidade dos juízes o afastamento da dita presunção de acerto e tendencial incontrovertibilidade do decidido, de modo a permitir, sem mais, a interposição da revista normal.

Cedo se tornou, porém, evidente a imprestabilidade deste critério como mecanismo efetivo de filtragem no acesso ao Supremo, já que qualquer mutação, alteração, reforço ou aditamento ao teor decisório da sentença, em comparação com a decisão contida no acórdão da Relação, afastava o obstáculo da dupla conforme.

Tem-se crescentemente sedimentado na jurisprudência do STJ o entendimento – que neste momento é predominante – segundo o qual não pode recorrer para o STJ em revista normal a parte que obteve na Relação – em ação caracterizada pela existência de um objeto processual uno ou incindível – uma decisão de conteúdo mais favorável que o alcançado na sentença apelada (...)».

A dupla conforme forma-se em função das decisões e não das questões apreciadas, apenas podendo a apreciação de questão nova pela Relação relevar para descaracterizar a dupla conforme se, nos termos do art. 671.º, n.º 3 do CPC, dessa apreciação resultar uma fundamentação essencialmente diferente entre as decisões. Ver, neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Janeiro de 2021 (proc. n.º 100/14.0TBSRP.E2.S1), segundo o qual “Cumpre esclarecer que, diversamente do que parece ser o entendimento da Recorrente, a dupla conforme se afere em função da decisão final e não em função de partes da fundamentação da decisão ou de questões por ela apreciadas. Assim sendo, considera-se inteiramente incorrecta e inadequada a metodologia adoptada pela Recorrente de confrontar passagem por passagem a fundamentação do acórdão recorrido, invocando que, sempre que aquela não coincida exactamente com a fundamentação da sentença, não se verificará a formação de dupla conforme.

A dupla conforme, repete-se, afere-se pela decisão final e, nos termos do n.º 3 do art. 671.º do Código de Processo Civil, apenas pode ser descaracterizada se existir voto de vencido ou fundamentação essencialmente diferente.

Ora, no caso dos autos, o acórdão recorrido julgou o recurso de apelação improcedente, confirmando, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância. Deste modo, os argumentos invocados pela Recorrente apenas poderão relevar se se tiver verificado fundamentação essencialmente diferente.

De acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, e nas palavras do acórdão de 19.02.2015 (proc. n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1), «Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

- Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.». [negrito nosso]

De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o cerne fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância, ou seja, somente deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ de 17-11-2021 - Reclamação n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1.

Também neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 17-11-2021 (Revista n.º 712/19.5T8LSB.L1.S1), de 04-11-2021 (Revista n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1), de 22-06-2021 (Revista n.º 15319/16.0T8PRT.P1.S1), de 06-05-2021 (Revista n.º 1097/16.7T8FAR.E2.S1, Relator Oliveira Abreu), de 29-04-2021 (Revista n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1, Relator João Cura Mariano), de 02-03-2021 (Revista n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1).

Neste sentido se pronunciou também ABRANTES GERALDES (Recursos em Processo Civil, 6.ª Ed., Almedina, 2020, pág. 413), defendendo que “a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quanto a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

Vejamos as decisões que aqui estão em causa:

Na 1ª instância, o tribunal decidiu nos termos seguintes:

Os 1.º e 2.º RR., citados a 28/06/2021 e 5/07/2021, respectivamente, invocaram a prescrição do direito de indemnização exercido pela A. contra cada um deles através da presente acção por factos ocorridos em Dezembro de 2014, porquanto, além do mais, acrescenta o 2.º R. o processo crime relativo aos mesmos factos não correu contra si, ao que a A. se opôs.

Da documentação junta aos autos verifica-se que pelos factos em apreço, a A. apresentou queixa crime contra o aqui 1.º R. a 25/05/2017 cujo processo deu lugar a uma acusação de 11/06/2019 a que se seguiu despacho de pronúncia de 17/12/2019, assim como sentença de 26/02/2021.

Ora, a propósito da interrupção da prescrição do direito de indemnização fundada em responsabilidade extracontratual, escreveu a nossa mais alta instância, em acórdão de 31/01/2007, citado por Abílio Neto, que “A pendência do processo-crime interrompe o prazo de prescrição do n.º 1 do art. 498.º do CC quer para o lesante, quer para os responsáveis civis pela reparação dos danos, interrupção que só cessará quando o mesmo terminar por arquivamento… Sendo o dano causado por vários factos ilícitos independentes, de diferente autoria, representando cada um uma condição da sua produção, todos os autores são solidariamente responsáveis, salvo se, no todos ou em parte, o dano foi causado apenas por uma (in “Código Civil Anotado, 16.ª Edição Revista e Actualizada, Janeiro/2009, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda., Lisboa).

No mesmo sentido, se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa de 6/01/2022, relatado pelo Exmo. Desembargador Manuel Rodrigues, cujo sumário, com interesse in casu, a este respeito de transcreve: “a presentação da queixa crime apresentada pela autora/lesada interrompe o prazo prescricional previsto quer no n.º 1, quer no n.º 3, do art. 498.º do Código Civil…A pendência do processo crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi do art. 323.º, n.ºs 1 e 4 do Cód. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará quando o lesado for notificado da acusação ou arquivamento (despacho final) do processo crime instaurado” (in www.dgsi.pt).

Para a situação dos autos, o entendimento expresso nos mencionados acórdãos significa que durante a pendência do processo-crime supra referido o prazo de prescrição do direito de indemnização da A. esteve interrompido para todos os RR., retomando-se a sua contagem com o trânsito em julgado da decisão instrutória proferida a 17/12/2019.

Tendo, a presente acção sido instaurada a 11/06/2021 e o RR. sido citados em Junho e Julho de 2021, respectivamente, é forçoso reconhecer que entre o a data dos factos e o início do processo-crime ou que entre o fim do processo-crime e a data da instauração desta acção não se esgotou, sequer, o prazo de prescrição de 3 anos a que se refere o art. 498.º, n.º 1 do CPC, e, como tal, impõe-se julgar improcedente a alegada excepção peremptória.

Pelo exposto, julgo improcedente a excepção peremptória da prescrição invocada pelos 1.º e 2.º RR.

Já a Relação entendeu assim:

“O recorrente defende ser de 3 anos o prazo prescricional no caso a considerar, por aplicação do primeiro segmento do nº 1 do artigo 498º do Código Civil.

Mas claramente sem razão.

Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabelecer prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o aplicável - nº 3 do artigo 498º do Código Civil.

Indiscutivelmente, possui natureza complexa o facto ilícito pela autora invocado como fundamento do pedido de indemnização especificamente formulado perante o recorrente (por outras palavras, a causa de pedir relativa ao pedido dirigido ao recorrente) - é integrado pelo exercício indevido (leia-se, sem habilitações) da medicina por parte do réu BB, o conhecimento de tal facto pelo recorrente e a intencional omissão, também pelo recorrente, das providências aptas a fazer cessar tal prática, quando alegadamente se lhe impunha o dever de as tomar [além, obviamente, dos danos sofridos e da sua ligação causal ao facto ilícito invocado].

Ou seja, manifestamente não assiste razão ao recorrente quando afirma que o facto ilícito típico pelo qual o 1º Réu foi acusado e condenado não tem qualquer ponto em comum/nexo causal com a causa de pedir e pedido dos presentes autos [conclusão 13].

Surgirá óbvio, como o recorrente defende, que o titular do bem jurídico protegido no crime de usurpação de funções não é o particular a quem forem causados danos em consequência do indevido exercício das funções.

Mas isso obviamente não afasta que, como no caso em apreço, desse indevido exercício de funções resultem danos para uma concreta pessoa, a quem por isso assistirá o direito a ser ressarcida - que é, precisamente, o que a autora invoca.

Como não oferecerá dúvida que o bem jurídico protegido no crime de falsificação de documento corresponderá à tutela da fé pública dos documentos enquanto pressuposto do próprio relacionamento social, a segurança e confiança do tráfico jurídico em si mesmo considerado, especialmente do tráfico probatório, o que nada tem que ver com a possibilidade de o agente, fruto da prática do crime, causar danos a terceiros, a este por consequência naturalmente cabendo o direito à correspondente indemnização [artigo 129º do Código Civil].

De acordo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores, o alargamento do prazo de prescrição determinado pelo nº 3 do artigo 498º do Código Civil, tendo fundamento na especial gravidade do facto ilícito em presença e não em quaisquer considerações pessoais relativas ao lesante ou ao lesado, aplica-se aos responsáveis meramente civis, na medida em que, primeiro, o ponto chave determinante do alargamento é apenas o facto simultaneamente constitutivo do crime e determinante da responsabilidade civil; e, segundo, o entendimento contrário representaria o fracionamento do regime de solidariedade entre os responsáveis que resulta dos artigos 497º, 499º, 500º, 501º, 502º, 503º, 507º e 512º, todos do Código Civil [veja-se, por todos, sempre neste sentido, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos seus acórdãos de 03 de Dezembro de 1998, processo nº 98B432, disponível em www.dgsi.jstj.pt/; de 22 de Abril de 1994, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 434, página 631; de 04 de Abril de 1990, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 396, página 383; e de 20 de Junho de 1990, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, 398, página 488; e ainda, mais recentemente, o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 16 de Junho de 2020, processo nº 1662/19.0T8PDLL1-7, disponível em www.dgsi.trl.pt/].

No caso em apreço nem sequer há dúvida quanto à relevância criminal da conduta do co-réu BB, que por ela até foi já condenado no âmbito de processo crime.

O crime de usurpação de funções é punido com pena de prisão até 2 anos [artigo 358º do Código Penal] sendo irrelevante, para os efeitos que nos ocupam, a punição com pena de multa [nº 4 do artigo 118º do Código Penal].

Consequentemente, seria de 5 anos o prazo de prescrição do procedimento criminal instaurado contra o co-réu BB [alínea c) do nº 1 do artigo 118º do Código Penal].

Por força do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, é de 5 anos o prazo de prescrição do direito à indemnização que a autora nestes autos pretende fazer valer contra os que afirma serem responsáveis civis pelos danos alegadamente consequentes à prática do crime.

Logo, tomando 17 de Fevereiro de 2017 como data de início de contagem do prazo de 5 anos de prescrição, facilmente constatamos que, ainda que sem considerar qualquer facto interruptivo ou suspensivo, apenas se esgotaria a 17 de Fevereiro de 2022.

A 11 de Junho de 2021, data da instauração da acção a que o presente recurso se reporta, o prazo em questão não havia ainda decorrido [pelo que prejudicada fica a análise da questão acima enunciada em c)].

Embora por fundamento um pouco diverso do decidido em 1ª instância, o recurso improcede.”

Analisando estas decisões, delas decorre claramente que ambas tiveram em consideração, para efeitos decisórios da excepção de prescrição, para além das datas da prática dos factos e instauração da acção, a “documentação junta aos autos” (na 1ª instância), que se reportou à data da citação dos Réus (28/06/2021 e 5/07/2021, respectivamente), à data da ocorrência dos factos (Dezembro de 2014), à instauração do processo crime, considerando, por reporte a aresto jurisprudencial, que “a apresentação da queixa crime apresentada pela autora/lesada interrompe o prazo prescricional previsto quer no n.º 1, quer no n.º 3, do art. 498.º do Código Civil… A pendência do processo crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada”, asseverando que “durante a pendência do processo-crime supra referido o prazo de prescrição do direito de indemnização da A. esteve interrompido para todos os RR., retomando-se a sua contagem com o trânsito em julgado da decisão instrutória proferida a 17/12/2019”.

E concluindo que “Tendo, a presente acção sido instaurada a 11/06/2021 e o RR. sido citados em Junho e Julho de 2021, respectivamente, é forçoso reconhecer que entre o a data dos factos e o início do processo-crime ou que entre o fim do processo-crime e a data da instauração desta acção não se esgotou, sequer, o prazo de prescrição de 3 anos a que se refere o art. 498.º, n.º 1 do CPC, e, como tal, impõe-se julgar improcedente a alegada excepção peremptória.”

Arredando a verificação da invocada prescrição.

A Relação terá ido um pouco mais longe na fundamentação da sua decisão, mas verdadeiramente sem se desviar da decisão da 1ª instância, como veremos.

Desde logo a Relação reuniu os factos que para o efeito considerou provados, utilizando um procedimento ou técnica processual de que a 1ª instância “prescindiu”, naturalmente por entender tal desnecessário.

E considerou provados os factos seguintes:

I. A autora instaurou a 11 de Junho de 2021 a presente acção declarativa de condenação contra os réus BB, CC e “Clinica..., Lda”, pedindo a condenação solidária destes no pagamento de indemnização pelos danos que afirma terem para si decorrido de intervenções [vibrolipoaspirações; utilização de laser O2; pressoterapia; acupunctura; criolipólise na zona periumbilial; sessões de LPG; radiofrequência reafirmante; radiofrequência lipolítica] que, com o seu consentimento, alegada terem tido lugar, nas instalações da ré “Clinica..., Lda”, entre 12 de Dezembro de 2014 e 09 de Junho de 2016.

II. Na sua alegação, a autora afirma terem os danos decorrido da deficiente execução das intervenções, deficiência gerada pela falta de habilitações na matéria do réu BB [artigos 69° a 73° da petição inicial].

III. Quanto ao réu CC, a autora alega o seu conhecimento e conivência quanto à actuação do réu BB [artigos 13° a 15°, 18°, 28°, 70°, 82°, 83° e 86° da petição inicial], e pretende a sua responsabilização com base na violação de «obrigação deontológica de denúncia da prática de atos médicos por pessoa não habilitada» [artigos 87° e 88° da petição inicial].

IV. O referido em 3- foi expressamente impugnado pelo réu CC [artigos 39° e 52° da contestação deste réu], que, entre o mais, alega ter exercido o cargo de director clínico da aqui ré “Clinica..., Lda”, apenas entre Janeiro de 2014 e Janeiro de 2015 [artigo 1o da contestação deste réu].

V. Por sentença proferida a 26 de Fevereiro de 2021 no âmbito do processo comum singular n° 4540/17.4..., do juízo local criminal do ... (J7), o aqui réu BB foi condenado, pela prática, entre novembro de 2014 e Outubro de 2015, de um crime de usurpações (intervindo, arrogando-se à qualidade de médico, na pessoa da autora nestes autos), previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código penal, na pena de 6 meses de prisão, cuja execução foi decidido suspender por 1 ano;

VI. O processo comum singular nº 4540/17.4... iniciou-se com por denúncia, apresentada a 01 de Abril de 2017 pela Ordem dos Médicos perante o Departamento de Investigação e Acção do Penal..., precisamente pela prática do crime de usurpação de funções, por parte do aqui réu BB, nas instalações da aqui ré “Clinica..., Lda”, entre Novembro de 2014 e Outubro de 2015.

Ora, resulta evidente que a base fáctica de que as instâncias partiram não é verdadeiramente distinta, ambas assentando, desde logo na data da prática dos factos ilícitos, assim como nas datas em que os diversos momentos do processo crime se verificaram, desde a denúncia, passando pelo despacho de pronúncia e culminando na da sentença.

Ora, se no plano dos factos a divergência entre as decisões que se apreciam não se verifica, também no plano jurídico a fundamentação das instâncias não se revela de forma alguma entre si confrontante, podendo mesmo afirmar-se que ambas coincidiram no essencial, embora divergindo no pormenor secundário, desde logo porque a 1ª instância, fazendo uma abordagem jurídica mais reduzida, conclui “que entre o a data dos factos e o início do processo-crime ou que entre o fim do processo-crime e a data da instauração desta acção não se esgotou, sequer, o prazo de prescrição de 3 anos a que se refere o art. 498.º, n.º 1 do CPC”, querendo com isto dizer, em traços largos, sem o pormenor em que entrou a 2ª instância, que, nem (utilizando o termo “sequer”) o prazo de prescrição de 3 anos do art. 498º nº 1 se verificou, com isto, assim interpretamos tal decisão, não afastando, pelo contrário dando a entender, que, face ao quanto tinha dito a respeito dos efeitos do processo crime, não afastaria a aplicação do nº 3 do art. 498º do CC ao caso.

O que se passou foi que, talvez considerando algo escassa a decisão da 1ª instância, a Relação, não indo verdadeiramente por outro caminho fáctico-jurídico, desenvolveu a fundamentação da decisão de 1.ª instância, designadamente ao nível da interrupção do prazo prescritivo, sem verdadeiramente a descaracterizar em tudo quanto dela resultava para o desiderato final – a não verificação da prescrição, seja por aplicação do nº 1 do art. 498º, cujo prazo de 3 anos “sequer” decorrera, assim não descaracterizando, a nosso ver, a dupla conforme que ora analisamos.

Como decorre da jurisprudência consolidada do STJ nesta matéria, “a fundamentação essencialmente diferente que releva para efeito de admissibilidade da revista não se basta com uma qualquer dissemelhança entre uma e outra das fundamentações em confronto, antes se exigindo que essa diferença seja essencial, o que não é o caso se a Relação aplicou as mesmas regras jurídicas em que assentou a decisão emitida na sentença” (acórdão de 22-06-2021, Revista n.º 15319/16.0T8PRT.P1.S1).

Também “não é o maior desenvolvimento da fundamentação operada pelo tribunal da Relação, com o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância, que representa uma fundamentação essencialmente diferente.” (cfr. Acórdão do STJ de 17-11-2021, Revista n.º 712/19.5T8LSB.L1.S1, acima citado).

Num caso em que estava em causa a admissibilidade de um recurso de revista numa acção em que se discutia o incumprimento de um contrato-promessa, no acórdão do STJ de 24-01-2019 (Revista n.º 614/15.4T8PVZ.P1.S1), entendeu-se que, apesar da Relação ter desenvolvido e reforçado a fundamentação da decisão de 1.ª instância, tal não obstava à verificação de dupla conforme uma vez que a Relação concluiu também pela verificação do incumprimento definitivo do contrato. Conforme se pode ler no respectivo sumário: “Numa ação, como a presente, em que estava em causa saber se os réus tinham incorrido em incumprimento definitivo do contrato-promessa, não se verifica a existência de fundamentação essencialmente diferente quando a Relação, ainda que com algum desenvolvimento analítico de reforço no sentido de rebater as razões da apelante, acabou por concluir, no essencial, como a 1.ª instância, no sentido de que ambas as partes contribuíram para a não celebração do contrato definitivo, com a consequente restituição, pelos réus, do sinal em singelo. Tal conclusão não é alterada pela circunstância de a Relação ter procedido à alteração de um facto respeitante à qualidade de comerciantes dos réus, dado que não extraiu daí solução jurídica diversa da que havia sido seguida, a esse propósito, pela 1.ª instância.”

Voltando ao caso dos autos, o cerne da argumentação das duas decisões e a solução jurídica dada ao caso dos autos é idêntica, ou seja, a fundamentação das decisões das instâncias é essencialmente convergente, baseando-se no mesmo enquadramento jurídico (art. 498º do CC), tendo a Relação desenvolvido e aprofundado a fundamentação da decisão da 1ª instância, sem que tenha recorrido a disposições legais, interpretações normativas ou institutos jurídicos completamente diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram aquela decisão.

Ambas as decisões culminando no mesmo sentido, a 1ª instância com base no nº 1 daquele preceito (mas dando a entender pela expressão “sequer” que não afastava o nº 3 ao precito ao caso) e a relação centrando a sua decisão neste nº 3, que, mercê da prática do crime (que a 1ª instância também considerou) se deveria obervar.

Em conclusão, no caso em apreço, compulsado o teor do acórdão recorrido, podemos concluir que a Relação confirmou “os resultados decisórios alcançados sem desvio do caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida, ainda que respondendo, com adição de fundamentos, ao acervo argumentativo do apelante”, não tendo para tal se baseado em “inovações que traduzam um enquadramento jurídico-normativo diverso daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância.” (Acórdão de 09-06-2021, Incidente n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1, acima citado).

Assim, verificando-se dupla conformidade entre as decisões das instâncias, e não tendo o recorrente lançado mão da revista excepcional, ao abrigo do art 672º do CPC, embora a revista seja admitida em termos gerais, não é permitida por efeito da conformidade de julgados, como decorre do art. 671° n° 3 do Código de Processo Civil (neste sentido, entre muitos outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de abril de 2021 (Processo n.° 1994/06.8TB YNG.PI.SI; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de novembro de 2020, processo n.° 2549/15.1 T8AVR.P2.51, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de abril de 2020, processo n° 7459116.2T8LSB-A.L I.S1).

Termos em que se conclui no sentido da inadmissibilidade da revista.

ACÓRDÃO

Pelo exposto, Acordam os Juízes que integram esta 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar a revista, por inadmissível.

Custas pelo recorrente

Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Juiz Adjunto: Senhor Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira

2ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Fátima Gomes