Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
731/22.4T8VRL-A.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: LEGITIMIDADE ADJETIVA
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
BANCO DE PORTUGAL
TRANSFERÊNCIA
CHEQUE
RESPONSABILIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A legitimidade substantiva, material ou “ad nutum” – bem diferente da legitimidade processual (legitimidade ad causam que constitui um pressuposto processual positivo) – , constitui um complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que ele invoque ou que lhe seja atribuído, dessa forma dizendo respeito ao fundo ou mérito da causa (é um requisito de procedência do pedido).

II. As responsabilidades e elementos extrapatrimoniais do Banif que, na sequência da medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal (BdP) quanto a essa entidade bancária, não foram objecto de transferência para o Banco Santander Totta, SA, nem para a N..., S.A., permaneceram na esfera jurídica do Banif (alínea d) do Anexo 3 à deliberação do BdP de 20 de dezembro de 2015).

III. Não alegando a Autora que o crédito indemnizatório reclamado ou a eventual responsabilidade (civil) alegada na acção se encontrava registado na contabilidade do BANIF e considerando que a medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal prescreveu que as responsabilidades, contingências ou indemnizações emergentes da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais estavam excluídas da transferência para o adquirente Banco Santander, o que resulta das deliberações do BdP de 20 de dezembro de 2015 é não poder ser reclamado a este último (Banco Santander) eventual direito indemnizatório sobre o Banif emergente de responsabilidades dum colaborador deste que, alegadamente, terá indevidamente pago um cheque, contra as expressas instruções de cancelamento em virtude de extravio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO

AA instaurou, no Juízo Central Cível de ... - Juiz 1 - do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Banco Santander Totta, SA.

Pede a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 100.000,00 €, a título de indemnização por todos os danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, contados desde a data da citação da Ré até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, em síntese, alegou:

Que é uma empresária em nome individual, exercendo a sua actividade na área da propriedade intelectual.

Para o exercício da sua actividade tinha uma conta aberta junto da instituição bancária BANIF.

No final do ano de 2015, o Banif foi integrado no Banco Santander Totta, adquirindo este os seus ativos e passivos, ficando a autora titular da conta n.º ..............20.

No mês de julho de 2015, a autora emitiu dois cheques de 80 € cada um ao jornal “..., um com a data de 30/06/2015 e outro com a data de 31/07/2015.

O aludido jornal comunicou à autora que o segundo cheque se tinha extraviado, tendo esta, por tal razão, se dirigido ao banco – na altura BANIF –, em ..., e entregou ao seu gestor de conta em mão um pedido de cancelamento do cheque de 31/07/2015.

O cheque em causa veio a ser apresentado a pagamento em setembro de 2015, tendo sido pago pelo banco.

A autora vem a tomar conhecimento do pagamento do cheque quando recebe, por via postal, o extrato bancário remetido pela ré referente ao período compreendido entre 30/11/2019 e 31/12/2019, exibindo um saldo negativo da autora no montante de 839,33 €.

Desconhecendo o que estava em causa, a autora diligenciou junto do banco, quer pessoalmente, quer através de cartas, ficando a saber que o saldo negativo em causa se deve ao pagamento do referido segundo cheque de 80,00 €.

Em consequência desse saldo negativo, e por força de comunicação operada pelo Banco Santander, o nome da autora foi incluído na Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal.

Tal comportamento da ré causou à autora inúmeros danos de natureza não patrimonial, que computa em 100.000,00 €.


*


Citada, a ré apresentou contestação (ref.ª 42255876), concluindo:

- Pela verificação da excepção de ilegitimidade passiva substantiva, com a consequente absolvição do R. pedido;

- Pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do R. do pedido;

- Pela verificação da excepção de prescrição, com a consequente absolvição do R. do pedido; Em abono da sua defesa e a título da exceção de ilegitimidade substantiva alegou para o

efeito que a autora estriba a sua acção em factos alegadamente praticados pelo Banif, ou e/ou por um seu colaborador, consubstanciados no pagamento indevido de um cheque, factualidade essa relativamente à qual o Banco R. é completamente alheio.

O Banco Santander Totta, SA não assume a natureza de sucessor universal do BANIF, tendo adquirido uma parte determinada e determinável de ativos e passivos dessa instituição bancária como decorrência da aplicação da medida de resolução do Banco de Portugal.

Mercê da referida medida de resolução o património do Banif foi dividido em três grupos de ativos/passivos:

- O que foi transferido para a O...;

- O que foi transferido para o Banco Santander Totta, SA;

- O remanescente, que permaneceu no Banif (que se encontra em processo de liquidação, no seguimento da deliberação de 22/05/2018, na qual o Banco Central Europeu lhe revogou a autorização para o exercício da atividade de instituição de crédito).

Para o Banco Santander Totta, SA, foram transferidos os “ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob a gestão do BANIF, registados na contabilidade”.

Segundo a ré, a eventual responsabilidade alegada nesta ação não se mostrava registada na contabilidade do Banco Internacional do Funchal.

A resolução deixou de lado as responsabilidades emergentes de violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais ou responsabilidades ocultas e contingentes, sendo apenas incluídas na transmissão as responsabilidades constituídas pelo Banif no exercício da sua atividade normal bancária e na medida que respeitem a ativos, direitos e responsabilidades que, efetivamente, se transmitirem em consequência da medida de resolução.

Pugna, por isso, pela sua absolvição do pedido. *

A A. apresentou resposta às excepções – ilegitimidade passiva e prescrição – alegadas pela Ré em sede de contestação, concluindo pela sua improcedência (ref.ª 43565585).


*


De seguida, foi proferido despacho saneador, no qual a Mm.ª Juíza “a quojulgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva substantiva arguida pelo réu (ref.ª 37473363).

Ali se refere quanto à apreciação da responsabilidade do R. Santander Totta, S.A.:

«(…)

Se bem se percebeu a alegação da Banco Santander Totta, SA, a mesma exime a transferência da alegada responsabilidade aqui reclamada pela autora pelo facto de a mesma não se encontrar registada na contabilidade do Banif.

Porém, até ao momento, o crédito em causa apenas “existe” em sede de alegação da autora estando, dependente de reconhecimento judicial (que poderá existir ou não).

Assim, como se encontra dependente

De outra parte, e tal como resulta da peça processual apresentada pela reconhece a transferência da conta bancária de que a autora era titular no Banif para o Banco Santander Totta, SA.

Ora, não pode a reconhecer o crédito a seu favor e não reconhecer, em abstrato, a factualidade que ao mesmo deu origem.

Assim, e uma vez que a conta de depósitos à ordem titulada pela autora junto do Banif Banco Internacional do Funchal, SA se transferiu para a aqui ré, sendo da existência de um saldo negativo da mesma que resultam os danos alegados pela autora, entende-se que a «Banco Santander Totta, SA» se encontra dotada de legitimidade (substantiva) para os termos da presente ação.

(…)».


*


Inconformado com o despacho saneador na parte em que o mesmo julgou improcedente a excepção de ilegitimidade substantiva, o réu dele interpôs recurso de apelação (ref.ª 44199411), vindo a Relação de Guimarães, em acórdão, a “julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, absolvendo o réu do pedido”.

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Por sua vez inconformada, vem agora a Autora AA interpõe recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

1. A Recorrente não aceita o julgamento da matéria de Direito proferido pelo Tribunal “a quo” porquanto, na sua modesta opinião, não ter feito uma correcta aplicação da Lei.

2. Este facto teve como consequência a absolvição da Ré do pedido formulado.

3. Além do mais, conforme melhor se explicará de seguida, a decisão é contrária aos preceitos legais em vigor.

4. A Recorrente não se conforma com o acórdão datado de 18 de Maio de 2023, na parte em que o Tribunal recorrido, por entender que do teor das deliberações tomadas pelo Banco de Portugal, resulta a não transmissão para a Recorrida Banco Santander Totta, S.A. da responsabilidade que nos presentes autos se discute, concluiu pela ausência de legitimidade substantiva dessa instituição bancária.

5. Ao fazê-lo com tal fundamento e decidindo pela ilegitimidade substantiva da Recorrida, o Tribunal “a quo” incorreu numa errada interpretação e aplicação do Direito.

6. Na medida em que a análise, interpretação e aplicação que o Tribunal recorrido levou a cabo da Deliberação de Resolução do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. e do respectivo Anexo 3, bem como da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal que clarificou o sentido e o alcance de algumas disposições dos Anexos 2, 2B e 3 daquela Deliberação de Resolução, quando aplicada ao caso em apreço, colide com princípios constitucionais e foi mesmo além do que a própria Lei prevê e admite; o que obriga à sua não aplicação.

7. A Lei, nomeadamente o n.º 6 do artigo 145º-N do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras prevê que a decisão de alienação de direitos e obrigações de uma instituição de crédito objecto de resolução produz por si só o efeito de transmissão da titularidade dos direitos e obrigações transferidos da instituição de crédito objecto de resolução para o adquirente; sendo este considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações alienados.

8. A verdade é que o elenco das exclusões que, sucessivamente, foram estipuladas nas Deliberações do Banco de Portugal é de tal modo extenso e concreto que esvazia totalmente de conteúdo a norma acima referida (vide Anexo 3 da Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 20 de Dezembro de 2015, às 23h30 e a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 04 de Janeiro de 2017).

9. As Deliberações do Banco de Portugal e a interpretação que o Tribunal recorrido delas fez, levam a um absoluto esvaziamento dos direitos da Recorrente ao crédito, ao bom nome, à imagem e à dignidade humana, tal como decorre dos artigos 26º n.os 1 e 2, 12º n.º 1 e 16º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

10. Dito de outro modo, o teor daquelas Deliberações e a interpretação que delas foi feita pelo Acórdão recorrido resulta, para a Recorrente, num prejuízo considerável; para o qual não se encontra resposta ou legitimação no ordenamento jurídico português.

11. A interpretação que o Tribunal “a quo” efectuou da Resolução bancária aplicada afecta o conteúdo essencial dos direitos constitucionais da Recorrente ao crédito, ao bom nome, à imagem e, de igual modo, à dignidade humana.

12. Na realidade, a Medida de Resolução aplicada ao Banif permitiu à Ré/Recorrida adquirir apenas a parte boa da instituição bancária objecto de resolução, nomeadamente a sua actividade bancária, incluindo os seus depósitos e outros activos, bem como os respectivos funcionários e agências; excluindo tudo aquilo que economicamente não lhe interessava, nomeadamente passivos e activos tóxicos e, especificamente, as obrigações sub judice.

13. Isto enquanto milhares de clientes, como a aqui Recorrente, se vêem privados de recorrer a crédito ou de obterem aprvação em candidaturas a projectos na sua área profissional.

14. Concluindo, sempre se dirá que as Deliberações do Banco de Portugal, quando interpretadas de forma que se concretizem numa “perda de chance” da Recorrente, anulando direitos fundamentais desta em virtude do seu nome constar da lista de incumpridores do Banco de Portugal, na sequência de uma comunicação da autoria da Ré/Recorrida, são inconstitucionais; pelo que não poderia o Tribunal recorrido tê-las considerado na composição deste litígio, uma vez que tal se mostra incompatível com a obediência que este órgão deve prioritariamente à Constituição, mais especificamente ao n.º 2 do artigo 202º e aos artigos 203º e 204º da Constituição da República Portuguesa.

15. Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências, Colendos Conselheiros, doutamente suprirão, deverá a presente revista ser admitida e julgada procedente; revogando-se a decisão recorrida na parte em que concluiu pela ausência de legimidade substantiva da Recorrida Banco Santander Totta, S.A., absolvendo-a do pedido e substituindo-a por Douto Acórdão que determine que o processo prossiga os seus termos legais para decisão do pedido formulado contra a Recorrida; tudo com as inerentes consequências legais.


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Contra-alegou o Réu-Recorrido, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir é a seguinte:

• Se, face ao teor das deliberações tomadas pelo Banco de Portugal, resulta a não transmissão para a Recorrida Banco Santander Totta, S.A. da responsabilidade que nos presentes autos se discute, com a consequente ilegitimidade substantiva dessa instituição bancária (o Réu).

• Lateralmente, refere a recorrente que a interpretação feita no acórdão recorrido, no sentido da ausência de responsabilidade extracontratual do banco réu – por a mesma se não ter transferido para este – esvazia os direitos da recorrente “ao crédito, ao bom nome, à imagem e à dignidade humana”, bem assim, viola o disposto nos arts. 202º, nº2, 203º e 204º da Constituição da República Portuguesa.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

Os factos materiais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra elaborado (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos), a que acrescem os seguintes factos [que documentam as reuniões e deliberações do Banco de Portugal, disponíveis in https://www.bportugal.pt/page/deliberacoes-e-informacoes-do-banco-de-portugal]:

1. A A. tinha aberto junto do “Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.” uma conta de depósitos à ordem com o n.º .........72-77/10, a qual, no Banco Recorrente, tomou o n.º 0008..........20.

2. Como consequência da deliberação do Banco de Portugal de 20 de dezembro de 2015, que aplicou uma medida de resolução ao “Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.”, a conta bancária da Autora identificada no ponto 1. foi transferida para o “Banco Santander Totta, S.A.”;

3. O Banco de Portugal, em Reunião Extraordinária do Conselho de Administração, realizada no dia 19 de dezembro de 2015, às 18h00m, ao abrigo do disposto nos números 1, 3, 5 e 9 do artigo 145º-M do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, entre o mais, deliberou:

a) Declarar que o Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. se encontra «em risco ou em situação de insolvência» («failing ou likely to fail»), nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 145º-E, n.º 2, alínea a), do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras;

b) Iniciar o processo de aplicação da medida de resolução prevista na alínea a), do número 1 do artigo 145.º-E do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ao Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A.;

c) Promover diligências tendentes à alienação da actividade do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. junto do Banco Popular Español, S.A. e do Banco Santander Totta, S.A.;

4. Na sequência da deliberação referida no ponto 3, o Banco de Portugal, em reunião extraordinária do Conselho de Administração ocorrida em 20 de Dezembro de 2015, às 23h30m, deliberou, entre o mais:

a) Constituir a sociedade “N..., S.A.”;

b) Transferir para esta entidade [actual O..., S.A. (“O......”)], os direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., constantes do anexo 2 à deliberação, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 145º-S e na alínea c) do n.º 2 do artigo 145º-T, em articulação com o n.º1 do artigo 145º-L, todos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras;

d) Alienar ao Banco Santander Totta, S.A. os direitos e obrigações, que constituam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., constantes do Anexo 3 à deliberação.

5. Na sequência da deliberação de constituição da “N..., S.A.” e da transferência de uma parte muito significativa e substancial dos direitos e obrigações que constituem activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif para a N..., S.A. e para o Banco Santander Totta, S.A., o Banco de Portugal, em reunião extraordinário do seu Conselho de Administração, realizada no dia 20 de dezembro de 2015, pelas 23h45m, deliberou aplicar ao Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. as seguintes medidas de intervenção correctiva:

i. Proibição de concessão de crédito e de aplicação de fundos em quaisquer espécies de activos, excepto na medida em que a aplicação de fundos se revele necessária para a preservação e valorização do seu activo;

ii. Proibição da recepção de depósitos.

6. No anexo 3., referido em 4., sob a epígrafe “Direitos e Obrigações que constituam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif Banco Internacional do Funchal, S.A. transferidos para o Banco Santander Totta, S.A.”, estabelece-se serem objecto de transferência, de acordo com os critérios ali fixados, os “activos, passivos elementos extrapatrimoniais e activos sob a gestão do Banif, registados na contabilidade” (ponto 1 do referido anexo 3).

7. O referido anexo 3. estabelece na sua alínea b) que “As responsabilidades do BANIF perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste são transferidos na sua totalidade para o adquirente, com excepção dos seguintes (“Passivos Excluídos”):

- (vii) Quaisquer responsabilidades, contingências ou indemnizações, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais;”

- (xii) Todas as responsabilidades e garantias não conhecidas, as responsabilidades contingentes e litigiosas, as responsabilidades no âmbito de alienação de entidades ou de actividades e as responsabilidades decorrentes de quaisquer outras actividades, com excepção das que hajam sido constituídas pelo BANIF no âmbito da sua normal actividade bancária (incluindo as obrigações do BANIF ao abrigo de depósitos, cartas de conforto, garantias bancárias, performance bonds e outras contingências similares) e na medida em que respeitem às áreas de negócio, activos, direitos ou responsabilidades transferidos para o adquirente em resultado da presente deliberação (este na redacção de deliberação “clarificadora” de 4 de Janeiro de 2017).

8. Sob a alínea d) do aludido Anexo 3 foi estabelecido que as responsabilidades e elementos extrapatrimoniais do Banif que não são objecto de transferência para o adquirente, nem para a N..., S.A., permanecem na esfera jurídica do Banif.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Face ao teor das deliberações tomadas pelo Banco de Portugal, resulta a não transmissão para a Recorrida Banco Santander Totta, S.A. da responsabilidade que nos presentes autos se discute, com a consequente ilegitimidade substantiva dessa instituição bancária (o Réu)?

Entendeu a sentença que «uma vez que a conta de depósitos à ordem titulada pela autora junto do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA se transferiu para a aqui ré, sendo da existência de um saldo negativo da mesma que resultam os danos alegados pela autora, entende-se que a ré «Banco Santander Totta, SA» se encontra dotada de legitimidade (substantiva) para os termos da presente ação».

Já por aqui se não ficou o acórdão recorrido, antes, recorrendo às reuniões e deliberações do Banco de Portugal atinentes ao Banif – Banco Internacional do Funchal – , que aplicou a este uma imedida de resolução, tendo tomado várias deliberações, designadamente, transferindo para o Banco aqui Réu e para a N..., S.A., uma parte muito significativa e substancial dos direitos e obrigações que constituíam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif, outrossim, aplicando ao Banif várias medidas de intervenção correctiva (o que tudo consta da factualidade provada) – decidiu pela ilegitimidade substantiva do banco réu.

Adiantando solução, cremos que nenhuma censura nos merece o acórdão recorrido, dada a sua, bem expressiva e correcta, fundamentação.


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Tal como vem configurada a acção, pretende a Autora lhe seja atribuída uma indemnização por um facto ocorrido no BANIF e que visa a responsabilidade civil extracontratual dessa Instituição Bancária, nos termos do artigo483.ºdo Código civil, considerando que essa responsabilidade se transferiu para o Banco Santander.

Não está aqui em causa a legitimidade processual ou adjectiva, pois esta mais não é do que um prossuposto processual, indispensável ao prosseguimento da demanda.

Como é sabido, no direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo.

Como pressuposto processual geral, ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjectivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.

Tal como no direito substantivo, haverá que a aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), de acordo com o critério enunciado nos nºs 1 e 2 do art. 30º do CPC, ou seja, em função do interesse directo (e não indirecto ou derivado) em demandar, expresso pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e do interesse directo (e não indirecto ou derivado) em contradizer, expresso pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda (ou, considerado o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu)1.

Ainda dentro da regra enunciada nos referidos nºs 1 e 2 do art. 30º do C.P.C., a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência duma relação jurídica, pela titularidade das situações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram.

Em causa, porém, como referido, está a legitimidade substantiva, material – como dito, bem diferente da legitimidade processual – , um complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que ele invoque ou que lhe seja atribuído, como tal, dizendo respeito ao fundo ou mérito da causa2. Trata-se, assim, de um requisito de procedência do pedido3. Em causa está a qualidade de sujeito (activo ou passivo) da situação jurídica sobre a qual o acto em causa vai exercer o direito.

Ora, como bem é demonstrado no acórdão recorrido, não estão presentes todos os pressupostos da obrigação de indemnizar que, por força do artº 483º do CC, poderia recair sobre o Banco Réu,. Designadamente, está ausente o pressuposto da ilicitude da sua conduta.

Efectivamente, recorrendo às várias reuniões e deliberações do Banco de Portugal referidas os factos provados, o acórdão recorrido concluiu – e bem – que o Banco Réu não é sucessor da obrigações do Banif, em particular, na responsabilidade que a Autora aqui lhe assaca pelo pagamento do cheque extraviado.

Como tal, não pode ser-lhe assacada a responsabilidade, extracontratual, pretendida pela Autora.

Não vamos aqui (re)transcrever as várias Deliberações do Banco de Portugal, para, com sustento nelas, demonstrar o que o acórdão recorrido lapidarmente demonstra: que o Banco Réu não é sucessor do Banif e que dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob a gestão do Banif, registados na contabilidade (ponto 1 do Anexo 3 à deliberação do Banco de Portugal, referida no ponto 5 dos factos provados) não faz parte a aqui invocada e pretendida, pela Autora, responsabilidade indemnizatória do Réu.

Até porque tal pretensão indemnizatória é clara e expressamente afastada pelo estatuído na alínea b) do ponto 1 do mesmo Anexo 3, ao estabelecer que “As responsabilidades do BANIF perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste são transferidos na sua totalidade para o adquirente, com excepção dos seguintes (“Passivos Excluídos”):

- (vii) Quaisquer responsabilidades, contingências ou indemnizações, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais;”

- (xii) Todas as responsabilidades e garantias não conhecidas, as responsabilidades contingentes e litigiosas, as responsabilidades no âmbito de alienação de entidades ou de actividades e as responsabilidades decorrentes de quaisquer outras actividades, com excepção das que hajam sido constituídas pelo BANIF no âmbito da sua normal actividade bancária (incluindo as obrigações do BANIF ao abrigo de depósitos, cartas de conforto, garantias bancárias, performance bonds e outras contingências similares) e na medida em que respeitem às áreas de negócio, activos, direitos ou responsabilidades transferidos para o adquirente em resultado da presente deliberação” (destaque nosso).

Sendo clarificado, ainda, na alínea d) do aludido Anexo 3 que “as responsabilidades e elementos extrapatrimoniais do Banif que não são objecto de transferência para o adquirente nem para a N..., S.A. permanecem na esfera jurídica do Banif4.

E, claro, temos a mesma al. b) a referir (reforçar/clarificar) que foram objecto de transferência (do Banif para o Banco Santander Totta, S.A.) os “activos, passivos elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif, registados na contabilidade” (destaque nosso).

Ora, não só a Autora/recorrida não alegou, sequer, que o crédito indemnizatório reclamado ou a eventual responsabilidade alegada nesta acção se encontrava registado na contabilidade do BANIF – e, como visto, apenas os activos e passivos registados na contabilidade do BANIF–Banco Internacional do Funchal S.A. é que transitaram para o Banco recorrente –, como a resolução tomada foi inequívoca ao prescrever que as responsabilidades, contingências ou indemnizações emergentes da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais estavam excluídas (“Passivos Excluídos”) da transferência para o adquirente Banco Santander Totta, S.A.


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Assim, portanto, temos como segura a razão do acórdão recorrido, onde, em remate, se escreveu:

« No caso em apreço, como bem refere o R./recorrente, este é alheio a toda a factualidade invocada, a qual envolve apenas e tão só a A., o BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A. e o colaborador desta instituição bancária que, alegadamente, terá indevidamente pago um cheque, contra as expressas instruções de cancelamento em virtude de extravio, o que originou um saldo negativo, na conta de depósitos à ordem, o que foi reportado ao Banco de Portugal. Nem mesmo a comunicação do saldo negativo feita pelo Banco Réu ao Banco de Portugal tem a virtualidade de gerar responsabilidade civil daquela entidade bancária, visto ter- se a mesma limitado a observar estritamente as regras legais a que está sujeita, sendo que, a haver ilicitude, ela emerge do acto praticado a montante pelo colaborador do BANIF, que não observou as aludidas expressas instruções de cancelamento do cheque, antes mesmo da efetivação da Medida de Resolução aplicada ao BANIF. O que significa que, para além de não estar registado na contabilidade, o alegado crédito da A. seria também, simultaneamente, uma responsabilidade decorrente da violação de disposições ou determinações regulatórias e uma responsabilidade não conhecida, bem como uma responsabilidade contingente e litigiosa, decorrendo das exclusões previstas nas subalíneas vii) e xii) da alínea b do ponto 1 do Anexo 3 da medida de resolução. Sempre se dirá que competia à Autora o ónus de alegação e de prova de que o referido crédito indemnizatório ou a alegada responsabilidade constasse registado na contabilidade do BANIF, enquanto facto constitutivo do direito que invoca (art. 342º, n.º 1, do CC), pois que o referido parágrafo 1 da resolução do Banco de Portugal de 20/12/2015 exige, para se verificar a transferência de responsabilidade do BANIF para o recorrente, o referido registo na contabilidade do BANIF. A este respeito, como já vimos, esse ónus não foi cumprido pela Autora/recorrida. Já quanto ao preenchimento de uma das causas de exclusão do crédito, esse ónus, enquanto facto extintivo ou impeditivo (n.º 2 do art. 342º do CC), impendia sobre o R./recorrente, o que este fez, nos termos supra explicitados. Por fim, importa salientar que, nos termos da alínea b) do ponto 2 do Anexo 3 da medida de resolução, se a transferência de um determinado passivo está excluída por força da medida de resolução por determinada subalínea, essa transferência não pode ter como ocorrida por outra via. Em face do que antecede somos levados a concluir que, ainda que a A. possa deter um crédito sobre o BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A., tal obrigação não foi transferida para a esfera jurídica do Banco Santander Totta, S.A.. No que concerne à responsabilidade em causa nos presentes autos, o Banco Santander Totta, S.A. não é sucessor do BANIF-Banco Internacional do Funchal, S.A., pelo que o pedido jamais poderia ter sido dirigido ao BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A., posto o “passivo” ou “responsabilidade” emergente dos ilícitos alegados não se ter transferido de um banco para o outro. E, relativamenteao R./Recorrente, não estão verificadosos requisitos previstos no art. 483.º para que se mostre o mesmo constituído na obrigação de indemnizar a A./recorrida. Em face do exposto, nunca o R. Banco Santander Totta, S.A. pode vir a ser responsabilizado na sequência de obrigações ou de responsabilidades que não lhe foram transmitidas ou por si adquiridas. Tal reconduz-nos à verificação da excepção de ilegitimidade substantiva do R./recorrente, determinante da improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido. Como tal, o recurso interposto pelo réu será julgado procedente, com a consequente revogação da sentença recorrida.».


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Quanto à afirmação da recorrente de que a interpretação feita no acórdão recorrido, no sentido da ausência de responsabilidade extracontratual do banco réu – por a mesma se não ter transferido para este –, esvazia os direitos da recorrente “ao crédito, ao bom nome, à imagem e à dignidade humana”, bem assim, viola o disposto nos arts. 202º, nº2, 203º e 204º da Constituição da República Portuguesa

Não se vislumbra onde a interpretação e decisão prolatada pela Relação esteja a esvaziar os direitos da recorrente, constitucionalmente garantidos, que invoca (direito ao bom nome, imagem e à dignidade humana – artº 26º da CRP), ou o seu direito ao crédito. Ou outros quaisquer direitos constitucionais, diga-se.

O que a Relação decidiu foi, apenas e só, que, face à factualidade provada e ao direito ordinário vigente, carecia razão à Recorrente, demonstrando-o cabalmente.

Aliás, é bom referir que a Recorrente nem sequer se deu ao cuidado de explicitar ou concretizar em que se consubstancia essa pretensa violação que invoca dos seus direitos constitucionais.


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Atento todo o explanado, a revista não pode deixar de improceder, com a consequente confirmação do acórdão da Relação.

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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas pela Autora/Recorrente (sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que a mesma goza).


Lisboa, 12 de Setembro de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. Cfr. LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, Coimbra Editora, 2014, pp. 70-71..

2. Cfr. Ac. do STJ de 28/01/2021 (BERNARDO DOMINGOS), in www.dgsi.pt.

3. Cfr. J.P. REMÉDIO MARQUES, Ação Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, p. 220.

4. Destaques nossos.