Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
321/19.9JAPDL.L3.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. No caso o arguido foi condenado em sete anos de prisão relativamente à prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, no período compreendido entre o Verão de 2012 - 21 de Junho de 2014 a 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade (297 crimes); e em quatro anos prisão relativamente à prática de cada um dos crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 1 ex vi artigo 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade - a 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade (576 crimes), em somatório, no primeiro caso de 2079 anos, e no segundo de 2304 anos.

II. Para cúmulo acresceram, as penas parcelares adicionais supra identificadas como já transitadas em julgado e que ditadas foram nos seguintes termos:

“F. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade - a início de Maio de 2019 - data em que a ofendida saiu da casa do arguido, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

G. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB na ocasião ocorrida em Maio de 2019 na residência arrendada pela própria e que passou a ser seu domicílio, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

H. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.°, 145.°, n.° 1 al. a) e n.° 2 e 132.°, n.° 2 al. e) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);

I. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.°-A, n.° 1 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);J. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

K. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190°, n°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 4 (quatro) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

L. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. a) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

M. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. b) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 10 (dez) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

N. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravada p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1 al. b) e n.° 2 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de DD, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado).”

III. Assim cabendo à pena única a moldura penal abstrata de 7 anos a 25 anos de prisão, incluindo todas as penas adicionais em que foi condenado e que não podem deixar de ser consideradas, em soma de 4394 anos e 8 meses de prisão, reduzido para 25 anos de prisão por força da aplicação da regra do número 2 do artigo 77º do CP.

IV. São elevadíssimas as necessidades de prevenção geral. A ilicitude é elevadíssima, estamos perante inúmeros crimes de elevada gravidade, em que a ofendida é uma criança, depois adolescente; os bens jurídicos tutelados são respeitantes à pessoa de criança, ofendidos por via de manipulação e de engano, prevalecendo-se o agente da sua superioridade e do seu domínio e do seu ascendente de pai, esquecendo a responsabilidade parental; visando egoisticamente a satisfação da sua lascívia, em casa e na presença de outros menores; anulando a vontade e a capacidade de resistência da menor; o número de crimes atinge o enorme número de 4383, num lapso temporal de quase sete anos, (desde o verão de 2012 até 11/07/2014 e, durante mais 4 anos entre 11/07/2014, data em que completou 14 anos de idade até 11/07/2018, data em atingiu a maioridade civil), em acções imparáveis, sem nunca ter havido, em tão longo período de tempo, um rebate de chamada ao respeito de si próprio e ao respeito da menor e à sua responsabilidade parental; quebrando-lhe a sua infância e a sua adolescência, impedindo-a de viver saudavelmente no tempo adequado e próprio e em autodeterminação sexual a sua sexualidade.

V. Mas, convergindo umas e outras, são também elevadíssimas as necessidades de prevenção especial. O arguido, agiu a demonstrar uma personalidade altamente desvaliosa, mal formada, alheada dos seus deveres, responsabilidades e papel paternais e distanciada do dever ser jurídico-paternal e jurídico-penal, indiferente à proteção, ao bem-estar e ao são desenvolvimento da sua própria filha de tão tenra idade. Quebrando-lhe o seu tempo de criança e de adolescente. De tal forma manipulou a ofendida que lhe acabou a anular todo o seu discernimento e vontade, mais não sendo do que um joguete nas suas mãos, um mero brinquedo sexual que, como seu dono e sem limites, utilizava a seu bel prazer. com personalidade egotista e autocentrada, manipuladora, astuciosa, burlando a confiança em si depositada, completamente alheado do e indiferente ao seu futuro ou educação, que lhe cabia assegurar. Não se olvide que em “5.” se deu como provado: “O arguido era a figura masculina que BB identificava como seu pai, e a quem chamava de pai, chamando-a, o arguido, de filha.”

VI. “O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade”. (in citado ac. do STJ de 28/04/2016).

VII. Configurando-se o facto global como um padrão comportamental de atuação não viola o princípio da proibição da dupla valoração sopesá-lo como negativo em sede de confeção da pena única.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção, criminal, do Supremo Tribunal de Justiça,


I - RELATÓRIO

I.1. Na primeira instância1, em reenvio e depois de realizado novo julgamento, por acórdão proferido no dia 9 de janeiro de 2023, foi decidido julgar a acusação parcialmente procedente por provada e, consequentemente:

“B. Absolver o arguido AA da prática de 725 crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticados na pessoa de BB (decisão já transitada em julgado).

C. Absolver o arguido AA da prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.° n.° 3 al. b) e 177.° n.° 1 al. a), contra CC (decisão já transitada em julgado);

D. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 297 (duzentos e noventa e sete) crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, no período compreendido entre o Verão de 2012 a 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade, na pena de 7 (sete) anos de prisão por cada um deles, absolvendo dos demais crimes imputados desta natureza

E. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 576 (quinhentos e setenta e seis) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 1 ex vi artigo 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade - a 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade, na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um deles;

F. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade - a início de Maio de 2019 - data em que a ofendida saiu da casa do arguido, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

G. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB na ocasião ocorrida em Maio de 2019 na residência arrendada pela própria e que passou a ser seu domicílio, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

H. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.°, 145.°, n.° 1 al. a) e n.° 2 e 132.°, n.° 2 al. e) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);

I. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.°-A, n.° 1 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);J. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

K. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190°, n°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 4 (quatro) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

L. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. a) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

M. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. b) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 10 (dez) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

N. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravada p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1 al. b) e n.° 2 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de DD, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado).

O. Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico das penas mencionadas em C) a M), nos termos do artigo 77.°, números 1 e 2 do Código Penal, na pena unitária de vinte e quatro anos de prisão.

P. Condenar o arguido AA, na pena acessória de proibição de contactos por qualquer meio com a assistente DD pelo período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses (artigo 152.°, n.° 4 do Código Penal) (condenação já transitada em julgado);

Q. Condenar o arguido AA, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 20 (vinte) anos (artigo 69.°-C, n.° 2 do Código Penal) (condenação já transitada em julgado);

R. Condenar o arguido AA, na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 20 (vinte) anos (artigo 69.°-C, n.° 2 do Código Penal) (condenação já transitada em julgado).

S. Condenar o arguido AA, no pagamento à ofendida BB da quantia reparatória de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), ao abrigo do disposto no art. 82.°-A, do Código de Processo Penal e art. 16.°, n°2, da Lei n° 130/15, de 04 de Setembro condenação já transitada em julgado).

T. Condenar o arguido, no pagamento dos encargos e custas crime do processo, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC's.

2. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante DD parcialmente procedente por parcialmente provado e, consequentemente, decidir:

A) Condenar o demandado AA no pagamento à demandante DD, da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, devidos desde a data do trânsito em julgado desta decisão e até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano, absolvendo-o do mais peticionado (decisão já transitada em julgado).

As custas do pedido de indemnização civil serão suportadas pelo demandante e demandada, na proporção do respectivo decaimento, (artigo 527.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 523.° do Código de Processo Penal) decisão já transitada em julgado).

Após trânsito, determinar nos termos do disposto no art. 8.°, n.° 2, da Lei n.° 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de ADN do arguido, nos moldes prescritos em tal diploma legal.”

I.2. O arguido recorreu desse acórdão tendo a Relação de Lisboa, em 21/06/2023, negado provimento do recurso, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.

I.3. Vem agora recurso interposto pelo arguido, desta forma concluindo:

“1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão que confirmou a condenação do arguido, ora recorrente, nos seguintes termos:

2. A 1.ªinstância condenou o arguido no acórdão de 21 de Janeiro de 2021:

- na pena de ONZE anos de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, no período compreendido entre o Verão de 2012 a 11.07.2014 – data em que BB completou 14 anos de idade;

- na pena de NOVE anos de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 ex vi artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 – data em que BB completou 14 anos de idade – a 11.07.2018 – data em que BB completou 18 anos de idade;

- na pena de QUATRO anos e SEIS meses de prisão relativamente à prática do crime de violação agravada, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2018 – data em que BB completou 18 anos de idade – a início de Maio de 2019 – data em que a ofendida sai da casa do arguido;

- na pena de DOIS anos e SEIS meses de prisão relativamente à prática do crime de violação agravada, praticado na pessoa de BB na ocasião ocorrida em Maio de 2019 na residência arrendada pela própria e que passou a ser seu domicílio;

- na pena de UM ano de prisão relativamente à prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.º, 145.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2 al. e) do Código Penal, praticado na pessoa de BB;

-na pena de UM ano de prisão relativamente à prática do crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, praticado na pessoa de BB;

- na pena de SEIS meses de prisão relativamente à primeira ocasião e a pena de QUATRO meses de prisão relativamente à segunda ocasião, pela prática dos dois crimes de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB;

- na pena de SEIS meses de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 2 ex vi artigo 171.º, n.º 3 al. a) e 177.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC;

- na pena de DEZ meses de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 2 ex vi artigo 171.º, n.º 3 al. b) e 177.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC;

- na pena de QUATRO anos e SEIS meses de prisão relativamente à prática do crime de violência doméstica agravada p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de DD;

3. Em cúmulo Jurídico, o arguido foi condenado numa pena única de vinte e quatro anos de prisão.

4. Bem como nas penas acessórias de:

- proibição de contactos, por qualquer meio, com a assistente DD pelo período de 4 anos e 6 meses (artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal);

- proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 20 anos (artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal);

- inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 20 anos (artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal).

-E no pagamento de uma indemnização no valor de €20.000,00 (vinte mil euros) a pagar à assistente/demandante DD.

- Foi ainda o arguido condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) à ofendida BB.

5. O ora recorrente recorreu deste acórdão para o tribunal da relação de Lisboa, tribunal este que manteve na íntegra a decisão da 1.ª instância.

6. Do acórdão do tribunal da relação de Lisboa, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça.

7. Nesta Instância, foi decidido apreciar apenas a condenação do arguido na pena de onze anos de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, no período compreendido entre o Verão de 2012 a 11.07.2014 – data em que BB completou 14 anos de idade; e

8. A condenação na pena de nove anos de prisão relativamente à prática do crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 ex vi artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 – data em que BB completou 14 anos de idade – a 11.07.2018 – data em que BB completou 18 anos de idade.

9. Tendo, relativamente a estas duas condenações declarado que ““a unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada acto sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei.

(sublinhado nosso)

10. Acrescentando que, há que aplicar o artigo 30.º, n.º 1 do CP segundo o qual ”[o] número de crimes determina- se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. ”

11. Assim, para determinar o número de crimes cometidos pelo arguido, o Supremo Tribunal de Justiça verificou que a matéria de facto provada não permitia essa determinação, ou seja,

12. Face à matéria de facto provada, este Tribunal não conseguiu apurar o número de crimes praticados pelo arguido e, nessa medida, determinou o reenvio do presente processo para a 1.ª instância para produção de prova.

13. Cumprindo essa determinação, a 1.ª instância realizou novo julgamento, tendo decidido então condenar o arguido por 297 (duzentos e noventa e sete) crimes de abuso sexual de crianças agravado e 576 (quinhentos e setenta e seis) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado.

14. Com a singularidade de não se ter dado como provado qualquer novo facto, em relação ao primeiro julgamento, ou seja,

15. A matéria dada como provada no primeiro julgamento é a mesma, sem tirar nem pôr, que foi considerada provada no segundo julgamento.

16. Assim, recorreu o arguido desta decisão para o tribunal da relação de Lisboa, tendo este tribunal mantido, na íntegra, a decisão da 1.ª instância.

17. Dessa decisão recorre o arguido para este Venerando Tribunal, quanto à medida da pena.

18. Desde Janeiro de 2021, quando foi proferida a primeira decisão nos presentes autos até à presente data, foi sempre mantida a pena única de 24 anos de prisão.

19. Para fundamentar a manutenção dessa mesma condenação escreveu o tribunal a quo o seguinte:

“Ora o mesmo tem a dizer-se no que concerne à fixação da pena única em 24 anos, pois que também neste conspecto, o acerto do acórdão recorrido é total, perante a duração, a gravidade dos comportamentos delituosos do arguido, reveladores de uma personalidade violenta e cruel, descentrada do sofrimento alheio, particularmente grave, por ter sido infligido em pessoas especialmente expostas às suas investidas dada a relação familiar e dependência existencial e económica que as ligava ao arguido, particularmente grave pela eficácia e determinação e grau de severidade da lesão dos bens jurídicos pelo tipo concreto e reiteração das práticas sexuais, sendo certo que a aplicação da pena única de quinze anos proposta pelo arguido seria completamente desproporcional, na modalidade de protecção insuficiente, ao intensíssimo grau de culpa do arguido, à sua vocação especializada para ser cruel, desumano e violento para com pessoas a quem deve especiais deveres de estima, afecto, protecção e respeito e redundaria na impunidade da esmagadora maioria dos crimes cometidos.”

20. Todavia, não concorda o arguido com este entendimento, nos termos e com os fundamentos seguintes:

21. Antes de mais, não podemos deixa de manifestar a nossa perplexidade e frustração quanto ao andamento dos presentes autos, nomeadamente quanto ao que consideramos ser uma violação do acatamento das decisões proferidas em vias de recurso pelos Tribunais Superiores, que, entendemos, configura uma nulidade insanável.

Como supra se disse, por via da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, os presentes autos foram reenviados para a 1.ª instância para realização de novo julgamento para produção de prova que permitisse o Tribunal determinar o número de crimes praticados pelo arguido.

23. Também como se disse, o novo julgamento foi realizado.

24. Todavia não foi produzida qualquer prova nova e, nessa medida, a matéria de facto considerada provada no 1.º julgamento é a mesma que foi considera provada no 2.º julgamento – se colocarmos os dois acórdãos da 1.ª instância ao lado um do outro, verificamos que os “factos provados” num e no outro acórdão são os mesmos.

25. Só que, neste último, o Tribunal determinou que o arguido tinha praticado 297 crimes de abuso sexual de crianças agravado e 576 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado.

26. Ou seja, a matéria de facto considera provada que o Supremo tinha decidido que era insuficiente para a decisão é a mesma que o tribunal da 1.ª instância considera que é suficiente para a condenação nos crimes supra.

27. Se a verificação do número de crimes pelo arguido fosse uma operação matemática, certamente o Supremo Tribunal de Justiça tinha feito essa mesma operação.

28. Não o fez, porque para determinar o número de crimes praticados pelo arguido era necessário muito mais que uma simples operação matemática, era necessário fazer prova do maior número de atos individuais ilícitos praticados por aquele.

29. Acontece que, segundo o artigo 77.º, n.º 1 do CP, para determinar a pena única há que ter em consideração os factos e s personalidade do arguido.

30. Mas para ponderar os factos é que necessário que estes consubstanciem a prática de crimes e que permitam, tais factos, determinar o número de crimes praticados pelo agente.

31. A ponderação dos factos para determinar a pena única a aplicar ao arguido, é muito diferente se estamos perante a prática de um crime ou perante a prática de 200 e tal crimes ou 500 e tal crimes.

32. Pelo que, entendemos que, para a boa aplicação do Direito, tem que ser sanados os vícios existentes e que foram apontados por este mesmo Tribunal

33. Não havendo matéria de facto suficiente para determinar o número de crimes, teria que ser aplicado o princípio do in dúbio pro reu e, assim, a moldura penal a ter em conta terá, eventualmente, como limite mínimo 4 anos e limite máximo 15 anos e 8 meses.

34. Neste enquadramento, e face à apreciação dos factos e da personalidade do arguido, entendemos ser adequada a pena de 12 anos de prisão.

35. Caso assim não se entenda e sem prescindir,

36. Salvo o devido respeito por quem julga, que é muito, o tribunal ponderando a culpa do agente, as exigências de prevenção da prática de futuros crimes, bem como circunstâncias que se verifiquem contra ou a seu favor, como determina o artigo 71.º do C.P. estabeleceu como adequada penas supra referidas (que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais).

37. Em cúmulo Jurídico, o arguido foi condenado numa pena única de vinte e quatro anos de prisão, o que nos parece manifestamente excessivo.

38. A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

39. Após determinar as penas parcelares, é construída a moldura do concurso que, no caso dos presentes autos tem como limite mínimo os 7 anos e limite máximo os 25 anos, nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do CP.

40. Além da culpa e das exigências de prevenção, o referido artigo, no seu n.º 1, acrescenta que devem ainda ser tidos em conta para a determinação conjunta da pena os factos e a personalidade do agente.

41. Nos presentes autos, verificamos que, ao longo de 6 anos, e desde que a menor BB tinha 12 anos de idade (cf. facto provado 20), praticou diversos crimes sexuais contra a menor, de forma persistente e em ambiente onde supostamente estaria protegida — o seu lar.

42. Bem como as restantes actuações do arguido para com a sua companheira e filha, tudo no núcleo íntimo e familiar.

43. Todavia é preciso também ponderar que o arguido está social e laboralmente inserido e também não apresenta antecedentes criminais -— o que deve ser tido em conta na determinação da medida da pena.

44. No meio onde residia era tido como trabalhador, um individuo sem vícios.

45. Em ambiente prisional, o arguido tem mantido um comportamento adequado e sem incidentes (cf. facto provado 105 cc)).

46. O arguido, actualmente, tem 54 anos de idade, o que, ao manter-se a condenação do

mesmo na pena única de 24 anos de prisão, sairá em liberdade com 74 anos de idade.

47. É verdade que são elevadas as exigências de prevenção geral, afastando a condenação do limite mínimo, mas também as exigências de prevenção especial são notórias, pois dever-se- á atender ao efeito que a pena terá sobre o arguido e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do mesmo na sociedade, pelo que consideramos a pena de 15 anos de prisão como necessária perante as exigências de prevenção geral e especial, e adequada à culpa do arguido.

48. Apesar de tudo o que supra se disse, voltamos a apontar o total desapreço da 1.ª instância e do tribunal da relação de Lisboa pelo Acórdão de 16.12.2021 proferido por este Venerando Tribunal, no que diz respeito aos vícios que apontou.

49. Vícios esses que, pelo facto de não terem sido supridos, se mantém – mesmo que a decisão transite; estão lá, para quem os quiser ver.

50. E sinceramente, custa-nos ver como os factos que V.ªs Ex.ªs consideram insuficientes para a decisão, são os mesmos que fundamentam a condenação do arguido, mesmo passando por um grau de recurso.

51. Também a invocação de vícios e nulidades ao próprio tribunal que decidiu que tais vícios e nulidades não se verificaram, me parece sempre uma situação de venire contra factum proprium.

52. Se no acórdão, o tribunal da relação me diz que os vícios e nulidades que invoquei em sede de recurso não se verificam de que serve voltar a invocar tais vícios e nulidades pela segunda vez ao mesmo Tribunal?

53. No caso dos presentes autos, tudo isto rasa a uma injustiça.

54. Nestes casos, ao não se permitir a apreciação desses vícios por um tribunal superior, parece-nos contrários ao espírito da nossa Constituição, apesar de o entendimento ser no sentido de que não há violação da Constituição - artigo 32.º, n.º 1 - porque está assegurado pelo menos um grau recurso.

55. Nessa medida, apenas fica reservado o acesso a este Tribunal para situações de grande gravidade.

56. Se é assim, então não é grave a condenação de um arguido em 200 ou 500 crimes, quando verificamos que a matéria de facto provada não permite tais condenações? Não é de grande gravidade encarcera uma pessoa por crimes que não foram possíveis provar por insuficiência de matéria de facto.

57. Porém, também não podemos deixar de apontar a astúcia das instâncias inferiores, no sentido de condenar o arguido em penas de prisão parcelares todas elas cirurgicamente abaixo dos 8 anos, pelos crimes que temos focado -crime de abuso sexual de crianças agravado e crime de abuso sexual de menores dependentes agravado.

58. É por outro lado, reivindicamos que se faça uma interpretação idêntica entre os artigos 432.º, n.º 1, alínea c) e o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP.

59. Na interpretação do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), permite-se que o Supremo Tribunal de Justiça possa apreciar o recurso, mesmo que as penas parcelares sejam inferiores a 5 anos, mas desde que a pena concreta aplicada ao arguido seja superior a 5 anos, mas na situação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), aquele Tribunal só pode apreciar recursos em que as penas quer parcelares, quer a pena única concreta sejam ambas sempre superiores a 8 anos.

60. Consideramos estar perante uma violação dos princípios da interpretação da lei, ao interpretar as situações supra referidas de maneiras diferentes, quando o que está em causa é a recorribilidade das decisões.

61. Ora esta interpretação é a que se coaduna com a necessidade de atender aos factos e à personalidade do arguido para determinação da pena única, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do CP.

62. Se o Tribunal, para apreciar a pena única, tem que atender aos factos que levaram àcondenação do arguido e, se esses factos consubstanciam vícios ou nulidade, estará a ponderar esses mesmos factos com vícios e nulidades para determinar essa pena única.

63. Pelo exposto, violou o tribunal os artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 172.º, n.º 1 ex vi artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 77.º, n.º 1 e 2; 30.º, n.º 1, 2 e 3; 71.º; 40.º, todos do Código Penal e ainda o artigo 127.º; 434.º, 432.º. 400.º, n.º 1, alínea f); do CPP; bem como o artigo 32.º da CRP e artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 38/87, de 23/12 e artigo 4.º, n.º 2 da Lei 3/99, de 13/01.

Termos e face ao exposto, deverá o acórdão recorrido ser substituída por outro que condene o arguido na pena única de 12 anos de prisão, ou caso assim não se entenda e ser prescindir, seja o arguido condenado na pena única de 15 anos de prisão, nos termos supra expostos, fazendo-se assim justiça.”

I.4. Veio resposta do MP, rematando-a conclusivamente assim:

“1. O Acórdão recorrido não enferma de qualquer nulidade insanável.

2. O Acórdão não sofre do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.

3. As penas parcelares e pena única aplicada mostram-se justas e acertadas.

4. A ser assim, a argumentação apresentada pelo Recorrente não tem qualquer fundamento e como tal o douto Acórdão recorrido não merece nenhum reparo ou censura.

Nestes termos, ao negarem provimento ao recurso e manterem o douto Acórdão sob recurso.”

I.5. Emitiu parecer o Sr PGA. Onde afirmou:

“A, esse propósito, também nos limitaremos a remeter para a resposta do Ministério Público e para o bem fundamentado acórdão recorrido, parecendo-nos evidente que a extrema gravidade dos factos dados como provados e analisados conjuntamente e, por outro lado, o fortíssimo grau de censura que deve recair sobre a personalidade desvelada pelo arguido justificam, inteiramente, a pena única de 24 anos de prisão em ficou condenado.”

I.6. Foi cumprido o artigo 417, nº 2, do CPP. Não veio resposta.

I.7. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Factos

Vem dada como prova a seguinte factualidade:

“1. O arguido AA e DD mantiveram, desde o ano 2001 e até ... de maio de 2019, relação amorosa com partilha de mesa, cama e habitação, como se de marido e mulher se tratasse, ainda que tenham deixado de dormir na mesma cama em data não apurada de 2014, passando a dormir em quartos separados desde data não apurada de 2018.

2. Na constância da relação entre o arguido e DD, nasceram:

- em ... de ... de 2005, CC;

- em ... de ... de 2008, EE, que são filhas do casal.

3. BB nasceu em ... de ... de 2020, sendo filha de DD e de FF.

4. BB integrava, igualmente, o agregado familiar do arguido e de DD desde o seu primeiro ano de idade.

5. O arguido era a figura masculina que BB identificava como seu pai, e a quem chamava de pai, chamando-a, o arguido, de filha.

6. O arguido, desde que passou a relacionar-se com DD, e até à denuncia dos factos, que se afirmou, perante BB, DD e perante as suas filhas CC e EE, como sendo investido de poderes mágicos e adivinhatórios.

7. Tais poderes eram-lhe conferidos por um livro etéreo, ao qual o arguido permanentemente se referia, livro com o qual frequentemente encenava comunicar, e em cuja existência fez acreditar DD, BB, CC e EE.

8. As encenações de conversas com o livro aconteciam diariamente e por várias vezes ao longo do dia, na presença das suas filhas, enteada e companheira, sendo que o arguido afirmava ter um “fone” instalado no ouvido, por dentro da pele, através do qual aconteciam tais conversas e a que se ligava permanentemente e a qualquer momento.

9. Pelo menos por uma vez, o arguido instou mesmo a sua companheira, filhas e enteada, a que lhe tocassem na orelha para que sentissem o “fone”, afirmando-lhes que lhe chamava “fone” mas que era uma qualidade que o arguido possuía de nascença.

10. O arguido afirmava, também, ter uma outra filha, de nome GG, a residir no ..., e que esta sua filha partilhava dos mesmos poderes mágicos e adivinhatórios conferidos pelo livro e que o arguido possuía, porquanto havia cumprido todos os objectivos que este impunha, o que lhe permitiu ter uma vida boa.

11. O arguido encenava frequentemente ligar-se a GG através do “fone”, com quem conversava na presença das suas filhas, enteada e companheira.

12. O arguido fazia acreditar a sua companheira, as suas filhas e a sua enteada que o livro era muito poderoso e que por causa desse livro sabia tudo sobre a vida destas.

13. De tal modo que, mormente BB e DD, se sentiam permanentemente vigiadas e controladas pelo arguido, e lhe contavam tudo sobre as suas vidas, pois que acreditavam que se não o fizessem o arguido saberia por força dos seus poderes mágicos, temendo que este, sentindo-se traído, pudesse ser violento.

14. O arguido também dizia que se DD, BB e as filhas do casal “fossem verdadeiras” o arguido “lhes passaria a magia”, dando-lhes “acesso ao livro”, pelo que estas ganhariam iguais poderes superiores e poderiam ter tudo o que quisessem, enriquecer e melhorar de vida, no que estas, até dada altura acreditaram e, após, fingiam acreditar, por medo das consequências se desmentissem o arguido.

15. E concretamente quanto aos seus poderes mágicos, o arguido fazia acreditar que tinha o poder de se desmaterializar e materializar entre diferentes divisões da casa, bem como de fazer reaparecer objetos, encenando tais performances para impressionar a sua companheira, filhas e enteada, o que conseguiu, pois que estas obedeciam aos seus intentos.

16. Ademais, o arguido também era violento, gritando, partindo e batendo com objetos, tendo, assim, sob a influência da aparência e performance dos referidos poderes mágicos, suportados pela sua personalidade violenta e manipuladora, praticado os seguintes actos:

17. O arguido fazia BB acreditar, designadamente, que recebia ordens do livro para a prática de actos sexuais com a mesma, actos que tinham de praticar pois que senão BB seria atacada por doenças graves ou outras coisas más, sendo ela a culpada.

18. Por outro lado, se BB obedecesse, o livro atribuía pontos, o que era positivo.

19. BB inicialmente recusou-se a fazer a vontade do arguido, dizendo-lhe que não queria manter com ele relações sexuais, mas acabou por ceder à vontade do arguido, o que somente aconteceu por ele lhe fazer crer que era muito importante, de acordo com o tal livro, que mantivessem relações sexuais, pois que se impunha que cumprissem com “objetivos” determinados pelo livro e que passavam pela manutenção de relações sexuais entre ambos.

20. Assim, desde data não concretamente apurada do Verão do ano de 2012, que o arguido, cerca de três vezes por semana, manteve relações sexuais com BB, em regra, nos seguintes moldes, e sempre com penetração vaginal:

21. O arguido chamava BB ou ia ter com esta à cama dela, despia-se a si e a BB, beijáva-a, depois introduzia-lhe o seu pénis erecto na boca e, após, deitando-se sobre ela ou sobre as suas costas penetrava-a, introduzindo os seus dedos na vagina de BB e, de seguida, o seu pénis erecto, aí fazendo movimentos de vaivém até momento prévio à ejaculação, altura em que retirava o seu pénis da vagina da ofendida e ejaculava.

22. Tais práticas sexuais perduraram enquanto BB coabitou com o arguido, até Maio de 2019, tendo ainda se repetido por uma última vez em início de Maio de 2019, em casa arrendada por BB, já após a sua saída da casa do arguido.

23. Os actos sexuais descritos, enquanto BB coabitou com o arguido, ocorriam normalmente à noite, e não obstante a presença de outras pessoas na casa, tendo lugar ora na cama de BB, que até ao ano de 2018 se situava numa sala, onde também dormiam as suas irmãs, ora no seu próprio quarto após o ano de 2018, ora no quarto do arguido, ora num espaço da habitação designado por cave.

24. Por vezes, a conduta do arguido descrita em 20. e 21. iniciava-se estando BB a dormir, acordando esta quando sentia o arguido tocar-lhe.

25. O arguido nunca usou preservativo.

26. Antes de tais práticas, o arguido já fazia anunciar a sua intenção, encenando comunicar com o livro e usando tom de voz que BB pudesse ouvir, sendo igualmente ouvido por CC, dizendo que “tinham de cumprir objetivos”.

27. Noutras ocasiões o arguido dizia diretamente a BB, na cozinha ou no quarto, que “tinham de cumprir objetivos ou perderiam pontos, e que isso seria muito mau” ou então apenas se abeirava de BB e procedia do modo descrito, dizendo “vamos fazer”.

28. Por vezes o arguido, aparentando falar com o livro, dizia que tinha corrido tudo bem, que os objetivos tinham sido cumpridos.

29. Quando BB, perante a indicação, pelo arguido, de que nessa noite teriam de manter relações sexuais, se lhe opunha, dizendo que tinha de estudar, aquele ficava exaltado, falava alto e batia com objetos dentro de casa.

30. O arguido, igualmente adoptava outras atitudes de intimidação de BB, ameaçando-a deixá-la sem dinheiro; proibindo-a de ter amigos ou namorados, e obrigando-a a entregar-lhe todo o dinheiro que esta ganhava quando trabalhou no Hotel ....

31. Em data não concretamente apurada, mas certamente no decurso do ano de 2018, no interior da habitação da família, à data sita na Rua ..., na ..., BB encontrava-se na sala a ver televisão, sentada no sofá juntamente com o arguido.

32. Nessa altura, BB disse ao arguido que tinha começado a namorar com um rapaz.

33. Acto contínuo, o arguido, irado, colocou-se sobre aquela e desferiu-lhe diversas pancadas com as mãos e com o comando da TV, na cara, na barriga, nos braços e no olho.

34. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido BB teve hematomas no corpo, designadamente nos braços e num dos seus olhos.

35. Em início de Maio de 2019, BB decidiu, então, sair de casa e passou a residir junto de uma colega de trabalho, próximo da junta de freguesia de ..., na cidade da ....

36. Em data não concretamente apurada, mas nos dias imediatamente seguintes àquele em que BB saiu de casa do arguido, que este se dirigiu à nova casa de BB, e aí, após a instar a manter consigo relações sexuais, praticou os actos sexuais descritos em 21.

37. O arguido, consumido pelo seu carater controlador e ciumento e não se conformando com a situação de independência de BB, passou, desde que aquela saiu da residência da família, a rondar com frequência o local de trabalho de BB, à data no restaurante ..., na cidade da ..., e também as várias residências que a mesma foi tendo.

38. Em data não concretamente apurada, mas igualmente no início de Maio de 2019, o arguido foi procurar BB na residência onde esta, à data, se encontrava, e aí, irado, quis tirar desforço junto de BB por esta estar a residir com uma colega, ali provocando “um escândalo”.

39. De tal modo que a colega de quarto de BB, igualmente sua colega de trabalho, perturbada pelo comportamento do arguido, em dia não apurado mas após o episodio descrito em 38., pediu a BB que esta encontrasse outro local para residir.

40. Assim, em data não concretamente apurada, mas uns dias após o descrito em 39. passou a residir em quarto arrendado na Rua ..., na ..., sendo sua proprietária HH.

41. Também nesse local passou o arguido a procurar BB frequentemente e contra a vontade desta.

42. Em data não apurada, mas certamente situada no mês de Maio de 2018 e anterior à detenção do arguido (em ... .05.2019), este, munido de uma chave da casa onde BB habitava, mas sem autorização desta para a deter e usar, entrou nesse domicílio e dirigiu-se para o quarto de BB.

43. Tendo aí entrado, o arguido escondeu-se debaixo da cama, onde permaneceu aguardando a chegada de BB.

44. Quando BB entrou no quarto, o arguido surgiu, saindo debaixo da cama, mas querendo fazê-la crer que se tinha ali materializado e aparecido por força dos seus poderes mágicos e do “livro”.

45. Nessas circunstâncias, o arguido insistiu para que BB voltasse para casa, o que esta não fez.

46. Noutra ocasião também em data não concretamente apurada do mês de Maio de 2019 e anterior à detenção do arguido (em ... .05.2019), este uma vez mais, munido de uma chave da casa onde BB habitava, e sem a sua autorização ou de HH, abriu a porta da habitação sita na Rua ..., assim entrando na habitação de HH e de BB.

47. Sendo surpreendido e confrontado, já no interior da casa, por HH que lhe ordenou que se retirasse pois que não podia estar ali, o arguido alegou que queria deslocar-se ao quarto da sua filha, pois que esta lhe tinha pedido, estando, assim, autorizado por esta a ali permanecer, facto que não correspondia à verdade.

48. Nessa sequência, HH solicitou ao arguido que este lhe devolvesse a chave que havia usado para entrar naquele domicilio e se retirasse, o que o arguido fez.

49. No dia 17 de maio de 2019, após sair do seu trabalho, BB dirigia-se a casa de sua mãe, quando surge o arguido, conduzindo a sua motorizada elétrica, e fazendo sinal a BB para que esta parasse, ao que a mesma acedeu.

50. O arguido acusou, então, BB de não ter estado a trabalhar, de estar bêbeda e de que andava a sair com outros rapazes, dizendo-lhe que tinham de conversar em casa da ofendida.

51. BB negou, e disse, dirigindo-se o arguido, "se queres conversar vamos conversar na casa da mãe”, dirigindo-se, nesse instante, para a casa sita na Rua Visconde ....

52. Ali chegados ambos, e estando BB em estado de grande nervosismo por ter desobedecido ao arguido, este enraivecido com a recusa de BB, muniu-se de um capacete, ergueu-o no ar, fazendo menção de a atingir e, temendo ser atingida, BB fugiu.

53. O arguido era para com a sua companheira DD muito possessivo e ciumento.

54. Em data não apurada, o arguido ordenou a DD que desinstalasse o aplicativo “facebook” do seu telefone, alegando que as mulheres não podem ter “facebook porque, nas palavras deste, “é uma linha de perdição”.

55. O arguido, ao longo dos anos em que se relacionou com DD como se fossem marido e mulher, não permitia que DD se relacionasse com amigas, dizendo-lhe que ninguém era amigo de ninguém e que a companheira só podia confiar nele, porque era ele o único verdadeiro no mundo.

56. Por diversas vezes, o arguido imputava a DD a manutenção de relações extra-conjugais com outros homens, dizendo-lhe que era o livro quem lhe revelava essas traições.

57. O arguido, criando frequentemente pretextos de discussão com DD, falava-lhe em tom de voz gritado, causando-lhe medo e perturbação, bem como às filhas desta, que se encontravam presentes.

58. Frequentemente o arguido munia-se de objetos de cozinha, que brandia enquanto prometia bater ou matar DD.

59. Era também o arguido quem exercia o controlo sobre o dinheiro da família.

60. De tal modo que, sendo DD segunda titular de conta bancária conjunta com o arguido, este destruiu o cartão de débito bancário da segunda titular da conta.

61. Nos períodos em que DD trabalhava, o arguido exigia-lhe que esta lhe entregasse todo o dinheiro que ganhava.

62. Assim, mesmo para as despesas de alimentação, DD tinha de pedir ao arguido que este lhe desse pequenas quantidades de dinheiro para poder ir ao supermercado.

63. Ao longo destes anos, DD nunca adquiriu peças de roupa para si ou para as suas filhas, pois que aquela ficava com as roupas de BB, e as suas filhas usavam roupas oferecidas pela comunidade.

64. Em data não concretamente apurada, mas por volta do ano 2001, sendo BB ainda criança de colo, DD foi visitar uma amiga sua, na cidade da ..., levando BB consigo.

65. Nessa altura, DD ligou ao arguido para lhe comunicar onde se encontrava, tendo este, de seguida, apanhado um táxi e se deslocado para junto da mesma. Ai chegado, o arguido disse a DD para regressar consigo para casa, o que esta fez.

66. Uma vez em casa, o arguido disse em tom autoritário a DD que não lhe tinha concedido autorização para ir para outras casas e que a família dela era ele.

67. Depois, o arguido muniu-se de uma garrafa de vinho, que partiu e encostou ao pescoço de DD

68. De seguida, o arguido apertou o pescoço a DD e desferiu- lhe repetidas bofetadas e pontapés pelo corpo todo.

69. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido resultaram diversos hematomas no corpo de DD, bem como lacerações e feridas sangrantes no interior da sua cavidade bucal e lábios.

70. Em data não concretamente apurada, mas certamente no decurso de 2016, o arguido dirigiu-se a DD, que se encontrava na cozinha, e disse-lhe, com foros de seriedade, que ia matá-la, pois que DD não era uma pessoa certa e só lhe mentia.

71. Nessa sequência, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha e investiu-a, por duas vezes, contra o corpo de DD, atingindo-a no abdómen, do lado esquerdo e na barriga da perna, causando-lhe sangramento nos dois locais.

72. Ao mesmo tempo, o arguido dizia a DD, com foros de seriedade, que só lhe apetecia cortar-lhe o pescoço.

73. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido, restaram em DD, com carater permanente, duas cicatrizes de feridas corto-perfurantes, sendo uma no abdómen com cerca de 5,5cm e orientação transversal e outra na face posterior da perna esquerda com idênticas dimensões.

74. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, o arguido, irado por DD ter ido ao multibanco sozinha, dirigiu-se à mesma e desferiu-lhe um soco que lhe arrancou um dente.

75. Em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima a Maio/2019, a pretexto de que DD mantinha uma relação extraconjugal, o arguido desferiu pontapés e socos no corpo de DD, atirou-a contra a parede, deitou-a ao chão, passou com os seus pés por cima do corpo de DD e, de seguida, foi buscar uma pá de ferro.

76. Já munido da referida pá de ferro, o arguido atingiu DD com a mesma nas costas, exigindo-lhe que esta confessasse que mantinha uma relação extraconjugal.

77. DD perante a actuação do arguido pedia-lhe repetidamente que cessasse a mesma, o que este não fez, antes se tendo ainda munido de uma faca de cozinha e a encostado ao pescoço de DD, ao mesmo tempo que lhe dizia “tu hoje não sais daqui viva, o teu dia chegou, é hoje, hoje acabo contigo”.

78. Pela violência e intensidade das descritas agressões DD ficou aterrorizada e convicta, naquele momento, que o arguido, atuando do modo descrito, a iria matar.

79. O arguido somente cessou com as agressões quando DD, exausta pelas agressões, lhe disse que sim, que mantinha uma relação com outro homem, o que não correspondia à verdade e o que somente fez para o arguido cessar com as agressões.

80. Em data não concretamente apurada, mas situada entre os anos de 2018/2019, também no interior da residência comum do casal, o arguido agarrou DD pelo pescoço e empurrou-a, dirigindo-lhe a seguinte expressão, na presença da sua filha CC: “queres ver eu cortar-te o pescoço e atua filha ver a tua cabeça a rolar no chão?”

81. O arguido afirmava perante DD, por várias vezes, e com foros de seriedade, que “as mulheres vítimas de violência doméstica deviam morrer todas, se justiça fosse feita”, porque enquanto os homens estão a trabalhar elas estão a «escorneá-los»”, assim a fazendo temer pela sua vida.

82. O arguido prometeu em diferentes ocasiões a DD, com foros de seriedade, que a matava.

83. Também lhe prometeu, em diferentes ocasiões, que se esta apresentasse queixa contra si vingar-se-ia nas filhas, matando-as ou cortando-lhes um braço ou uma perna.

84. As descritas agressões foram, por vezes, presenciadas e/ou ouvidas pelas filhas de DD, que por vezes a defendiam colocando- se entre ela e o arguido, e ocorreram sempre no domicilio comum do casal.

85. Após a prática das agressões físicas, o arguido referia-se às mesmas na frente das suas filhas, companheira e enteada, reconhecendo-as e tomando-as como exemplo de correção do mau comportamento de DD ou de BB.

86. Em data não concretamente apurada, mas certamente em Maio de 2019, no interior da residência da família, o arguido dirigiu-se à sua filha CC, dizendo-lhe que como BB já não residia naquela casa e já não ligava ao livro, seria a CC quem teria de cumprir “os objetivos”.

87. O arguido nessa sequência propôs, então, a CC um jogo em que lhe indicava letras a que correspondiam palavras e representando atividades, devendo CC escolher uma dessas letras.

88. De entre as várias letras existentes, uma delas era o “S”, que o arguido sugeriu correspondesse à palavra/actividade “sexo”.

89. CC escolheu a letra “T”, que correspondia à actividade “tomar banho na praia”

90. O arguido disse então que a letra “T” poderia ser tomar banho a meio da noite em água fria ou no mar, e que por isso CC deveria preferir a letra “S” de fazer sexo.

91. CC manteve a escolha da letra “T”, dizendo que preferia tomar banho na praia, ao que o arguido proferiu a expressão: “afinal esquece que isto não vai resultar”

92. Em data não concretamente apurada, mas também em Maio de 2019, o arguido, durante a noite, dirigiu-se ao quarto de CC e acordou-a dizendo-lhe que esta se tinha dirigido ao arguido estado de sonambulismo e que lhe tinha “tocado no órgão”, querendo fazer CC acreditar que esta tinha tocado no pénis do seu pai.

93. Volvidos cerca de 15 minutos, e estando CC ainda acordada, sentiu movimento no corredor, pelo que abriu os olhos e ouviu o arguido novamente no interior do seu quarto, que lhe disse “voltaste a vir à minha cama e a tocar no meu órgão mas não vou contar nada à tua mãe”.

94. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de praticar os actos sexuais descritos com BB, obrigando-a a suportar tais actos por cerca de três vezes por semana, mesmo sabendo que, em razão da idade, BB não compreendia adequadamente o alcance dos mesmos, sendo levada, pelo arguido, a acreditar que tais práticas eram normais e obrigatórias.

95. O arguido, abusando da ingenuidade e imaturidade de BB até aos seus 14 anos de idade e após os 14 anos da menor e até aos seus 18 anos de idade exercendo também sobre ela o seu ascendente, decorrente da relação familiar que mantinham e de que, a par da coabitação com a ofendida BB, o arguido se aproveitou, e fazendo-a acreditar na existência de um livro mágico que prescrevia e determinava a bondade e obrigatoriedade da manutenção daquelas relações sexuais, agiu com o propósito logrado de satisfação dos seus desejos sexuais, mesmo ciente a cada tempo da idade que BB tinha.

96. Ainda, entre os 18 anos de BB e o início de Maio de 2019, e usando do ascendente e autoridade adulta que possuía no âmbito da relação familiar que mantinham, mais levando-a a acreditar que possuía poderes mágicos e que algo de mal lhe aconteceria se não actuasse nos termos por si ordenados, e, bem ainda, dominando-a por via da exibição da sua personalidade violenta e das agressões a DD, o arguido agiu com o propósito de intimidar e amedrontar BB, assim a constrangendo à prática dos actos sexuais descritos, obrigando-a a suportar tais actos cerca de 3 vezes por semana, até Maio de 2019 (data em que a ofendida sai de casa) e, ainda, por uma última vez em início de Maio de 2019, na casa para onde BB foi morar, fazendo-o para satisfação, conseguida, dos seus desejos sexuais e libidinosos.

97. O arguido coabitou com BB até Maio de 2019, e bem sabendo que esta via em si o equivalente da sua figura paterna, por ser companheiro da sua mãe, pai das suas irmãs uterinas e consigo residir desde o primeiro ano de idade, aproveitou-se da relação de coabitação e de dependência afetiva e de autoridade que mantinha com BB.

98. O arguido agiu ainda de modo livre, deliberado e consciente de causar dor e sofrimento físico a BB. Sabia que o seu comportamento era tão mais censurável por força do motivo torpe que fundou a agressão que lhe desferiu, e bem ainda por força do dever de proteção e de cuidado que recaía sobre si, enquanto padrasto de facto de BB, sendo por esta tratado como pai, e ainda assim quis e agiu do modo descrito.

99. O arguido agiu, ainda, livre e deliberadamente, entre o inicio de Maio de 2019 e o dia 21 de Maio de 2019, com o propósito alcançado de impor a sua presença junto à residência e ao local de trabalho de BB, e de a vigiar e perseguir, bem como de forçar a comunicação com a mesma, bem sabendo que agia contra a vontade desta e querendo, com a sua descrita conduta, perturbar, como perturbou, a sua paz, sossego e tranquilidade, bem como o seu desempenho profissional e relações de amizade da ofendida.

100. O arguido agiu, ainda, livre, deliberada e conscientemente, com o propósito alcançado de, por duas vezes, entrar e permanecer no interior da habitação de BB, contra a vontade e sem autorização desta, querendo e logrando violar a reserva de intimidade desta, usando, para o efeito, uma chave da residência de BB para cuja posse e uso não tinha autorização.

101. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito logrado de exercer poder sobre e de dominar DD, sua companheira, querendo causar-lhe, como causou, medo, inquietação, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade pelo recurso reiterado a ameaças e a agressões físicas e psicológicas;

102. O arguido agiu, ainda, livre, deliberada e conscientemente sobre a sua filha CC através de conversa de teor sexual, pela proposta de um jogo com a sugestão de prática de actos sexuais, numa ocasião, e através de conversa de cariz pornográfico, aludindo a práticas masturbatórias, em outra ocasião.

103. Sabia o arguido que a sua conduta era tão mais censurável pelo facto de CC ser sua filha, e, por isso, sua dependente, e consigo coabitar, violando, com a descrita conduta, o dever de proteção e securizante que sobre si recaia enquanto pai, movendo-o apenas a satisfação, conseguida, dos seus desejos sexuais e libidinosos.

104. Sabia o arguido que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

105. Sobre os elementos de caracterização pessoal do arguido apurou-se a seguinte factualidade:

a) O arguido AA, natural da ..., é o último de uma fratria de 7 elementos, sendo oriundo de um núcleo familiar de baixa condição socioeconómica e cultural (pai: trabalhador rural; mãe; doméstica; ambos analfabetos).

b) Refere ter usufruído de uma dinâmica intrafamiliar estável e funcional, num processo liderado pela figura materna, que mantinha com a fratria, mas sobretudo com o arguido, uma atitude disciplinar dialogante.

c) Tal estratégia, segundo o próprio, ficou a dever-se ao que definiu como adequabilidade atitudinal e comportamental que sempre o caracterizou, não questionando as orientações das figuras adultas de referência, cumprindo-as corretamente e participando na angariação do sustento familiar, desde os 12 anos até aos 28 anos, idade com que se autonomizou do agregado de origem.

d) Sem reportar qualquer histórico de vitimização, o arguido definiu como positiva a ligação ao agregado de origem, o que parece ter determinado a inexistência de dificuldades no vínculo emocional estabelecido com os diferentes elementos que o compunham.

e) Contudo, o arguido deixou de ter relação com os familiares de origem, há cerca de 20 anos, após o falecimento dos pais, por motivos que associou à perda dos contactos com a fratria, na sequência da sua transferência da ..., em 1998.

f) A relatada precariedade económica da família esteve na origem de algumas privações materiais, minimizadas, segundo o próprio, pela integração precoce da fratria no trabalho agrícola, junto do progenitor.

g) Este facto, aliado, por um lado, à fraca motivação do arguido para as atividades escolares e, por outro, ao reduzido investimento dos pais na componente escolar dos filhos, uma vez priorizada a angariação dos meios de subsistência, condicionou o arguido ao nível escolar, tendo o mesmo abandonado a escolaridade obrigatória com cerca de 12 anos de idade, após ter concluído apenas o 1.° ano do 1.° ciclo.

h) Integrou, mais tarde, o complemento de escolarização, mediante intervenção da Agência para a Qualificação e Emprego, na altura já radicado na ..., desde 1998, e na sequência do confronto com um período de desemprego.

i) Não chegou a concluir esse objetivo por ter, entretanto, arranjado trabalho na construção civil, ramo onde desenvolveu, desde os 18 anos, e maioritariamente, a sua atividade profissional, com uma incursão de trabalho no ..., onde permaneceu 3 anos (dos 23 anos aos 26 anos), com regresso à Ilha de origem.

j) Caracterizou o seu percurso laboral como algo instável, dado terem predominado períodos de trabalho sem qualquer vinculação contratual, com registo de períodos de desemprego, na sua maioria de curta duração, colmatados mediante a realização de tarefas naquele ramo, a título de biscates.

k) Referiu não ter estabelecido qualquer relacionamento afetivo até 2001, ano em que encetou relação de tipo conjugal com DD (alegada vítima de violência conjugal), com quem viveu até maio de 2019.

l) Desse relacionamento possui duas filhas, agora com 14 e 12 anos de idade, respetivamente, num contexto familiar que incluía também a enteada do próprio (BB), agora com 20 anos de idade, fruto de um primeiro relacionamento de DD.

m) À data dos factos, que abarca os anos de 2012 a 2019, o arguido integrava aquele agregado, residindo num apartamento, de tipologia 1, situado na Cidade ..., em condições habitacionais muito redutoras em termos de privacidade, se levarmos em conta o número de elementos que enquadrava o agregado em função da exiguidade do espaço habitacional disponível.

n) Registou-se, no entanto, a partir de 2018, a alteração positiva das condições habitacionais, uma vez que o casal adquiriu uma moradia, situada, igualmente, na Cidade ..., que, dispondo de 4 quartos, sala, cozinha e instalações sanitárias, permitiu à família passar a usufruir de adequadas condições de privacidade.

o) Em qualquer dos espaços habitacionais, o arguido, por se ter confrontado com alguns períodos de desemprego/inatividade, dedicava-se ao cultivo de alguns produtos hortícolas, nos pequenos espaços circundantes às habitações onde residiu, bem com à realização de tarefas de conservação/beneficiação das mesmas, referindo, neste contexto, ter privilegiado a sua permanência nos espaços habitacionais, zonas de reconhecido conforto para si.

p) Porém, a relação do casal assentou, a partir de 2014, no distanciamento afetivo entre ambos, situação justificada pelo arguido através da tendência da ex-companheira para o isolamento, que associou à entendida dependência daquela para navegar nas redes sociais.

q) Resultou, assim, e ainda no primeiro contexto habitacional, o facto do próprio ter deixado de partilhar o leito com DD, limitando, de forma mais contundente, as condições de privacidade do agregado, uma vez que determinaram que o arguido se recolhesse no espaço de ligação com o único quarto, a sala, cozinha e casa de banho.

r) Aquele distanciamento do casal persistiu até 2019, ano em que o arguido foi preso preventivamente à ordem do presente Processo, mas que foi antecedido pela vivência do agregado no último contexto habitacional (desde 2018), onde aquelas condições melhoraram significativamente, dado o espaço disponibilizar 4 quartos, sala comum, cozinha e instalações sanitárias completas.

s) O arguido sublinha, contudo, ter sempre respeitado as opções da ex-companheira a este nível, o que não invalidou, ainda segundo o próprio, a manutenção de alguma intimidade com a DD.

t) No que concerne às relações intrafamiliares, refere ter procurado promover um bom ambiente intrafamiliar, mediante, por exemplo, a participação da família em atividades consideradas lúdicas, nomeadamente mediante a consulta de um “livro etéreo” que lhe conferia, supostamente, poderes de adivinhação, mas que se destinava tão só, e na sua ótica, a passar agradavelmente o tempo livre com a família.

u) Relata ainda ter assumido, de forma responsável, as responsabilidades parentais, quer perante as duas filhas, como também perante a enteada, adotando estratégias disciplinares, preferencialmente, dialogantes/indutivas, contornadas pelo afeto que por elas sentia.

v) Embora o seu argumentário seja, à partida, o adequado, o arguido, através do mesmo não deixa de indiciar alguma imaturidade emocional, defendendo um estilo de funcionamento reforçado/inculcado por uma perspetiva social e cultural de alguma dominância em termos conjugais/familiares.

w) Trata-se ainda de um indivíduo que aparenta ter dificuldade em lidar com situações geradoras de pressão/frustração, agindo, tendencialmente, de forma ambígua, ora calmo e cordato, ora aparentemente controlador, com indiciárias limitações de autocontrolo.

x) Ao posicionar-se como filho exemplar, como homem de família honesto e impoluto, como pai responsável e sem mácula, o arguido não se revê nos termos da acusação, imputando responsabilidades, por um lado, ao comportamento das menores em causa, considerado pelo arguido socialmente desajustado e, por outro, à ex-companheira, a quem se refere como permissiva face às filhas.

y) AA é primário na ligação ao Sistema de Administração da Justiça, sendo conotado no meio como indivíduo trabalhador, desvinculado de comportamentos aditivos e com um quotidiano voltado para o convívio com a família constituída.

z) O arguido demarca-se dos factos dos quais está acusado, percecionando-se como vítima das entendidas atitudes policiais discricionárias e das consideradas falsas declarações dos vários elementos da família.

aa) Refere que a atual situação de reclusão preventiva lhe tem causado desconforto emocional e tem concorrido para problemas acentuados ao nível económico, tanto mais que o incapacitam de responder, de forma responsável, aos compromissos bancários contraídos com aquisição de casa própria, operação realizada ainda na constância da relação com DD.

bb) Aparentou uma certa ansiedade com a aproximação da data do julgamento, centrando-se nas eventuais consequências do Processo para si, projetando, assim, uma reduzida empatia para com as presumíveis vítimas.

cc) Em contexto prisional mantém um comportamento de acordo com as normas institucionais, não recebendo visitas, por via da rutura com a família constituída e pelo seu afastamento geográfico e, de alguma forma, afetivo, dos irmãos.

106. O arguido não tem qualquer condenação averbada no seu certificado de registo criminal.”

II.2. Foi a seguinte a motivação da matéria de facto:

“Quantos aos factos provados em nos pontos 1 a 16, 31 a 93, 96, 99 a 104 e 105 e não provados das alíneas v) a xv) dos factos não provados os mesmos já estão fixados de acordo com a decisão proferida em 1a instância pelo Acórdão proferido em 21.01.2021 e confirmado pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 12.05.2021. O seu elenco nos factos provados e não provados tem relevo porque neste novo julgamento iremos ainda determinar a pena única conjunta.

A convicção do tribunal, no que respeita aos factos submetidos a este novo julgamento (factos provados nos pontos 17 a 30, 94, 95 e 97 e 104)

formou-se com base na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, em conformidade com o disposto no artigo 127.°, do Código Processo Penal. Já no que tange aos documentos foram os mesmos valorados pelo tribunal dentro do regime definido pelos artigos 167.° a 169.°, do mesmo diploma legal, tudo com observância do disposto no artigo 355.° daquele Código.

Assim, valoraram-se as declarações prestadas pelo arguido, as declarações para memória futura prestadas por BB e CC, e ainda o depoimento da testemunha II, agente da P.S.P.

Começando pelo arguido, o mesmo, confirmou a existência no seio familiar da conversa acerca de um livro mágico, o qual, porém, se tratava apenas de uma brincadeira que ele e a sua companheira tinham com as crianças; negando, no mais, todos os factos que lhe são imputados. Referiu que efectivamente afirmava a BB, a quem trata como filha, a necessidade de cumprirem objectivos, os quais concretizou como sendo: portar-se bem. Não bater na irmã CC, limpar o seu quarto, contar sempre aos pais o que se passava consigo, e um outro que não se recorda. Admitiu que não concordou com a saída de BB de casa, e que a razão pela qual a mesma apresentou esta queixa contra si foi por ela saber que o arguido tinha descoberto que a mesma andaria envolvida em actividades de tráfico de droga, tendo sido ameaça por terceiros por dívidas de drogas, e querendo evitar que ele a denunciasse à PSP, havia apresentado queixa- crime destes factos, para o prenderem. Mais disse que a CC foi “comprada” pela BB, com ofertas de computadores, roupa e mota, tomando assim partido da meia irmã.

Ora, desde logo, esta versão do arguido é absolutamente inverosímil, apresentando pum discurso ilógico, desprovidas de sentido.Por sua vez, analisadas as declarações para memória futura de BB e CC, verifica-se que as mesmas prestarm um depoimento pormenorizado, emotivo, objectivo, claro e coerente, nunca hiperbolizando mais do que os factos representam, antes ainda conseguindo à medida dos seus relatos destacar os momentos em que o arguido era uma pessoa pacífica. Ademais a essas declarações/ depoimentos ainda acresceu o depoimento da testemunha II, agente da P.S.P. que recebeu a participação/queixa da BB.

Ouvidas as declarações para memória futura tomadas à ofendida BB, vale muito a pena citar, desde logo, quando questionada se conhecia o arguido, a mesma identificou-o como sendo “o homem que me criou. Foi sempre o meu pai.”

Quanto aos factos em apreciação neste julgamento, e no tocante aos factos perpetrados contra a sua pessoa, BB, relatou-os com um discurso escorreito, sério, peremptório, pormenorizado e muito credível, explicando que saiu de casa aos seus (quase) 19 anos de idade contra a vontade do arguido (como o própria admitiu). Descreveu que no Verão de 2012 o arguido abordou-a, chamando-a para um local que a ofendida, à data com 12 anos, designou por cave e dizendo-lhe que tínhamos de “fazê-lo”. Nesse dia, continuou, houve penetração, não sabendo, porém, explicar como aconteceu, sendo que após o mesmo tal prática passou a ser mais regular, tendo uma cadência de três vezes semanais, o que durou até a ofendida sair de casa com (quase) 19 anos. Mais esclareceu a ofendida que os actos sexuais ocorriam predominantemente à noite, na maioria das vezes, na sala, que era o seu quarto e o das suas irmãs, estando estas a dormir ali ao lado, e estando até a própria ofendida BB a dormir quando tais actos se iniciavam, consistindo os mesmos, por regra, e sempre com penetração vaginal, em beijos, introdução do pénis erecto do arguido na sua boca, introdução dos dedos do arguido na sua vagina e, por fim, introdução do pénis erecto do arguido na sua vagina, onde efectuava movimentos de vaivém até momento prévio à ejaculação, já que esta nunca ocorria no interior do corpo da ofendida. O arguido, desde os 12 anos de idade da ofendida BB que, segundo o muito credível depoimento desta lhe justificava a necessidade de manutenção daqueles actos sexuais com a obrigatoriedade dos mesmos ditada pelo livro mágico com quem o arguido encenava falar, sob pena de não ocorrendo aquelas relações sexuais sobrevirem para BB doenças ou outras coisas más, sendo tal uma forma de curar essas doenças. Assim, e com aquele pretexto, o arguido antecedia aquelas práticas sexuais contra a vontade da ofendida ora encenando conversar com o livro e encenando estar este a demandar objectivos para cumprir, ora dirigindo-se à ofendida dizendo-lhe “temos que fazer”, após o que, nas impressivas palavras de BB, que até aos 16 anos (altura em que as amigas passaram a ter namorados) achou ser este o normal relacionamento entre pai e filha, “era como ele queria, quando ele queria deitada eu deitava-me, quando ele queria de costas, eu virava-me de costas”.

Referiu, a final, BB que “não conseguia respirar quando o via à minha frente” - desabafo que tendo dito à irmã CC esta respondeu-lhe tens de parar com isto, ao que BB retorquiu é mais complicado do que tu pensas, tendo CC finalizado com a expressão sei mais do que tu pensas - conversa entre ambas que nos reporta para os mais de cinco anos que arguido e ofendidas viveram na casa onde o quarto das crianças era a sala da habitação, aí dormindo todas umas num beliche e outra num sofá-cama.

De facto, ouvida CC, também em sede de memória futura, foi a mesma pronta a afirmar logo no início das suas declarações “estou aqui pelo que aconteceu à minha irmã, eu era pequenina e estava a dormir mas estava meia acordada”.

Assim, com um discurso muito espontâneo, escorreito, coerente, assertivo e sério, dizendo que viu o arguido fazer sinal à BB, para ela se dirigir para a cozinha. Foi lá ver o que se passava e ouviu o arguido dizer que BB tinha de cumprir o objectivo, não sabendo, à data, do que isso se tratava. Mas já depois de se mudarem para a última residência, onde cada elemento da família tinha já um quarto para si, chegou a ouvir o arguido dizer que BB não cumpria os objectivos e que os tinha de cumprir, chegando mesmo a proferir a palavra sexo. Uma ocasião, relatou CC, ouviu o arguido dizer para BB “Vamos para baixo que tens de cumprir os objectivos”. Por vezes, prosseguiu, BB dizia que tinha de estudar, momento em que o arguido se mostrava chateado, gritando com ela por outras coisas menores e dizendo sempre “não queres cumprir os objectivos, não queres cumprir os teus deveres”. No início, afirmou, desconfiava de alguma coisa mas não sabia bem o que era, depois, nas suas palavras, foi crescendo e percebendo as coisas.

À semelhança BB, também CC se referiu a alegada existência de um livro mágico com quem o arguido dizia conversar, livro esse que demandava ordens que deviam ser cumpridas para se ganhar pontos e dinheiro. Por vezes, disse, o arguido encenava as conversas com o livro falando dos objectivos da BB, casos em que o ouvia dizer que tinha corrido tudo bem, que a BB tinha cumprido os objectivos e que se tinha comportado, chegando mesmo a ouvi-lo dizer a palavra sexo e que como BB tinha doenças, tais doenças eram curadas desse modo. Também a este propósito, relatou CC que por uma ocasião ouviu a mãe perguntar quais eram os objectivos da BB, tendo o arguido fingido que não ouviu e não respondido, sequer à segunda insistência de DD nessa questão.

Já aludimos repetidamente à credibilidade que se nos merece o depoimento das ofendidas e às respectivas razões, mas para que a s mesmas saiam ainda mais reforçadas vejam-se as seguintes expressões de CC “Nós vivíamos com medo, mas às vezes ele conseguia ser uma boa pessoa, íamos sair, íamos para a praia, mas de repente ele começava a ser bruto connosco, mudava de humor”.

Quase se diria dispensável qualquer mais prova testemunhal, mas a mesma foi produzida e não só não abalou os depoimentos colhidos às ofendidas, como os corroborou.

A testemunha JJ, agente da PSP, que recebeu a participação/queixa da BB e que descreveu que a mesma se apesentava séria, triste e que se sentiu aliviada depois de relatar os factos, o que lhe conferiu ainda maior credibilidade.

Em suma, foi com tamanha mágoa, clareza, espontaneidade, pormenorização, seriedade, objectividade que depuseram as ofendidas, sempre com relatos dos factos que se entroncam entre si e se corroboram e que vêm a ser sustentados, nas partes do conhecimento directo das testemunhas, pelos depoimentos que a estas foram colhidos, pelo que tal harmonia só se tem por compatível com a verdade. Até porque, em contraponto sobeja-nos tão só as declarações do arguido que além de manifestamente inverosímeis (quer seja por ainda hoje a assistente não ter qualquer relacionamento amoroso; quer seja por BB se evidenciar pessoa pacata que investiu na sua educação/formação, tendo ido estudar para o Continente, a quem lhe foi confiada a guarda da menor EE - o que é manifestamente inconciliável com o perfil de indivíduos conexos a actividades de tráfico de estupefacientes -; quer seja, ainda, por CC, filha que apesar dos factos que descreve ainda consegue encontrar no pai momentos que o elevam a boa pessoa, jamais o pretender preso em troca de um computador e de um ciclomotor).

Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo, resultam das máximas do saber e experiência comum, pois que tendo criado BB desde o seu primeiro ano de idade, nunca desconheceu a idade da mesma nem a responsabilidade que sobre a mesma tinha,

Documentalmente, relevou para a formação da convicção deste Tribunal, designadamente, as certidões de nascimento de CC, EE e BB, constantes de fls. 240., 244. e 88. dos autos, o auto de denuncia e aditamento de fls. 71 e 73.

As condições pessoais, familiares e socioeconómicas do arguido têm a sua fé no respectivo relatório social elaborado pelos serviços da DGRSP e junto aos autos.

A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do teor do seu certificado de registo criminal, junto aos autos.”

II.3. Admissibilidade e objeto do recurso

II.3.1. O recurso presente, escusado é sublinhá-lo, incide tão só sobre o acórdão da Relação de Lisboa de 21/06/2023. E sobre o que aí se decidiu. O recurso não serve para apreciar questões novas, não decididas pela decisão recorrida.

O poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

O recurso é restrito à matéria de direito.

Mas além disso, sempre o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal.

II.3.2. Assim, delimitando-o, o objeto do recurso limita-se à questão de saber se,

(i) como vem invocado, se verifica nulidade insanável por desacatamento de determinação do Supremo Tribunal de Justiça (conclusões 21. a 27.);

(ii) se a pena única aplicada, de 24 anos de prisão, é excessiva por violadora dos invocados 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 172.º, n.º 1 ex vi artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 77.º, n.º 1 e 2; 30.º, n.º 1, 2 e 3; 71.º; 40.º, todos do Código Penal e ainda o artigo 127.º; 434.º, 432.º. 400.º, n.º 1, alínea f); do CPP; bem como o artigo 32.º da CRP e artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 38/87, de 23/12 e artigo 4.º, n.º 2 da Lei 3/99, de 13/01. E se, em consequência, “deverá o acórdão recorrido ser substituída por outro que condene o arguido na pena única de 12 anos de prisão, ou caso assim não se entenda e ser prescindir, seja o arguido condenado na pena única de 15 anos de prisão, nos termos supra expostos, fazendo-se assim justiça.”

II.3.3. Registe-se que, estando só em questão a medida da pena única aplicada, no respetivo cúmulo entram igualmente, como entraram, aquelas penas parcelares supra identificadas como transitadas já em julgado e que não vêm impugnadas.

II.4. E, diga-se desde já que não se vislumbra qualquer um dos vícios da decisão a que se refere o nº 2 do 410º do CPP. que teriam de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. E, aliás, na larga enunciação dos artigos indicados como violados pelo Recorrente não consta o artigo 410º.

Sem embargo o Recorrente nas conclusões invoca nulidade insanável por desacatamento de determinação do Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento, em síntese, que realizado novo julgamento, todavia não foi produzida qualquer prova nova e, nessa medida, a matéria de facto considerada provada no 1.º julgamento é a mesma que foi considera provada no 2.º julgamento. E, se a matéria de facto considerada provada que o Supremo tinha decidido que era insuficiente para a decisão é a mesma que o tribunal da 1.ª instância considera que é suficiente para a condenação nos crimes supra, houve desacatamento da determinação do STJ.

Vejamos.

É patente a sem razão do Recorrente. Para assim concluir bastará ler a parte final do anterior acórdão do STJ de 16/12/2021 (que no processo ordenou o reenvio):

“Entendemos, pois, que os diversos crimes de abuso sexual de criança e de atos sexuais com adolescentes devem ser punidos em concurso efetivo de crimes.


*


5.6. Como atrás foi já referido, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças e um crime de abuso sexual de menor dependente, considerando-se que foi movido por uma única resolução criminosa, e concluindo pela punição de apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente, com base na ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, invocando o artº 30º, nº 2 do Código Penal (“Uma pluralidade de condutas criminosas é susceptível, à luz daquele preceito e seu n.º 2, de configurar uma pluralidade de crimes, um crime continuado ou um só crime, se o agente tiver sido movido por uma única resolução criminosa, unicidade que o crime continuado afasta (…) Ora, in casu, a factualidade descrita autoriza a concluir, apoiada pelas regras da experiência comum e das leis psicológicas, pela prática, pelo arguido de um único crime de abuso sexual de crianças agravado, no período compreendido entre o Verão de 2012 e o dia 11/07/2014 (data em que AA completou 14 anos de idade). Com efeito, por referência à totalidade dos factos em apreço, é único o processo volitivo do arguido no que respeita à violação da autodeterminação sexual da menor, processo volitivo esse que têm ínsito o propósito de satisfazer os seus instintos sexuais e libidinosos com a ofendida, actuação que, por sua vez, tem origem volitiva no Verão de 2012, aos 12 anos da criança, prolongando-se no tempo (…) Estamos, pois, perante uma homogeneidade de actuação, com regularidade e proximidade temporal e na sequência do desígnio que o arguido tinha inicialmente formulado aquando do primeiro acto, razão pela qual somos levados a concluir estarmos perante a prática de um único crime ou crime de trato sucessivo».

Porém, só de acordo com os critérios gerais de distinção entre unidade e pluralidade de crimes é que hipóteses de multiplicidade de atos homogéneos, praticados contra a mesma vítima, numa mesma ocasião e local, poderão enquadrar-se num único crime de abuso sexual de crianças e não por apelo à caraterização daqueles crimes como crime habitual ou crime de trato sucessivo, como faz a decisão recorrida.

Mas, por outro lado, a decisão recorrida nada diz sobre se a unificação de diversas condutas num só crime, poderia levar á aplicação da figura do crime continuado. Ou seja, descreve factos que, no seu entendimento, se enquadram num único crime de abuso sexual de crianças por apelo ao crime de trato sucessivo (que o respetivo tipo legal não consente, com atrás foi referido), mas não refere factos que permitam unificar a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.

A decisão recorrida invoca o artº 30º, nº 2, por apelo ao crime de trato sucessivo, mas não refere factos que permitam unificar a prática de todos aqueles atos no crime continuado, esquecendo, além do mais, o nº 3 do citado artº 30º do Código Penal.

Na verdade, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP, segundo o qual “[o] número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

E concluiu “não haver matéria de facto provada suficiente para a decisão, pelo que, resultando do texto da decisão recorrida a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto ao referido.”

Discorreu pois, o Supremo que “a decisão recorrida nada diz sobre se a unificação de diversas condutas num só crime, poderia levar á aplicação da figura do crime continuado.” E que “não refere factos que permitam unificar a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.” Daí que, das duas uma, ou o coletivo tinha que apurar esses factos, descrevendo-os, ou, na sua verificada pelo STJ insuficiência, mais não teria do que, perante a mesma factualidade, de abandonar a unificação dos actos em um único crime.

Ora, se não havia matéria de facto provada suficiente para decisão, na verificação do vício referido no artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP, reenvio se impunha. Reenvio que determinou a realização de novo julgamento e com a matéria de facto aí apurada se concluiu pela verificação daquele novo número de ilícitos. Donde, ao contrário do afirmado, se verificou acatamento da determinação do Supremo Tribunal de Justiça.

Determinação essa que não é mais do que a consequência da jurisprudência, cremos agora unânime, refletida, entre muitos outros, no ac. de 28/02/2018, 128/17.8JAPDL.S1, Helena Moniz,:

“I. Estando em causa a realização de diversos actos lesivos de um bem jurídico pessoal – a autodeterminação sexual da menor – os mesmos não podem ser unificados sob a figura do crime continuado (desde logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP). Assim, o que existe é uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual da ofendida praticados ao longo de um período de tempo longo – entre Dezembro de 2014 e até 17-03-2017.

II. Do mesmo modo, também não podem todos aqueles actos que autonomamente integram um crime de abuso sexual de criança ser unificados sob aquela outra designação de crime de trato sucessivo. É com base na ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o STJ, em alguma jurisprudência, considerou estarmos perante o que designou de “crime de trato sucessivo”, o que levaria à condenação do recorrente em apenas um crime de abuso sexual de crianças (agravado)”

E “IV. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada acto sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade.


VI - Casos há em que não é possível apurar o número exacto de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos actos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Tantos quantos se consigam averiguar. De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exacto de actos singulares que foram praticados pelo arguido. Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.”

Ora, tendo em conta a actual jurisprudência do STJ que, como dissemos, cremos agora unânime, impunha-se, pois, a determinação exacta do número de crimes praticados pelo arguido, do que as instâncias se desincumbiram. O que não merece censura. Em recensão efetuada ao tempo, o ac. de 23/11/2022, 754/20.8JABRG.G1.S1, Lopes da Mota, anotou que “Na jurisprudência mais recente (de 2020 a 2022), firmando decisivamente este entendimento, no sentido do afastamento da figura do “crime de trato sucessivo”, podem ver-se os acórdãos de 16.01.2020 (Helena Moniz), Proc. 283.17.7JDLSB.L1.S1; de 22.01.2020 (Teresa Féria), Proc. 430/16.6GABRR.S1; de 13.5.2020 (Nuno Gonçalves), Proc. 396/18.8PBLRS.L1.S1; de 27.05.2020 (Teresa Féria), Proc. n.º 1203/19.0JAPRT.S1; de 17.06.2020 (Raul Borges), Proc. 91/18.8JALRA.E1.S1; de 25-06-2020 (Clemente Lima), Proc. 227/16.3T9VFR.P1.S1; de 09.09.2020 (Conceição Gomes), Proc. 130/17.0JGLSB.L1.S1; de 16-09-2020 (Conceição Gomes), Proc. 1696/18.2JAPRT.S1; de 01.10.2020 (Clemente Lima), Proc. 308/18.9GACDV.L1.S1; de 15.10.2020 (Margarida Blasco), Proc. 1498/19.9JAPRT.P1.S; de 22-10-2020 (Nuno Gomes da Silva), Proc. 52/19.0JAVRL.G1.S1; de 28-01-2021 (Isabel São Marcos), Proc. 53/17.2JABRG.G1.S1, de 12-05-2021 (Sénio Alves), Proc. 427/18.1JACBR.C1.S1, de 15-12-2021 (Ana Barata Brito), Proc. 71/19.6JAPTM.E1.S1, de 16-12-2021 (Cid Geraldo), 321/19.9JAPDL.L2.S1, de 12.01.2022 (Sénio Alves), Proc. 1079/20.4PASNT.S1, de 24.03.2022 (Orlando Gonçalves), Proc. 500/21.9PKLSB.L1.S1, de 06.09.2022 (Teresa de Almeida), Proc. 218/21.2JACBR.C1.S1.

E, despiciendo se torna referi-lo, nos recursos para o Supremo, a matéria de facto é, como regra imposta pelo artigo 434º do CPP, um dado adquirido, cujo julgamento ficou esgotado pelas instâncias. Assim, neste Supremo da matéria de facto não cabe curar.

Pelo que, nulidade insanável se não verifica.

II.5. A determinação da medida da pena única mostra-se fundamentada nos seguintes termos:

“A acção do arguido atrás descrita revela-se objectivamente grave e traduz intuitos e desígnios sexuais que frontalmente são atentatórios da liberdade sexual da ofendida que, em função da idade, ainda não tinha o suficiente discernimento para se autodeterminar, no que à esfera da sexualidade respeita, de forma livre e consciente.

Relativamente ao elemento subjectivo do tipo incriminador, decorre da matéria de facto provada que o arguido bem sabia que a menor se encontrava a seu cargo desde o primeiro ano de idade, altura em que o arguido se juntou à mãe da criança para partilhar vida em comum e a integrou na sua família afectiva; e que contava apenas 12 anos de idade quando iniciou a sua conduta delituosa e, ainda assim, e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuou livre, deliberada e conscientemente com o propósito concretizado de com a menor manter os actos sexuais descritos e assim satisfazer os seus desejos sexuais, conduta que prolongou até (e para além) aos 14 anos de BB. Actuou, pois, o arguido com dolo directo, porquanto, representou um facto que preenche um tipo de crime e, não obstante, actuou com intenção de o realizar (artigo 14.° n.° 1 do Código Penal).

Deste modo, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, 297 (duzentos e noventa e sete) crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo disposto no artigo 171.° n.° 2, do Código Penal, na pessoa de BB no período compreendido entre o Verão de 2012 (21 de Junho de 2012) e o dia 11.07.2014 - data em que a menor completou 14 anos de idade, absolvendo-o dos demais crimes desta natureza na pessoa de BB de que vinha acusado.

Mas a conduta do arguido, como se disse e ressalta da facticidade não cessou aos 14 anos da menor. Pelo contrário, também no período compreendido entre 11.07.2014 - data em que a menor completou 14 anos de idade - e 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade - o arguido, ciente e a tanto indiferente, manteve aquela mesma conduta criminosa, com a mesma cadência no tempo, estando BB lhe confiada pela sua companheira, desde o primeiro ano de idade da menor para educação e assistência, já que trazida para o seio da família que DD, mãe de BB, vem a constituir desde então com o arguido.

Pelo que, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, 576 (quinhentos e setenta e seis) crimes de abuso sexual de menores dependente previsto e punido pelo disposto no artigo 172.°, n.° 1 ex vi artigo 171.°, n.°s 1 e 2 do Código Penal, na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 - data em que a menor completou 14 anos de idade - e 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade.

Ora, esta análise está em perfeita sintonia com os referidos factos provados e a contagem do número de crimes cometidos é a consequência lógica e óbvia do período temporal em que comprovadamente tais práticas sexuais tiveram lugar e da igualmente demonstrada periodicidade mínima em que se verificaram.”

Tal como resulta do teor das conclusões, o recorrente pretende a redução da pena, sem que, no entanto, concretize minimamente quais são as razões de facto e de direito que o Tribunal do julgamento deixou de ponderar e a que deveria ter atendido para fixar as penas de prisão em tempos de duração menores do que os que foram fixados, não bastando, para o efeito, afirmar-se como pessoa sem antecedentes criminais social e laboralmente inserida, uma vez que se apurou ser trabalhador e, antes deste processo, não há conhecimento de que não fosse cordial, pacato e respeitador.

Desde logo porque não ter antecedentes criminais e ser trabalhador não constituíram quaisquer impedimentos para o tratamento cruel, degradante e humilhante que dispensou a uma pessoa a quem devia especiais deveres de protecção, respeito e cuidado, como é o caso da ofendida BB, sua enteada e que se encontrava à sua guarda de facto e cuidados, em virtude da relação conjugal mantida com a mãe desta, desde o primeiro ano de vida da vítima.

Depois porque não ter antecedentes criminais e dedicar-se ao trabalho, nem é mais, nem é menos do que aquilo que é de esperar e exigir de qualquer cidadão, sem que tais circunstâncias constituam motivos de destaque ou de atenuação, quando estão em causa crimes desta natureza que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais e atentam contra direitos humanos das vítimas.

A violência sexual é um fenómeno que, além de implicar a violação de direitos humanos fundamentais – a própria dignidade humana e a liberdade e a autodeterminação sexual – pela sua proliferação e pelos elevadíssimos custos sociais decorrentes da destruição física e emocional das vítimas, com sequelas físicas e psicológicas que lhes destroem totalmente a saúde física e mental – são geradores de elevadíssimo alarme social.

Desperta, ainda, nas comunidades elevada repulsa, sobretudo, quando se trata de crimes sexuais, como os que são objecto deste processo, cometidos em ambiente familiar, durante anos consecutivos, múltiplas vezes, convertendo-se aquele que devia ser o principal protector, no maior agressor, contra todas as expectativas.

O concreto modo de actuação do arguido revela acentuada ilicitude, quer do ponto de vista do desvalor da acção, quer da danosidade do resultado, pela repercussão nefasta na saúde física e mental da vítima resultante dos crimes cometidos e revela, no caracter do arguido, características de personalidade muito desvaliosas e censuráveis, aliás, confirmadas pelo relatório social e exaradas na factualidade provada, como o á vontade com que lida com situações de violência física e verbal extremas, o desinteresse e indiferença pelo impacto do seu comportamento violento e cruel, na esfera pessoal dos visados, o total desrespeito pelos outros, sobretudo, por pessoas em relação às quais tinha um específico dever de abstenção de condutas geradoras de ofensas à saúde física e mental das mesmas, fruto das relações familiares existentes entre ambos.”

E depois de, quanto às penas parcelares, ter concordado com a 1ª instância, face às elevadíssimas necessidades de prevenção geral, às prementes e muito relevantes necessidades de prevenção especial, ao dolo direto e de elevada intensidade, à ilicitude dos factos de intensidade muitíssimo elevada , à personalidade do arguido violenta, agressiva e manipuladora e controladora, a sua parca inserção social e precário enquadramento formativo e profissional, acaba a sublinhar que “o mesmo tem a dizer-se no que concerne à fixação da pena única em 24 anos, pois que também neste conspecto, o acerto do acórdão recorrido é total, perante a duração, a gravidade dos comportamentos delituosos do arguido, reveladores de uma personalidade violenta e cruel, descentrada do sofrimento alheio, particularmente grave, por ter sido infligido em pessoas especialmente expostas às suas investidas dada a relação familiar e dependência existencial e económica que as ligava ao arguido, particularmente grave pela eficácia e determinação e grau de severidade da lesão dos bens jurídicos pelo tipo concreto e reiteração das práticas sexuais, sendo certo que a aplicação da pena única de quinze anos proposta pelo arguido seria completamente desproporcional, na modalidade de protecção insuficiente, ao intensíssimo grau de culpa do arguido, à sua vocação especializada para ser cruel, desumano e violento para com pessoas a quem deve especiais deveres de estima, afecto, protecção e respeito e redundaria na impunidade da esmagadora maioria dos crimes cometidos.”

II.6. No caso o arguido foi condenado em sete anos de prisão relativamente à prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, no período compreendido entre o Verão de 2012 - 21 de Junho de 2014 a 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade (297 crimes); e em quatro anos prisão relativamente à prática de cada um dos crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 1 ex vi artigo 171.°, n.°s 1 e 2 e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2014 - data em que BB completou 14 anos de idade - a 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade (576 crimes), em somatório, no primeiro caso de 2079 anos, e no segundo de 2304 anos.

Para cúmulo, terão de acrescer, como acresceram, as penas parcelares adicionais supraidentificadas como já transitadas em julgado e que ditadas foram nos seguintes termos:

“F. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB no período compreendido entre 11.07.2018 - data em que BB completou 18 anos de idade - a início de Maio de 2019 - data em que a ofendida saiu da casa do arguido, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

G. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.°, n.° 2 al. a) e 177.°, n.° 1 al. b) do Código Penal, praticado na pessoa de BB na ocasião ocorrida em Maio de 2019 na residência arrendada pela própria e que passou a ser seu domicílio, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

H. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.°, 145.°, n.° 1 al. a) e n.° 2 e 132.°, n.° 2 al. e) do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);

I. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.°-A, n.° 1 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano de prisão (condenação já transitada em julgado);J. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190.°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

K. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violação de domicílio agravado p. e p. pelo artigo 190°, n°s 1 e 3 do Código Penal, praticado na pessoa de BB, na pena de 4 (quatro) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

L. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. a) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

M. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes agravado p. e p. pelos artigos 172.°, n.° 2 ex vi artigo 171.°, n.° 3 al. b) e 177.°, n.° 1 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de CC, na pena de 10 (dez) meses de prisão (condenação já transitada em julgado);

N. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravada p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1 al. b) e n.° 2 al. a) do Código Penal, praticado na pessoa de DD, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (condenação já transitada em julgado).”

Assim cabendo à pena única a moldura penal abstrata de 7 anos a 25 anos de prisão, sendo o seu máximo, incluindo todas as penas adicionais em que foi condenado e que não podem deixar de ser consideradas, em soma de 4394 anos e 8 meses de prisão, reduzido para 25 anos de prisão, por força da aplicação da regra do número 2 do artigo 77º do CP.

Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que, em critério especial, estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).

Assim definida a moldura do concurso, deve o tribunal determinar a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o dito critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, isto é, a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita. O substrato da medida da pena, devendo incluí-los, não pode, pois, bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender às circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Mas sempre no respeito do princípio da proibição da dupla valoração, tendo em conta, porém, que não obsta à consideração na determinação da pena conjunta do concurso de crimes de uma circunstância já considerada na determinação da pena de um dos crimes em concurso, desde que essa circunstância se reporte ao conjunto dos factos, pois neste o objecto da valoração é distinto.

Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, facto global ou grande facto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado, sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

“Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» E “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 291)

Ou nas palavras do ac. de 14-09-2016, 71/13.0JACBR.C1.S1, deste Supremo Tribunal: “na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não releva os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele "pedaço" de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua atividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respetiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade.

É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da atividade criminosa do agente permite”.

Há, pois, que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais.

No caso sub judicio a determinação da medida da pena única, levou em consideração as circunstâncias relativas aos factos e à personalidade do agente, no seu conjunto, relativas à culpa e à prevenção, como manda o artigo 71º do CP, e o critério especial do artigo 77º. n.º 1, do mesmo compêndio normativo, sem afronta do princípio da proibição da dupla valoração e com respeito do princípio da proporcionalidade, nas suas três vertentes de necessidade, adequação e proporcionalidade stricto sensu.

Considerações que aqui aceitamos e que, face à factualidade dada como provada, não merecem censura. Factualidade com enorme desvalor de ação e enorme desvalor de resultado. Na verdade, estamos perante factos de elevada ilicitude quer quanto ao modo de execução quer quanto ao prolongamento no tempo. Tendo sido perpetrados contra uma menor sua enteada, que como pai o via, e que à sua guarda e cuidados estava, em autêntica responsabilidade parental.

Culpa e prevenção é o binómio de que depende a determinação da medida da pena (art. 40, nºs 1 e 2 do CP). O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, nº 1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face á violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade ena vigência da regra infringida.” (in “Noções de Direito Penal”, Simas Santos et alii, 8ª edição, Rei dos Livros, pág.. 187).

Na secção do Código Penal dedicada aos crimes contra a autodeterminação sexual, protege-se o direito ao saudável e são desenvolvimento da sexualidade numa fase inicial, em desenvolvimento da personalidade, que, pelas suas características, é carecida de tutela jurídica. Visando a protecção da juventude e da infância, para que o desenvolvimento da personalidade, em termos de liberdade e de autodeterminação sexual, tenha lugar no tempo físico e psicológico adequado, não se quebrando em tal particular nem a sã infância nem a saudável adolescência. “Tutela-se a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até à adolescência, até se atingir a idade da razão para aí se poder exercer plenamente aquela liberdade” (cfr Figueiredo Dias, in Actas de Revisão de 95, do CP, pág. 246).

Mas, se é verdade, que o peso maior da censurável factualidade cabe aos crimes cometidos contra BB, em número de 297 crimes de abuso sexual de crianças agravado, de 576 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, de dois crimes de violação agravado, o arguido foi também condenado por um crime de ofensa à integridade física qualificada, de um crime de perseguição, de dois crime de violação de domicílio agravado, todos também na pessoa de BB, e foi ainda condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de menores dependente na pessoa da sua filha CC e pela prática de um crime de violência doméstica agravada na pessoa da sua companheira DD.

E do “grande facto” ressalta que, no que aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual tange, estamos perante um evidente padrão comportamental, em que o agente não olha a meios para atingir os fins. Evidenciando uma personalidade desrespeitadora, atentando contra a liberdade e autodeterminação sexual quer da sua filha BB quer da sua filha CC, atentando contra as suas infância e adolescência; atingindo-as no mais íntimo das suas personalidades; em permanente vigilância, controlo e perseguição, atuando com violência se necessário, manipulando-as, chantageando-as e coagindo-as ou ameaçando-as para as levar a satisfazer os seus caprichos e intentos libidinosos; com prática dos actos “não obstante a presença de outras pessoas na casa”, com total desrespeito das mesmas e plena indiferença às suas privacidades; agindo como se fosse o dono das ofendidas e dos demais; E, no que toca à ofendida sua companheira, também tratando-o como um objeto, em permanente vigilância e controlo, humilhando-a, ameaçando-a, controlando-a, retirando-lhe a liberdade de ação e de vida, utilizando para agressão uma faca de cozinha e para ameaça uma garrafa e uma pá de ferro, apertando-lhe o pescoço, desferindo-lhe bofetadas e pontapés por todo o corpo, com um soco lhe tendo arrancado um dente, lançando-a ao chão e pisando-a; trazendo-a, sob dominância total, permanentemente aterrorizada; agressões consumadas no domicílio comum e na presença das suas filhas. Em todos os casos, completamente alheado do sofrimento físico ou psíquico que causava aos seus mais próximos familiares e com desprezo total das consequências danosas que infligia.

Configurando-se o facto global como um padrão de atuação não viola o princípio da proibição da dupla valoração sopesá-lo como negativo em sede de confeção da pena única.

Alheando-nos dos factos que a determinaram a pena pode parecer pesada, mas na apreciação dos factos e de todas as circunstâncias, a favor e contra, tem-se como necessária, adequada e justa.

O arguido agiu com dolo direto, intenso, reiterado e prolongado no tempo.

Com gravíssima violação dos seus deveres parentais e das suas obrigações de segurança, de assistência e de educação e conforto. E total desprezo da sua responsabilidade parental. prevalecendo-se do seu ascendente paternal e da coabitação com as menores e da dependência das mesmas.

São elevadíssimas as necessidades de prevenção geral. a ilicitude é elevadíssima, estamos perante sucessão de crimes de elevada gravidade, em que a ofendida é uma criança, depois adolescente; os bens jurídicos tutelados são respeitantes à pessoa de criança, ofendidos por via de manipulação e de engano, prevalecendo-se o agente da sua superioridade e do seu domínio e do seu ascendente de pai, esquecendo a responsabilidade parental; visando egoisticamente a satisfação da sua lascívia, em casa e na presença de outros menores; anulando a vontade e a capacidade de resistência da menor; o número de crimes atinge o enorme número de 4383, num lapso temporal de quase sete anos, (desde o verão de 2012 até 11/07/2014 e, durante mais 4 anos entre 11/07/2014, data em que completou 14 anos de idade até 11/07/2018, data em atingiu a maioridade civil), em acções imparáveis, sem nunca ter havido, em tão longo período de tempo, um rebate de chamada ao respeito de si próprio e ao respeito da menor e à sua responsabilidade parental; quebrando-lhe a sua infância e a sua adolescência, impedindo-se a de viver saudavelmente no tempo adequado e próprio e em autodeterminação sexual a sua sexualidade.

Em violação repetida do mesmo bem jurídico, tratando-se de acções que, porque a comunidade as considera repugnantes e repulsivas, o direito penal as castiga pesadamente. São, por isso, significativas as necessidades de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados.

Como se fundamentou no Ac. do STJ de 10/10/2012 in www.dgsi.pt., proc. n.º 617/08.5PALGD.E2.S1, Armindo Monteiro,: “O abuso sexual de crianças repugna à consciência colectiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes”.

E “Importa reafirmar serem prementes e muito elevadas as razões de prevenção geral que se fazem especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças – e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando uma resposta punitiva firme, sendo ainda de ter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.”, in ac. de 28/04/2016, proc. nº 252/14.9JACBR Manuel Matos.

E como se sublinhou em mais recente ac. do STJ de 19/01/2022, 327/17.2T9OBR.S1 Nuno Gonçalves, “O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e o harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal.”

Mas, convergindo umas e outras, são também elevadíssimas as necessidades de prevenção especial. O arguido, agiu a demonstrar uma personalidade altamente desvaliosa, mal formada, alheada dos seus deveres, responsabilidades e papel paternais e distanciada do dever ser jurídico-paternal e jurídico-penal, indiferente à proteção, ao bem-estar e ao são desenvolvimento da sua próprio filha de tão tenra idade. Quebrando-lhe o seu tempo de criança e de adolescente, De tal forma manipulou a ofendida que que lhe acabou a anular todo o seu discernimento e vontade, mais não sendo do que um joguete nas suas mãos, um mero brinquedo sexual que, como seu dono e sem limites, utilizava a seu bel prazer. com personalidade egotista e autocentrada, manipuladora, astuciosa, burlando a confiança em si depositada, completamente alheado do e indiferente ao seu futuro ou educação, que lhe cabia assegurar. Não se olvide que em “5.” se deu como provado: “O arguido era a figura masculina que BB identificava como seu pai, e a quem chamava de pai, chamando-a, o arguido, de filha.”

Aproveitando-se do seu poder, domínio e ascendente e da fragilidade e vulnerabilidade do menor. Traindo a confiança da menor, violando o dever de coabitação responsável e de respeito e a guarda paternal que lhe cabia. O que é merecedor de forte censura. E contra si milita severamente.

Em personalidade que, ainda não interiorizando a negatividade do comportamento, (v. “105”, “x”, “z” e “bb”, dos factos provados), dissociada do direito, evidencia censurável falta de preparação para manter uma conduta com respeito pelos valores do direito, demandando elevadas necessidades de prevenção especial de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito. Assinale-se que “o arguido não se revê nos termos da acusação, imputando responsabilidades, por um lado, ao comportamento das menores em causa, considerado pelo arguido socialmente desajustada e, por outro, à ex-companheira, a quem refere como permissiva face às filhas. (…) demarca-se dos factos dos quais está acusado, percepcionando-se como vítima das entendidas atitudes policiais discricionárias e das consideradas falsas declarações dos vários elementos da família. (…) centrando-se nas eventuais consequências do processo para si, projetando, assim, uma reduzida empatia para com as presumíveis vítimas.” (in “105”, “x”, “z” e “bb” dos factos provados)

Deixando-lhe marcas e sequelas a nível emocional e psicológico que perdurarão no tempo e que a afetaram gravemente na sua infância. E que necessariamente se repercutirão séria e gravemente na sua adolescência e na fase adulta.

“A dimensão traumática que a concretização de um crime sexual comporta para a vítima é um dado absolutamente evidente. (…) No que respeita aos menores vítimas de abuso sexual, a Perturbação de Stress Pós Traumático (PST) assume uma especial relevância como um dos efeitos essenciais de abuso sexual.” (Mouraz Lopes e Caiado Milheiro, in “Crimes Sexuais”, 4ª edição, Almedina, 41 e segs) E “O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade”. (in citado ac. do STJ de 28/04/2016).

Não vem assinalado arrependimento e também não se regista ter havido qualquer reparação.

A seu favor milita tão só a ausência de antecedentes criminais. De pouco valor, como a jurisprudência o vem sublinhando, já que o não cometimento de crimes é obrigação da generalidade dos cidadãos.

Na avaliação do ilícito global perpetrado mostra-se ter sido ponderada a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, a sua relação com a personalidade do arguido, e um ilícito global desvalioso.

A pena única confirmada pela Relação é necessária à proteção do bem jurídico, e indispensável à satisfação das concretas exigências de prevenção geral e especial e não excede a medida da culpa do arguido.

Assim, não se identifica fundamento que possa constituir motivo para intervenção corretiva na medida da pena aplicada, a qual se encontra justificada sem ocorrer violação dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, na consideração do objetivo de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar. E não se mostram violados os artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 172.º, n.º 1 ex vi artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b); 77.º, n.º 1 e 2; 30.º, n.º 1, 2 e 3; 71.º; 40.º, todos do Código Penal e ainda o artigo 127.º; 434.º, 432.º. 400.º, n.º 1, alínea f); do CPP; bem como o artigo 32.º da CRP e artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 38/87, de 23/12 e artigo 4.º, n.º 2 da Lei 3/99, de 13/01.

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.

II.6. Quanto a custas

De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso, devendo esta ser fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida.

b) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em seis (6) UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 25 de outubro de 2023.

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. Recuperemos aqui, em síntese, o já longo iter processual a partir da descrição processual com que o Tribunal da Relação encimou o seu acórdão. O primeiro acórdão condenatório do coletivo de ... é de 28/05/2020 que anulado foi por acórdão da Relação de Lisboa de 18/11/2020. Na sequência foi proferido novo acórdão pelo coletivo em 21/01/2021. Interposto recurso sobreveio novo acórdão da Relação em 12/05/2021. Levado o processo ao STJ, que só admitiu o recurso no que tocava às penas parcelares de um crime de abuso sexual de crianças agravado e de um crime de abuso sexual de menores dependente, proferiu o Supremo acórdão de 16/12/2021 que decidiu o reenvio do processo para novo julgamento. O coletivo, depois de efetuar o novo julgamento, prolatou acórdão em 09/01/2023. Interposto recurso pelo arguido a Relação proferiu acórdão em 21/06/2023 e é desse acórdão que vem interposto o presente recurso.