Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
52169/22.7YIPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: INJUNÇÃO
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
PROCESSO ESPECIAL
CONHECIMENTO DO MÉRITO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
TRÂNSITO EM JULGADO
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
DIREITO AO RECURSO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Um despacho desenquadrado da tramitação processual prevista para as ações de especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias que, avulsamente, julgou improcedente uma exceção perentória invocada pela Ré na contestação, assemelha-se à situação prevista no artigo 644.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil.

II - Contudo, não é possível efetuar uma equiparação, quando dela resulte a imposição de um ónus processual temporal imprevisto para as partes (a necessidade de interposição de um recurso num prazo imediato à notificação da decisão), cuja inobservância determine a perda do direito ao recurso.

Decisão Texto Integral:
*


I - Relatório

A Autora, veio intentar contra a Ré a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (AECOP) emergentes de contratos, peticionando a condenação desta a pagar a quantia de € 89,64, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de € 0,84, e juros de mora vincendos à taxa legal.

Para tanto, sumariamente, alegou ter prestado serviços de saneamento à Ré, que a mesma não pagou.

Regularmente citada veio a Ré contestar, excecionando a autoridade do caso julgado e impugnando o contrato e as faturas juntas ao processo.

Concluiu, requerendo a improcedência da ação.

Os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido proferido despacho em 06.07.2022, aquando da marcação da audiência de julgamento, no qual se indeferiu a invocação da autoridade do caso julgado pela Ré, concluindo-se nos seguintes termos:

In casu, a Ré invoca a autoridade de caso julgado com referência à sentença proferida na ação n.º 1926/20.0T8STS, em que as partes são as mesmas dos autos, porém, a Autora impetrou o pagamento de faturas díspares, sendo que, em matéria de fundamentos de facto, o item I) dos factos provados afigura-se marcadamente denegatório, genérico e conclusivo, imprestável para induzir a autoridade de caso julgado em sede de relações de prejudicialidade.

Pelo supra exposto, indefere-se o requerido.

Esta decisão não foi objeto de recurso de apelação autónomo.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença onde se julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, se decidiu:

a) Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 89,64€ (oitenta e nove euros e sessenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal aplicável com referência às obrigações civis, computados desta a data da citação até integral pagamento;

b) Absolver Ré do demais peticionado.

Nessa mesma sentença foi fixado à ação o valor de € 90,48.

A Ré interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação, onde impugnou o despacho proferido em 06.07.2022, que, por acórdão proferido em 20.04.2023, decidiu:

Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso e, em consequência, revoga-se nos seguintes termos a decisão proferida:

Tem-se por verificada a exceção perentória inominada do efeito de caso julgado e, em consequência, absolve-se a ré AA do pedido que contra si foi formulado nos autos pela autora Águas do Norte S.A.

A Autora veio arguir a nulidade deste acórdão e requerer a sua reforma, tendo sido proferido novo acórdão pelo Tribunal da Relação, em 29 de junho de 2023, indeferindo o requerido.

A Autora interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto nos artigos 674.º, n.º 1, a), b) e c), e 629.º, n.º 2, a) e d), ambos do Código de Processo Civil, tendo concluído as suas alegações de recurso do seguinte modo:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que revoga a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, com o que, salvo devido respeito, a recorrente não se resigna.

2. O acórdão recorrido, cuja fundamentação, com o devido respeito, é manifestamente parca e desadequada da realidade fático-jurídica, viola a legislação vigente e aplicável à relação material controvertida, viola a lei processual, mostra-se ferido do vício de nulidade, por excesso e por omissão de pronúncia, ofende o caso julgado formal, e é diametralmente oposto aos demais acórdãos proferidos pelo mesmo Tribunal da Relação no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito,

3. O que levou a recorrente a interpor o presente recurso de revista, ao abrigo do estatuído nas als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 674.º, e nas als. a) e d) do n.º 2 do art. 629.º, ambos do C.P.C., com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, nos devidos termos do vertido no art. 671.º, n.º 1 do art. 675.º e n.º 1 do art. 676.º do mesmo diploma legal.

i) Da violação da lei substantiva

4. Escalpelizado o douto acórdão a que se reage, assistimos, em rigor, a uma desconsideração dos diplomas aplicáveis à relação sub judice, e sintetizados pela recorrente, designadamente o DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, DL n.º 93/2015, de 29 de Maio, DL n.º 72/2016, de 4 de Novembro e DL n.º 90/2009, de 9 de Abril.

5. E, do mesmo passo, do Contrato de Parceria de 5 de Julho de 2013, e Contrato de Gestão dessa mesma Parceira de 26 de Julho de 2013.

6. A ora recorrente sucedeu - não por via de nenhuma cessão da posição contratual, mas - legalmente - às Águas do Noroeste, S.A. enquanto entidade gestora da parceria.

7. A legitimidade ativa da ora recorrente advém da sucessão legal a que se assistiu por força do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio.

8. Preceitua, designadamente, o n.º 4 do art. 63.º do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto que: “Quando a entidade gestora do serviço de abastecimento de água não seja responsável pelos serviços de saneamento e de gestão de resíduos, deve comunicar às entidades gestoras destes serviços uma listagem mensal dos novos utilizadores do serviço de abastecimento, considerando-se todos os serviços contratados a partir da data do início de fornecimento de água, caso estes não tenham sido objecto de contrato autónomo.” (sublinhados nossos)

9. É manifesto o erro perpetrado pelo Venerando Tribunal, ao preterir todo um regime legal expressamente previsto para a conformação da relação jurídica em apreço, como é manifesto o erro na interpretação e aplicação dessa mesma legislação, culminando por adulterar a qualificação jurídica dos factos de modo insustentado e, infundadamente.

10. Salvo melhor opinião, o ajuizamento em consonância com essa mesma legislação resultaria em decisão distinta da proferida no douto acórdão, motivo pelo qual, por força da violação da legislação especial decorrente do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, DL n.º 93/2015, de 29 de Maio, DL n.º 72/2016, de 4 de Novembro e DL n.º 90/2009, de 9 de Abril, ex vi da al. a) do n.º 1 do art. 674.º, do C.P.C., deverá o mesmo ser revogado em conformidade com os fundamentos realçados pela recorrente.

SEM PRESCINDIR,

ii) Da violação ou errada aplicação da lei de processo

11. Da análise do acórdão proferido, retira-se que os Venerandos Juízes Desembargadores, fundamentam a decisão numa incorreta interpretação e, consequentemente, erro na aplicação da lei de processo, assistindo-se, assim, a lapso manifesto, o qual é evidente e incontroverso.

12. Falamos em concreto de erro na aplicação da norma (e sua interpretação) subjacente à alínea a) do n.º 2 do art. 629.º do C.P.C., não obedecendo o Digníssimo Tribunal aos requisitos processuais de admissibilidade do recurso com respeito à referida norma.

13. Estipula o referido preceito legal que, “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Com fundamento (…) na ofensa de caso julgado.»

14. A alínea a) do n.º 1 do artigo 629.º do C.P.C, admite recurso, independentemente da alçada ou sucumbência, de sentenças que ofendam o caso julgado, enquanto exceção dilatória.

15. Do que se conclui que a autoridade de caso julgado não constitui fundamento recursivo, enquanto exceção perentória inominada, como bem a classifica o Tribunal da Relação no seu douto acórdão, não decidindo, porém, em consonância com essa mesma distinção.

16. No presente caso, não se verifica a tripla identidade entre ações, que permita dar por verificada a referida exceção.

17. O que está em causa, é, em boa verdade, saber se a sentença anteriormente proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS poderia (ou não) ser imposta como autoridade de caso julgado numa ação posterior, como é o caso da presente.

18. Sendo a resposta negativa, em face da nova matéria factual alegada e dada como provada nos presentes autos, faltando a necessária relação de prejudicialidade.

19. Vale por isto dizer que sufragamos o entendimento de que inexistindo qualquer caso julgado violado, a (pretensa) autoridade deste não constitui fundamento de recorribilidade, nos termos e para os efeitos do estatuído na al. a) do n.º 2 do art. 629.º do C.P.C.

20. Ora, estamos convictos que o ajuizamento em consonância com a lei processual vigente resultaria em decisão distinta da proferida no douto acórdão, motivo pelo qual, por violação do normativo legal constante da al. a) do n.º 2 do art. 629.º, ex vi da al. b) do n.º 1 do artigo 674.º, ambos do C.P.C., deverá o mesmo ser revogado em conformidade com os fundamentos realçados pela recorrente.

iii) Da nulidade por excesso e omissão de pronúncia

21. A ora recorrente entende que se verificou um excesso de pronúncia, desde logo visível na consideração das concretas razões acometidas a decidir no recurso sub judice, que o Venerando Tribunal da Relação assumiu serem as seguintes: “1a) A verificação no caso da autoridade de caso julgado; 2a) A violação das regras do art° 63° do D.L.194/2009 de 20 de Agosto”.

22. O acórdão recorrido desatendeu, salvo o devido respeito, às concretas razões decidendas.

23. Desde logo, atenta a inadmissibilidade de invocação das mesmas, face à ausência de alçada e sucumbência ou enquadramento nas exceções legalmente previstas para a admissão de recurso ordinário independentemente do valor da alçada e da sucumbência.

24. O certo é que o recurso verdadeiramente pretendido interpor pela ora recorrida teria (ou deveria ter!), na realidade, como fundamento, a ofensa de caso julgado, que constituía, em abstrato, a única possibilidade legalmente conferida à ali recorrente/ora recorrida para reagir perante a decisão do tribunal.

25. Tal interpretação, por parte dos Venerandos Juízes Desembargadores, relativamente ao objeto do recurso padece de excesso de pronúncia, sendo evidente que o fundamento do recurso de apelação interposto seria a ofensa de caso julgado enquanto exceção dilatória, E JÁ NÃO A SUA AUTORIDADE, perpetuando a Relação do Porto em excesso de pronúncia, ao decidir que, “Perante tal enquadramento, temos como claro que a autoridade do caso julgado pode ser invocável no caso dos autos.”

26. E excede-se o tribunal ad quem na medida em que tal não corresponde ao alegado pela recorrida, nem tampouco ao permitido por lei.

27. Estamos em crer que existe excesso de pronúncia, e até mesmo contradição, na Interpretação e aplicação destas duas vertentes (positiva e negativa) do caso julgado, por parte do Venerando Tribunal da Relação.

28. Ainda, do raciocínio expendido pelo Venerando Tribunal da Relação, resulta ajuizado, a final, que os argumentos que sustentam a decisão recorrida se relacionam com o “cumprimento das regras da cessão da posição contratual”

29. Sucede, porém, que em sede de alegações de apelação, a recorrida não invocou, conveniente e detalhadamente, de modo que permitisse ao Tribunal da Relação sobre ela se debruçar, qualquer questão relacionada com uma eventual cessão da posição contratual, e respetivas regras, que, conforme adiante veremos, inexiste, pelo que, também neste segmento, verifica-se um excesso de pronúncia do tribunal recorrido.

30. Com efeito, assumindo a Veneranda Relação que “resulta para nós evidente que os argumentos que a sustentam e que têm a ver, como claramente se vê, com o cumprimento das regras da cessão da posição contratual, valem para todas as ações que a aqui autora Águas do Norte S.A., queira propor contra a aqui ré AA.», não curou de atender à absoluta irrelevância do instituto jurídico em crise (cessão da posição contratual), olvidando de se debruçar sobre o que verdadeiramente ficou decidido em primeira instância, e que a recorrida curou de evidenciar em sede contra-alegacional, isto é, que a recorrente celebrou um contrato de fornecimento de serviços no qual a recorrida sucedeu legalmente.

31. Outrossim, sobre tal matéria foi preterida qualquer pronúncia por parte da Veneranda Relação.

AINDA QUE ASSIM NÃO SE ENTENDA, SEM PRESCINDIR,

iv) Da ofensa do caso julgado

32. Cabe recurso de apelação, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 644.º do C.P.C., do “despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa”.

33. O qual, ao abrigo do n.º 1 do art. 644.º do C.P.C, deveria ter sido interposto pela recorrida/então R. no prazo de 30 dias a contar da notificação da decisão.

34. Falamos do despacho saneador proferido no âmbito do processo n.º 52169/22.7YIPRT, validamente notificado às partes, mediante notificação eletrónica elaborada em 07/07/2022.

35. Não obstante, a ali R./ora recorrida não reagiu

36. Afigurou-se imprescindível aludir, na apelação, que, ao pretender recorrer do despacho saneador, extemporaneamente, em sede de recurso final da sentença condenatória, ainda que não o assuma expressamente, por forma a não ver recusado esse seu mesmo intento, contornou a R. o efeito preclusivo da invocação factual, desconsiderando o princípio da concentração da defesa e violando a estabilidade do caso julgado.

37. Contudo, ao admitir o recurso interposto, ofendeu o Tribunal ad quem o caso julgado decorrente dos efeitos operados na ordem jurídica, relativamente à decisão proveniente do despacho saneador que indeferiu a exceção de autoridade de caso julgado, na medida em que se encontrava criada na esfera da A., a convicção de que a R. não iria (porque legalmente não poderia) recorrer da referida decisão, uma vez ultrapassado o prazo de que dispunha para o efeito.

38. Face ao antedito, reitera-se que o acórdão recorrido ofende o caso julgado, na medida em que a recorrida, tendo renunciado, ainda que tacitamente, à possibilidade que tinha de interpor recurso autónomo (de apelação) do despacho saneador proferido em 06-07-2022, vê precludido o direito de recorrer da referida decisão, a qual não era passível de ser impugnada no recurso a interpor da decisão que pôs termo à causa, no caso, a sentença final.

39. Havendo uma decisão proferida em sede de despacho saneador que tenha apreciado em concreto uma exceção dilatória (in casu, a ofensa de caso julgado) tal decisão terá força de caso julgado formal, logo que transite, como sucedeu.

40. O tribunal recorrido estava, assim, impedido de reapreciar a referida decisão já transitada em julgado, devendo, pois, ser revogado o acórdão recorrido, por ofensa do caso julgado, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 629.º do C.P.C.

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, E SEMPRE SEM PRESCINDIR,

v) Da contradição de Acórdãos da Relação no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito

41. Afigura-se nítido que não deveria o recurso recorrido ter sido, sequer, admitido, na medida em que falece organicamente no preenchimento dos pressupostos de que depende a previsão da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do C.P.C.

42. Veja-se, de resto, a respeito desta quaestio, a posição explanada pela 2.ª Secção deste Venerando Tribunal, no Acórdão proferido em 16/05/2023, nos autos que correram termos sob o n.º 72556/22.0YIPRT.P1.

43. Do mesmo modo, optamos por evidenciar o igualmente recente Acórdão proferido pela 5.ª Secção, de 08/05/202310, nos autos que apuseram a ora recorrente a outro utente, debruçando-se sobre a prestação do serviço público de saneamento no município de ..., e que, de modo clarividente, dissipa quaisquer dúvidas que pudessem subsistir relativamente à querela em apreço.

44. Salvo o devido respeito, mal andou o Venerando Tribunal, tendo procedido a uma análise perfunctória da matéria em apreço, proferindo uma decisão nula, por não se debruçar sobre matéria sobre a qual tinha de o fazer, por desconsiderar os diplomas legais aplicáveis e por dar amparo a um instituto que a recorrente NUNCA pôs em crise, isto é, uma cessão da posição contratual que não está, sequer, em discussão…

45. Negar a sucessão legal decorrente dos contratos de parceria e gestão celebrados entre o Estado e o Município de ..., bem como o Decreto-Lei n.º 41/2010, de 29 de Abril, o Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio e o DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto é perpetuar o abuso que a recorrida consciente e deliberadamente usufrui: saneamento sem o pagamento do correlativo preço!

46. Foi já igualmente acolhido pela Relação do Porto, o entendimento da recorrente de que a recorrida teria de ter recorrido do despacho saneador proferido pela 1.ª instância, que indeferiu a ofensa à autoridade do caso julgado.

47. No mais, note-se que o Venerando Tribunal da Relação do Porto se tem vindo a pronunciar em termos semelhantes, como seja a recente decisão proferida pela 2.ª secção em 05/05/2023, nos autos que correm termos sob o n.º 5519/22.6YIPRTP1

48. Termos em que, também neste ponto, não se compreende a motivação e contradição gritante existente entre o acórdão recorrido e as demais decisões do coletivo de juízes.

49. O silêncio do Acórdão recorrido que não se pronunciou, sequer, sobre a extemporaneidade invocada pela recorrente em sede de contra-alegações.

50. A necessidade de superação de contradições jurisprudenciais pelo Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça é da máxima relevância, face ao elevado volume de ações judiciais com objeto idêntico (note-se, as Águas do Norte, S.A. são grande litigante), o que, a não ocorrer, levaria a uma série de decisões contraditórias para diferentes utentes, sem motivo evidente, falhando a garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, da certeza e da segurança jurídica.

51. Com o intuito de evitar decisões contraditórias e díspares, que coloquem em causa o espírito geral e comunitário quanto à efetiva e equilibrada realização da Justiça, respalda-se igualmente o presente recurso nos pressupostos vertidos na al. d) do n.º 1 do art. 629.º do C.P.C., dada a contrariedade da decisão recorrida com decisões emanadas pelo mesmo tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

TERMOS EM QUE,

Respeitosamente, e sem prejuízo da nulidade e reforma arguidas, requer-se a admissão do presente recurso e, julgando-o procedente, seja o acórdão recorrido revogado, mantendo-se os efeitos decorrentes da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância

Não foi apresentada resposta.

Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a possibilidade do recurso de revista não ser conhecido, atento o valor da causa, a Ré veio dizer que o recurso não devia ser apreciado, enquanto o Autor veio defender a sua admissibilidade, atento o disposto no artigo 629.º, n.º 2, a) e d), do Código de Processo Civil.


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II – Da admissibilidade do recurso

Estamos perante uma ação que tem como valor € 90,48, o que exclui a possibilidade das decisões nela proferidas terem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com exceção das situações previstas no artigo 629.º, n.º 2, a), b), e c), do Código de Processo Civil.

A situação prevista na alínea d), do mesmo preceito, não é aplicável a casos, como o presente, em que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça é vedado pelo facto do valor da causa ser inferior à alçada do tribunal de que se recorre (artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), não existindo uma qualquer outra norma específica que impeça o recurso de revista, como consta expressamente do texto dessa alínea.

Dentre as situações previstas nas alíneas a), b) e c), do mesmo número 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, a Autora apenas alegou a ofensa do caso julgado, ao invocar que o acórdão recorrido violou o caso julgado formado com a decisão proferida em 06.07.2022, na 1.ª instância, em que se negou a existência de autoridade de caso julgado com referência à sentença proferida na ação n.º 1926/20.0T8STS.

Assim, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil, o recurso de revista é admissível, mas apenas limitado a esta questão 1, não se conhecendo das demais questões colocadas pelo Recorrente nas suas alegações, com exceção das nulidades imputadas à decisão recorrida, atento o disposto no artigo 615.º, n.º 4, aqui aplicável ex vi o artigo 666.º, ambos do Código de Processo Civil.


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III – Das nulidades do acórdão recorrido

A Recorrente imputa ao acórdão recorrido, simultaneamente, os vícios de excesso e omissão de pronúncia, previstos no artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.

Suporta a alegação de excesso de pronúncia, em primeiro lugar, na circunstância do acórdão da Relação ter apreciado recurso que não era admissível e, em segundo lugar, por ter decidido sem que lhe tenha sido colocada ao tribunal recorrido qualquer questão relativa a uma eventual cessão da posição contratual.

O conhecimento de um recurso de apelação pelo Tribunal da Relação de uma decisão irrecorrível, constitui, efetivamente, uma nulidade arguível nos termos previstos no artigo 666.º do Código de Processo Civil.

A Recorrente alega que a sentença proferida na 1.ª instância, que lhe foi favorável, não era suscetível de recurso de apelação, uma vez que, sendo o valor da causa inferior ao valor da alçada daquele tribunal, na fundamentação do recurso de apelação não se alegou uma ofensa do caso julgado, mas sim um desrespeito pela autoridade do caso julgado, o que não é abrangido pela previsão do artigo 629.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil.

Se é verdade, como afirma a Recorrente, citando diversos arestos deste Supremo Tribunal nesse sentido, que o disposto no artigo 629.º, n.º 2., a), do Código de Processo Civil, não possibilita o recurso de uma decisão que afirme a existência da exceção de caso julgado ou acolha os efeitos da autoridade do caso julgado 2, já esse mesmo preceito permite o recurso de uma decisão com fundamento na violação do caso julgado ou no não atendimento da autoridade do caso julgado 3. Em qualquer uma destas duas últimas situações imputa-se à decisão recorrida uma ofensa do caso julgado, o que permite que dela se recorra, mesmo quando o seu valor se contém no âmbito da alçada do tribunal que a proferiu.

Como refere ABRANTES GERALDES 4, tão grave é a prolação de uma decisão que contrarie ou repita outra que constitua caso julgado em relação às partes, como o é aquela cujos efeitos práticos afetem a relação de prejudicialidade ou de dependência decorrente de outra decisão proferida em ação anterior que seja vinculativa para ambas as partes, ainda que o pedido ou a causa de pedir não seja coincidente.

Tendo nas alegações do recurso de apelação a Ré invocado o não atendimento da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS, tal recurso para o Tribunal da Relação era admissível, quanto a essa questão, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, pelo que não ocorreu a nulidade invocada.

Quanto à alegação de um excesso de pronúncia, relativamente à questão da cessão da posição contratual, constata-se que o acórdão recorrido limitou-se a reconhecer a autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS, o que, além de ter sido suscitado pela Ré nas alegações de recurso, é uma exceção do conhecimento oficioso, pelo que também não se verifica a alegada nulidade.

A Recorrente invocou ainda que o acórdão recorrido omitiu pronúncia, ao não ter apreciado o alegado pela Autora, nas contra-alegações, sobre a questão da cessão da posição contratual.

Ora, tendo o acórdão recorrido se limitado a reconhecer autoridade de caso julgado formado pelo trânsito da sentença prolatada no processo n.º 1926/20.0T8STS, na decisão a proferir neste processo, ficou prejudicada a apreciação daquela questão, a qual já havia sido decidida no referido processo, pelo que não existe qualquer omissão de pronúncia sobre ela.

Improcedem, pois, as arguições de nulidade do acórdão recorrido.


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IV – Da ofensa do caso julgado formal

A Recorrente alega que o acórdão recorrido, ao relevar a autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS, desrespeitou o caso julgado que se formou pelo despacho proferido neste processo, aquando da marcação da audiência de julgamento, em que se tinha negado que aquela sentença tivesse autoridade do caso julgado neste processo.

Efetivamente, no despacho que designou dia para a audiência de julgamento o juiz da 1.ª instância, apreciou a exceção da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS, invocada pela Ré na contestação, tendo concluído que não ocorria uma situação de observância da autoridade do caso julgado.

Esse despacho não foi objeto de recurso autónomo.

Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação, tendo condenado a Ré a pagar € 89,64, acrescidos de juros de mora desde a citação.

Esta interpôs recurso de apelação desta sentença, tendo nas alegações apresentadas discordado do referido despacho que, aquando da marcação da audiência de julgamento, decidiu não se verificar uma situação de autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no processo n.º 1926/20.0T8STS.

O acórdão do Tribunal da Relação conheceu deste recurso, revertendo o decidido naquele despacho.

Alega a Recorrente que, não tendo sido interposto recurso autónomo do despacho proferido aquando da marcação da audiência de julgamento, este transitou em julgado, pelo que o acórdão da Relação ao reapreciar a questão da autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida no processo n.º 1926720.0T8STS, violou o caso julgado formal sobre esta questão, resultante da não impugnação do despacho proferido aquando da marcação da audiência de julgamento.

Com a reforma do regime de recursos de 2007 que pôs fim à dicotomia agravo/apelação, também se alterou o momento da recorribilidade das decisões intercalares proferidas na 1.ª instância.

No regime anterior a 2007, para se evitar a formação de caso julgado, a parte interessada tinha o ónus de interpor, dentro de um prazo perentório, recurso de agravo ou apelação de todas as decisões que fossem recorríveis. Após 2007, solução que se manteve no Código de Processo Civil de 2013, apenas passaram a ser suscetíveis de recurso imediato as decisões que ponham termo ao processo (artigo 644.º, n.º 1, a), os despachos saneadores que conheçam do mérito da causa ou absolvam da instância (artigo 644.º, n.º 1, b) e os despachos que se encontram hoje tipificados no elenco do n.º 2, do artigo 644.º, do Código de Processo Civil. As restantes decisões interlocutórias, independentemente da sua natureza, apenas podem ser impugnadas juntamente com o recurso de alguma das decisões que admitem recurso imediato.

Para saber se a decisão que antecedeu a marcação da audiência de julgamento com a sua não impugnação imediata transitou em julgado é necessário, pois, apurar se ela admitia recurso imediato ou se, pelo contrário, apenas podia ser impugnada com a primeira decisão que, sendo posterior a ela, o admitisse.

Estamos perante uma ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (AECOP), a qual segue a tramitação especial definida no Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro.

Esta forma de processo especial tem as suas raízes no antigo processo sumaríssimo do Código de Processo Civil de 1961, encontrando, tal como este, a sua razão existencial na necessidade de simplificação da tramitação processual de litígios de fácil resolução em que está em causa o pagamento de baixos valores pecuniários.

Prevê-se uma tramitação simplificada com um desfecho célere, que quase se resume à possibilidade de cada uma das partes apresentar um articulado e à realização de uma audiência de julgamento, antecedendo a prolação de uma sentença sucintamente fundamentada e ditada para a ata, logo que termina a audiência de julgamento.

Não há lugar à fase de condensação do processo comum, estando apenas prevista a possibilidade do juiz, apresentados os articulados e antes da marcar a audiência de julgamento, julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa (artigo 3.º, n.º 1, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro), o que reproduz aquilo que também constava no artigo 795.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 375-A799, de 20 de setembro, para o antigo processo sumaríssimo

Este conhecimento das exceções dilatórias ou nulidades só deve ocorrer se do mesmo resultar o termo da ação, com a procedência dessas exceções ou nulidades, o mesmo sucedendo com o conhecimento de qualquer exceção perentória. Também esta só deve ser conhecida nesse momento se da sua apreciação resultar uma decisão final sobre o mérito da causa.

Terminados os articulados, o juiz deve, pois, fazer uma avaliação das exceções dilatórias e nulidades invocadas ou que sejam do conhecimento oficioso, apenas as apreciando nesse momento, caso existam (podendo ser necessário desencadear as ações necessárias para o seu suprimento), se elas procederem. De igual modo, deve ponderar a possibilidade de conhecer do mérito da causa, incluindo a existência de exceções perentórias, naquele momento, e efetuar essa apreciação, caso o processo forneça já todos os elementos que permitam proferir uma decisão final. Pretende-se evitar, com esta possibilidade, uma tramitação processual subsequente que seria inútil. Se o processo pode terminar naquele momento, pela verificação de uma exceção dilatória ou nulidade, ou pelo conhecimento do mérito da causa, dita o princípio da economia processual que, apesar de não existir uma verdadeira fase de condensação, se profira a correspondente decisão que porá termo ao processo.

No entanto, se a exceção dilatória ou a nulidade arguida pelo demandado não procede ou a exceção perentória invocada pelo demandado também improcede, não há motivo para o juiz proferir nessa altura qualquer decisão intercalar, que apenas vai provocar um retardamento do processo, sendo conveniente que essas questões sejam apenas apreciadas e decididas, conjuntamente, na sentença final, existindo em qualquer dos casos (procedência e improcedência), um momento único de decisão. Era assim que se entendia, salvo a exceção da incompetência absoluta, interpretando igual disposição do antigo processo sumaríssimo do Código Civil de 1961, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de setembro 5.

A decisão aqui em causa, que decidiu em momento anterior à marcação da audiência de julgamento não refletir autoridade do caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1926720.0T8STS neste processo, conheceu de uma exceção perentória, julgando-a improcedente, uma vez que a autoridade do caso julgado, quando invocada para impedir o reconhecimento de um direito, como ocorre nesta situação, é uma exceção perentória 6, pelo que se trata de uma decisão que não tem abrigo no disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, sendo uma decisão desenquadrada da tramitação processual especialmente prevista para este tipo de ações.

O artigo 644.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil, dispõe que cabe recurso de apelação autónomo do despacho saneador que, sem por termo ao processo, decida do mérito da causa.

Tem-se entendido que também conhece do mérito da causa um despacho saneador em que se decide que não se verifica uma qualquer exceção perentória invocada pelo demandado, por se entender que o conteúdo de uma exceção perentória respeita ao mérito da ação 7

Note-se, no entanto, que nesta situação não estamos perante um despacho saneador previsto no artigo 595.º do Código de Processo Civil, mas sim perante um despacho desenquadrado da tramitação processual prevista para este tipo de ações que, avulsamente, julgou improcedente uma exceção perentória que havia sido invocada pela Ré na contestação.

Apesar da situação ocorrida poder se assemelhar à prevista no artigo 644,º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil, atento o momento em que foi proferido aquele despacho e o seu conteúdo, não é possível efetuar a respetiva equiparação, uma vez que isso resultaria na imposição de um ónus processual temporal imprevisto para a Ré (a necessidade de interposição de um recurso num prazo imediato à notificação da decisão), cuja inobservância determinaria a perda de um importante direito processual – o direito ao recurso.

Conforme tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional em numerosos arestos 8, os ónus processuais cuja inobservância determine a perda de direitos, em obediência ao modelo do processo justo e equitativo, devem estar claramente expressos e determinados no texto legal, não suscitando dúvidas sobre os termos como devem ser cumpridos, de forma a que a parte onerada não seja surpreendida, quer pela sua existência, quer pelo modo como os deve cumprir.

Daí que, apesar da autoridade do caso julgado formada pelo decisão proferida e transitada no processo n.º 1926720.0T8STS, constituísse uma exceção perentória que foi apreciada numa decisão intercalar anómala, numa ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a mesma não tinha que ser objeto de um recurso autónomo imediato, por não integrar expressamente o tipo de decisões previstas no artigo 644.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, podendo ser a mesma impugnada no recurso que viesse a ser interposto da sentença final, como o foi, pelo que, o despacho proferido em 06.07.2022 nunca transitou em julgado.

Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação ao conhecer do mérito desse despacho e ao revogá-lo, decidindo no sentido oposto, não ofendeu um caso julgado formal, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Autora, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas pelo Réu.

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Notifique.

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Lisboa, 12 de Outubro de 2023


João Cura Mariano (relator)

Afonso Henrique

Maria da Graça Trigo

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1. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2022, p. 54, e LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES, ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 28.

2. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.º ed., 2008, Almedina, p. 113, LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES, ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 28, e ABRANTES GERALDES, ob. cit., p. 54.

3. ABRANTES GERALDES, ob. cit., p. 52-53, e CASTRO MENDES e TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, p. 170.

4. Ob. cit., p. 53-54.

5. LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, p. 235.

6. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR on-line, novembro de 2018, pág. 17-18 e 33-34, e LEBRE DE FREITAS, Um polvo chamado autoridade do caso julgado, na R.O.A., Ano 79.º, n.º 3-4, p. 701.

7. ABRANTES GERALDES, ob. cit., p. 244-245, e LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit., p. 117.

8. Entre muitos outros os acórdãos n.º 678/98, 485/2000, 56/2003, 183/2006, 335/2006, 620/13 e 604/2018, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.