Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
117/21.8GAOHP.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: CONDENAÇÃO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
PENA ÚNICA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
VALOR PARA EFEITOS DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I – Pretendendo ver reduzida a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, por virtude da redução da medida das penas parcelares, recorre o arguido do acórdão do tribunal coletivo da 1.ª instância que lhe aplicou penas de 4 anos de prisão, 2 anos e 3 meses de prisão, 6 meses de prisão pela prática de cada um de 10 crimes e de 2 anos e 6 meses de prisão.

II – Como se extrai da fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, o que assume decisiva importância, para efeitos de recorribilidade, é a pena única, que fixa o critério definidor da competência do STJ para conhecer do recurso, e não as penas parcelares que nela foram englobadas, não sendo necessário que ocorra uma impugnação “direta e autónoma” da pena única.

III – Na consideração de que o artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP apenas faz depender o recurso para o STJ do critério de recorribilidade aí definido – isto é, que os acórdãos proferidos pelo tribunal coletivo apliquem pena de prisão superior a 5 anos, seja ela uma pena singular ou uma pena única –, sendo postas em causa as penas parcelares que concorrem para a pena única cuja medida o recorrente pretende ver reduzida na sua medida, necessariamente se deve concluir que se mostra preenchido tal critério de recorribilidade; em substância, colocada em crise uma das penas sobre as quais se forma a pena única, é a própria pena única que é posta em causa, a qual, na sua determinação convoca, para além do critério especial do artigo 77.º, os critérios gerais dos artigos 40.º e 71.º do CP.

IV – Tendo em conta a gravidade dos factos, revelada pelos fatores relevando por via da culpa, em particular o grau de ilicitude, o contexto e o modo de execução dos crimes, a intensidade e persistência do dolo e as condições pessoais, e pelos fatores relevantes por via da prevenção, nomeadamente o comportamento anterior aos crimes, o tribunal fixou penas que, refletindo as diferenças das circunstâncias concretas, se situam em escalões inferiores das molduras penais, não muito distantes dos mínimos legais, não se encontrando fundamento para concluir que as penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso, nos termos do artigo 71.º do CP, se mostram determinadas em violação dos critérios de proporcionalidade que lhe devem presidir, de modo a justificar-se qualquer intervenção corretiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 25.04.2023, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ..., J... ., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, que o condenou nos seguintes termos:

«como autor material de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. no art. 152º/n.ºs 1-a) e c) e 2-a) C.P., também com a agravação decorrente do art. 86º/n.º 3 da Lei n.º 5/2006, na forma consumada (tendo por vítima a demandante BB), na pena de 4 (quatro) anos de prisão»;

«como autor material de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. no art. 152º/n.os 1-e) e 2-a) C.P., na forma consumada (tendo por vítima o demandante CC), na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão»;

«como autor material de dez crimes de ameaça agravada, p. e p. nos arts. 153º/n.º 1 e 155º/n.º 1-a), com referência ao art. 131º, todos C.P., na forma consumada (tendo por vítima o demandante DD), na pena de 6 (seis) meses de prisão para cada um deles»;

«como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86º/n.º 1-d), por referência aos arts. 2º/n.º 1-m) e 3º/n.º 2-ab), todos da Lei n.º 5/2006, na forma consumada, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão».

Efetuado o cúmulo jurídico destas penas, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

«Nos termos do n.º 1 do art. 104º C.P.», foi decidido «ordenar o internamento do arguido em estabelecimento (de cariz médico-psiquiátrico de cura, tratamento ou segurança) destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos (e sempre sem prejuízo do disposto no n.º 2 do referido art. 104º e nos n.os 1 e 2 do art. 93º, este ex vi art. 107º, todos C.P.)».

«Nos termos do art. 152º/n.ºs 4 e 5 C.P.», e «perante as razões que levaram à condenação principal, atenta a gravidade dos factos e a personalidade revelada pelo mesmo, foi determinada a aplicação ao arguido das penas acessórias de proibição de contactos (por qualquer meio – presencial, interposta pessoa, telefónico, escrito ou através de redes sociais) com a vítima BB (incluindo na residência e no eventual local de trabalho desta, com cumprimento a ser oportunamente fiscalizado, e se necessário, por meios técnicos de controlo à distância), e de proibição de uso e porte de qualquer tipo de armas, pelo período de 5 (cinco) anos».

«Julgando-se o pedido cível formulado pelos demandantes BB, CC e EE (estes dois últimos, porquanto sendo menores, legalmente representados pela primeira, sua mãe, BB) parcialmente provado e procedente, foi o arguido, demandado, a pagar à demandante BB a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) e ao demandante CC o montante de € 750 (setecentos e cinquenta euros)».

«Julgando-se o pedido cível formulado pelo demandante DD parcialmente provado e procedente, foi o arguido condenado a pagar ao demandante a quantia de € 500 (quinhentos euros)».

2. Inconformado, apresentou recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra em motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

“I. Não se debruçando a defesa sobre a factualidade dada como provada, até porque como bem refere o douto acórdão de que se recorre houve a “quase total admissão dos factos constantes da acusação pública pelo arguido.”

II. Não pode deixar a defesa de considerar que o tribunal a quo não valorou de forma adequada a confissão e colaboração do arguido.

III. O arguido em sede de audiência de julgamento confessou a maioria dos factos e colaborou deste modo, para a descoberta da verdade material dos mesmos.

IV. Acresce que o arguido é primário. Não tem qualquer antecedente criminal.

V. O Recorrente era uma pessoa perfeitamente inserida no meio familiar e socioprofissional até ao fim do seu casamento.

VI. Como bem refere o douto acórdão de que se recorre, é a partir desse acontecimento que o comportamento do arguido mudou radicalmente.

VII. Como resulta do douto acórdão “o fim da relação conjugal do arguido teve uma efeito absolutamente destrutivo na vida, no ânimo e nas perspectivas de futuro do mesmo” (sublinhado nosso).

VIII. Ora o tribunal a quo, smo, não valorou de forma adequada o facto de antes do fim do casamento o arguido se encontrar perfeitamente inserido na sociedade.

IX. Todo o comportamento ou acção do arguido após o fim da sua relação conjugal não pode servir para fazer qualquer juízo de valor sobre a personalidade do arguido, uma vez que como resultou provado quer por depoimento das testemunhas, quer por prova documental (relatório do exame pericial efectuado às faculdades mentais do arguido - cfr. fls. 900 a 903 dos presentes autos principais) o arguido é diagnosticável uma perturbação de adaptação e a existência de dificuldades de personalidade com traços proeminentes no domínio da impulsividade.

X. Resulta do relatório suprarreferido que: “No momento da prática dos factos, o examinando preenchia critérios para o diagnóstico de Perturbação de Adaptação (6B43; CID-11). Admite-se ainda a presença de critérios para considerar a existência de Dificuldades de Personalidade (QE50.7; CID-11), com traços mais proeminentes no domínio da Desinibição (impulsividade) (6D11.3; CID-11)”.

XI. É pois claro para a defesa e, smo também o foi para o tribunal a quo, que esta circunstância de ter terminado o seu casamento alterou radicalmente a personalidade do arguido, alteração essa que foi do foro psíquico e que foi determinante para a conduta do arguido, como o próprio admitiu em audiência de julgamento.

XII. Ora no entendimento da defesa o Tribunal a quo não valorou tais circunstâncias e, em especial, o facto de à data dos crimes o recorrente padecer de doença do foro psíquico, situação que presentemente está controlada devido ao acompanhamento médico e à medicação.

XIII. Ora, somos a entender que o Tribunal o quo não fez, na determinação das medidas concretas das penas uma equitativa ponderação das circunstâncias que depunham a favor e contra o recorrente, privilegiando estas últimas em detrimento daquelas.

XIV. Dos elementos que resultam dos autos, prova documental e testemunhal, deveria o tribunal a quo aplicar penas de prisão em quantitativo bastante inferior.

XV. Por maiores que sejam quaisquer exigências de prevenção geral (atendendo que as de prevenção especial são baixas face à ausência de antecedentes criminais), a medida da pena nunca poderá ser superior à medida da culpa, sob pena de violação do art. 40.º, n.º 2 do Código Penal.

XVI. Assim, entende a defesa que atendendo a todo o aqui supra exposto, bem como o referido no douto acórdão de que se recorre deveria o tribunal a quo aplicar penas concretas diferentes, mostrando-se adequado, justo e proporcional a aplicação de: a) uma pena de prisão de 2 anos e oito meses por um crime de violência doméstica agravada (tendo por vítima a demandante BB); b) uma pena de prisão de 2 anos por um crime de violência doméstica agravada, (tendo por vítima o demandante CC; c)uma pena de prisão de 1 mês por cada um dos crimes de ameaça agravada, (tendo por vítima o demandante DD); d) uma pena de prisão de 6 meses por um crime de detenção de arma proibida.

XVII. Devendo o tribunal a quo fazer o respetivo cúmulo jurídico e condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos de prisão.

XVIII. Relativamente à decisão do tribunal a quo de ordenar o internamento do arguido AA em estabelecimento (de cariz médico-psiquiátrico de cura, tratamento ou segurança) destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena única de prisão em que foi condenado a defesa nada tem a apontar, até porque esta perceção do Colectivo de “que a circunstância de o regime prisional comum se lhe revelar prejudicial – rectius, se revelar prejudicial à sua específica patologia psiquiátrica – só poderá ser obviada, nos termos do n.º 1 do art. 104º C.P., através de um internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis (com a panóplia terapêutica que a tal tipo de estabelecimento é inerente)” vai de encontro a tudo o alegado no presente Recurso.

XIX. Nunca esquecendo, que o que está em causa é a esperança fundada de que a ressocialização em liberdade, do recorrente, possa ser alcançada, sem se descurar os fins da punição.

XX. Pelo que se entende, e salvo o devido respeito, que deverá ser reapreciada a pena e a medida da pena em função do atrás exposto.

XXI. A não consideração das circunstâncias supra explanadas e existentes nos autos, as quais beneficiariam a medida da pena aplicável em concreto, viola o disposto no art.º 40.º, nº 2 do art.70º, 71.º do C. Penal.

XXII. A defesa não concorda com a apreciação do tribunal a quo no que concerne à condenação do demandado no pagamento de um montante compensatório na quantia de 500,00€ ao demandante DD, uma vez que não resultou qualquer prova de que houve danos que mereçam a tutela do direito sofridos pelo demandante decorrente da atuação do demandado.

XXIII. Não basta invocar dano, o mesmo terá que se provar. Ora o demandante DD, smo, não provou qualquer dano, muito pelo contrário, afirmou por diversas vezes que não se sentia ameaçado pela atuação do arguido.

XXIV. Devendo assim o demandado ser absolvido do pedido de indemnização cível formulado pelo demandante DD.

Em suma, nestes termos e nos melhores de direito, sempre salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, deverá a decisão ora recorrida, ser substituída por outra que, ponderados todos os elementos de facto e de direito, objetivos e subjetivos aplique ao arguido pena única de prisão de 3 anos e nos termos do n.º 1 do art. 104º C.P., ordene o internamento do arguido em estabelecimento (de cariz médico-psiquiátrico de cura, tratamento ou segurança) destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena única de 3 anos.

Absolvendo ainda o demandado do pedido de indemnização cível formulado pelo demandante DD.”

3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta, no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em conclusão:

“1- O douto acórdão condenatório deixa facilmente compreender como o Tribunal partindo da moldura penal correspondente aos tipos legais de crime em questão, determinou a pena concreta para cada ilícito criminal, aferida pelo grau de culpa do arguido e pelas exigências de prevenção, sem deixar de ter presente tudo quanto, para o efeito, resultou provado em benefício ou em desfavor do agente.

2- Assim, não merecem reparo, quer as penas parcelares determinadas para cada um dos dois censurados crimes de violência doméstica, para os dez crimes de ameaças agravadas e para o crime de detenção de arma proibida, quer a pena única de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão que, em resultado de cúmulo jurídico daquelas penas parcelares, veio a ser fixada.

3- O douto acórdão recorrido fez correcta interpretação dos preceitos legais que havia a aplicar, não se mostrando ofendido qualquer normativo, apontado na motivação do recorrente, ou outra qualquer disposição legal e, designadamente, alguma das mencionadas na presente resposta.

Nestes termos (…), negando-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o acórdão condenatório proferido, far-se-á Justiça.”

4. Por despacho de 12.07.2023, foi ordenado que os autos fossem remetidos «ao Supremo Tribunal de Justiça [dado que o recurso interposto, como o próprio recorrente o afirma, não se debruça sobre a factualidade dada como provada no acórdão recorrido (cfr. conclusão I do recurso), sendo que, por outro lado, a pena única de prisão alcançada em tal acórdão condenatório é superior a 5 anos de prisão, cabendo, pois, no âmbito de competência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr., conjugadamente, art. 432º/n.º 1-c) C.P.P. e Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2017, disponível in www.dgsi.pt]».

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em seu parecer, suscitado a questão da competência do Supremo Tribunal, dizendo que “[d]eve ser declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso interposto e determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, por ser o competente”.

Fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

“(…)

4. Embora não se paute pela clareza e concisão em sede de identificação do respectivo âmbito, extrai-se com mediana limpidez da respectiva fundamentação e das conclusões formuladas que o recurso interposto pelo arguido, AA, tem por objecto a discussão da fixação das quatro penas parcelares (todas em medida inferior a cinco anos de prisão), sendo que a pena única aplicada não é objecto de impugnação autónoma – isto é, através de uma ponderação crítico-dialética das penas singulares que o próprio Colectivo aplicou, à luz da disposição do art.77º/1 do Código Penal.

5. Pretende, pois, o recorrente a revogação do Acórdão em causa e a sua substituição por outro que, atendendo ao peticionado em sede de medida das penas parcelares, reduza estas às penas que indica na sua alegação (cfr, o n.º XVI das conclusões).

6. E é também o que se extrai da referência, na alegação de Direito, às disposições dos arts. 40º/2, 70º, 71º do Código Penal, e não à do art. 77º/1 do mesmo diploma legal (cfr, o n.º XXI das conclusões).

7. No que respeita à pena única, o recorrente limita-se, isso-sim, a pugnar pela sua lógica e inevitável reformulação, no pressuposto da procedência do recurso, peticionando, pois, a aplicação de uma pena de cúmulo de 03 anos de prisão:

Devendo o tribunal a quo fazer o respetivo cúmulo jurídico;

Quando, se não traído pelo termo escolhido, deveria ter escrito “refazer”.

8. Pois que, na verdade, apenas de refazer a pena única se trata, dado que em nenhum momento o recorrente pôs em crise a valia e o critério decisor do Colectivo na parte da decisão do cúmulo jurídico realizado no Acórdão sub judice, limitando-se – como já se disse – a aventar uma nova pena única (reformulação) como decorrência necessária da eventual alteração das penas singulares a concurso.

9. Não pede, pois, a reapreciação de acórdão final proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo na parte que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º) – cfr, o art. 432º/1-c) do Código de Processo Penal.

10. Nesta medida, considerando o disposto no art. 427º do Código de Processo Penal, é da competência hierárquica e funcional do Tribunal da Relação de Coimbra o julgamento do recurso interposto (para onde, aliás, o recorrente bem o endereçou), não sendo no caso aplicável o AUJ em questão, por não realizado um dos seus pressupostos lógico-jurídicos essenciais:

A impugnação (directa e autónoma) de pena conjunta superior a cinco anos de prisão.

11. É o que se extrai, aliás, da fundamentação do próprio AUJ 5/2017, que, em boa verdade, uniformiza jurisprudência em sede de extensão de competência do STJ:

Isto é, no caso de o recurso ser dirigido diretamente ao STJ, como tem de ser, por força do n.º 2 do artigo 432.º do CPP, visando o conhecimento em termos de direito, de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, bem como de penas parcelares inferiores a tal medida, entende-se que deve ter lugar um «alargamento» da competência do STJ à apreciação das penas parcelares se, como é óbvio, forem impugnadas pelo recorrente. … …

12 Assim:

Deve ser declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso em causa e determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, por ser o competente (cfr, os arts. 10ºss e 32º e 33º/1 do Código de Processo Penal).

II Mérito.

Prejudicado fica, assim, o conhecimento do mérito do recurso, ou seja, sobre a medida das penas parcelares aplicadas.

III. Em síntese:

É da competência hierárquica e funcional do Tribunal da Relação, e não do Supremo Tribunal de Justiça, o conhecimento do recurso de Acórdão do Tribunal Colectivo que aplique penas parcelares inferiores a cinco anos de prisão e pena única em medida superior, sem que seja impugnada directa e autonomamente esta pena.”

6. Notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido não apresentou resposta.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

O acórdão recorrido – factos provados

8. O acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos:

8.1. Factos provados

O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1 – o arguido e a demandante BB foram casados entre si de 13 de Março de 2004 a 11 de Maio de 2018;

2 – da relação acabada de referir nasceu, no dia 28 de Maio de 2005, o demandante CC, e, no dia 4 de Junho de 2014, o demandante EE, ambos residentes com a mãe, a aludida demandante BB;

3 – desde meados de 2019 que a demandante BB residia com os filhos CC e EE, o seu companheiro DD, e a filha comum de ambos, FF, nascida no dia ... de ... de 2020, na Rua ... esquerdo, em ..., mudando-se, todos eles, em Outubro de 2021, para a Rua ..., em ..., ...;

4 – a demandante BB trabalhava para a empresa “I…, S.A.”, na área do supermercado, com instalações sitas na Zona...;

5 – o arguido beneficiou do instituto de suspensão provisória do processo, no âmbito do inquérito n.º 125/18.6..., da Procuradoria da República do Juízo de Competência Genérica de ..., entre 6 de Janeiro de 2020 e 6 de Janeiro de 2021, pela prática de um crime de violência doméstica contra a demandante BB e pela prática de crimes de injúria, ofensa à integridade física simples e ameaça agravada contra o demandante DD, por factos ocorridos entre Fevereiro e 7 de Novembro de 2018;

6 – em data não concretamente apurada, mas próxima do termo do período da suspensão provisória do processo referida no ponto 5 (destes factos provados), o arguido ligou algumas vezes para a demandante BB, com o pretexto de falar com os filhos;

7 – durante tais chamadas, o arguido apelidou a demandante BB de “puta” e “vaca”, disse-lhe que “não valia nada”, acusou-a de andar com outros homens quando foi casada com ele e de lhe ter gasto todo o seu dinheiro, prometendo-lhe que ia “dar cabo” desta e do seu companheiro DD;

8 – quando a demandante BB não atendia as suas chamadas, o arguido ligava para o seu filho CC;

9 – nessas chamadas, o arguido dizia-lhe para desaparecer, para ir estudar para longe, que só estava do lado da mãe, que ela e a sua família não prestavam e quando este se mostrava desagrado com a conduta do pai, dizia-lhe “se não estás satisfeito, suicida-te!”;

10 – em data não concretamente apurada, mas próxima do dia 16 de Maio de 2021, o arguido mostrou a GG uma catana e um punhal e disse-lhe que eram para cortar o pescoço aos demandantes BB e DD;

11 – no mês de Junho de 2021, o referido GG deu conhecimento deste evento à demandante BB, que, por sua vez, o comunicou ao demandante DD;

12 – nas referidas circunstâncias de tempo, sobretudo à noite, o arguido deslocou-se por diversas vezes à residência da demandante BB, tripulando o seu veículo automóvel de matrícula ..-..-ZM;

13 – em tais ocasiões circulava em redor da casa e, em algumas situações, parava também em frente da mesma, permanecendo no carro ou tocando insistentemente na campainha, dizendo para os filhos descerem porque queria falar com eles;

14 – em algumas das apontadas ocasiões, para que o arguido parasse de tocar na campainha, a demandante BB descia com os filhos;

15 – e, quando não estavam em casa, eram os próprios vizinhos que se apercebiam da presença do arguido e ligavam para a demandante BB;

16 – por diversas vezes, dirigiu-se o arguido ao supermercado onde a demandante BB trabalhava;

17 – a demandante BB, ao aperceber-se da presença do arguido, fugia para o escritório ou para a casa de banho, aí se mantendo até que os colegas de trabalho lhe informavam que o arguido já tinha saído;

18 – chegado ao referido supermercado, o arguido dirigia-se aos colegas de trabalho da demandante BB e perguntava-lhes se a mesma estava a trabalhar, a que horas ia trabalhar, dizia que queria falar com ela, alegando ter algo para lhe entregar;

19 – em uma dessas vezes, na manhã do dia 9 de Dezembro de 2021, o arguido dirigiu-se ao referido local de trabalho da demandante BB;

20 – a demandante BB, ao avistar o arguido, escondeu-se na casa de banho;

21 – o arguido entrou no supermercado, munido de uma catana, que ocultou, perguntou aos funcionários pela demandante BB e, perante a resposta de que aquela não estava, saiu para o exterior;

22 – de seguida, dirigiu-se o arguido ao seu veículo, que estacionou junto ao da demandante BB, que ali estava parqueado, e retirou a catana dentro do casaco que envergava, guardou-a na bagageira, e naquele local permaneceu durante algum tempo, acabando por se afastar;

23 – no dia 11 de Dezembro de 2021, o arguido ligou para o demandante CC, dizendo que queria levar consigo o filho mais novo, ou seja, o demandante EE;

24 – ao que o demandante CC disse que não o podia levar, porque não era dia em que o pudesse fazer, conforme o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais;

25 – o arguido, desagrado com a aludida resposta, voltou a ligar insistentemente para o demandante CC e este atendeu e passou o telefone móvel para o irmão EE;

26 – no final da tarde desse mesmo dia 11 de Dezembro de 2021, pelas 19 horas, o arguido deslocou-se até à residência dos demandantes, munido de uma catana e de uma machada, e aí permaneceu, andando de um lado para o outro, enquanto raspava com tais objectos em um muro situado em frente;

27 – a demandante BB alertou a Guarda Nacional Republicana de ..., sendo que, chegados ao local, os militares abordaram o arguido junto a uma paragem de autocarros, apreendendo-lhe a catana, de marca “Verdugo”, modelo “16”, com um comprimento total de 55 centímetros, medindo a lâmina 40 centímetros, cortante, perfurante, ou corto-contundente, e a machada, de marca “Mantools”, com um comprimento total de 37 centímetros, medindo a lâmina 10,50 centímetros, cortante, perfurante, ou corto-contundente, que estavam pousados a cerca de 2 metros de distância do arguido, e que este tinha exibido momentos antes;

28 – na madrugada do dia seguinte (12 de Dezembro de 2021), cerca das 00 horas e 46 minutos, tripulando um veículo automóvel, o arguido deslocou-se novamente à residência dos demandantes, parou o veículo e ligou o rádio, colocando o som em volume elevado, audível no interior da habitação, impedindo os demandantes de descansarem;

29 – o arguido ligava de modo insistente para o demandante CC, ameaçando a sua mãe e o companheiro desta de morte, e enviou-lhe mensagens escritas;

30 – no dia 12 de Dezembro de 2021, o arguido enviou para o telefone móvel do demandante CC as seguintes mensagens: “Dás-lhe uma foda e bazas”, “Elas são interceiras por dinheiro fazem tudo”, “Ok já vi que já sabes, por isso olho fino e pé ligeiro”, “Uma sempre preservativo, não vás correr o risco de empenhar alguma”, “Empranhar”, “Bem me diziam que andava a ser bem enganado pela minha própria família”, “Sim eu sei disso CC, tu também tens que ser esperto em relação às gajas que possas vir a comer, nunca as deixes foder a pedirem dinheiro”, “Eu sei, espero que assim continue”, “Tenho pena CC, tinhamos tudo para ser uma família feliz e unida, mas alguém quis mudar o rumo”, “Agora isto da maneira que está já não há volta a dar, perdido por cem perdido por mil”, “Abraço do teu pai”, “Adeus, vai lá dormir porque bem precisas”, “Bons sonhos e põe uns tampões nos ouvidos”, “Amanhã espero que ligues para eu falar com o teu irmão”, “Eu amanhã vou falar com a dra. HH da CPCJ, para lhe dizer que quero ficar com o EE”, “Eu só estou revoltado com o que vocês estão a provocar em mim”, “Faz como quiseres, eu não vou parar enquanto não souber toda a verdade ao longo dos anos que estive (casado) com essa mulher”, «Não filho, isto já foi e está ir longe demais, nunca pensei a sério”, “Fogo andei mesmo ceguinho”, “Mas ela que seja mulher e diga toda a verdade doa o que doer”, “Preciso falar contigo, ou atendes ou esquece que eu existo”;

31 – ainda no mesmo dia 12 de Dezembro de 2021, o arguido enviou as seguintes mensagens escritas para a demandante BB: “Preciso saber o que estava a fazer o cromo do teu amante a ver o espetáculo com GNR”, “A Guarda sabe bem que ele estava lá”, “Eu amanhã vou à CPCJ pedir para ficar de vez com o EE”, “Pede ao teu cavaleiro para bazar para bem longe daqui”, “Ele ou vai a bem ou vai a mal”;

32 – no dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 14 horas e 20 minutos, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da demandante BB e dirigiu-se à mesma;

33 – como era a única operadora de caixa, a demandante BB manteve-se no local de trabalho e disse-lhe para sair;

34 – a demandante BB contactou também a Guarda Nacional Republicana e o arguido, ao aperceber-se da chegada da viatura policial, abandonou o local;

35 – nesse mesmo dia 13 de Dezembro de 2021, cerca das 19 horas, o arguido dirigiu-se ao centro de estudos frequentado pelos filhos;

36 – no Largo ..., em ..., o arguido viu os demandantes BB, CC e EE no interior do automóvel da primeira demandante para irem para casa;

37 – ao verem o arguido, saíram do carro e o arguido disse-lhes “só quero vingança, mas agora vão ter uns dias de sossego, porque vou para o hospital!”;

38 – o arguido esteve, então, internado voluntariamente no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário d. ......., com diagnóstico de reacção de ajustamento, desde 14 a 30 de Dezembro de 2021;

39 – no dia da alta (30 de Dezembro de 2021), pelas 9 horas e 41 minutos, o arguido enviou para o demandante CC a seguinte mensagem, quando pretendia enviá-la para a demandante BB: “Bom dia eu não estou a gostar da maneira como o CC me fala. Eu já estou a ficar farto de tu e o cabrão do teu namorado virarem os meus filhos contra mim. Vocês vão pagá-las bem caro caralho”;

40 – o demandante CC respondeu então ao arguido que este se havia enganado no número;

41 – de seguida, o arguido enviou as seguintes mensagens ao demandante CC: “Manda este recado à tua mãezinha. Ou ela cumpre ou isto vai ficar preto para o lado dela. Fodasse nunca pensei fazerem-me isto, eu vou desgraçar a minha vida, mas vão os dois com o caralho”, “Nem que desta vez leve um moto-serra”, “Vai a tua mãe e o DD para o alto de São João”;

42 – o demandante CC deu conhecimento das ora aludidas mensagens à sua mãe e ao demandante DD;

43 – no dia 4 de Janeiro de 2022, pelas 14 horas, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da demandante BB e disse-lhe: “não vales nada, és uma puta, uma vaca, vou dar cabo de ti e do cabrão do teu companheiro!” e “vais pagar por tudo que me fizeste, dá-me o dinheiro que me roubaste!”;

44 – nesse dia, o arguido fez um vídeo em directo na rede social “Facebook”, com a duração de 31 minutos e 8 segundos, onde exibe uma navalha aberta, que mantém até ao final do vídeo, colocando-a junto ao pescoço, apontada à testa e ao coração, e, a certa altura, dirigindo-se aos demandantes BB, CC e DD (ameaçando que o matava), diz: “Epá, lá no ..., digo te uma coisa, foda-se é homens e mulheres, a traírem as mulheres, é o Gaio e o caralho, foda-se sou eu que ando a mais nesta merda. Eu a confiar na minha ex mulher e a minha ex mulher também..., também me faz o mesmo, na altura minha mulher, né? Pronto, mas tá..., já chega de brincadeiras, inda agora..., inda agora telefonei, como é normal, preocupado com os meus filhos, o meu filho continua do lado da mãe, porque a mãe é que tem razão, a mãe é que é isto, a mãe é que é isto, e agora o padrasto é o que dá o apoio, é o que lhe dá..., é o que lhe dá o pilim, é o que lhe dá o carinho lá em casa, é o que dá o caralho, ó vai-se foder..., isso também eu dei durante muitos anos, caralho, e... e deram-me a paga, meu. Isto é assim, atão isto é assim, esquece-se o passado, ó CC, tás a esquecer o passado, o teu pai passou frio por ti caralho, andaste comigo nas viagens, foste para Paris, foste para tantos lados comigo, em... passamos tanto naquela tempestade e esqueces o teu pai e dás prioridade a essa merda que apareceu agora do nada, só por estarem juntos há quatro anos e também graças ao Covid e ao caralho, que vocês..., a tua mãe falhou-me..., tá-me a falhar em tudo e mais alguma coisa..., porque não está a cumprir com os meus direitos, que eu tinha um fim de semana para cada um e ela não tá a cumprir, porque dá sempre as desculpas do Covid, que não sei quê apanhou Covid o ano passado e o caralho, eu sei lá o que é que ela também teve lá quando foi a” (imperceptível) “quando foi para a praia, ó caralho, que também andou misturada com outras pessoas, que não me... epá, isso foi..., isso foi o maior falhanço que ela fez, caralho, foi meter os meus filhos sem me avisar, com uma pessoa estranha, uma pessoa que eu não conheço de lado nenhum, com a puta que o pariu e não me disse nada. Ela meteu pessoas estranhas lá em casa, esse filho da puta desse DD, que eu..., tá aqui, ó DD” (exibindo a faca) “não escapas, meu, não escapas, não há esta, é outra, esta pode ser a primeira, nem que eu lance esta merda, nem que lance de longe, caralho, para te acertar assim no meio da tola, tás a ver, caralho, assim, ó, parece um unicórnio, caralho” (auto de transcrição de fls. 585 a 592, mais exactamente fls. 591, do presente processo principal);

45 – no dia 5 de Janeiro de 2022, pelas 19 horas, o arguido deslocou-se novamente ao local de trabalho da demandante BB, permanecendo no exterior à espera que esta saísse, e ligou o rádio do carro em volume elevado;

46 – a demandante BB, ao sair do trabalho, apercebeu-se da música elevada e que o arguido estaria no exterior à sua espera;

47 – quando a demandante BB estava a fechar o portão de acesso ao supermercado, o arguido dirigiu-se a esta e forçou o portão, para que esta não o fechasse, e disse-lhe “espero que aquilo que aconteceu ontem aqui não sirva para me tramares a vida!”;

48 – a demandante BB conseguiu fechar o portão e ligar à Guarda Nacional Republicana d. ........ .. ........;

49 – o arguido abandonou então o local, antes da chegada dos militares da Guarda Nacional Republicana, que acompanharam a demandante BB até à sua residência;

50 – ao abandonar o referido local, o arguido deslocara-se então até à residência da demandante BB, permanecendo no logradouro da habitação;

51 – encontrando-se no dito logradouro, foi o arguido abordado pelos militares da Guarda Nacional Republicana d. ........ .. ........, que, entretanto, ali chegaram, conjuntamente com a demandante BB;

52 – nessa ocasião, o arguido disse que não saía dali sem ver o filho mais novo e, dirigindo-se à demandante BB, afirmou “Esta puta não me deixa ver o meu filho, és uma vaca!”;

53 – no mesmo dia 5 de Janeiro de 2021, o arguido publicara um vídeo na rede social “Facebook”, no qual, entre outras frases, diz: “Ou hoje me deixam ver o meu filho mais novo ou está tudo fodido hoje, podem ter a certeza, hoje vai haver merda com fartura, hoje a filha da puta arranjou mais um motivo. Ontem chapei-lhe tudo na tromba lá na ...’, e ainda não é capaz de dizer a verdade, que me enganou a vida toda!”, e “Eu não ameaço só, eu faço!”;

54 – a demandante BB tomou conhecimento dessa publicação no trajecto para casa e, verificando que o arguido reproduzia o mesmo discurso da publicação feita minutos antes, e como os militares estavam presentes, disse que podia ir chamar os filhos para o arguido os ver, com o propósito de este se acalmar e não concretizar as ameaças, o que sucedeu;

55 – após ter estado com os filhos, o arguido deixou o local, mas permaneceu na via pública, junto à residência da demandante BB, durante cerca de 30 minutos;

56 – no dia 6 de Janeiro de 2022, pelas 11 horas, o arguido foi detido e apresentado a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte (7 de Janeiro de 2022), tendo sido libertado com as seguintes medidas de coacção, além do termo de identidade e residência: proibição de contactar, por qualquer meio, com as vítimas, incluindo o filho menor EE, pessoalmente, por telefone móvel, mensagem escrita, mail e redes sociais, e devendo guardar sempre das mesmas uma distância não inferior a 300 metros; proibição de permanecer na residência das vítimas e devendo manter das mesmas uma distância com um raio não inferior a 300 metros; proibição de permanecer no local de trabalho da vítima BB e devendo manter do mesmo uma distância com um raio não inferior a 300 metros, sem prejuízo do que viesse a ser indicado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; obrigação de apresentação aos sábados no posto policial da sua área de residência, entre as 16 horas e as 20 horas;

57 – aquando da detenção, o arguido trazia consigo dois canivetes, um com saca-rolhas, de marca, modelo e origem desconhecidas, com o comprimento total de 21,70 centímetros e com uma lâmina de 9,70 centímetros, e o outro de marca “Ivo”, com o comprimento total de 19,50 centímetros e com uma lâmina de 6,80 centímetros, com saca-rolhas e abre-garrafas;

58 – no dia 8 de Janeiro de 2022, o arguido publicou um vídeo no seu perfil da rede social “Facebook”, dirigido ao demandante DD, e no qual dizia: “Pronto, é assim, pessoal, tem que ser assim, não consigo fazer directos, estou bloqueado ou o carago, porque a tal situação de incentivo ao ódio, não sei quê, não sei quê mais, o ódio, afinal eu tenho razão em ter ódio e ter raiva, uma mulher que esconde que o actual companheiro agredia o filho mais novo e ele não podia dizer nada porque estava a cumprir regras e era assim que tinha que ser, assim é que tinha que, assim é que tinha que ser, o respeito e cumprir as ordens que ele manda, ele é que manda, agora caralho, até nela bate e ela tem que se calar bem caladinha, oh, a sério meu! Oh, a sério! O meu CC! Oh CC, a sério, tu deixas fazer isto? E ainda por cima dizes que sim, tu... também tu, aprendeste com ele a bater no miúdo para o controlar, tem que ser assim à porrada, oh pá, a sério! Mas eu, eu vivi, essa BB bate mal dos cornos, ó pá, manda esse gajo embora que se não eu mato-o caralho, ó pá, a sério! Eu bem disse que esse gajo tocava no meu filho, tocava em mim, caralho, ai filho da puta, estás fodido, rapaz, ah cabrão, vai... vai-te embora pá, vai-te embora pá, eu caguei-te lá ao pé do carro, meu, agora cago-te em cima, caralho, desfaço-te o focinho, cabr…” (auto de transcrição de fls. 599 e 600 deste processo principal);

59 – o referido vídeo foi enviado no mesmo dia à demandante BB, por um colega de trabalho, II, que o havia visualizado;

60 – no dia 10 de Janeiro de 2022, pelas 19 horas e 10 horas, o arguido deslocou-se ao centro de estudos “A....... .....”, sito no Largo ..., em ..., onde se encontravam os seus filhos EE e CC, dizendo que queria falar com o primeiro;

61 – por causa disso, deslocaram-se ao local os militares da Guarda Nacional Republicana d. ........ .. ........ e abordaram o arguido, tendo-lhes este dito que queria falar com o seu filho mais novo;

62 – ao ser chamado à atenção pelos militares de que a satisfação da sua pretensão não era possível, em virtude das medidas coactivas que lhe haviam sido aplicadas, e que a sua conduta configurava um incumprimento das mesmas, o arguido respondeu que estava ciente de tal, mas queria falar com o filho EE;

63 – nesse mesmo dia, o arguido contactou telefonicamente o filho mais velho, CC;

64 – face ao ora descrito, o arguido foi detido e apresentado a interrogatório judicial no dia seguinte (11 de Janeiro de 2022), tendo sido novamente libertado e sujeito, em cúmulo com as anteriormente determinadas, à medida coactiva de obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por meios de vigilância electrónica;

65 – nesse mesmo dia (11 de Janeiro de 2022), cerca das 15 horas e 30 minutos, o arguido dirigiu-se ao “Café ......”, sito no Largo ..., em ..., e foi alertada a Guarda Nacional Republicana local, que ali enviou alguns militares, aos quais, quando o abordaram, o arguido disse haver saído de casa para fazer umas compras e resolver alguns assuntos pessoais;

66 – nessa ocasião, foi o arguido mais uma vez avisado de que se encontrava em incumprimento das medidas de coacção aplicadas e foi conduzido a casa;

67 – em data não concretamente apurada, mas após ter sido presente a interrogatório judicial subsequente, o arguido gravou dois vídeos, que publicou no seu perfil da rede social “Facebook”, no dia 12 de Janeiro de 2022, com a opção de privacidade “Público”, onde disse aos demandantes DD e BB que os matava;

68 – assim, em um, disse: “É assim, eu peço, é pá, eu peço, por favor, aos pais desse cabrão, desse DD, pá, que o venham buscar a ... e o levem daqui para fora, porque ele vai sair daqui em bocados, pá, eu vou, eu vou desfazer esse cabrão pá, está fodido, está fodido, destruiu a minha vida, está fodido, pá e ainda por cima com a ajuda da minha ex-mulher, caralho, que ela é que proporcionou esta merda, pá, ai, estão fodidos, ela e o pai dela, ai, estão..., outros no ... estão fodidos, todos querem me foder a vida, mas estão fodidos todos, caralho!” (auto de transcrição de fls. 601 do presente processo principal);

69 – no outro vídeo, o arguido, referindo-se, mais uma vez, ao demandante DD, disse: “Como eu estava a dizer há bocado, é, pá, eu estou tão revoltado com o que estão a fazer, então quer dizer, o outro gajo esfaqueou-me e não foi preso, andou solto, andou solto e liberto, eu, porque o ameacei e não sei quê que, que fui lá com uma…, uma catana e uma machada e o carago, que lhe fazia isto e isto e eu estou à espera de arranjar uma maneira de o caçar, que eu caço-o, caralho, então mas estão a brincar comigo, oh caralho, então mas que merda é esta, então eu fui preso porque só por ameaças e não sei o quê e o gajo não foi preso porque me matou, ia-me matando, carago, mas que justiça é es…?” (auto de transcrição de fls. 602 deste processo principal);

70 – o referido vídeo foi enviado no mesmo dia à demandante BB, por um colega de trabalho, II, que o havia visualizado;

71 – no dia 12 de Janeiro de 2022, através do “Messenger”, o arguido enviou ao de mandante DD duas mensagens com o seguinte teor: “Vou tirar esse sorriso cabrão” e “Tás fodido. Foge. Desaparece daqui cabrão”;

72 – no dia 13 de Janeiro de 2022, cerca das 11 horas, o arguido deslocou-se à Escola do 1º Ciclo do Ensino Básico, sita na Avenida ..., em ..., e, aí chegado, dirigiu-se à portaria e perguntou pelo seu filho EE, aluno desse estabelecimento de ensino;

73 – foi então chamada ao local a Guarda Nacional Republicana d. ........ .. ........, sendo que, quando os respectivos militares chegaram, o arguido já ali não se encontrava, nem se encontrava na sua habitação;

74 – ainda no dia 13 de Janeiro de 2022, cerca das 19 horas e 30 minutos, tripulando um veículo automóvel, o arguido deslocou-se à residência da demandante BB e, ocultando a viatura nas traseiras da pastelaria “N... .......”, sita em ..., por ali deambulou por tempo não concretamente apurado, até ser accionada a presença de uma patrulha da Guarda Nacional Republicana d. ........ .. ........ ao local;

75 – em data não concretamente apurada, mas situada entre os dias 13 e 14 de Janeiro de 2022, antes de ter sido submetido ao interrogatório judicial do dia 14 de Janeiro de 2022, o arguido publicou um vídeo na rede social “Facebook”, onde disse: “Pronto, é assim, eu vou aguentar, eu vou esperar que saia…, que venha o julgamento, já… já fizeram o julgamento a mim, então…, anda mais rápido do que o que fizeram a esse filho da puta, esse gajo vai pagar bem caro o que me fez, caralho, e o que me está a fazer, está a tirar os meus filhos de mim, caralho, foi aquilo que eu disse na altura da mensagem, caralho, e ela sabe disso, a minha ex-mulher, e anda e está a” (imperceptível) “está tudo fodido, está tudo fodido, oh pá, não há hipótese, por mais que a G.N.R. me queira prender ou me queira trancar, não trancam, caralho, eu, quando, quando o apanhar, eu fodo-o, caralho, eu hei de andar com ele na cidade de ..., a mostrar aquele cabrão atrás da minha carrinha…” (auto de transcrição de fls. 603 deste processo principal);

76 – no dia 14 de Janeiro de 2022, pelas 18 horas, o arguido foi sujeito a interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicadas, além do termo de identidade e residência, as seguintes medidas de coacção: prisão preventiva, proibição de contactar, por qualquer meio, com os demandantes BB, DD e CC e EE, quer pessoalmente, quer por telefone móvel, mensagem escrita ou redes sociais;

77 – mercê dos comportamentos do arguido, a demandante BB viveu em um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação, receando que o arguido a confrontasse e praticasse contra ela actos como os descritos e concretizasse os males que lhes anunciara, mormente que os matasse;

78 – por seu turno, o demandante CC sentiu-se igualmente angustiado, inseguro, infeliz, humilhado e receoso de que o arguido pudesse concretizar sobre a demandante BB os males que anunciara, designadamente que a matasse;

79 – o arguido quis e conseguiu ferir os demandantes BB e CC na sua honra e consideração, saúde física e psíquica, humilhá-los, molestá-los e intimidá-los, sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhes receio pela integridade física e vida da demandante BB, assim lhes provocando medo, ansiedade e inquietação, abalando o seu equilíbrio emocional, perturbando a sua paz e sossego, tudo por forma a afectar a sua dignidade pessoal e limitar a sua liberdade pessoal, social e ambulatória, na sua residência;

80 – o arguido quis causar dor e sofrimento à demandante BB e sabia igualmente que causava semelhantes resultados no seu filho e demandante CC;

81 – o arguido quis, com as condutas descritas, intimidar o demandante DD e provocar-lhe receio de vir a sofrer actos atentatórios da sua integridade física e vida;

82 – o arguido quis trazer consigo as referidas catana e machada e exibir publicamente os canivetes, cujas características conhecia, ciente de que o fazia sem motivo válido para tal e de que eram tais objectos passíveis de serem usados como armas de agressão, bem sabendo que a sua detenção lhe estava vedada pela lei penal;

83 – o arguido sabia que a detenção dos aludidos objectos (catana, machada e canivetes) para os usar como armas de agressão e com potencialidades para tal, sem justificação para a sua posse lícita, era proibida, e, não obstante isso, quis detê-los nas circunstâncias descritas;

84 – mais sabia que, ao utilizar os referidos objectos na prática dos factos, mais graves e censuráveis eram as suas condutas;

85 – o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal;

86 – o arguido é filho único, tendo nascido e sido criado em ..., no seio de um agregado de parcos recursos económicos, sendo a subsistência familiar garantida pela actividade laboral do progenitor, como ... junto da Câmara Municipal local, e dedicando-se a mãe às tarefas domésticas;

87 – o crescimento do arguido foi marcado por um contexto de dificuldades e algumas privações, quer em termos de subsistência quer devido ao ambiente de agressividade promovido pelos hábitos paternos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso;

88 – iniciou os estudos em idade côngrua, vindo a reprovar nos sexto, oitavo e décimo anos de escolaridade, que não chegou a concluir;

89 – abandonou, então, o ensino aos 18 anos, com a conclusão do terceiro ano de escolaridade;

90 – no mundo laboral, teve experiências na construção civil, na distribuição de ..., montagem e reparação de móveis e na condução de veículos pesados de longo curso;

91 – casou com a demandante BB aos 23 anos de idade;

92 – com o termo da relação conjugal, o arguido passou a residir sozinho, em apartamento arrendado;

93 – com o referido divórcio, obtido por mútuo consentimento, foi então regulado, também por acordo, depois homologado, nos termos legais, o exercício das responsabilidades parentais relativas aos demandantes CC e EE;

94 – todavia, o arguido nunca conseguiu aceitar o fim do seu casamento, recusando-se a ultrapassar essa fase da sua vida, e passando a restar obcecado pela ideia de uma eventual reaproximação à ex-mulher e filhos, em cujo contexto deixou de laborar de uma forma constante na sua profissão de motorista de longo curso;

95 – perante a não consecução da almejada reaproximação em relação à demandante BB, veio o arguido a praticar os factos acima descritos e objecto dos presentes autos;

96 – foi desenvolvendo uma sintomatologia depressiva, que o levou a ser seguido nas valências hospitalares de psiquiatria;

97 – esteve internado entre 14 e e 30 de Dezembro de 2021, no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário d. .......;

98 – assim, e não obstante os factos acima referidos nos pontos 79 a 85 (desta factualidade provada), o arguido padece de uma perturbação de adaptação e dificuldades de personalidade com traços proeminentes no domínio da impulsividade, a demandarem um acompanhamento psiquiátrico constante;

99 – no meio prisional, o arguido, vem mantendo uma postura adequada às normas e gregas institucionais ali vigentes;

100 – foi integrado na actividade laboral de faxina em 18 de Março de 2022, actividade que vem mantendo até à actualidade;

101 – recebe as visitas regulares de alguns familiares (tios e prima);

102 – vem sendo igualmente sujeito, no seio prisional, a acompanhamento psiquiátrico;

103 – todos os factos acima descritos causaram na demandante BB profundo agastamento psicológico, receio e prostração psíquica;

104 – toda a aludida factualidade provocou no demandante CC tristeza, pena por ver o seu pai recalcitrar em tais comportamentos, e, sobretudo receio pela demandante BB, sua mãe;

105 – todos os referidos factos causaram no demandante DD, para além de algum receio por si e pela segurança da sua companheira BB, irritação e fúria relativamente ao arguido.»

Objeto e âmbito do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos.

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que passou a admitir recurso da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça com estes fundamentos.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

10. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir:

(a) Se as penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso deveriam ser fixadas em medida inferior à determinada no acórdão recorrido conclusões I a XVI, XX e XXI;

(b) Se, na sequência da redução das penas singulares, deve também a pena única, para cuja determinação aquelas concorrem, ser fixada em medida inferior, de 3 anos de prisão – conclusão XVII, XX e XXI;

(c) Se o arguido e demandado deve ser absolvido do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante DD – conclusões XX a XXIV.

Previamente, há que apreciar a questão da competência deste Supremo Tribunal de Justiça («STJ»), suscitada pelo Ministério Público, para conhecer do recurso.

Questão prévia – da competência do STJ para conhecer do recurso

11. Convocando o acórdão de fixação de jurisprudência («AFJ») n.º 5/2017 (publicado no Diário da República n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23, pp. 3170 – 3187), alega o Senhor Procurador-Geral Adjunto, em síntese e no essencial, que o recurso “tem por objecto a discussão da fixação das quatro penas parcelares (todas em medida inferior a cinco anos de prisão), sendo que a pena única aplicada não é objecto de impugnação autónoma”, que “[n]o que respeita à pena única, o recorrente limita-se, isso-sim, a pugnar pela sua lógica e inevitável reformulação, no pressuposto da procedência do recurso, peticionando, pois, a aplicação de uma pena de cúmulo de 03 anos de prisão”, que “em nenhum momento o recorrente pôs em crise a valia e o critério decisor do Colectivo na parte da decisão do cúmulo jurídico”, que “[n]ão pede, pois, a reapreciação de acórdão final proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo na parte que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos”.

Pelo que, conclui, não sendo aplicável este AFJ, “por não realizado um dos seus pressupostos lógico-jurídicos essenciais” – “[a] impugnação (directa e autónoma) de pena conjunta superior a cinco anos de prisão” – “deve ser declarada a incompetência hierárquica e funcional deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso em causa e determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, por ser o competente”.

12. O acórdão n.º 5/2017 fixou a seguinte jurisprudência: «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo--lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

Não exige, nem se extrai da sua fundamentação – com o respeito devido pelo entendimento diverso expresso pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto – que o recorrente deva impugnar “direta e autonomamente” a parte da decisão que aplica a pena única.

Com efeito, pode ler-se na respetiva fundamentação que “podendo ser objeto de diferentes formulações textuais” a “questão subjacente”, “consistirá essencialmente em determinar o âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça em recurso interposto, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, de acórdãos finais proferidos pelo tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenham aplicado, em cúmulo jurídico, uma pena conjunta superior a 5 anos, englobando penas parcelares iguais ou inferiores a esse limite.”

Da argumentação que conduziu a esta conclusão retira-se que “o que assume decisiva importância, para efeito de recorribilidade, é a pena aplicada que o arguido tem efetivamente de cumprir, isto é, a pena única, e não as penas parcelares que nela foram englobadas. O que verdadeiramente releva é, pois, a pena conjunta aplicada”, “[d]evendo (…) salientar -se que, em caso de concurso de crimes, a gravidade da pena concreta aplicada ao arguido em acórdão da 1.ª instância resulta também necessariamente das penas singulares aplicadas”.

Continuando: “[o] legislador consagrou no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP um critério de recorribilidade direta para o Supremo assente na gravidade da pena aplicada pelo que (…) parece lógico concluir que, o que verdadeiramente assume importância, no caso de concurso de infrações, é a pena que o arguido terá de cumprir, pois que as penas parcelares se diluem e perdem a autonomia própria de “pena aplicada”, no sentido em que, mesmo que o recorrente só ponha em causa determinada pena parcelar, o seu objetivo final é o de alterar a pena única, ou para uma pena única mais grave (recurso da acusação) ou para uma pena única menos grave (recurso da defesa)”; “[o] argumento centrado na pena conjunta superior a 5 anos de prisão aplicada, em cúmulo jurídico, aos crimes em concurso, punidos com penas iguais ou inferiores àquele limite, enquanto critério definidor da competência do Supremo Tribunal para conhecer, em matéria de direito, do recurso do acórdão da 1.ª instância, assume destacada relevância”.

13. Nesta interpretação e na consequente consideração de que o artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP apenas faz depender o recurso para o STJ do critério de recorribilidade aí definido – isto é, que os acórdãos proferidos pelo tribunal coletivo apliquem pena de prisão superior a 5 anos, seja ela uma pena singular ou uma pena única –, sendo postas em causa as penas parcelares que concorrem para a pena única cuja medida o recorrente pretende ver reduzida na sua medida, necessariamente se deve concluir que se mostra preenchido tal critério de recorribilidade. Em substância, colocada em crise uma das penas sobre as quais se forma a pena única, é a própria pena única que é posta em causa, a qual, na sua determinação convoca, para além do critério especial do artigo 77.º, os critérios gerais dos artigos 40.º e 71.º do CP.

Assim, questionando o recorrente a medida das penas parcelares, por alegada violação dos artigos 40.º e 71º do CP, e visando, com isso, a redução da pena única, como expressamente declara, deve o recurso ser admitido, em virtude da verificação do critério de recorribilidade estabelecido no artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, que confere competência ao STJ para dele conhecer.

Em consequência do que improcede a questão prévia.

Quanto às penas [supra, 10, (a) e (b)]

14. Por a questão da determinação da pena única se apresentar, apenas, como consequência da resposta a dar à questão da determinação das penas singulares, serão estas questões tratadas conjuntamente, nos termos que se seguem.

15. Não se suscitam quaisquer questões relativamente à incriminação (qualificação jurídica dos factos), que corresponde ao primeiro momento do processo de determinação das penas, pela fixação das respetivas molduras abstratas, em função do tipo de crime.

A decisão de escolha e determinação das penas vem fundamentada nos seguintes termos:

“Estamos, pois, relativamente ao que vimos expondo – crimes de violência doméstica, ameaça agravada e detenção de arma proibida –, perante uma situação de concurso efectivo de crimes, nos termos do n.º 1 do art. 30º C.P., perpetrados pelo arguido em regime de autoria material.

Se os crimes de violência doméstica são puníveis apenas com pena de prisão, já quanto aos crimes de ameaça agravada e de detenção de arma proibida importará ponderar a questão da escolha das penas (dado que estes últimos são, em abstracto, puníveis com pena de prisão ou de multa).

Dirá o Tribunal que o caso concreto reclama a opção pela pena de prisão.

Com efeito, crê-se que escolher a pena de multa não permitiria a consecução dos objectivos plasmados no art. 40º/n.º 1 C.P. («a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»). Isto é, a pena de multa não realizaria de forma adequada e bastantes as finalidades da punição (art. 70º C.P.).

Realmente, e como se sabe, «(...) só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas (...)»; daí que «(...) determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta (...)» (Dr. Adelino Robalo Cordeiro, “Escolha e medida da pena”, in “Jornadas de Direito Criminal”, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, pág. 239).

O episódio dos autos enquadra-se em um todo contextual de óbvia (e desregulada, podemos dizê-lo) gravidade objectiva, denunciando da parte do arguido, e além do mais, uma atitude de ostensiva violência desrespeitadora de valores básicos do dever-ser jurídico-penal, na qual a ameaça e a utilização (nem que seja simbólica, aos “olhos” dos visados) das armas brancas em causa tiveram um papel importantíssimo no dito clima de condicionamento e amedrontamento criado pelo arguido.

Crê-se, pois, não ser a pena de multa meio bastante e adequado a promover, pelo menos nesta fase, a efectiva reintegração social do arguido.

Para a determinação das medidas concretas das penas a aplicar ao arguido, dentro das molduras abstractas cabidas ao caso [entre 2 anos e 8 meses a 6 anos e 8 meses de prisão, no caso da violência doméstica agravada relativa à demandante BB – arts. 152º/n.os 1-a) e c) e 2-a) C.P. e 86º/n.º 3 da Lei n.º 5/2006 –; entre 2 anos e 5 anos de prisão, quanto à violência doméstica agravada referente ao demandante CC – art. 152º/n.os 1-e) e 2-a) C.P. –; entre 1 mês e 2 anos de prisão, no caso de cada um dos crimes de ameaça agravada de que foi vítima o demandante DD – arts. 41º/n.º 1, 153º/n.º 1 e 155º/n.º 1-a), este último com referência ao art. 131º, todos C.P. –; e entre 1 mês e 4 anos de prisão, quanto ao crime de detenção de arma proibida – arts. 41º/n.º 1 C.P. e 86º/n.º 1-d), por referência aos arts. 2º/n.º 1-m) e 3º/n.º 2-ab) da Lei n.º 5/2006], tomar-se-á em conta o princípio geral contido no n.º 1 do art. 71º C.P.: a análise da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente. Entre esses limites, satisfazem-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (cfr., a este propósito, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss., e Prof. Claus Roxin, “Culpabilidad y prevención en derecho penal”, tradução espanhola, Reus, 1978, pág. 103).

A culpa funciona como fundamento e, sobretudo, como limite de pena a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.); as exigências de prevenção geral – de integração (as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) – e especial – de ressocialização – farão com que se encontre o quantum concreto de pena a aplicar. O que nos leva a admitir a possibilidade de uma sanção inferior à que seria dada apenas pela culpa (cfr., por todos, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime” citado, págs. 257 e ss., 298 e 299). Portanto, poderemos dizer – e é conveniente repetir esta ideia – que dentro do limite consentido pela culpa a medida da pena dependerá, ao cabo e ao resto, das necessidades preventivas: por um lado, das de ressocialização e reinserção social, e, por outro lado, das de prevenção geral de integração (ou seja – e como já foi referido –, as que se ligam à manutenção e ao reforço da confiança comunitária na validade “fáctica” das normas violadas – vide também, neste sentido, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra, 2001, pág. 105).

A partir do n.º 2 do art. 71º citado, considerar-se-ão in casu os seguintes elementos não integrantes dos tipos, que depõem contra ou a favor do arguido:

- o grau da ilicitude (que apela ao número e sentido de violação dos interesses ofendidos, aspecto em que importará realçar a carga ilícita do conjunto de comportamentos do arguido, usando de muita “força bruta” do ponto de vista psicológico, simbólico e comunicacional, nas pessoas dos ofendidos, merecendo, neste último particular, uma especial referência o caso dos demandantes BB e DD, absolutamente “fustigados” devido ao facto de terem construído uma relação afectiva sobre os “escombros” do extinto vínculo conjugal antes existente entre aquela demandante e o arguido; e surgindo o demandante CC, neste horizonte, como o menos directamente visado pela acrimónia do pai; por outro lado, as concretas armas – perigosíssimas, em si mesmas, nas potencialidade mortíferas que encerram – detidas pelo arguido), assim como o contexto da ocorrência dos factos (pautado pela referida agressividade sem freio da atitude do arguido, em uma fase da existência acerada pela incapacidade de ultrapassar o fim do seu casamento, ainda mais agravada pelos seus acentuados problemas de cariz psíquico e a tremenda instabilidade psicológica que lhe acarretaram; ademais – e sem que com isto incorramos em uma dupla valoração –, a grave circunstância de concretamente usar o arguido uma catana e uma machada enquanto expoentes de manifestação simbólica da sede de “vingança” por ele tantas vezes anunciada);

- as significativas consequências dos factos (aqui havendo que distinguir, de modo claro, entre o prolongado descontrolo, abalo e insegurança emocional que toda a postura do arguido provocou na demandante BB e, apesar de tudo – embora por razões diversas –, os efeitos menos intensos sentidos na vida e no espírito dos ofendidos CC e DD);

- o dolo do arguido (dolo directo quanto aos crimes de violência doméstica incidente sobre a demandante BB, de ameaças agravadas relativas ao demandante DD e de detenção de arma proibida – pois provado ficou que actuou de modo consciente e determinado, orientado por uma evidente voluntas de preenchimento dos tipos de ilícito em questão – e, no mínimo, dolo necessário no que ao crime de violência doméstica repercutido sobre o demandante CC tange);

- a personalidade do arguido (que, para além do descontrolo emocional revelado, parece também especialmente dedicado a um inquietante e muito agressivo “código de conduta” – acicatado pela sua significativa afecção psíquica –, compaginável com actos de evidente desrespeito pela vida familiar e daqueles que ele entenda como “desafiadores” de tal “código de conduta”), as suas condições de vida (ligada a hábitos laborais mais ou menos consistentes, até ao momento em que, por causa do fim do seu casamento e da existência de um novo projecto familiar do qual se viu afastado, aqueles hábitos foram por ele abandonados);

- a ausência de antecedentes criminais.

Tomando em consideração os aspectos acabados de mencionar, o Tribunal entende correcta a aplicação de uma pena de 4 anos de prisão no tocante ao crime de violência doméstica perpetrado sobre a demandante BB, uma pena de 2 anos e 3 meses de prisão quanto ao crime de violência doméstica praticado sobre o demandante CC, 6 meses de prisão no tocante a cada um dos crimes de ameaça agravada cometidos quanto ao demandante DD, e ainda 2 anos e 6 meses de prisão relativamente ao crime de detenção de arma proibida; em cúmulo jurídico, ao abrigo do art. 77º/n.os 1 e 2 C.P., ponderando-se, conjuntamente, a factualidade perpetrada e a agressiva, descontrolada e instável personalidade denotada pelo mesmo, afigura-se adequada a fixação da pena única de 5 anos e 6 meses de prisão para o arguido.

Crê-se, ainda, que, para a análise do presente caso ser mais certeira, não devermos esquecer não estarmos perante um arguido exactamente “igual aos outros”, com isto se pretendendo significar, tão-só, que as exigências de prevenção especial de socialização do arguido não são dissociáveis de um sério, profundo e aturado acompanhamento médico-psiquiátrico (de que, de algum modo, ocorreu um fruste e voluntário “arremedo”, quando, entre 14 e 30 de Dezembro de 2021, esteve internado no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário d. .......).

Ou seja, se – como acima já ficou abundantemente dito – a situação não é enquadrável sob o ponto de vista de uma eventual inimputabilidade do arguido (pois que o mesmo é imputável e, como tal, passível de um juízo de culpa – ainda que não acrescida, note-se – pelos factos por si praticados), parece ao Colectivo que a circunstância de o regime prisional comum se lhe revelar prejudicial – rectius, se revelar prejudicial à sua específica patologia psiquiátrica – só poderá ser obviada, nos termos do n.º 1 do art. 104º C.P., através de um internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis (com a panóplia terapêutica que a tal tipo de estabelecimento é inerente).

O internamento em causa (que não carece do consentimento do arguido …) pelo tempo correspondente à duração da pena de prisão há pouco alcançada, não impedirá, todavia, a eventual concessão de liberdade condicional nos termos gerais da lei penal, nem a hipotética colocação do arguido em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, se entretanto cessar a causa determinante do internamento (n.º 2 do art. 104º C.P.); acresce, por fim, que a revisão obrigatória da situação de internamento ocorrerá sempre nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 93.º (ex vi art. 107.º) C.P..

Entende-se ser esta, com efeito, a solução mais adequada no caso, pois que ao adoptar-se tal forma particular e mais individualizada de execução da pena privativa da liberdade em que foi condenado, e seguindo o comando constitucional do art. 25º/n.º 2 da nossa Lei Fundamental, se proporcionará ao arguido, pelos meios terapêuticos de que pode beneficiar, uma vivificação humanista no tocante ao cumprimento daquela mesma pena privativa da liberdade (a propósito, Prof. Maria João Antunes, “O internamento de imputáveis em estabelecimentos destinados a inimputáveis”, Coimbra, 1993, págs. 18 e 19).

Pelo exposto, e nos termos do n.º 1 do art. 104º C.P., decide-se ordenar o internamento do arguido em estabelecimento (de cariz médico-psiquiátrico) destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena de 5 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos (e sempre sem prejuízo do disposto no n.º 2 do referido art. 104º e nos n.os 1 e 2 do art. 93º, este ex vi art. 107º, todos C.P.).”

16. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, a qual se delimita pela conjugação dos fatores relevantes nos termos do artigo 71.º.

Por sua vez, estabelece do artigo 71.º (n.º 1) que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as indicadas no respetivo n.º 2.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com este preceito, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, a levar a efeito no momento da aplicação da pena, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro, e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na determinação e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, por todos, ao acórdão de 21.06.2023, Proc. n.º 257/13.7TCLSB.L1.S1, do mesmo relator, que se segue, bem como os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt e jurisprudência e doutrina neles citada.

17. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, definida, no mínimo, pela pena parcelar mais elevada e, no máximo, pela soma das penas concretamente aplicadas (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, os acórdãos de 21.06.2023, Proc. n.º 257/13.7TCLSB.L1.S1, de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S, cit. e de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1, que se seguem, em www.dgsi.pt).

Citando e seguindo o afirmado em decisões anteriores: “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – a personalidade manifestada no facto – é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).

18. A discordância do arguido manifesta-se em que “o tribunal a quo não valorou de forma adequada a confissão e colaboração do arguido”, “confessou a maioria dos factos e colaborou deste modo, para a descoberta da verdade material dos mesmos”, “é primário”, “não tem qualquer antecedente criminal”, “o fim da relação conjugal do arguido teve uma efeito absolutamente destrutivo na vida, no ânimo e nas perspectivas de futuro do mesmo”, “o tribunal a quo não valorou de forma adequada o facto de antes do fim do casamento o arguido se encontrar perfeitamente inserido na sociedade”, “é diagnosticável uma perturbação de adaptação e a existência de dificuldades de personalidade com traços proeminentes no domínio da impulsividade (relatório do exame pericial efectuado às faculdades mentais do arguido - cfr. fls. 900 a 903 dos presentes autos principais)”, “resulta do relatório que: “No momento da prática dos factos, o examinando preenchia critérios para o diagnóstico de Perturbação de Adaptação (6B43; CID-11). Admite-se ainda a presença de critérios para considerar a existência de Dificuldades de Personalidade (QE50.7; CID-11), com traços mais proeminentes no domínio da Desinibição (impulsividade) (6D11.3; CID-11)”, “esta circunstância de ter terminado o seu casamento alterou radicalmente a personalidade do arguido, alteração essa que foi do foro psíquico e que foi determinante para a conduta do arguido, como o próprio admitiu em audiência de julgamento”, “o Tribunal a quo não valorou tais circunstâncias e, em especial, o facto de à data dos crimes o recorrente padecer de doença do foro psíquico, situação que presentemente está controlada devido ao acompanhamento médico e à medicação”.

Sendo o recurso restrito a matéria de direito e importando notar que o arguido não impugnou a matéria de facto provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP – caso em que o recurso deveria ser apreciado no tribunal da relação (artigos 427.º e 428.º do CPP) –, nem invocou qualquer dos vícios de julgamento em matéria de facto a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – vícios que também não se revelam –, apenas os factos dados como provados anteriormente transcritos podem agora ser considerados, pelo que se deve excluir o que o recorrente agora alega, nomeadamente, a propósito da sua situação pessoal, sobre os efeitos do fim dos seu casamento e sobre o seu estado de saúde na parte em que excede ou não coincide com o provado nos autos.

19. Ora, da decisão recorrida resulta que, na determinação da medida da pena (supra, 15), o tribunal a quo levou em conta o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e o impacto da rutura conjugal na sua saúde, na sua vida e no seu comportamento, em particular quando ponderou o grau de ilicitude e o contexto da ocorrência dos factos e a sua personalidade, em consonância com o essencial da matéria de facto provada (pontos 94 a 98).

Não concretiza o arguido as razões da sua discordância quanto à valoração dos fatores que o tribunal julgou relevantes. Nem da decisão recorrida se manifesta visível discrepância de avaliação face ao critério legal.

Sempre se deverá sublinhar a circunstância de o tribunal ter conferido elevada importância ao estado de saúde do recorrente e às necessidades de tratamento, o que levou a determinar o cumprimento da pena em estabelecimento destinado a inimputáveis, nos termos do artigo 104.º do CP, para esse efeito.

20. Na consideração da gravidade dos fatores relevando por via da culpa, em particular das circunstâncias relativas ao grau de ilicitude, ao contexto e ao modo de execução dos crimes, à intensidade e persistência do dolo e às condições pessoais, e dos fatores relevantes por via da prevenção, nomeadamente o comportamento anterior aos crimes (antecedentes criminais), o tribunal fixou penas que, refletindo as diferenças das circunstâncias concretas de cada um dos crimes, se situam em escalões inferiores das molduras penais, não muito distantes dos mínimos legais.

Embora não expressamente referidas na fundamentação da determinação da pena, as condições socioeconómicas apuradas, revelando indicadores de integração social, não evidenciam particularidades com especial relevância para consideração adicional ao nível da agravação das exigências de prevenção.

Nesta conformidade, tudo ponderado, não se encontra fundamento que permita concluir que as penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, se mostram determinadas em violação dos critérios de proporcionalidade que lhe devem presidir, de modo a justificar-se qualquer intervenção corretiva.

21. Na alegação do recorrente, a alteração da medida da pena única seria o resultado da alteração das penas parcelares, que, a verificar-se, alteraria a moldura do cúmulo a partir da qual se deveria fixar aquela pena.

Não é o caso, por as penas singulares se manterem inalteradas.

De qualquer forma, também pelos mesmos motivos, que relevam como critérios gerais para determinação da pena única, na consideração da personalidade manifestada nos factos, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, por via da ponderação dos fatores relevantes, nomeadamente das condições pessoais e socioeconómicas, do comportamento anterior e posterior aos crimes, não se identifica motivo que, tendo em conta a moldura abstrata do cúmulo, entre 4 anos (pena parcelar mais elevada) e 13 anos e 9 meses (soma das penas concretamente aplicadas) de prisão, autorize a conclusão de que a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, igualmente fixada em medida próxima do mínimo legal, foi determinada em violação de idênticos critérios de proporcionalidade.

Pelo que o recurso não merece provimento.

Quanto à indemnização ao demandante DD

22. O demandante DD deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, por via do qual pugnou pela condenação deste último no pagamento da quantia de € 1.500 a título compensatório por danos não patrimoniais.

Julgando verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar, o tribunal a quo condenou o arguido e demandado a pagar ao demandante a quantia de € 500. O que fez nos seguintes termos:

“(…)

Os pressupostos da obrigação de indemnizar verificam-se in casu (lidando nós com uma actuação bem dolosa, por parte do demandado), sendo evidente a ofensa de direitos dos demandantes (…) e DD.

Estamos a falar de danos de cariz não patrimonial, relativamente aos quais a correspectiva compensação procura proporcionar um ressarcimento tendencial da angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquico-emocional, advenientes do mal sofrido. Abrangerá uma tal compensação as consequências passadas e futuras resultantes das lesões emergentes do evento danoso (cfr. art. 496º/n.º 1 C.C.). Na verdade, devem ser considerados os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.º 3 do art. 496º citado); no entanto, e se é certo que por não atingirem o património dos lesados a obrigação de os ressarcir apresenta (como há pouco se disse) uma natureza compensatória mais do que indemnizatória, nem por isso se deve esquecer, contudo, a vertente sancionatória (Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em geral” e volume I citados, pág. 602). Com efeito, trata-se de prejuízos de natureza infungível, em que por isso (e ao contrário do que acontece com a indemnização) não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão-só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro.

Ora, o art. 70º C.C. consagra a tutela da personalidade, impondo a protecção dos indivíduos contra quaisquer ofensas ilícitas à sua personalidade física ou moral.

É inequívoco que no âmbito da tutela civil da personalidade física e moral a integridade psíquica (com a paz de espírito que é suposto acompanhá-la) constitui uma das dimensões mais lídimas dessa mesma personalidade, devendo ser entendida, além do mais, como o poder de autodeterminação da pessoa no confronto com a sua própria mundividência interior e, sobretudo, na relação com os outros.

Não espanta, portanto, que uma situação como a descrita nos autos (com um conjunto de agressões psicológicas e maus tratos de elevada carga simbólica) haja acarretado para os demandantes (com muitíssimo maior incidência na especialmente, a saber, na demandante BB) instabilidade psicológica e sensação de insegurança e desprotecção ao longo de períodos temporais já significativos.

Impõe-se, pois, a fixação de uma adequada compensação, à luz dos critérios expostos no acima citado art. 496º/n.º 3 C.C., recondutíveis à equidade, com referência à extensão dos danos, ao grau de culpa do lesante, à situação económica deste e dos lesados e demais circunstâncias que relevam in casu. (…)

Por fim, ao demandante DD, conquanto a sua “perseguição” ameaçadora por parte do demandado seja evidente, entendemos haver ele denotado, apesar de tudo, uma capacidade de “reacção” (porventura excessiva…?) às actuações do demandado, pelo que se nos afigura congruente, no quadro factual ocorrido, fixar-lhe o montante compensatório na quantia de € 500.”

23. Quanto ao recurso da decisão sobre o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, estabelece o artigo 400.º, n.º 2, do CPP que, “sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º [recurso para a relação] e 432.º [recurso para o Supremo Tribunal de Justiça], o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”. Estabelecendo o n.º 3 do mesmo preceito que “[m]esmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.

Impõe, por conseguinte, este preceito, que coincide com o artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dois critérios cumulativos de admissibilidade do recurso da sentença relativamente a matéria cível: o recurso é admissível “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido” – o denominado critério da alçada ou do valor – “e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência.

A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação. A alçada dos tribunais da Relação em matéria cível é de € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00 (artigo 44.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

No caso, sendo de € 1.500,00 o valor do pedido, não se cumpre o critério da alçada do tribunal recorrido. Nem, obviamente, o critério da sucumbência.

Pelo que, por inadmissibilidade, se rejeita o recurso nesta parte.

Quanto a custas

24. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.

A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

25. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar improcedente o recurso quanto à matéria penal; e

b) Rejeitar o recurso quanto à matéria civil, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de outubro de 2023.

José Luís Lopes da Mota

(juiz conselheiro relator)

Pedro Manuel Branquinho Dias

(juiz conselheiro adjunto)

Ernesto Vaz Pereira

(Juiz conselheiro adjunto)