Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
041085
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CERQUEIRA VAHIA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CARTA PRECATÓRIA
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA
PROCESSO DE TRANSGRESSÃO
PROCESSO SUMARISSIMO
INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
Nº do Documento: SJ19911016041085
Data do Acordão: 10/16/1991
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Referência de Publicação: DR IS 22-11-1991, PÁG. 6078 A 6080 - BMJ Nº 410, PÁG. 43
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O TRIBUNAL PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
A excepção prevista no n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, exige tão-só - para além do requisito do prazo aí referido - que a condenação pelo primeiro crime exista no momento da condenação pelo segundo crime, sendo indiferente que este ocorra antes ou após aquela condenação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, pelo plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1 - O digno agente do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, recorreu para o plenário desta Secção Criminal do Acórdão daquela Relação de 21 de Fevereiro de 1990 (processo n.º 10058, 3.ª Secção), que estaria em oposição com o anteriormente decidido no Acórdão do mesmo Tribunal de 25 de Outubro de 1989 (processo n.º 980, 5.ª Secção), sobre a interpretação do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, na parte em que estabelece:
[...] salvo se o agente já tiver sido condenado pela prática deste crime e entre a data da prática daquele crime e a data de emissão do cheque por que responde não tiverem decorrido mais de cinco anos.
Pretende se profira decisão que resolva o conflito em referência e fixe a jurisprudência no que respeita à questão nele controvertida.
2 - Por acórdão a fls. 21 e 22, mostra-se decidida a existência da invocada oposição.
Efectivamente, enquanto o Acórdão de 25 de Outubro de 1989 interpretou o n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, na parte transcrita, no sentido de que «a data da condenação pelo primeiro crime deve ser anterior à data da emissão do segundo cheque», já o Acórdão de 21 de Fevereiro de 1990 entendeu que «a data da condenação pelo primeiro crime deve ser anterior à data da condenação pela emissão do segundo cheque».
Esses acórdãos foram prolatados no domínio da mesma legislação, em processos diferentes, e transitaram em julgado.
Estão verificados todos os pressupostos para ser proferida a pretendida decisão.
3 - Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro:
1 - ...


2 - ...


3 - O pagamento ou o depósito previstos nos números anteriores efectuados até ao encerramento da audiência de julgamento determinarão a suspensão da execução da pena que ao caso couber, salvo se o agente já tiver sido condenado pela prática deste crime e entre a data da prática daquele crime e a data de emissão do cheque por que responde não tiverem decorrido mais de cinco anos. [O sublinhado é nosso.]

Não se conhece decisão de qualquer outra relação sobre o tema que nos aflige, o qual também até agora não foi tratado por este Supremo Tribunal.
A solução a dar a tal tema é idêntica à propugnada pelo acórdão recorrido:
[...] para funcionar a excepção prevista no n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, basta que, no momento da condenação pelo segundo crime, exista condenação pelo primeiro crime, e não já antes da prática do segundo crime, ou seja: da data da emissão do segundo cheque. É o que resulta do texto do citado normativo. Aí se referem, com efeito, a data da prática do primeiro crime e a condenação por este crime; mas nenhuma referência há sobre a necessidade da verificação da última ao tempo da emissão do segundo cheque. O que não quer dizer que esta tenha de ser posterior àquela. Pois tal não é preciso para que o agente «tenha sido já condenado pelo mesmo crime».

O que a lei visa é condicionar, em parâmetros muito certos, a concessão do benefício da suspensão da execução da pena, ao nível da homotropia na passagem de cheques sem provisão. E este efeito passa pela verificação de que decorreu um determinado período de tempo entre duas emissões pela mesma pessoa, em relação à primeira das quais houve condenação, antes de a segunda condenação (pela segunda emissão) ter tido lugar. Os confrontos a estabelecer, na realidade, verificam-se entre emissões, por um lado, e entre condenações, por outro lado, ou seja: a dois tempos e entre unidades da mesma espécie. É o que decorre nítido da mens legis e a seguir se explicitará.
Vejamos.
4 - O artigo 6.º da Lei n.º 25/81, de 21 de Agosto, que alterou o artigo 24.º do Decreto n.º 13004, de 12 de Janeiro de 1927, excluiu a suspensão da pena - em casos de pagamento ou depósito - do terreno específico dos reincidentes. E estes eram, então, ope legis, os que, em típicas circunstâncias, voltassem a delinquir antes de terem passado oito anos desde a condenação anterior.

Quando apareceu o Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, vigorava já o Código Penal de 1982. E a este não ficou insensível o legislador daquele, v. g. no plano da reincidência, que passou a funcionar ope judicis.
O mesmo legislador, justamente impressionado pelo relevo social da emissão de cheques sem provisão, pretendeu eliminar o risco de reincidências emitidas e, motivado por exigências de segurança, de prevenção e de repressão, retornou ao ope legis. Sem ter deixado de seguir, muito de perto, a redacção do n.º 2 do artigo 76.º do Código Penal de 1982.
Ainda assim, o artigo 1.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, não impõe que a segunda emissão seja posterior à primeira condenação. E precisamente porque, em face de terreno onde prolifera criminalidade alarmante, entendeu não dever articular soluções de continuidade, facilmente manobráveis pelos mais ágeis e mais astutos.
O que sobra, portanto, é que há-de haver uma condenação depois de outra condenação. E a primeira, naturalmente, há-de referir-se ao primeiro facto. Do mesmo passo que a segunda se reporta ao segundo facto, sem que este tenha de ser posterior àquela. Porque não vem a terreiro o problema da eficácia da condenação anterior sobre o agente, num limbo onde se trata, sobretudo, de desmotivar uma certa propensão criminosa ou facilidade em delinquir, objectivamente posta em curso. Com preocupações de estabelecer um efectivo saneamento social pela dignificação do cheque, sem embargo de prudente proposta premial. E em claro desvio do regime próprio da reincidência pura.
5 - São termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, se mantém a decisão impugnada e se fixa jurisprudência pela forma seguinte:
A excepção prevista no n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, exige tão-só - para além do requisito do prazo aí referido - que a condenação pelo primeiro crime exista no momento da condenação pelo segundo crime, sendo indiferente que este ocorra antes ou após aquela condenação.
Sem tributação.

Cumpra-se o artigo 444.º do Código de Processo Penal.


Lisboa, 16 de Outubro de 1991.


António Cerqueira Vahia - Agostinho Pereira Santos - Victor Manuel Lopes Sá Pereira - Luís Vaz de Sequeira - José Alfredo Soares Manso Preto - José Saraiva - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Manuel Lopes Maia Gonçalves - Armando Pinto Bastos - Fernando Ferreira de Sousa Sequeira - Fernando Faria Lopes de Melo - Bernardo Guimarães Sá Nogueira (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - José Alexandre Lucena e Valle.

Declaração de voto


Vencido. Votei no sentido de que a uniformização da jurisprudência deveria ser feita da seguinte forma:

A expressão «salvo se o agente já tiver sido condenado pela prática deste crime e entre a data da prática daquele crime e a data da emissão do cheque por que este responde não tiverem decorrido mais do que cinco anos», constante do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro, deve ser interpretada no sentido de que a emissão do primeiro cheque e a correspondente condenação devem ser anteriores à data da condenação pela emissão do segundo cheque.
E a razão de ser dessa posição é a seguinte:

O entender-se que não é necessário que a condenação pelo primeiro cheque se verifique antes da emissão do segundo para se poder aplicar o comando daquele artigo 1.º do Decreto-lei n.º 14/84 conduz à situação, a meu ver anómala, de se tornar necessário proceder a um julgamento final para se proceder a um cúmulo de penas dos dois processos, dado que os dois crimes terão passado a ter sido cometidos em acumulação real (artigo 78.º do Código Penal), e de se tornar possível a aplicação de uma pena suspensa pelo primeiro de tais crimes, mas não pelo segundo.

Por outras palavras, a solução vencedora impede a possibilidade de se suspender a pena a quem quer que seja que tenha emitido, mesmo que com pequeno intervalo temporal, dois ou mais cheques sem provisão, sem embargo de, legalmente, um tal agente, em grande parte dos casos, dever ser punido com uma única pena unitária, em virtude de ter actuado em concurso de infracções.
Creio, por isso, que o espírito da lei terá sido, como, de resto, é uma longa tradição do nosso direito, só impedir a aplicabilidade do instituto da suspensão da pena, no caso de uma segunda condenação pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, quando a emissão deste último seja posterior à condenação pelo anterior crime da mesma natureza. Se o legislador tivesse querido dar ao preceito em análise o sentido votado pela maioria, teria, certamente, utilizado uma expressão que indubitavelmente significasse que a emissão, ainda que simultânea, de dois ou mais cheques sem provisão impediria, em todas e quaisquer circunstâncias, a suspensão das penas respectivas, mesmo que viesse a haver lugar à aplicação de uma pena unitária por se verificar um possível concurso de infracções. - Bernardo Guimarães Sá Nogueira.