Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2186/18.9T8STS-A.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIDA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
OFENSA DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Não deve haver condenação como litigantes de má-fé da parte que defende a inexistência da excepção de caso julgado relativamente a alguns pedidos que formulou na acção, apesar de o Tribunal entender que se verificava a excepção de caso julgado em relação a tais pedidos, pois que a má-fé não se confunde com a improcedência do pedido por diferente interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos em análise, nem pode ser entendido como litigância de má-fé a defesa convicta e séria de determinada interpretação das normas legais ainda que essa posição não convença nem seja, no entendimento do julgador, a mais correcta juridicamente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

  

l.  AA e cônjuge BB, CC e cônjuge DD, e EE, solteira, maior, intentaram a presente acção com processo comum contra a Herança indivisa aberta por óbito de FF e mulher GG, representada pela cabeça de casal, HH, e II e marido JJ, formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarado que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 19 desta petição.

b) Ser declarado que que a parcela com 24 m2 identificada na planta anexa sob doc. 6 é parte integrante desse prédio.

c) Serem os RR. condenados a tal reconhecer e condenados a restituírem a referida parcela completamente livre de coisas e bens,

d) Ser declarado que sobre o prédio descrito em 10 desta petição incide uma servidão de passagem a favor do prédio dos AA melhor descrito em 1 desta petição e que consiste no direito de passar a pé, tractor ou outro veiculo pela faixa de terreno destinada a caminho, com inicio na Rua do ..., prologando-se por 80 metros até à esquina do edifício industrial, por 3,60 mts de largura em toda a sua extensão, conforme descrito na planta anexa sob doc. 6.

e) Serem os RR. condenados a reconhecerem tal servidão e absterem-se de praticar qualquer ato que impeça a passagem.

f) Ser ordenada a demarcação do caminho de acordo com o assente na sentença proferida no processo nº 3135/13.... que correu termos pelo extinto ... Juízo Cível do Tribunal Judicial ..., ou seja, com 80 metros de comprimento, a contar da esquina do edifício industrial até à Rua do ... (ou vice-versa) e com 3.60 mts de largura nessa extensão.

g) Serem condenados os RR. a concorrer para tal demarcação, através da construção de um muro ou colocação de marcos com arames ou rede.

h) Serem os RR. condenados a pagarem aos AA. a quantia de € 13.500,00 (treze mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

i) Serem os RR. condenados a pagarem a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de indemnização pela construção do muro, com grade, face à Rua do ..., feita pelos AA. no prédio descrito em 10 desta petição.


2. Citados, contestaram os RR. II e cônjuge, invocando, além do mais, a excepção do caso julgado, dizendo, em síntese, que a presente acção configura uma repetição de uma outra, decidida por sentença transitada proferida no processo n° 3135/13...., porquanto existe identidade de sujeitos, os pedidos formulados pretendem obter o mesmo efeito jurídico e derivam dos mesmos factos, sendo a mesma a causa de pedir numa e noutra acção.

3. No saneador, foi proferida decisão que julgou procedente a excepção de caso julgado quanto aos pedidos formulados pelos autores em b), c), f) g) e i) e matéria de fato aduzida na petição inicial de 13° a 34° e 63° a 81° que deve considerar-se eliminada, e improcedente a excepção do caso julgado quanto aos pedidos formulados pelos Autores em d) e e).


4. Inconformados, apelaram os Autores para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 22 de Março de 2022, decidiu «acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a douta decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Notifique-se ainda as partes para, em dez dias, querendo, se pronunciarem sobre a sanção e montante da indemnização a fixar aos apelantes por litigância de má-fé.».


5. Após reclamação de nulidades foi proferido o Acórdão de 7 de Setembro de 2022 que indeferiu as invocadas nulidades e decidiu quanto à litigância de má-fé o seguinte:

«No tocante à condenação dos recorrentes como litigantes de má-fé, é rejeita-se que se trate de decisão surpresa, porquanto a questão foi devidamente suscitada nas contra-alegações dos recorridos, que a peticionaram aduzindo os fundamentos a tal conducentes.

Resta fixar os montantes da multa e da indemnização, conforme o disposto no art.º 542.º, n.º 1 e 2, do CPC.

No tocante à multa, dado tratar-se de acção julgada em fase de saneamento, sem exigir a realização de sessões de julgamento e produção de prova, deve fixar-se em montante próximo do limite mínimo previsto no n.º do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais. Que aqui se fixa em 3 (três) UCs.

No tocante à indemnização, considerando que não vêm discriminados pelos recorridos outros custos, não recuperáveis através do pagamento das custas de parte previsto pelos artº.ºs 25.º a 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, havendo apenas a reparar os incómodos e aborrecimentos decorrentes da sujeição a um novo processo sem motivo justificativo, fixa em € 1.000 (mil euros) a indemnização devida aos recorridos.

Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em desatender as nulidades arguidas e em fixar nos termos sobreditos o montante da multa e da indemnização a cargo dos recorrentes/reclamantes


6. Inconformados, KK e LL, interpuseram RECURSO DE REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam as seguintes conclusões:

A. Os Recorrentes e o aqui mandatário têm o máximo de respeito pelas decisões dos tribunais, contudo, no presente processo e no antecedente não concordaram com as doutas decisões e usaram dos meios de tutela jurisdicional à sua disposição.

B. Os recorrentes nunca tiveram qualquer intenção de subverter o anterior caso julgado.

C. Os recorrentes agiram conscientes de que pleiteiam de forma correta, adequada e crentes na sua razão e no fundamento da sua pretensão, tendo observado os deveres de probidade, retidão, cooperação e de boa-fé,

Sucede que:

D. Por douto acórdão de 22/03/2022, o Tribunal a quo condenou os recorrentes como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor dos recorridos, sem ter quantificado os respetivos montantes

E. Fê-lo sem que, previamente, tivesse dado oportunidade aos ora recorrentes para 11 exercer o contraditório, violando assim as disposições constantes dos artigos 3º, nº3 e 195º, ambos do C.P.C., bem como do artigo 20º da CRP.

F. Apenas e tão só limitou-se a ordenar a notificação às partes para se pronunciarem sobre os montantes da sanção e da indemnização “a fixar aos apelantes por litigância de má-fé”, ou seja, o tribunal a quo condenou primeiro os ora Recorrentes como litigantes de má-fé e posteriormente noticiou-os para se pronunciaram sobre osa quantificação dos montantes,

G. Assim sendo, o Tribunal a quo condenou os recorrentes como litigantes de má-fé, sem que previamente tivesse dado oportunidade para exercer o contraditório, violando assim as disposições constantes dos artigos 3º, nº3 e 195º, ambos do C.P.C., bem como do artigo 20º da CRP.

H. O tribunal a quo, na douta decisão de 28/09/2022, rejeitou que se tratasse de uma decisão surpresa, porquanto a questão foi devidamente suscitada nas contra-alegações dos recorridos, que a peticionaram aduzindo os fundamentos a tal conducentes.

I. Não se pode aceitar tal fundamentação, pois que como é sabido, as contra-alegações correspondem a um articulado de resposta às alegações do recorrente, não se encontrando-se legalmente prevista a apresentação de um articulado posterior, pelo que não tinham os ora recorrentes um articulado para responder à alegação de má-fé.

J. Impunha-se, assim, ao Tribunal que, previamente à condenação, notificasse os recorrentes para se pronunciarem sobre a alegação do Recorrentes, em cumprimento do princípio do contraditório – cuja observância se impõe ao longo de todo o processo (artigo 3º, nº3 do C.P.C.) –, mas, principalmente, porque se trata de uma decisão lesiva e causadora de prejuízo (significativo) aos recorrentes.

K. Salvo melhor opinião, não podia o tribunal a quo ter condenado os recorrentes com litigantes de má-fé e somente após os notificar para exercer o contraditório apenas para a quantificação da multa e indemnização.

L. Acresce que, no tocante à indemnização, o tribunal a quo, considerou que não 12 vêm discriminados pelos recorridos outros custos, não recuperáveis através do pagamento das custas de parte previsto pelos artº.ºs 25.º a 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, havendo apenas a reparar os incómodos e aborrecimentos decorrentes da sujeição a um novo processo sem motivo justificativo, fixou em € 1.000 (mil euros) a indemnização devida aos recorridos.

M. Sucede que, os recorridos, expressamente notificados para se pronunciarem sobre o montante da indemnização nada alegaram a respeito da necessidade de reparação de “incómodos e aborrecimentos” decorrentes da instauração dos presentes autos,

N. Os recorridos apenas invocaram a existência de “despesas elevadas e injustificadas” decorrentes do processo, o que, salvo melhor opinião, não pode ser relevado para efeitos da determinação do montante, porque se tratam de meras conclusões, sem conter quais factos,

O. Tratam-se de despesas recuperáveis através do pagamento das custas de parte – conforme consta do douto acórdão

P. Não invocaram os recorridos qualquer outro prejuízo por si sofrido, pelo que, sendo aquelas despesas recuperáveis em sede de custas de parte, não é devida qualquer indemnização aos recorridos.

Q. Sendo certo que os ora recorridos não invocaram a má-fé na primeira instância, pelo que não se aceita que a interposição de um recurso possa ser fundamento para a alegação e condenação.


7. Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.


8. O Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


Encontram-se provados os seguintes factos:

1. A sentença de 1ª instância teve como fundamentação o seguinte:

«Cumpre, então, averiguar se estamos no caso ora em apreço perante a tríplice identidade referida. Entende-se que existe identidade de sujeitos quando estes, em ambas as causas, ocupam a mesma posição jurídica (qualidade jurídica) de acordo com a terminologia acolhida no art. 581° /2, do supracitado diploma legal) ou atuam como titulares da mesma relação substancial, não tendo tal identidade necessariamente de coincidir com a identidade física ou posição processual dos sujeitos (nesse sentido, Jacinto Rodrigues Bastos; Notas ao Código de Processo Civil, vol Ill, 3. a edição, Lisboa, 2001, pág 47 e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. Ill, 4. a edição, págs. 97 e 101).

Haverá identidade dos pedidos, por outro lado, se houver coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo Autor, do conteúdo e objecto do direito a tutelar por referência ao efeito jurídico que, com a acção, o Autor pretende obter (cfr. art. 581° /3).

A identidade da causa de pedir, por último, pressupõe que seja idêntico o acto ou facto jurídico de onde o Autor pretende ver retirado o seu direito. Pressupõe que o ato ou facto jurídico donde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito que se pretende, o facto constitutivo direito à mudança na ordem jurídica que se peticiona - cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, III vol, pág. 123.

Transpostas estas considerações para o caso sub judice e compulsado tudo o que foi alegado por ambas partes e todos os elementos documentais juntos, teremos de concluir pela verificação parcial da exceção de caso julgado, porquanto, embora os sujeitos possam sejam os mesmos, todavia, não se verifica a total identidade de pedidos e de causas de pedir num caso e noutro.

Na verdade, ambos os processos se configuram como uma acção de reconhecimento do direito de propriedade e acção de reivindicação, em que a causa de pedir é integrada pelo direito de propriedade e sua violação, acrescendo que, na presente acção é ainda, em cumulação, formulado os seguintes pedidos:

a) pedido de reconhecimento pelos Réus de um direito de passagem a favor do prédio dos Autores sobre o prédio da herança dos Réus designadamente sobre o caminho cuja propriedade foi reconhecida pertencer aos Réus na sentença transitada em julgado proferida no processo n° 3135/13.... e a cuja restituição definitiva foram os Autores condenados;

b) pedido de demarcação do caminho de acordo com o dispositivo da sentença transitada em julgado proferida no processo n° 3135/13.... e a cuja restituição definitiva foram os Autores.

c) Condenação dos Réus a concorrer para a referida demarcação através da construção de um muro ou colocação de marcos com arames ou rede;

d) Condenação dos Réus a pagar a título indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais a quantia de € 13.500,00;

e) Condenação ao pagamento da quantia indemnizatória relativa à construção pelos Autores de um muro com grade face à Rua do ..., no prédio dos Réus.

De referir que os Autores invocam como causa de pedir para os pedidos de reconhecimento e reivindicação formulados de a) a c) e f), g) e i) o desrespeito por parte dos Réus da sentença, referindo no entanto que, no processo n° 3135/13.... defendeu que o caminho tinha largura e comprimento diferente e que viu a sua posição ter decaimento, mas pretendendo pela presente acção, arrogar-se proprietário já não do caminho mas da parcela de área de 24 m2 que corresponde à diferença de largura e comprimento do caminho que arguiu existir na outra acção e que não teve vencimento, pois ali se provou que o caminho tinha apenas a largura e cumprimento constante dos fatos assentes de 10 a 13, ou seja, não temos duvida que os Autores, de forma capciosa, pretendem obter o mesmo efeito jurídico que pretenderam obter na acção de processo n°s 3135/13...., ainda que de forma mais circunscrita, ou seja, o reconhecimento e reivindicação de uma parcela daquele mesmo caminho, esquecendo-se do efeito de força da autoridade de caso julgado. Por força da autoridade de caso julgado, impõe-se aceitar a decisão proferida no primeiro processo, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas são exactamente as mesmas que os autores aqui pretendem ver apreciadas e discutidas. Há, pois a necessária relação de prejudicialidade. De outro modo, a decisão proferida no primeiro processo - abrangendo os fundamentos de facto e de direito - que lhe dão sustento, seria posta em causa, de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo.

De referir que os pedidos de demarcação ora formulados não se configuram como uma verdadeira intenção própria de uma acção de demarcação, em que a causa de pedir se traduz na incerteza dos limites de prédios contíguos pertencentes a pessoas diferentes, e em que o que se deve pedir é a definição dos limites dos terrenos confinantes, no caso confinantes ao caminho, e não mais uma vez, a concretização da pretensão de reconhecimento do seu direito a uma parcela do caminho obtida pela alegação de uma diferença de largura e comprimento do caminho que arguiu existir na outra acção e que não teve vencimento, pois ali se provou que o caminho tinha apenas a largura e cumprimento constante dos fatos assentes de 10 a 13.

De referir que a pretensão constante do pedido formulado em g) e a pretensão indemnizatória referida em i) não só decorrem da restituição ordenada por violação pelos Autores (Réus na referida acção) do direito de propriedade dos Réus (Autores na referida acção) violação constatada na sentença transitada em julgado o processo n° 3135/13...., que tem como corolário a restituição ao esbulhado e perda de benfeitorias ou obras efectuadas pelo esbulhador, sendo que a formulação de tais pedidos se configuram ainda como abuso de direito.

Diferentemente, não existe identidade da causa de pedir e dos pedidos formulados em

d) e e) com a da acção de processo n° 3135/13...., caso em que está em causa da constituição de uma servidão de passagem por usucapião em que são os alegados actos materiais de posse com certas características, pelo período legalmente fixado que conduzem a um certo modo de aquisição do direito- cfr. artigos 35° a 42° da petição inicial, pelo que teremos de concluir pela não verificação da excepção de caso julgado, porquanto, embora os sujeitos possam ser os mesmos, todavia, não se verifica identidade de pedidos e de causas de pedir num caso e noutro”.


2 - Diz o Acórdão recorrido na sua fundamentação «No tocante aos pedidos de demarcação do caminho e de custeio da reconstrução do muro divisório, formulados sob as alíneas f), g) e i), também a anterior sentença proferida no proc.º 3135/13.... definiu já o direito entre as partes, ao condenar os recorrentes (aí réus) a reconstruírem o muro de suporte que destruíram e que fazia a divisão de ambos os prédios. Perante tal dispositivo, já confirmado e transitado em julgado, é óbvio que nenhuma outra demarcação poderiam os recorrentes aqui pretender e discutir que não aquela que decorre da reconstrução do muro, nos exactos termos que preexistiam à sua destruição, inteiramente a expensas dos recorrentes, conforme já foi decidido. A posição dos recorrentes, nessa sede, pretendendo subverter o anterior julgado, configura algo mais grave que o abuso de direito, tratando-se de dedução de pretensão cuja falta de fundamento, com um mínimo de diligência, não deveriam ignorar. O que os coloca sob a alçada do disposto no art.º 542.º, n.º 1 e 2, al. a), do CPC, justificando o seu sancionamento como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dos recorridos, como vem pedido. Improcedendo inteiramente o recurso.».


III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pelos Recorrentes a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas a seguinte:


1ª- Os Recorrentes AA e outros, litigam de má-fé?

Vejamos

Relativamente à má-fé dispõe o n.º 1 do artigo 542.º do CPC (art.º 456.º CPC 1961) «Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo «Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

A condenação por má-fé assenta na violação dos princípios gerais de cooperação, de recíproca correcção que é imposta às partes, no dever de agirem de boa-fé.

Na anterior redacção do artigo 456 do CPC era entendimento pacífico que a condenação como litigante de má-fé, em qualquer das suas modalidades (material ou instrumental), exigia uma actuação dolosa.

Só havia má-fé se a parte actuasse com dolo não bastando a mera negligência, ainda que grave ou grosseira. A lide temerária não podia ser considerada de má-fé.

Com o novo regime foi alargado o dever de boa-fé processual.

Hoje a condenação por má-fé pode fundar-se também em erro grosseiro ou culpa grave da parte litigante.

A negligência grave ocorre quando a parte não toma as precauções exigidas a um homem minimamente prudente, pelo que a má-fé deverá traduzir um comportamento objectivamente desonesto. 

A condenação de uma das partes como litigante de má-fé implica uma apreciação cuidadosa da parte do julgador, não podendo confundir-se a má-fé não só com a improcedência do pedido, por não se ter conseguido provar o alegado, mas também com a improcedência do pedido por diferente interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos em análise.

E também não deve ser entendido como litigância de má-fé a defesa convicta e séria de determinada interpretação das normas legais ainda que essa posição não convença nem seja, no entendimento do julgador, a mais correcta juridicamente.

O Acórdão recorrido fundamenta a condenação dos Recorrentes como litigante de má-fé nos n.ºs 1 e 2 alínea a) do art.º 542 já referido, pois ao intentar a presente acção os Recorrentes «No tocante aos pedidos de demarcação do caminho e de custeio da reconstrução do muro divisório, formulados sob as alíneas f), g) e i), também a anterior sentença proferida no proc.º 3135/13.... definiu já o direito entre as partes, ao condenar os recorrentes (aí réus) a reconstruírem o muro de suporte que destruíram e que fazia a divisão de ambos os prédios. Perante tal dispositivo, já confirmado e transitado em julgado, é óbvio que nenhuma outra demarcação poderiam os recorrentes aqui pretender e discutir que não aquela que decorre da reconstrução do muro, nos exactos termos que preexistiam à sua destruição, inteiramente a expensas dos recorrentes, conforme já foi decidido. A posição dos recorrentes, nessa sede, pretendendo subverter o anterior julgado, configura algo mais grave que o abuso de direito, tratando-se de dedução de pretensão cuja falta de fundamento, com um mínimo de diligência, não deveriam ignorar».

Vejamos esses pedidos:

f) Ser ordenada a demarcação do caminho de acordo com o assente na sentença proferida no processo nº 3135/13.... que correu termos pelo extinto ... Juízo Cível do Tribunal Judicial ..., ou seja, com 80 metros de comprimento, a contar da esquina do edifício industrial até à Rua do ... (ou vice-versa) e com 3.60 mts de largura nessa extensão.

g) Serem condenados os RR. a concorrer para tal demarcação, através da construção de um muro ou colocação de marcos com arames ou rede.

i) Serem os RR. condenados a pagarem a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de indemnização pela construção do muro, com grade, face à Rua do ..., feita pelos AA. no prédio descrito em 10 desta petição.

São estes os pedidos que o Acórdão entende terem sido formulados com violação das regras da boa-fé, suportando a condenação como litigantes de má-fé dos recorrentes.

Afigura-se-nos que sem razão.

Na verdade, os Recorrentes repudiam a ideia de terem litigado de má-fé, admitindo que, por sua inépcia, não tenham logrado mostrar a realidade fáctica ao Tribunal.

 Continuam a defender que não se verifica a excepção de caso julgado, uma vez que as realidades fácticas são diversas.

Assim, defendem que a parcela de terreno de 24 m2 não se confunde com o caminho que é parte integrante do prédio dos recorridos nem o muro de suporte (localizado entre os prédios e que os recorrentes foram condenados a reconstruir) se confunde com o muro divisório (localizado entre o prédio dos recorridos e a Rua do ...).

Os Recorrentes continuam convencidos de que estamos perante realidades ou elementos absolutamente distintos e que se tivesse sido realizada uma inspecção ao local, facilmente se concluiria que os recorrentes não agiram de má-fé, nunca foi intenção dos recorrentes subverter o anterior caso julgado.

Ora, analisando a factualidade ponderada na decisão recorrida (bem como a alegada) e considerando os pedidos em causa (lembre-se mais uma vez que na condenação por litigância de má-fé estiveram apenas em causa os pedidos de demarcação do caminho e de custeio da reconstrução do muro divisório, formulados sob as alíneas f), g) e i), sendo certo que o acórdão recorrido considerou que neste particular «também a anterior sentença proferida no proc.º 3135/13.... definiu já o direito entre as partes, ao condenar os recorrentes (aí réus) a reconstruírem o muro de suporte que destruíram e que fazia a divisão de ambos os prédios») não vemos como se pode afirmar que os Recorrentes pretendem subverter o já decidido nos autos nº 3135/13.....

Recorde-se que a decisão apenas julgou procedente a excepção de caso julgado relativamente a 5 dos 9 pedidos formulados, sendo que prosseguiu quanto aos demais e este recurso respeita apenas à condenação por litigância de má-fé restrita a 3 pedidos dos 5 abrangidos pela excepção de caso julgado.

Os recorrentes estão convictos de que pleiteiam de forma correta, adequada e crentes na sua razão e no fundamento da sua pretensão agindo segundo os princípios da boa-fé.

E não vemos razões para afirmar, como o faz o Acórdão recorrido, que os Recorrentes litigam deduzindo «pretensão cuja falta de fundamento, com um mínimo de diligência, não deveriam ignorar não só com abuso de direito, mas com má-fé».

Perante os pedidos formulados e considerando a factualidade em causa, sempre de difícil análise (limites de terrenos, servidões prediais) não podemos afirmar que estamos perante uma conduta claramente negligente, de forma grosseira violadora das regras processuais que impõem a adopção de um comportamento cuidadoso, leal e que visou subverter e alterar o já decidido.

Não podemos afirmar que os Recorrentes alegaram factos e formularam pedidos cuja falta de fundamento não deviam ignorar, usando o processo como meio de alterar o já decidido em anterior acção.

Aliás, a fundamentação do Acórdão recorrido é escassa a este respeito.

Afigura-se-nos, deste modo, incorrecta a condenação efectuada no Acórdão recorrido dos Recorrentes como litigante de má-fé, condenação essa que não se deve, pois, manter.

Concluindo, podemos afirmar que não deve haver condenação como litigantes de má-fé da parte que defende a inexistência da excepção de caso julgado relativamente a alguns pedidos que formulou na acção, apesar de o Tribunal entender que se verificava a excepção de caso julgado em relação a tais pedidos, pois que a má-fé não se confunde com a improcedência do pedido por diferente interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos em análise, nem pode ser entendido como litigância de má-fé a defesa convicta e séria de determinada interpretação das normas legais ainda que essa posição não convença nem seja, no entendimento do julgador, a mais correcta juridicamente.

Impõe-se, assim, a procedência desta questão e consequentemente da Revista.

Em suma, entendemos que se impõe a procedência total das alegações do recorrente, pelo que se concede a revista, revogando-se o Acórdão recorrido que condenou os Recorrentes como litigantes de má-fé.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder a revista, revogando-se a decisão recorrida, que condenou os Recorrentes como litigantes de má-fé

Sem custas.


Lisboa, 06 de julho 2023


José Sousa Lameira (relator)

Conselheiro Ferreira Lopes

Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira