Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5037/14.0TDLSB.L1.S1-A
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECUSA
IMPEDIMENTOS
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I - Nos termos do art. 43.º, n.os 1 e 2, do CPP, pode constituir fundamento de recusa (ou escusa), a intervenção do juiz noutro processo desde que constitua motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II - Na verdade, a intervenção em outro processo, penal ou não penal, traduzida em fundamentos e considerações materiais e decisão ou decisões de mérito em que o juiz recusando (ou escusando) expressou, pode gerar logo a convicção generalizada de que o sentido da decisão lá atrás será renovado agora. Ora, o que a norma quer prevenir é que, tendo havido imiscuição factual ou na questão de mérito do anterior processo tal imiscuição factual ou no mérito contamine a isenta apreciação da questão no novo processo, mesmo que só em termos de aparências. Porque, na abordagem objetiva da imparcialidade são relevantes as aparências

III -E, claro, não são fundamento de recusa/escusa as posições jurídicas anteriores, os escritos doutrinários conhecidos, ou sentenças dadas num certo sentido. Não estão abrangidas pelo n.º 2 do art. 43.º as posições ou entendimentos jurídicos de um magistrado, que são de todos conhecidos por via dos acórdãos que vai publicando. Não é essa previsibilidade de decisão jurídica que integra o motivo sério e grave. E estará fora outrossim de constituir o dito motivo sério e grave a intervenção de juiz noutro processo anterior quando tal intervenção se afigura substancial e materialmente distinta, ou seja, quando não tiver a virtualidade de gerar prejudicium, preconceito, ideia feita ou opinião já formada.

IV - E certamente também não será a prolação de um despacho de mero expediente, ou de um despacho interlocutório, ou de um despacho que nada tenha a ver com a questão de mérito ou o objeto de decisão que integrará a intervenção noutro processo gerador do falado motivo sério e grave.

V - A previsão do n.º 2 do art. 43.º abrange, pois, tão só aquelas situações em que há o perigo de o juiz poder carregar prejudicium do anterior processo quando avança para a decisão do processo a decidir agora e onde se pede recusa; prejudicium esse traduzido, na aparência, numa perceção ou visão dos factos toldante de uma visão imparcial. Ora, se mesmo só em aparência generalizada, o juiz parte com essa perceção ou visão dos factos toldante da visão imparcial soçobra o teste objetivo da imparcialidade, teste esse que visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção, Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça



I - RELATÓRIO

I.1. AA veio requerer, ao abrigo do artigo 43, nºs 1 e 2, do CPP, a recusa de intervenção do Sr Juiz Conselheiro BB no processo nº 5037/14.0TDLSB.L1.S1, 3ª secção, que lhe foi distribuído como Relator.

Fundamentou o pedido de recusa na circunstância de ter anteriormente prolatado, como Relator, o Acórdão do STJ, datado de .../.../2021, proferido no âmbito do processo crime n.º 7447/08.2..., processo no qual o Arguido, ora Requerente, foi condenado em pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição ao pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a entregar à associação ....

Assim:

“11. Naturalmente não sabe o Arguido, nem tem condições para saber, se a intervenção do Colendo Juiz Conselheiro Relator ora recusado no julgamento do recurso interposto no processo n.º 5037/14.0TDLSB seria efectivamente parcial, não sendo esse o fundamento do presente incidente.

12. Outrossim, considera o Arguido, ora Requerente, que a intervenção nos presentes autos do Colendo Juiz Conselheiro Relator é merecedora do presente pedido de recusa, por o mesmo ter tido intervenção na qualidade de Juiz Conselheiro Relator no julgamento do recurso ordinário no âmbito do processo crime n.º 7447/08.2...;

13. Tendo, nessa qualidade, redigido o douto Acórdão condenatório desse STJ, datado de ........2021, que se junta e se dá como integralmente reproduzido (Doc. 1);

14. Processo no âmbito do qual o Arguido foi condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição ao pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a entregar à associação ..., por factos contemporâneos praticados no exercício das mesmas funções e de e aí terem sido apreciadas questões concretas indissociáveis com as que são colocadas no recurso apresentado nos presentes autos, entre as quais e, desde logo:

- a da existência de violação do princípio ne bis in idem resultante da sucessão entre dois processos penais relativos a factos não autonomizáveis objecto de ambos os processos; e

- o grau de responsabilidade de diversos co-Arguidos, entre os quais o Arguido, no âmbito dos factos materialmente conexos/indissociáveis dos discutidos nos autos.

15. O que, no entendimento do Requerente, constitui motivo sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ora recusado.”

E “20. Ao invés do que se decidiu no recente douto Acórdão do STJ, datado de ........2021, relatado pela Exm.ª Senhora Juíza Conselheira CC, não se trata no caso de uma condenação antiga em pena de prisão do Arguido (julgada há mais de trinta anos), mas de uma bem recente e em relação a factos que são similares (mesmo para quem não os considere idênticos), não tendo existido posteriormente qualquer intervenção do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro recusado a favor do Arguido;

(…)

22. Num caso público e mediático, como o dos autos, em que a pressão social sobre ajustiça foi e é diariamente exercida junto do sistema judicial, designadamente, através de múltiplas notícias ao longo de inúmeros anos relativas ao processo e aos Arguidos visados, é exigível aos seus julgadores, até ao momento da decisão que, no caso, não ocorreu, não tenham já tido intervenção no julgamento do mérito de processo materialmente conexo relativamente ao qual se suscita, por via do recurso interposto pelo Arguido, a questão da violação do princípio “ne bis in idem”.

(…)

26. No douto Acórdão da 3.ª Secção desse STJ, datado de ........2021, prolatado no âmbito do processo n.º 7447/08.2..., relatado pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator, ora recusado, foi proferida a seguinte decisão :

a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido DD, por ser quanto a ele irrecorrível a decisão proferida pelo Tribunal da Relação - art°s 414°, n° 2 e 420°, n° 1, al. b), 432°, n° 1, al. b) e 400°, n° 1, al. e), todos do CPP - condenando o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs, e no pagamento de uma importância igual a 5 (cinco) UCs - art0 420°, n° 3 do CPP;

b) Relativamente ao recurso interposto pelo arguido EE, conhecer do mesmo apenas relativamente à determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, negando provimento ao mesmo e confirmando o acórdão recorrido, rejeitando-se o recurso do mesmo, porque inadmissível, no que às demais questões por ele suscitadas diz respeito.

27. Acontece que, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Dr. BB, na qualidade de Juiz Relator do referido Acórdão, tomou posições sobre o mérito do processo, que tem factos necessariamente conexos aos presentes autos, desde logo, ao tomar posição sobre o próprio funcionamento da estrutura decisória do Banco e cada um dos seus membros, onde se enquadra o ora Requerente, conforme se passa, com a devida vénia, a transcrever:

“Não colhe, aliás, a insistência deste arguido [DD] em menorizar a sua influência nas decisões tomadas pelo Banco (…). A verdade, porém, é que provado se mostra que se é certo (ponto 28 dos factos provados) que “entre 2002 e 2008, os arguidos EE, AA e DD formavam o núcleo central de gestão do “Banco”, sem cuja aprovação as decisões relevantes não eram tomadas”, certo é igualmente que, como consta do mesmo ponto da factualidade assente, detinham e exerceram o poder de direcção “com especial preponderância do primeiro pelo facto de ter sido o fundador, o “rosto” do ... e o único ... do seu Conselho de Administração até à intervenção do Banco de Portugal (sublinhado nosso). Como provado se mostra, aliás (pontos 59 e 60 da factualidade assente) que (…) a reduzida dimensão do “...” (que, em Portugal, contava apenas com dois balcões (….) permitiu um acompanhamento efectivo e muito próximo por partes dos arguidos EE, AA e DD, da actividade operacional que ia sendo desenvolvida pelas diferentes áreas do Banco. Este acompanhamento assentava numa estrutura decisória composta por aqueles três arguidos, com predominância do arguido EE, mesmo após este formalmente este ter deixado de desempenhar as funções executivas, núcleo para o qual era remetida a generalidade das decisões relevantes e reservando-se para as diferentes áreas operacionais a respectiva execução”. (“negrito” e sublinhado nosso).

28. Esta realidade é tanto mais evidente, quando constatamos que o processo n.º 7447/08.2... foi instruído com prova obtida através da extração de certidão do despacho de encerramento do inquérito dos presentes autos, cfr. consta de pág. 30 do Acórdão proferido em 1.ª instância no âmbito do referido processo n.º 7447/08.2... (Doc. 2).

29. Sendo que, os presentes autos foram objecto de autuação em ........2014, com base em certidão extraída do processo-crime n.º 7447/08.2..., que se encontra a fls. 1 do volume I dos presentes autos, e que se junta como Doc. 3 para os devidos efeitos legais.

30. Ou seja, estamos necessariamente perante processos conexos, nos quais se discutem as mesmas questões ou questões correlacionadas, ocorridas no mesmo período temporal, existindo coincidência de Arguidos, que exerciam a função de administradores do ..., à data dos factos, discutindo-se até se a respectiva sobreposição é conforme ao princípio constitucional do “ne bis in idem”.

31. Ao que acresce a circunstância, também ela decisiva, de o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ora recusado ter condenado o co-arguido EE no processo-crime n.º 7447/08.2... em pena de prisão, por diversos crimes praticados em coautoria com o Arguido, ora requerente, pronunciando-se assim sobre o mérito daquela acção penal.

32. Perante este cenário, no entendimento do Requerente, parece-nos evidente que estamos perante um motivo sério, grave e adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro, Dr. BB, na decisão sobre o recurso em apreço, desde logo, porque já tem uma ideia formada sobre o ..., o seu funcionamento a nível decisório, e em particular sobre a conduta e responsabilidade dos três Arguidos que compunham o Conselho de Administração, EE, DD e AA.”

(…)

35. Acresce que, como já se referiu, nos recursos apresentados nos presentes autos para o STJ os Arguidos fundamentaram os mesmos, designadamente, na violação do princípio “ne bis in idem” por considerarem que os presentes autos constituem um novo processo punitivo de natureza penal pelos mesmos factos, já antes julgados, em violação do artigo 29.º, n.º 5, da CRP e das normas internacionais aplicáveis.

36. Formulando, entre outros, os seguintes pedidos:

Declare a extinção do procedimento criminal com referência a todos os crimes pelos quais o Arguido vem condenado, com fundamento no principio do “ne bis in idem” e no valor do caso julgado, com base na existência de Acórdão condenatório transitado em julgado proferido no processo crime n.º 7447/08.2..., por o mesmo ter conhecido os mesmos factos de forma esgotante, impedindo o seu novo julgamento no âmbito dos presentes autos qualificados como outro crime, por se verificar que os factos não julgados no mesmo, se autonomizados dos demais já definitivamente ajuizados, não são subsumíveis a nenhum tipo criminal, dando-se, assim, cumprimento a Jurisprudência adoptada no douto Ac. de fixação de jurisprudência do STJ n.º 1/2015;

37. Questão também ela suscitada pelos Arguidos recorrentes no processo n.º 7447/08.2..., que defenderam a violação do princípio ne bis in idem (designadamente, por já terem sido julgados e condenados, por sentença transitada em julgado, no processo contra-ordenacional n.° 45/14.3..., alegadamente pelos factos que justificaram a condenação ditada no âmbito do processo n.º 7447/08.2...).

38. Tendo sido formulado o seguinte pedido pelo então recorrente DD: Considerando a ofensa ao caso julgado e a violação da proibição de bis in idem imputáveis ao Acórdão recorrido, requer-se a V. Exas. se dignem revogar a condenação de que o arguido foi alvo, por decisão do Tribunal a quo, com base nos factos pelos quais foi julgado e condenado por sentença transitada em julgado no processo contra-ordenacional n.°45/14.3...

39. No douto Acórdão desse Supremo Tribunal, datado de ........21,relatadopelo Ex.mo Juiz Conselheiro, este rejeitou a apreciação do referido recurso nesse segmento por entender que se mostrava assegurado um duplo grau de jurisdição, mas não sem antes se pronunciar a favor do entendimento expresso pelo Tribunal da Relação nos seguintes termos:

“Foi, depois, apreciada - aliás, de forma exaustiva - pelo Tribunal da Relação de Lisboa (por aí ter sido suscitada, em sede de recurso, pelo arguido DD, entre outros), que desta forma concluiu: A interpretação normativa do disposto no artigo 208° do RGICSF efectuada pelo Tribunal a quo no sentido de permitir o julgamento e a condenação penais do agente por crimes de falsificação de documento autêntico p. e p. pelo artigo 256°, n°l, ais. a) e c), do C.Penal e de falsidade informática p. e p. pelo artig 4o, n° le 2, da Lei n° 109/91 e actualmente pelo artigo 3o, n° le 3, da Lei n° 109/2009, de 15 de Setembro, depois deste, por factos em parte coincidentes, ter sido anteriormente julgado e condenado pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 211°, al. g), do RGICSF, condenação já transitada em julgado, não viola o princípio ne bis in idem previsto no artigo 29°, n°5, da CRP - mesmo considerando a primitiva versão daquele preceito do RGICSF. - A interpretação efectuada pelo tribunal a quo do artigo 208° do RGICSF (mesmo na versão primitiva deste preceito) no sentido de permitir a prossecução criminal e contra-ordenacional da pessoa pelos mesmos factos quando esses factos violam diferentes bens jurídicos, não viola o disposto no artigo 29°, n°5, da CRP. Em conclusão, não foi violado o princípio ne bis in idem, quer na sua vertente substantiva, quer na sua vertente processual. Improcede, pois, a questão suscitada pelos recorrentes".”

40. Assim, e na verdade, ao transcrever o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o tema, o Excelentíssimo Juiz Conselheiro, ora recusado, acabou por tomar posição sobre questão jurídica simular à que também constitui objecto dos presentes autos, com referência ao mesmo processo de contra- ordenação em que o Requerente foi Arguido, o que necessariamente prejudica a sua imparcialidade quanto à decisão do recurso do Arguido;

41. Pondo objectiva e legitimamente em causa a confiança do Arguido na imparcialidade do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ora recusado, uma vez que se torna provável que o mesmo possa estar condicionado pela posição que anteriormente perfilhou no âmbito do processo n.º n.º 7447/08.2... e em decisão que proferiu contra a pretensão aí formulada pelo Arguido;

Acresce ainda que;

42. O Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ora recusado afirmou ainda no douto Acórdão que proferiu enquanto Relator no processo n.º 7447/08.2..., da 3.ª Secção do STJ, a propósito da apreciação da relevância da passagem do tempo enquanto circunstâncias atenuantes, circunstâncias que o Recorrente também invoca no recurso junto desse Supremo Tribunal, o seguinte:

“Como não nos parece que deva ser especialmente considerado "o decurso de tempo entre a data dos factos e a da condenação, pelo que o efeito de exemplaridade por ameaça perde o seu sentido", a afirmação do recorrente. O decurso do tempo, podendo contribuir para uma ideia generalizada (nem por isso, justa e acertada) de morosidade no funcionamento do sistema de justiça, não esmorece a necessidade de repor a confiança da comunidade na protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas.”

43. Afirmou ainda, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro, Dr. BB, no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 7447/08.2..., quanto à necessidade de ponderar o facto de as necessidades de prevenção geral à data da condenação serem diversas das existentes à data da prática dos factos, o seguinte:

“E, salvo o devido respeito por melhor opinião, as necessidades de prevenção geral evidenciadas no acórdão recorrido, sendo as verificadas ao tempo da condenação, não eram diversas das existentes ao tempo em que os factos foram praticados, contrariamente ao alegado pelo recorrente.”

44. Ou seja, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ora recusado tomou já posição, no âmbito do processo n.º 7447/08.2..., sobre um significativo número de questões que são colocadas no âmbito do recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, a saber:

a) a questão da violação do segmento processual do princípio “ne bis in idem” entre os presentes autos e processo contra-ordenacional n.° 45/14.3...;

b) a questão da relevância jurídica do decurso do tempo; e

c) a questão da necessidade de ponderar o facto de as necessidades de prevenção geral à data da condenação serem diversas das existentes à data da prática dos factos;

d) Pronunciando-se ainda, como acima se referiu sobre o próprio funcionamento da estrutura decisória do Banco e, dentro dela, sobre cada um dos seus membros, onde se enquadra o ora Requerente

45. Perante o julgamento levado a cabo no âmbito do processo n.º 7447/08.2..., que se trata de um processo evidentemente conexo, o que se retira, desde logo, da circunstância de os presentes autos terem sido autuados com base numa certidão extraída daqueles autos, não se poderá deixar de reconhecer que, na apreciação que venha a efectuar do recurso interposto pelo Arguido nos presentes autos, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro se encontra, na sua actuação, condicionado à apreciação que anteriormente fez de diversas questões que já apreciou, com referência ao Arguido e a factos idênticos e ou similares, no processo n.º 7447/08.2..., possuindo, necessariamente, um pré-juízo sobre o grau da sua culpa e dos demais co-Arguidos.

46. Tendo, por esse motivo, posição formada, não só quanto à culpa do Arguido nos factos (que se desenvolvem à luz da mesma “estratégia” implementada ao longo dos anos e de forma coeva com os que são objecto no processo n.º 7447/08.2...), mas, igualmente, quanto à (im)procedência das questões jurídicas que o mesmo também coloca a esse Supremo Tribunal no âmbito do recurso interposto nos presentes autos.

47. Segundo o TEDH, a apreciação objetiva consiste em perguntar se, independentemente da conduta pessoal do juiz, determinados factos verificáveis suscitam dúvidas sobre a sua imparcialidade.

48. Nesta matéria, até as aparências podem ser importantes, pois está em causa a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar aos litigantes, a começar, em matéria penal, pelos arguidos (o termo «arguido» utilizado pelo TEDH é o mesmo que se utiliza na versão em língua portuguesa da Diretiva 2016/343).

49. Ora, a este respeito, não deixará de se reconhecer que o Juiz que anteriormente decidiu e julgou recurso apresentado no âmbito de processo onde se condenou o Arguido a pena de prisão de três anos e seis meses, suspensa na sua execução, por factos idênticos e ou similares, e contemporâneos aos dos presentes autos, suscita justificadas dúvidas quanto à sua imparcialidade, por quanto ao mesmo ser impensável afirmar que não dispõe de qualquer ideia formada sobre a responsabilidade do Arguido e dos demais co-Arguidos nos factos e que abordará e decidirá as questões pendentes de forma equidistante, sem se sentir condicionado pelo julgamento que anteriormente realizou.

50. Sabendo-se, como se sabe, que se deve recusar qualquer juiz de que se possa crer legitimamente ter falta de imparcialidade (V. TEDH, 24 de maio de 1989, Hauschildt c. Dinamarca, CE:ECHR:1989:0524JUD001048683, § 48) .

51. Donde, no entendimento do Arguido, ora Requerente;

- O artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, conjugado com o artigo 40.º, al. d), ambos do CPP, interpretado no sentido de a circunstância de o Juiz ter proferido, em sede de recurso, decisão condenatória de co-Arguido em pena de prisão, em processo onde o Arguido (Requerente da recusa) tenha sido condenado pelo mesmo crime enquanto seu co-autor, não constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, quando o mesmo Juiz seja posteriormente chamado a julgar recurso interposto pelo Arguido (Requerente da recusa) num outro processo, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da imparcialidade (artigos 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP), interpretado de forma conforme ao artigo 6.ºdaCEDHe ao artigo 47.ºdaCartados Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicáveis ex vi artigo 8.º, n.º 2, da CRP);

- O artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, conjugado com o artigo 40.º, al. d), ambos do CPP, interpretado no sentido de a circunstância de o Juiz ter proferido, em sede de recurso,decisão condenatória de co-Arguido em pena de prisão, em processo onde o Arguido (Requerente da recusa) tenha sido condenado pelo mesmo crime enquanto seu co-autor, não constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, quando o mesmo Juiz seja posteriormente chamado a julgar recurso interposto pelo Arguido (Requerente da recusa) num outro processo onde, com base na condenação efectuada naquele primeiro processo, seja suscitada a questão da proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da imparcialidade (artigos 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP), interpretado de forma conforme ao artigo 6.ºdaCEDHe ao artigo 47.ºdaCartados Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicáveis ex vi artigo 8.º, n.º 2, da CRP); e

- O artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, conjugado com o artigo 40.º, al. d), ambos do CPP, interpretado no sentido de a circunstância de o Juiz ter proferido, em sede de recurso, decisão condenatória de co-Arguido em pena de prisão, em processo onde o Arguido (Requerente da recusa) tenha sido condenado pelo mesmo crime enquanto seu co-autor, não constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, quando o mesmo Juiz seja posteriormente chamado a julgar recurso interposto pelo Arguido (Requerente da recusa) num outro processo relativo a factos praticados no mesmo período temporal e no contexto do exercício das mesmas funções, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da imparcialidade (artigos 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 2e 203.ºda CRP), interpretado conforme ao artigo 6.º da CEDH e ao artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicáveis ex vi artigo 8.º, n.º 2, da CRP); e

- O artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, conjugado com o artigo 40.º, al. d), ambos do CPP, interpretado no sentido de a circunstância de o Juiz ter proferido, em sede de recurso, decisão condenatória de co-Arguido em pena de prisão, em processo onde o Arguido (Requerente da recusa) tenha sido condenado pelo mesmo crime enquanto seu co-autor, não constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, quando o mesmo Juiz seja posteriormente chamado a julgar recurso interposto pelo Arguido (Requerente da recusa) num outro processo autuado com base em certidão extraída do primeiro processo, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da imparcialidade (artigos 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP), interpretado conforme ao artigo 6.º da CEDH e ao artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicáveis ex vi artigo 8.º, n.º 2, da CRP);

52. Nestes casos, a intervenção do Juiz recusado (seja ele qual for) é passível de recusa, por se “correr o risco de ser [como é, aos olhos do Arguido, ou de quem a sindique de forma objectiva colocado que seja na sua situação processual] considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”;

53. Com efeito, nesses casos o Juiz é chamado a novamente decidir questão idêntica e ou similar, colocada pelo mesmo Arguido em processos diferentes, com referência a factos contemporâneos que já julgou e condenou, tendo já um pré-juízo sobre a sua responsabilidade nos factos e sobre o grau da sua culpa.

54. Conforme se decidiu no douto Ac. do STJ, datado de 9.03.2017: “Do ponto de vista objectivo, perante a situação invocada como fundamento da recusa requerida, é de admitir, a partir do senso e experiência comuns, que qualquer cidadão de formação média da comunidade possa contestar ou pôr em causa a imparcialidade do Senhor Desembargador recusado, se nessa qualidade prosseguir nos autos, possibilidade tanto mais previsível, porquanto «a estrutura normativa das sociedades actuais que usualmente reclamam rigor e transparência, vêm cada vez mais exigindo exteriorização objectiva de demonstração de probidade funcional com acentuado ênfase do velho brocardo, da mulher de César, não basta sê-lo, é preciso parecê-lo».

Como já se referiu, «a mera desconfiança fundada sobre a imparcialidade do juiz em certo caso basta para colocar em marcha os mecanismos do seu afastamento», devendo concluir-se, como RUI PATRÍCIO, «que o exercício da função jurisdicional em cada caso concreto (e para além das condições gerais da mesma) deve ser rodeada de um conjunto de cautelas que criem um ambiente de saudável isenção e, bem assim, de crença e de confiança por parte de terceiros nessa isenção – significando esta não só ausência de interesse pessoal directo ou indirecto (-), mas também ausência de conhecimento desequilibrado, a ausência de emoções condicionantes e ausência de “simpatias” ou de “antipatias” que firam a equidistância e a “frieza” necessárias à decisão», pois que, «imparcialidade é, essencialmente, neutralidade e indiferença em relação ao tema a decidir»”

55. Apresentando-se o processo na sua derradeira fase de decisão, é justamente aí que aos elementos que compõem o Tribunal colectivo junto Tribunal superior se impõe, até à decisão e no momento da mesma, assegurar subjectiva e objectivamente a sua equidistância face aos interesses conflituantes titulados pelos diversos sujeitos processuais, o que ficou e permanecerá inquestionavelmente prejudicado face à decisão já proferida pela Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro, enquanto Relator, no âmbito do processo n.º 7447/08.2..., processo onde o Requerente foi condenado a três anos e seis meses de pena de prisão, suspensa na sua execução.”

Acaba a pedir que se julgue como procedente, por provado, o presente incidente de recusa, determinando que o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Dr. BB, objectivamente visado no mesmo, fique impedido de intervir nos presentes autos de recurso, devendo os autos ser redistribuídos junto da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos legalmente previstos, seguindo-se os demais termos do processo até final.

I.2.O Exmo Sr Juiz Conselheiro visado pronunciou-se, ao abrigo do artigo 45, nº 3, do CPP, sobre o requerimento nestes termos:

“AA veio suscitar a recusa do signatário para intervir nos autos de recurso nº 5037/14.0TDLSB.L1.S1.

Nos termos do disposto no artº 45º, nº 3 do CPP, cumpre emitir pronúncia.

2. No despacho que proferi em .../.../2023, no processo principal, afirmei, embora ressalvando o devido respeito por diversa opinião, que o facto de ter relatado, em ... de ... de 2021, o acórdão proferido no Proc. 7447/08.2..., referido nas motivações de recurso do ora requerente, não era circunstância apta a fundamentar, de modo sério e grave, desconfiança sobre a minha imparcialidade.

3. Lido o requerimento de recusa entretanto deduzido, admito que possa ter sido precipitada essa afirmação.

Com efeito,

Não me sentindo minimamente condicionado, na decisão dos autos de recurso que ora me foram distribuídos, pela decisão que relatei no Proc. 7447/08.2..., onde o ora requerente era, também, arguido, aí tendo sido condenado, certo é que, de um ponto de vista objectivo, a participação que tive naquele processo é passível de ser entendida, pela sociedade em geral e pela comunidade jurídica em particular, como condicionante da minha imparcialidade para apreciar e decidir, em colectivo,as questões colocadas no presente recurso.

E como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 132 e segs, – em anotação ao artº 43º do CPP - a imparcialidade do juiz pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. “O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. (…) A existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição. (…) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. (…) Tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal (acórdão do TEDH Sander v. Reino Unido, de 9.5.2000)”.

Nesse teste objectivo, havemos de convir que o facto de ter relatado o acórdão proferido neste Supremo Tribunal de Justiça, em .../.../2021, e aí ter feito as considerações que o requerente transcreve no seu requerimento de recusa (e que, naturalmente, correspondem ao texto de onde foram extraídas) é susceptível de criar suspeita na comunidade, sobre a imparcialidade do signatário.

Tanto mais quanto é certo – e disso não me havia anteriormente apercebido – que o processo 5037/14.0TDLSB teve origem, precisamente, em certidão extraída do processo 7447/08.2..., onde relatei o já referido acórdão de .../.../2021.

Convém recordar, com Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, 1981, I, 237, que “não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição”.

E assim sendo, a intervenção do signatário, relatando o acórdão final proferido no Proc. 7447/08.2..., de onde foi extraída a certidão que está na origem do Proc. 5037/14.0TDLSB é susceptível de abalar, de forma séria e grave, a aparência de imparcialidade de que a justiça e os juízes devem gozar, e por isso susceptível de colocar em crise a confiança da sociedade na administração da justiça.

4. Aliás, este Supremo Tribunal de Justiça já decidiu, em 16/11/2022, deferir o pedido de recusa de uma Exmª Conselheira deste Tribunal, em situação com semelhanças evidentes com a ora em apreço, no Proc. 121/08.1TELSB.L1.S1-B.” (E onde o fundamento da recusa consistia na intervenção da Exmª Conselheira, como relatora, em recurso anterior, num processo em que o requerente aí havia sido condenado, porquanto “os dois assinalados processos são constituídos por factos contemporâneos, no exercício das mesmas funções, tendo no último sido apreciada a questão ne bis in idem que foi levantada, com referência ao objeto do primeiro”.)”

I.3. O pedido é tempestivo (art. 44º do CPP) e este Tribunal é o competente (artigo 45, nº 1. al. b) do CPP).

I.4. O incidente encontra-se suficientemente instruído, não havendo necessidade de produção de outras provas.

I.5. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os instrumentos processuais dos impedimentos, recusas e escusas têm em vista garantir a imparcialidade do juiz. Os impedimentos consistem nos fundamentos objetivos e típicos previstos nos arts. 39.º e 40.º, do C.P.P., por sua vez, as recusas e escusas têm por base os motivos não típicos que no caso concreto integrem a cláusula geral consagrada no art. 43.º n.º 1, obstando à intervenção de um juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

O Requerente não aduz fundamento que sustente parcialidade subjetiva. A imparcialidade subjetiva, aliás, presume-se.

Mas assenta a recusa em parcialidade objetiva. Não questionando a personalidade do juiz ou sua capacidade de decidir imparcialmente, invoca, porém, a circunstância de o Sr Juiz Conselheiro visado, ter decidido processo anterior em matéria conexa e de onde, por extração de certidão, nasceu o processo a decidir agora, o que, objetivamente, em termos de perceção geral ou do ponto de vista do cidadão comum lhe retirará a capacidade de decidir com equidistância ou suscitará dúvidas da sua isenção. Porque justice must not only be done, it must also be seen to be done.

Nos termos do nº 2 do artigo 43º, pode constituir fundamento de recusa a intervenção anterior do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos do artigo 40º.

No caso estamos perante intervenção em outro processo de natureza penal.

O fundamento da recusa neste caso tem de ser aquilatado no concreto. Em rigorosa casuística e máxima exigência na apreciação porque a escusa ou a recusa bolem com o princípio do juiz natural constitucionalmente consagrado e garantia do Estado de Direito, ut artigo 32º, nº 9, da CRP.

Como se assinala no “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, I, António Gama et alii, in nota ao artigo 43º,: “No que respeita à intervenção do juiz num outro processo, a verificação concreta do objeto do processo em qualquer das intervenções processuais do juiz, seja a que interveio, seja aquela em que vai intervir é absolutamente fundamental para se apreciar da possibilidade da existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

Compreende-se a teleologia do nº 2 do artigo 43º. Na verdade, a intervenção em outro processo, penal ou não penal, traduzida em fundamentos e considerações materiais e decisão ou decisões de mérito em que o juiz recusando (ou escusando) expressou, pode gerar logo a convicção generalizada de que o sentido da decisão lá atrás será renovado agora. Ora, o que a norma quer prevenir é que, tendo havido imiscuição factual ou na questão de mérito do anterior processo tal imiscuição factual ou no mérito contamine a isenta apreciação da questão no novo processo, mesmo que só em termos de aparências.

Por isso é que a intervenção em outro processo só constituirá motivo de recusa/escusa quando estejam em discussão questões com mesma factualidade ou em emaranhado ou relação factual entre ambas. Pinto de Albuquerque in “Comentário do CPP”, I, 5ª edição, UCE, em nota ao artigo 43º, dá os exemplos do “caso de um juiz ter presidido ao tribunal coletivo que julgou e condenou vários arguidos pela prática dos mesmos factos de que são também acusados outros em processo separado” e o caso de “quando o juiz tomou conhecimento do objeto do processo através da atividade por si levada a cabo num outro julgamento, onde ouviu depoimentos de testemunhas, que por sua vez mantêm essa qualidade neste processo e cujos depoimentos o determinaram a ter como verificados novos factos que através da certidão e do registo magnético da prova por declarações, comunicou ao Ministério Público.”

A previsão do nº 2 do artigo 43º abrange, pois, tão só aquelas situações em que há o perigo de o juiz poder carregar prejudicium do anterior processo quando avança para a decisão do processo a decidir agora e onde se pede recusa; prejudicium esse traduzido numa perceção ou visão dos factos toldante de uma visão imparcial. Ora, se mesmo só em aparência generalizada, o juiz parte com essa perceção ou visão dos factos toldante da visão imparcial soçobra o teste objetivo da imparcialidade, teste esse que visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade - acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica de 1/10/1982. (cfr Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem).

E, claro, não são fundamento de recusa/escusa as posições jurídicas anteriores, os escritos doutrinários conhecidos, ou sentenças dadas num certo sentido. Não estão abrangidas pelo nº 2 do artigo 43º as posições ou entendimentos jurídicos de um magistrado, que são de todos conhecidos por via dos acórdãos que vai publicando. Não é essa previsibilidade de decisão jurídica que integra o motivo sério e grave. E estará fora outrossim de constituir o dito motivo sério e grave a intervenção de juiz noutro processo anterior quando tal intervenção se afigura substancial e materialmente distinta, ou seja, quando não tiver a virtualidade de gerar prejudicium, preconceito, ideia feita ou opinião já formada.

O motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz resultante da sua intervenção em outro processo só pode fundar-se em imiscuição factual nesse outro processo, absorção dos factos desse outro processo, imersão no objecto de decisão ou na questão de mérito desse outro processo já decidido, que, maior ou menor sempre existirá e poderá obnubilar uma isenta apreciação a fazer no decidendo. Repete-se, ainda que só em aparência generalizada.

O motivo sério e grave tem de resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a despontar e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal e há de ser apreciado casuisticamente. Certamente não será a prolação de um despacho de mero expediente, ou de um despacho interlocutório, ou de um despacho que nada tenha a ver com a questão de mérito ou o objeto de decisão que integrará a intervenção noutro processo gerador do falado motivo sério e grave.

Como se disse no ac. de 16/11/2022, proc. nº 121/08.1TELSB.L1.S1-B, Pedro Branquinho1, “II. O motivo sério e grave tem de resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a despontar e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.

III - Assim, é de deferir um pedido de recusa requerido por um arguido, ao abrigo do disposto no art. 43.º, n.os 1 e 2, do CPP, de uma Senhora Juíza Conselheira de intervir, como adjunta, num recurso que corre termos neste Supremo Tribunal, em virtude da mesma ter intervindo, como relatora, num outro processo, que julgou improcedente o recurso do ora requerente e confirmou a pena única de 10 anos de prisão que lhe fora aplicada pelo tribunal recorrido.

IV - Os 2 mencionados processos são constituídos por factos contemporâneos, praticados no exercício das mesmas funções, tendo no último sido apreciada a questão ne bis in idem que foi levantada, com referência ao objeto dos presentes autos.”

Na abordagem objetiva são, pois, relevantes as aparências.

No caso sub judicio, estamos perante um pedido de recusa por parte de um arguido/recorrente, alegando razões, atrás referidas, que podem, na verdade, especialmente de um ponto de vista objetivo, ser consideradas como motivo sério e grave, idóneo a criar desconfiança, hoc sensu, sobre a imparcialidade do Senhor Conselheiro BB, na intervenção como relator, do julgamento no processo supra identificado.

O próprio visado, Sr Juiz Conselheiro BB, aceitando tratar-se de factos materialmente conexos, concorda com a recusa que foi requerida. Adiantou:

“Não me sentindo minimamente condicionado, na decisão dos autos de recurso que ora me foram distribuídos, pela decisão que relatei no Proc. 7447/08.2..., onde o ora requerente era, também, arguido, aí tendo sido condenado, certo é que, de um ponto de vista objectivo, a participação que tive naquele processo é passível de ser entendida, pela sociedade em geral e pela comunidade jurídica em particular, como condicionante da minha imparcialidade para apreciar e decidir, em colectivo, as questões colocadas no presente recurso. Nesse teste objectivo, havemos de convir que o facto de ter relatado o acórdão proferido neste Supremo Tribunal de Justiça, em .../.../2021, e aí ter feito as considerações que o requerente transcreve no seu requerimento de recusa (e que, naturalmente, correspondem ao texto de onde foram extraídas) é susceptível de criar suspeita na comunidade, sobre a imparcialidade do signatário.

Tanto mais quanto é certo – e disso não me havia anteriormente apercebido – que o processo 5037/14.0TDLSB teve origem, precisamente, em certidão extraída do processo 7447/08.2..., onde relatei o já referido acórdão de .../.../2021.

E assim sendo, a intervenção do signatário, relatando o acórdão final proferido no Proc. 7447/08.2..., de onde foi extraída a certidão que está na origem do Proc. 5037/14.0TDLSB é susceptível de abalar, de forma séria e grave, a aparência de imparcialidade de que a justiça e os juízes devem gozar, e por isso susceptível de colocar em crise a confiança da sociedade na administração da justiça.”

Aqui é o próprio visado que, depois de melhor reflexão2, admite que tendo sido relator do acórdão de .../.../2021 se imiscuiu na conexa factualidade que agora volta, em questão de mérito, a estar em discussão. E que, pese embora isso não afetar a sua imparcialidade, não o condicionando, admite, no entanto, que em termos de imparcialidade objetiva se possa ver, na aparência, a sua intervenção no atual processado como maculada de parcialidade.

Assim, na verificação de conexa materialidade e da ligação factual entre os processos, acolhendo as suas próprias palavras “Nesse teste objectivo, havemos de convir que o facto de ter relatado o acórdão proferido neste Supremo Tribunal de Justiça, em .../.../2021, e aí ter feito as considerações que o requerente transcreve no seu requerimento de recusa (e que, naturalmente, correspondem ao texto de onde foram extraídas) é susceptível de criar suspeita na comunidade, sobre a imparcialidade do signatário.”

E, na procedência do pedido de recusa, prejudicado fica o demais.

III. DECISÃO

Em face do exposto, nos termos do artigo 43º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP, acorda-se em deferir o pedido apresentado por AA de recusa do Senhor Conselheiro BB para intervir, enquanto Juiz Conselheiro Relator no recurso do proc. n.º 5037/14.0TDLSB.L1.S1.

Sem tributação.

STJ, 11 de outubro 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

José Luís Lopes da Mota, (Juiz Conselheiro Adjunto)

Teresa Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. O aqui Relator foi Adjunto nesse processo.

2. Tinha negado pedir escusa por despacho de 18/09/2023.