Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
564/22.8PCCBR.C1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
EXTEMPORANEIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Um dos pressupostos formais do recurso para fixação de jurisprudência é o trânsito em julgado do acórdão recorrido, sendo o recurso para a fixação de jurisprudência interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado (artigo 438º, nº 1, do CPP).

II. A fixação deste prazo perentório de 30 dias tem três consequências processuais, (i) a primeira é a de, por via do seu efeito preclusivo, o recurso não poder ser apresentado depois do decurso desse prazo; (ii) a segunda é a de que, apresentado antes de tempo, seja, antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido, por prematuro e fora do prazo fixado, será rejeitado por intempestividade; (iii) a terceira é de que, em hipotético caso, não pode haver despacho de admissão proferido depois do trânsito, a convalidar a sua entrada intempestiva em tempestiva, com o argumento de que se é verdade que o recurso foi interposto antes do tempo já o subsequente despacho de admissão o foi no prazo de 30 dias;

III. Assim, é de rejeitar, por inadmissível em razão da sua extemporaneidade, o recurso para fixação de jurisprudência interposto antes de se verificar o trânsito em julgado do acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

I.1. AA, invocando os arts 437º e segs do CPP, vem interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência indicando como acórdão recorrido o acórdão da Relação de Coimbra de 24/05/2023, confirmado por acórdão de 12/07/2023 que indeferiu arguição de nulidades, e como acórdão fundamento o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 15/07/2020 no processo n.º 143/11.5JFLSB.

Avança o Recorrente: “A presente decisão, (a recorrida), que veio complementar a primeira, e pronunciando-se mais expressamente quanto a tal questão de direito (concretamente, a questão de saber se é válida ou não a valoração de elementos constantes de um depoimento que foi prestado em inquérito e para que se faz a sua remissão em julgamento sem que tenha sido levada a cabo a sua leitura em audiência) encontra-se no polo oposto de outro Acórdão, que aqui se oferece como Acórdão fundamento, e que versa sobre a mesma questão de direito, a saber, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 15/07/2020 no processo n.º 143/11.5JFLSB.L1-3 em que foi relatora a Exma. Desembargadora BB”

E, “Segundo o acórdão ora recorrido, mesmo não tendo havido acordo para a leitura, tal valoração é admissível e foi efectivamente admitida, tendo de resto sido considerada para a condenação do arguido. Segundo o acórdão fundamento, não será admissível, por tratar-se de prova proibida. Estão assim ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, ainda que proferidos no domínio da mesma legislação, em oposição quanto à solução a dar a essa questão de direito, cabendo fixar-se Jurisprudência a respeito, mormente sufragando-se o entendimento decidido no Acórdão fundamento.”

Concluiu:

“1. O acórdão ora recorrido encontra-se em frontal oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 15/07/2020 no processo n.º 143/11.5JFLSB.L1-3 em que foi relatora a Exma. Juiz Desembargadora BB (disponível em https://blook.pt/caselaw/PT/TRL/591404/?q=descriptor:%20prova%20proibida)).

2. Ambos os acórdãos encontram-se transitados em julgado, debruçando-se de forma completamente oposta sobre a mesma e importante questão de direito, que é a de saber se é (ou não) válida a valoração de elementos constantes de um depoimento de uma testemunha que foi prestado em inquérito sem que tenha sido levada a cabo a sua leitura em audiência.

3. O Acórdão recorrido entendeu que sim; o acórdão fundamento (já transitado em julgado) entendeu que não, por se tratar de prova proibida.

4. Deverá pois o presente recurso ser admitido e fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento acima referido, com todas as consequências processuais.”

I.2. Veio resposta do MP de que se transcrevem os últimos cinco pontos:

“7. No caso dos autos, afigura-se-nos não se verificar pelo menos um dos requisitos para a admissão do recurso de fixação de jurisprudência: a existência de “oposição de julgados”.

8. No acórdão recorrido, o tribunal, sem menção expressa, mas apenas implícita, do disposto nos arts. 335 e 336º, do Código de Processo Penal, aceitou como correcta a valoração da prova quanto ao exacto valor da coisa furtada, constante de auto de inquirição de testemunha produzido em sede de inquérito, sem que essa mesma prova tenha sido produzida em audiência,

9. No acórdão fundamento, a situação fática é completamente diferente. Perante o facto de não ter havido acordo para a leitura das declarações previsto no art. 356º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal, o tribunal de julgamento, ao abrigo do disposto no art. 138º, do mesmo diploma legal, permitiu que a testemunha prestasse declarações depois de visualizar e ler o auto do seu próprio depoimento em sede de inquérito, tendo-se considerado no acórdão fundamento que o tribunal valorou também, ainda que indirectamente, as declarações prestadas em sede de inquérito, o que configura uma nulidade insanável de sentença e de julgamento, por violação do preceituado no artº 355º e artº 356º, nº2, al. b), do Código de Processo Penal.

10. Afigura-se, assim, que não existe a necessária identidade nas duas situações em análise, nem nos factos nem no direito aplicado, pelo que tendemos aconsiderar não verificados todos os requisitos necessários para a admissão do recurso, devendo o mesmo ser rejeitado.”

I.3. O SR PGA junto do STJ emitiu parecer de onde transcreve o seguinte:

“3.1. Ainda que interposto por quem tem legitimidade e interesse em agir, o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é intempestivo, pois foi interposto antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido/recorrível proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 24–5–2023, mas objeto de reclamação para a conferência, que a indeferiu por acórdão datado de 12–7–2023.

3.2. Este último acórdão foi notificado ao Ministério Público e aos mandatários dos sujeitos processuais intervenientes, por via eletrónica, em 12–7–2023.

3.3. Porque se tratava de processo urgente, por respeitar a arguidos presos, a notificação efetuada em 12–7–2023, por via eletrónica, importou que a notificação se presumisse efetuada apenas no dia 17–7–2023 (primeiro dia útil seguinte) – cf. artigos 138.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 104.º do Código de Processo Penal e artigo 113.º, n.º 11 e n.º 12, também do Código de Processo Penal).

3.4. Deste modo, o acórdão recorrido/recorrível transitaria – como veio a transitar, por não admitir recurso ordinário – apenas depois de decorridos 10 dias após aquela data de 17–7–2023 (cf. artigos 105.º, n.º 1 e 380.º, ex vi artigo 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal), ou seja, no dia 27–7–2023 (cf. artigos 103.º, n.º 1 e 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

3.5. Ora, sendo o prazo de interposição deste recurso extraordinário o de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, tal prazo só começaria a contar após o fim do prazo assinalado (10 dias, atingidos em 27–7–2023), pelo que o recurso extraordinário interposto pelo recorrente é intempestivo, pois foi interposto em 24–7–2023, portanto, antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido/recorrível.

3.6. Por isso, é de rejeitar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 438.º, n.º 1, 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, todos do Código de Processo Penal (cf. igualmente, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16–10–2003, processo n.º 1207/03–5.ª; de 09-10-2003, processo n.º 3210/03 - 5.ª; de 09-10-2003, processo n.º 2607/03 - 5.ª; de 20-12-2022, processo n.º 21/11.8PEPRT-L.S1 - 3.ª).

3.7. Para além da intempestividade, também não se descortina(ria) oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito ou oposição a partir de situações factuais/processuais idênticas, conforme se alegou.

Em conformidade, pronunciamo-nos pela inexistência de pressupostos formais e substantivos exigidos à admissibilidade do presente recurso extraordinário, devendo o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.”

I.4. Foi cumprido o contraditório. Não veio resposta.

I.5. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. O recurso para a fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário cujo regime processual está fixado nos artigos 437º a 448º do CPP. Sendo que para o não especialmente regulado se aplicam subsidiariamente as disposições que regulam os recursos ordinários (448º).

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado, art. 445.º, n.º 3, do CPP, relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos de tribunais superiores com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.

Como o STJ o tem vindo a reiterar a interposição do recurso para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de pressupostos materiais. (cfr acórdãos 23.02.2022, proc. n.º 31/19.7GAMDA-A.C1-A.S, de 23/02/2022, 4/19.0T9VNC.G1-A.S1, de 30/06/2021, proc. nº 9492/05.0TDLSB-J.S1, de 9.10.2013, proc. nº 272/03.9TASX, e de 8.7.2021, 41/17.9GCBRG-J.G1-B.S1 e de 08/07/2021, (Pleno), proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1).

Constituem pressupostos formais da admissibilidade do Recurso para uniformização de jurisprudência,

(i) a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

(ii) a tempestividade;

(iii) a invocação e identificação de um único acórdão fundamento, com junção de cópia;

(iv) trânsito em julgado dos dois acórdãos de tribunais superiores conflituantes, ambos do STJ; ou ambos da Relação, ou um da Relação, o recorrido, de que não seja admissível recurso ordinário e o outro, o fundamento, do STJ, salvo se a orientação perfilhada no recorrido da Relação estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo STJ;

(v) justificação, de facto e de direito, da oposição.

Como pressupostos de natureza substancial identifica a jurisprudência os seguintes:

i. proferimento dos dois acórdãos, sob o domínio da mesma legislação 437, nº 3;.

ii. as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; 437, n-º 1;

iii. as decisões em oposição sejam expressas;


iv. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões.

Um dos requisitos formais é, pois, a interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar. Com o que, se a apresentação do recurso se mostrar fora de tempo, seja antes do início do prazo seja depois do final do prazo, tal recurso será forçosamente rejeitado por falta do requisito formal da tempestividade de apresentação.

Sob a epígrafe “Interposição e efeito”, o artigo 438.º, nº 1, do CPP preceitua:

“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.”

A duração do prazo é de 30 dias e o início do prazo conta-se a partir do trânsito em julgado do acórdão recorrido, quando se escreve que esse prazo conta do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

Antes desse trânsito em julgado não começa a correr o prazo, pelo que é intempestivo, por prematuro, o requerimento de interposição que seja, entretanto, apresentado.

“O que se compreende, pois que, no esquema traçado pelo CPP para os recursos de fixação de jurisprudência, a imposição do trânsito em julgado, como termo a quo do prazo de interposição, integra-se na disciplina pensada e que estabelece o efeito da decisão fixadora de jurisprudência em função desse trânsito (cfr. art. 445.º do CPP). Antes de transitar em julgado a decisão não é definitiva a oposição de julgados nem exequível a decisão recorrida.” (in ac. do STJ de 09/10/2003, 03P2711).

Assim, é de rejeitar, por inadmissível em razão da sua extemporaneidade, o recurso para fixação de jurisprudência interposto antes de se verificar o trânsito do acórdão recorrido (Ac. do STJ de 11/01/2001, proc. n.º 3292/00-5)

A fixação deste prazo perentório de 30 dias tem três consequências processuais, (i) a primeira é a de, por via do seu efeito preclusivo, o recurso não poder ser apresentado depois do decurso desse prazo; (ii) a segunda é a de que, apresentado antes de tempo, seja, antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido, por prematuro e fora do prazo fixado, será rejeitado por intempestividade; (iii) a terceira é de que, em hipotético caso, não pode haver despacho de admissão proferido depois do trânsito, a convalidar a sua entrada intempestiva em tempestiva, com o argumento de que se é verdade que o recurso foi interposto antes do tempo já o subsequente despacho de admissão o foi no prazo de 30 dias; “Com efeito, «os prazos peremptórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o acto pode ser praticado (terminus intra quem). Se o acto não for praticado no prazo peremptório, também chamado preclusivo, não poderá já, em regra, em regra ser praticado. Exemplos de prazo peremptório são os prazos para arguir nulidades e irregularidades, requerer a instrução ou interpor recursos.» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 37; no mesmo sentido Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, pág. 77-8).

Esses prazos representam, pois, o período de tempo dentro do qual podem ser levados a efeito os respectivos actos, o referido terminus intra quem, e a sua fixação funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os seus poderes-ónus segundo um determinado ritmo, a adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados (cfr. Anselmo de Castro, op. cit., pág. 78) e não do limite final.” (in ac. do STJ de 09/10/2003, 03P2711)

A exigência legal de interposição do recurso no prazo de 30 dias só iniciado com o trânsito em julgado do acórdão recorrido é de natureza formal, mas taxativa e inultrapassável. Se não há trânsito não há decisão definitiva e, se não há decisão definitiva, é prematuro concluir por oposição de julgados.

O entendimento unânime deste Supremo Tribunal de Justiça tem sido o de rejeitar, por intempestivo (prematuridade), o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido. Assim, acs do STJ de 16/10/2003, proc. nº 1207/03, 30/10/2003, proc. nº 2632/03, de 11/03/1993, proc. 44337 , de 29/09/1993, proc. n.º 44580, de 24/11/1993, proc. n.º 45305, 08/10/1998, proc. n.º 784/98, de 11/01/2001, proc. n.º 3292/00-5, de 09/05/2002, proc. n.º 1201/02-5 e de 30/01/2003, proc. n.º 133/03, 19/10/2005, proc. nº 1086/03, 18/04/2007, proc. 789/07, de 06/09/2006, proc. nº 06P1555, 09/12/2021, proc. nº 3974/15 e de 23/11/2022, 1066/17.0T9LLE-B.E1-A.S1, de que fomos relator.

Tratando-se de um requisito de admissibilidade, há de estar verificado no momento da interposição do recurso, sob pena de rejeição – neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. STJ de 12/1/2000, Proc. 1062/99 - 3.ª Secção, Rel. Cons. Armando Leandro, de 16/10/2003, Proc. 1207/03-5ª, rel. Cons. Pereira Madeira, citado no “Código de Processo Penal, Notas e Comentários”, 2ª ed., 1424, de Vinício Ribeiro e de 4/2/2021, Proc. 3407/16.8JAPRT-A.P1-A.S1.

A doutrina vai igualmente nesse sentido. “1.O recurso extraordinário em causa só pode ser interposto no prazo de trinta dias contados do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar. Se a decisão não transitou em julgado, não é definitiva, e portanto não pode falar-se com segurança na existência de jurisprudência - definitiva – contraditória. Sendo admissível ainda recurso ordinário, manda a economia de meios que seja por essa via que a eventual divergência de julgados seja superada. Nesse caso, a divergência pode ser efémera, pois o tribunal superior pode vir a pôr-lhe termo. De resto, o recurso porque extraordinário constitui um expediente excepcional a intervir apenas e só para suprir as carências dos meios processuais comuns, ou seja, os recursos ordinários. 2.O recurso extraordinário interposto antes do trânsito em julgado da decisão definitiva pelos meios comuns, leva à respetiva rejeição – artº 441, nº 1.” (Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar et alii, em nota ao artigo 448)

II.2. Levantada que vem, como questão prévia, a inadmissibilidade do recurso por intempestividade, o que, a ser assim, configurará a falta do pressuposto formal da tempestividade, impõe-se em razão de precedência lógica e em obediência ao artigo 608º do CPC, aqui aplicável ex vi do artigo 4º do CPP, começar por decidi-la

II.2.1. Para tanto, comecemos por enunciar a marcha processual relevante para a decisão.

O recurso do arguido deu entrada em 24/07/2023.

O acórdão recorrido foi proferido em 24/05/2023 e, tendo sido arguido de nulidades, foi confirmado por acórdão de 12/07/2023.

O acórdão de 12/07/2023 foi notificado ao Ministério Público e aos mandatários, conforme se atesta na certidão junta, em 12–7–2023.

As notificações consideram-se assim efetivadas em 17/07/2023, primeiro dia útil ao terceiro dia (não útil) após a notificação. (cfr certidão junta)

O acórdão recorrido transitou em julgado em 27/07/2023.

II.2.2. Atentemos agora na posição do Ministério Público neste STJ.

Diz o Sr PGA: “Admitindo–se, por bem, que os prazos não se suspendiam em férias até ao trânsito em julgado do acórdão de 12–7–2023, pois tratava–se de processo urgente por respeitar a arguidos presos (conforme se extrai da leitura do processado), a notificação efetuada em 12–7–2023 por via eletrónica importou que a notificação se presumisse efetuada no dia 17–7–2023 (primeiro dia útil seguinte) – cf. artigos 138.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 104.º do Código de Processo Penal e artigo 113.º, n.º 11 e n.º 12, também do Código de Processo Penal).

Deste modo, o acórdão recorrível transitaria, como veio a transitar, por não admitir recurso ordinário, apenas depois de decorridos 10 dias após aquela data de 17–7–2023 (cf. artigos 105.º, n.º 1 e 380.º, ex vi artigo 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal), ou seja, no dia 27–7– 2023 (cf. artigos 103.º, n.º 1 e 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Independentemente do déficit de outros aspetos formais, importa, pois, concluir o seguinte:

Sendo o prazo de interposição deste recurso extraordinário o de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, tal prazo só começaria a contar após o fim do prazo assinalado (10 dias, atingidos em 27–7–2023), pelo que o recurso extraordinário interposto pelo recorrente é intempestivo, pois foi interposto em 24–7–2023, portanto antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido/recorrível e, por isso, é de rejeitar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 438.º, n.º 1, 440.º, n.º 3 e 4, e 441.º, n.º 1, 1ª parte, todos do Código de Processo Penal (cf. igualmente, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16–10–2003, processo n.º 1207/03–5.ª; de 09-10-2003, processo n.º 3210/03 - 5.ª; de 09-10-2003, processo n.º 2607/03 - 5.ª; de 20-12-2022, processo n.º 21/11.8PEPRT-L.S1 - 3.ª).”

I.2. É unânime que o trânsito em julgado da decisão, só ocorre, nos termos do artigo 628 do CPC, aplicável no processo penal ex vi do artigo 4º do CPP, “logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”. Quando a decisão é suscetível de recurso ordinário, tal efeito consuma-se no momento em que se encontrem esgotadas as possibilidades de interposição de recurso. Nas demais situações, incluindo aquelas em que se encontra esgotada a possibilidade de interposição de recurso ordinário, ocorre no fim do prazo, que é o geral de 10 dias, artigo 105, n.º 1, do CPP, para a eventual arguição de nulidades, 379º CPP, ou pedidos de reforma ou correção de sentença (380º CPP), que integram a figura da reclamação a qual, dentro do respetivo prazo, afasta o trânsito em julgado, ou para interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 75º, nº 1, da L. 28/82, de 15/11.(ac. de 29/03/2023, 124/19.0GBAMT.P1-A.S1, Sénio Alves e STJ de 9/12/2021, Proc. 441/11.8JDLSB.P1-C.S1, Sénio Alves e ac. STJ de 6/5/2021, Proc. 916/13.4TASXL.E1-A.S1, Eduardo Loureiro).

“Num plano mais lato, o que se sustenta é que no caso em que o recurso não é admissível para o STJ, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (arts. 379.º, 380.º e 425.º, n.º 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.º 1 do art. 105.º do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição, data a partir do qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe o trânsito em julgado. Deste modo, impede-se a abertura de uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos.”, in ac. do STJ de 11/03/2021, proc. nº 130/14, Margarida Blasco. (cfr também ac. do STJ de 06/09/2006, proc. nº 06P1555, “Código de Processo Civil Anotado”, I, Abrantes Geraldes et alii, 2ª edição, pag. 778, e “Recursos em Processo Civil”, Abrantes Geraldes, 6ª edição, notas aos artigos 628 e 689).

II.2.3. O Sr PGA defende que, tratando-se de processo com arguido preso, o prazo deveria correr nas férias judiciais1. Ora, independentemente de se considerar se o prazo deveria ter corrido em férias ou não, e, como veremos, não é necessário aqui decidir tal questão, tem razão na conclusão o Ministério Público. Sufragando-se qualquer das teses sempre se concluirá que o recurso foi prematuramente interposto. Se se entender que o prazo corre em férias judiciais, aquando da interposição do recurso ainda o acórdão não tinha transitado em julgado, só transitava em 27/07/2023; se, diferentemente, se optar pela posição de que não corre em férias judiciais mais distante ainda estava o seu trânsito, aquando da interposição do recurso, só transitando em julgado no dia 11/09/2023.

Por isso, o presente recurso, por interposto antes do trânsito em julgado do acórdão recorrido, é extemporâneo, impondo-se a sua rejeição.

Sendo assim, como é, fica prejudicado o peticionado.

III - DECISÃO

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 437º, 438.º, n.º 1, 440.º, n.º 3, e 441.º, n.º 1, todos do C.P.P. por intempestividade, rejeita-se o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Custas pelo Recorrente em quatro (4) UC’s.

Face á rejeição do recurso vai o Recorrente, nos termos do artigo 420º, nº 3, aqui aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 448º ambos do CPP, na sanção de quatro (4) UC´s.


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STJ, 8 de novembro de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Sénio Reis Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. No despacho de 07/08/2023 do Sr Desembargador Relator da Relação de Coimbra teve-se entendimento oposto: “Por sua vez, a regra que resulta dos artigos 104º, nº 2, e 103º, nº 2, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, de que correm em férias os prazos relativos a processos com arguidos detidos ou presos, justifica-se pela defesa de valores constitucionalmente relevantes, como sejam a celeridade e eficiência do sistema penal, a liberdade do arguido e o interesse punitivo do Estado – cfr. Acórdão do STJ de 29.1.2007, Proc. nº761/06, 3ª secção e Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar e outros, 2014, pág. 348.

  A ser assim, no recurso de fixação de jurisprudência “não se trata já de assegurar propriamente as garantias do processo criminal, tal como decorrem do artigo 32º da Constituição, pois estas pressupõem a existência de um processo criminal, desde o seu início até ao trânsito em julgado da decisão, sendo que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência pressupõe justamente o trânsito em julgado da decisão recorrida, bem como da decisão que serve de fundamento” – cfr. Ac. do STJ, nº 4040/06 – 5ª secção, de 22.2.2007 e Código de Processo Penal Comentado de Henriques Gaspar e outros, 2014, pág. 1570-1571.

  Tendo decorrido o processo crime até ao trânsito em julgado da respectiva condenação, não há que assegurar agora qualquer estatuto do arguido com as respectivas garantias, tal como decorrem do artigo 32º da CRP.

  Pelo exposto, os prazos no recurso de fixação de jurisprudência não correm em férias judiciais.”