Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
361/19.8T8LLE-B.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
VENDA JUDICIAL
BEM IMÓVEL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
AÇÃO EXECUTIVA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
O direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil) quando for reclamado o crédito que garante até à transmissão dos bens – art.º 788.º, n.º 3 do Código de Processo Civil – obtendo um pagamento preferencial pelo valor da coisa retida, obtido numa venda judicial.
Decisão Texto Integral:
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I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

AA e BB instauraram em 01/02/2019 acção executiva contra a executada J..., Lda., para cobrança coerciva do montante de 10.891,05€, que, em virtude de cumulação de pedidos, passou a ser de 35.852,24€.

Entre outros bens, na referida execução procedeu-se em 03/02/2020 à penhora da fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 2348/19950105 e inscrito na matriz sob o artigo 4318. Sobre este imóvel a recorrente Hefesto STC S.A., detém garantia hipotecária com base na qual apresentou reclamação do seu crédito no montante de 339.456,08€.

Em 18 de Outubro de 2020 o Agente de execução notificou, por carta registada com aviso de recepção o recorrente CC, para a morada da fracção em causa, do registo da penhora sobre o prédio em causa advertindo-o da possibilidade de o bem ser vendido na execução (referência CITIUS ...51) dado constar no registo predial da referida fracção o registo da acção intentada por ele e DD, cujo pedido consistia em ser proferida sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial da ré faltosa, transferindo o direito de propriedade da fracção autónoma correspondente ao contrato celebrado entre os autores e a ré J..., Lda., que esta lhes prometeu vender.

O imóvel foi colocado à venda na plataforma e-leilões, com data limite de 07/07/2021 para apresentação de propostas tendo a venda sido publicitada, designadamente, através da afixação de edital no prédio onde residem os recorrentes.

A proposta vencedora no leilão foi apresentada pelo recorrente EE, aqui recorrente.

Em 28/07/2021 CC e DD foram notificados, por carta registada, da venda do imóvel e para proceder à entrega do mesmo (ref. º CITIUS ...57), e, emitido título de transmissão a favor do terceiro adquirente do imóvel.

Os recorridos CC e DD apresentaram no processo executivo em 17/08/2021 um requerimento avulso, onde formularam os pedidos de:

- Suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793º do CPC até prestação de caução, uma vez que requereram a insolvência da executada J..., Lda., que corre termos no Juízo do Comércio ...-J... sob o nº 97/21....;

- Admissão do crédito no valor de 40.000,00 €, reconhecido por sentença proferida nos autos n.º 2484/19...., que correu termos no Juízo Central Cível ...-Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ...;

- Reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio nos termos do artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil (CC);

- Suspensão da entrega do prédio ao adquirente;

- Declaração de nulidade da execução e sustação imediata de todos os actos praticados relativamente ao imóvel e venda.

O Tribunal de 1.ª instância, por decisão proferida em 30 de Outubro de 2021, indeferiu os pedidos formulados.

Interposto recurso de apelação desta decisão veio o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 15 de Dezembro de 2022 a julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida que se substitui por outra que reconhece que o crédito dos apelantes está garantido por direito de retenção, devendo, por isso, ser suspensa a execução no respeitante à entrega da fração a terceiro adquirente, até que o seu crédito seja satisfeito.

A recorrente Hefesto STC S.A. apresenta pedido de revista daquele acórdão ao abrigo do disposto no artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Em 11/05/2020 a Hefesto STC S.A., na qualidade de Credora Hipotecária da fração autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 2348/19950105 e inscrito na matriz sob o artigo 4318, juntou aos autos, na modalidade de “apensar a processo existente”, reclamação de créditos no valor de 339.456,08€, o qual foi graduado logo após as custas e o crédito de IMI (douta sentença com a referência ...27).

B. O Agente de Execução (AE), em 18/10/2020, por carta registada com aviso de receção, notificou o recorrente CC, para a morada da fração aqui em causa, do registo da penhora sobre a mesma, advertindo-o da possibilidade de o bem ser vendido na execução (referência CITIUS ...51).

C. Constam dos autos, com data de 28/01/2021 (referência CITIUS ...64) dois avisos de receção, devidamente assinados, relativos às cartas de constituição de CC e DD como terceiros fiéis depositários do imóvel.

D. Em 25/05/2021 o imóvel foi colocado à venda na plataforma e-leilões, com data limite de 07/07/2021 para apresentação de propostas.

E. O AE publicitou a venda do imóvel, designadamente, através da afixação de edital no prédio onde residem os recorrentes (referência CITIUS ...50).

F. Em 28/07/2021 foi emitido título de transmissão a favor do terceiro adquirente do imóvel.

G. Em 17/08/2021 os recorrentes CC e DD deram entrada nos autos de requerimento avulso, no qual pediram o seguinte ao Douto Tribunal:

- Suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793º do CPC até prestação de caução;

- Admissão do crédito no valor de 40.000,00 €, reconhecido por sentença proferida nos autos n.º 2484/19...., que correu termos no Juízo Central Cível ...-Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ...;

- Reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio nos termos do artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil (CC);

- Suspensão da entrega do prédio ao adquirente;

- Declaração de nulidade da execução e sustação imediata de todos os atos praticados relativamente ao imóvel e venda.

H. Em 30/10/2021 foi proferido Douto despacho, que indeferiu os pedidos formulados, pronunciando-se, em suma, nos seguintes termos:

- Para que os Requerentes pudessem vir invocar o seu direito de retenção sobre a fração autónoma, era necessário que os mesmos, naquela ação nº 2484/19...., tivessem pedido o reconhecimento desse seu direito e que o vissem reconhecido, sendo certo que não o fizeram;

- Os Requerentes não têm reconhecido o direito de retenção sobre a fração autónoma designada pela letra “B”, tendo apenas reconhecido um direito de crédito sobre a sociedade executada, o qual, poderiam reclamar no apenso de reclamações de créditos;

- Ainda que se entendesse que os Requerentes tinham reconhecido o seu direito de retenção sobre a fração autónoma, a solução seria a mesma, porquanto esse direito teria caducado com a venda judicial;

- O credor que goza do direito de retenção sobre a coisa apreendida judicialmente só tem direito a reclamar o seu crédito e fazer aí, valer a sua garantia real;

- Não existe qualquer fundamento legal para declarar nulos os atos praticados nos autos de execução e para declarar sustada a execução.

I. Em 11/11/2021 foi apresentado recurso do Douto Despacho (referência da peça: ...31). Contrariamente ao que decorre do Douto Acórdão, foram apresentadas contra-alegações de recurso pela ora recorrente (referência da peça: ...56).

J. Do douto acórdão do Tribunal da Relação cabe recurso de revista por estar em causa uma decisão de mérito (artigo 671.º n.º 1 do CPC) encontrando-se preenchido o pressuposto previsto no n.º 1 do artigo 678.º do CPC, designadamente, a ora recorrente entende que a decisão recorrida é-lhe desfavorável em valor superior a metade da alçada da Relação, uma vez que reconhece a existência de um direito de retenção e um crédito no valor de 40.000 €, reconhecimento esse que teria como consequência prática a graduação deste crédito antes do crédito da ora recorrente, o que não se concebe.

K. O presente recurso de revista tem como fundamento o disposto no artigo 674.º n.º 1 c), em conjugação com previsto no n.º 1, alínea d) 1.º parte, alínea c), 2.ª parte do artigo 615.º e no 674.º n.º 1, alínea b), 1.ª parte, todos do CPC.

L. O objeto de recurso consistiu unicamente na omissão de pronúncia do Douto despacho proferido pela 1.ª instância quanto ao pedido de suspensão dos pagamentos. Não obstante, o Tribunal da Relação entendeu pronunciar-se, oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 608.º n.º 2, 2.ª parte do CPC, sobre a existência de direito de retenção, afirmando que o mesmo não caducou com a venda judicial do bem.

M. Quanto ao referido pedido, a decisão recorrida relegou para a 1.ª instância, para exercício do contraditório. Sucede, no entanto, que, em momento algum o douto acórdão aborda a questão da necessidade de os recorrentes reclamarem o crédito no apenso respetivo.

N. Face ao objeto do recurso, e uma vez que o Douto Tribunal decidiu reconhecer a existência de um direito de retenção a favor dos recorrentes (afirmando que o mesmo não caducou com a venda judicial), impunha-se uma tomada de posição sobre se os recorrentes, seriam ou não credores nos autos e, nessa medida, se teriam ou não legitimidade para pedir a suspensão dos pagamentos.

O. Determina o artigo 788.º n.º 3 do CPC que: “Os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados.”.

P. Os recorrentes não apresentaram, no apenso criado para o efeito e até à transmissão do bem, a devida reclamação de créditos.

Q. Nessa medida, não foram cumpridos os preceitos legais que garantem o devido contraditório, mormente, o artigo 789.º do CPC.

R. Os recorrentes limitaram-se a apresentar um requerimento avulso no processo principal e em data posterior à venda judicial. Motivo pelo qual, os recorrentes, tal como pugnado pela 1.ª instância, não poderão ser considerados credores nos autos.

S. O prazo constante do n.º 3 do artigo 788.º do CPC é um prazo preclusivo do direito, pelo que após a emissão do título de transmissão (28/07/2021) deixou de ser possível apresentar reclamação de créditos.

T. Entende a ora recorrente que o Douto Acórdão ao não analisar estas questões previamente à eventual decisão de remeter o processo para a 1.ª instância para exercício do contraditório quanto aos pagamentos, deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar (artigo 674.º n.º 1 alínea c) e artigo 615.º n.º 1, alínea d), 1.ª parte, ambos do CPC).

U. Com efeito, para que os recorrentes tivessem direito a requerer a suspensão dos pagamentos até à prestação de caução, necessário seria que assumissem a posição de credores, posição essa que impõe que o crédito seja reclamado no apenso e até à transmissão do bem, o que não se verificou.

V. Em face do que ficou exposto, a ora recorrente entende que o acórdão recorrido, implicou uma violação das seguintes leis de processo: artigo 788.º n.º 3 e 8, artigo 789.º a 791.º do Código de Processo Civil (artigo 674.º n.º 1 alínea b) do CPC).

W. Entende ainda a ora recorrente que o Tribunal da Relação ao omitir estas questões, reconhecendo de forma abrangente o direito de retenção, sem fazer a devida destrinça entre titularidade do direito de retenção para efeitos da suspensão da entrega do imóvel e titularidade ou não de um crédito nos autos em função de o mesmo ter ou não sido reclamado e respetivo direito ao produto da venda, criou uma obscuridade que torna a decisão ininteligível quanto a este aspeto, fazendo parecer que os titulares de direito de retenção estão dispensados de reclamar os seus créditos (artigo 674.º n.º 1 alínea c) e artigo 615.º n.º 1, alínea c), 2.ª parte, ambos do CPC).

X. Dúvidas não restam que, não fosse a referida omissão, a decisão quanto ao objeto do recurso teria sido no sentido de indeferir o mesmo, com a consequente ordem ao AE, pela 1.ª instância, para proceder ao pagamento em função da douta sentença de verificação e graduação de créditos há muito proferida.

Formulou o pedido de revogação do acórdão recorrido.


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O recorrente EE apresenta pedido de revista daquele acórdão ao abrigo do disposto no artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O Tribunal de 1ª Instância, após a venda judicial no decurso do processo de execução, decidiu ordenar a entrega do bem imóvel ao adquirente, ora recorrente.

2. Inconformados, os recorridos (apelantes), titulares de um direito de retenção sobre o imóvel transmitido ao ora recorrente, recorreram da decisão para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, invocando o disposto no art.º 755, n.º 1, al. f) do CC, veio julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que reconheça que o crédito dos apelantes está garantido por direito de retenção, devendo, por isso, ser suspensa a execução no respeitante à entrega da fração a terceiro adquirente, até que o seu crédito seja satisfeito.

3. O ora recorrente, que se encontra direta e efetivamente prejudicado pela decisão, por ser adquirente de boa-fé numa venda num processo de execução, não se conforma com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Tribunal a quo) por estar em notória contradição com outros acórdãos do Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça que, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, vieram sancionar que o art.º 755, n.º 1, alínea f) do Código Civil deve ser conjugado com o disposto no art.º 824, n.º 2 e n.º 3 do CC, devendo-se concluir que “prosseguindo a execução até à venda executiva, o direito de retenção, que é um direito real de garantia, caduca com esta venda nos termos da 1ª parte do n.º 2 do art.º 824 CC.” (Cfr. Acórdão do STJ de 08.10.2013 – Proc. n.º 10262/06.4TBMTS.P1.S1 / Acórdão do STJ de 16.12.2020 – Proc. n.º 231/15.9T8AVR.P1.S1 / Acórdão do TER de 07.06.2018 – Proc. n.º 1532/13.6TBSTR.E1 – transitados em julgado)

4. A questão fundamental de direito é saber se o direito de retenção conferido pelo art.º 755, n.º 1, al. f) do CC, caduca com a venda em execução, nos termos do disposto no art.º 824, n.º 2 e n.º 3 do CC, não podendo sobreviver à venda executiva mesmo quando seja constituído antes de qualquer penhora.

5. O ora recorrente como adquirente do direito de propriedade considera que o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, além de não respeitar o estatuído no art.º 824 do CC, viola o direito de propriedade consagrado no art.º 62 da CRP e art.º 1302 do CC, ao limitar de forma desproporcionada e sem fundamento legal o direito do adquirente que é terceiro de boa-fé e único legitimo titular do bem que nada tem a haver com a relação creditícia estabelecida entre a executada e o titular do direito de retenção.

6. Independentemente das circunstâncias, afigura-se que o exercício do direito de retenção pelo titular, neste caso em concreto pelos apelantes/ora recorridos, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé nos termos definidos no art.º 334 do CC, porquanto, tendo o imóvel sido adquirido por terceiros em venda executiva, o exercício do direito sobre bem imóvel alheio era ilegítimo, causando um sacrifício excessivo e e desproporcionado ao adquirente, ora recorrente, não desconhecendo a falta de fundamento.

7. Em suma, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora violou o disposto no art.º 824 do CC que prevalece sobre o direito conferido ao abrigo do art.º 755, n.º 1, alínea h) do Código Civil em virtude da venda em execução, sendo que esta não foi anulada, e o disposto no art.º 62 da CRP e art.º 1302 e seguintes do CC.

Requereu a revogação do acórdão recorrido e confirmada a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.


Os recorridos CC e DD apresentaram contra-alegações em suporte do acórdão recorrido que encerram com as seguintes conclusões:

I. Os Srs. Juízes Desembargadores fizeram justiça analisando correctamente a factualidade subjacente à decisão que proferiram, aplicando o direito criteriosamente respeitando o principio da prevalência da substância sobre a forma , o que se evidencia na aplicação exemplar do dispositivo legal do artigo 755º n.º1 al. f) do CC . Isto é, avaliaram exemplarmente a forma única, justa e eficaz dos apelantes verem satisfeito o seu crédito composto do capital de que dispuseram para comprar a casa e a respectiva compensação pela não realização do negócio, do qual não tiveram nenhuma culpa.

II. O direito de retenção a que refere o artigo 755º n.º1 al. f) do CC derivado de contrato de promessa de compra e venda onde as partes acordam na transmissão dominial do prédio e o comprador pagou a totalidade do mesmo e detém o crédito resultante do incumprimento do contrato promessa pelo vendedor é um direito de retenção que dispõe de sequela , constituindo-se como um direito real de garantia com eficácia erga omnes oponível a terceiros , dispensado de ser reconhecido judicialmente, como caso especial decorrente da previsão normativa inserida no artigo 755º do CC pelo DL 379/86 de 11.11 que conferiu e preveniu o direito especial de retenção prevalente sobre a hipoteca; sobre a eficácia real do contrato e mesmo sobre o registo de aquisição definitiva enquanto o crédito não for integralmente pago ( Antunes Varela, RLJ, 121º-34)

III. Assim o decidiu e bem o douto Acordão do Tribunal da Relação, como bem decidiu por força da eficácia erga omnes com sequela do direito de retenção manter o direito até à satisfação do crédito dos apelantes mesmo perante o comprador.

IV. Em contrário, como defendido pelos recorrentes caducando o direito de retenção como e em caso da previsão do disposto no artigo 824º n.º1 do CC com a venda executiva , sempre se obteriam efeitos práticos idênticos à solução dada no douto Acordão recorrido por força do disposto da excepção dos casos previstos no n.º2 daquele dispositivo, cujos direitos do valor do crédito sob a forma de indemnização seriam transferidos para o produto da venda , mas com perda injustificada da garantia na relação de vendedor faltoso com comprador cumpridor, em violação do disposto no artigo 755º n.º1 al. f) do CC, que o legislador preveniu para estas situações.

V. O legislador através do DL 379/86 de 11/11 que introduziu a norma da al. f) do n.º1 visou proteger a debilidade económica em que se colocou o promitente comprador do prédio , cujo negócio não se consumou por causa imputável ao vendedor e no caso em face da irredutibilidade do credor hipotecário Hefesto STC, SA que não aceitou expurgar a hipoteca na parte correspondente ao prédio     , apenas aceitando o pagamento integral do valor da hipoteca de 326.236,80 Euros que abrange 7 prédios.

VI. A omissão de pronuncia em 1ª instância consentiu a venda da fracção , levando-nos agora a discutir a hipótese jurídica da caducidade do direito de retenção que se evitaria se o Tribunal de 1ª instância se tivesse pronunciado – o que não fez - e daí o recurso e motivação da apelação para o Tribunal da Relação de Évora sobre a omissão de pronúncia sobre o requerimento dos apelantes de 17.Agosto.2021 – antes da realização da venda- , reclamando créditos e a suspensão da execução nos termos do artigo 788º n.º3 e 793º do CPC prevenindo sem êxito a realização da venda e acautelando , sendo o caso , a garantia do pagamento do seu crédito.

VII. O tribunal de 1ª instância negou a suspensão da execução e não se pronunciou sobre a reclamação de créditos , como tão pouco se pronunciou sobre quanto o mais requerido , limitando-se a pronunciar sobre o não reconhecimento do direito de retenção que afinal é um direito com eficácia erga omnes com sequela e como tal , assim oponível.

VIII. Como também o Tribunal de 1ª instância omitiu o dever de gestão processual previsto no artigo 6º do CPC de promover a conformação  do requerimento de 17. Agosto.2021 permitindo com isso o desenvolvimento processual da venda do prédio sem a verificação ulterior do crédito dos apelantes.

IX.  Os recorrentes EE e Hefesto STC, SA , não impugnaram o douto Acordão do TRE relativamente ao reconhecimento do direito de retenção como direito real com eficácia erga omnes com sequela sobre o prédio, constituído com o contrato promessa e a traditio da casa aos apelantes pelo que se deverá manter inalterável a decisão que reconheceu que o seu credito está garantido por direito de retenção e que por isso devendo continuar suspensa a execução no respeitante à entrega da fracção a terceiro adquirente até que o seu crédito seja satisfeito .


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 629.º, n.º1, e 854.º do Código de Processo Civil o pedido de revista apresentado por EE é admissível tendo em conta o valor da acção, a sucumbência e a oposição entre o acórdão recorrido e o proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 07.06.2018 proferido no Proc. n.º 1532/13.6TBSTR.E1 631.º, acessível em www.dgsi.pt que se pronunciou sobre a mesma questão fundamental de direito em sentido oposto ao propugnado pelo acórdão recorrido.

Nos termos do disposto no art.º 854.º do Código de Processo Civil não é admissível o recurso apresentado por Hefesto STC S.A., dado que não se trata de decisão proferida no apenso de reclamação de créditos ainda que possa contender com a ordem dos pagamentos nele efectuada.

Custas pela recorrente.

Notifique.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1 - Efeitos da venda judicial em processo de execução sobre o direito de retenção.

                                                           


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I.4 - Os factos

O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1. A execução de sentença a que estes autos estão se apensos foi instaurada em 01/02/2019, sendo exequentes: AA e BB e executada: J..., Lda., pretendendo aqueles o pagamento por esta da quantia de 10.891,05€, que, por requerimento de cumulação posteriormente entrado, em 28/05/2019, passou a ser de 35.852,24€.

2. Consta dos autos de execução de sentença um auto de penhora datado de 03/02/2020 onde, entre outros imóveis, figura penhorada como verba 2: a Fracção autónoma designada pela letra B do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., denominado Lote n.° 5 A, correspondente ao rés-do-chão direito, tipo TO, com logradouro, destinada a habitação, com a área útil de 42,58m2, inscrita na matriz sob o artigo 4318-B e descrita na Conservatória .... Predial de ..., sob o n° 2348-B, da freguesia ....

3. Do auto de penhora constam as seguintes observações:

"Verba 2: encontra-se registada anteriormente uma hipoteca voluntária a favor de Hefesto STC, S.A. e uma acção a favor de CC e DD.

4. Consta também do auto de penhora serem os ora Recorrentes terceiros depositários nomeados pelo Sr. Agente de Execução (AE), como segue:

"Encontrando-se o imóvel na sua posse, fica V. Exa notificado(a) de que, por força do artigo 756° do Código de Processo Civil, passará, a partir da presente data, a exercer o cargo de fiel depositário(a) do imóvel penhorado, pelo que deverá cumprir os deveres prescritos nos artigos 760º, 771° e 818° do CPC.

Assim, nos termos do artigo 818°do Código de Processo Civil, sendo o fiel depositário obrigado a mostrar o bem a quem pretenda examiná-lo, deverá V. Exa, fixar as horas em que, durante o dia, faculta o acesso ao imóvel, e comunicar ao processo no prazo de 10 dias."

5. Do registo predial desta fracção consta inscrito um registo de acção pela apresentação 2019/08/09 na Conservatória ...:

Como sujeitos activos: CC e DD no estado de casados-

E como sujeitos passivos: HEFESTO STC, S.A. e J..., Lda.

O registo da acção intentada por estes tem o seguinte PEDIDO: "a) ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da RÉ faltosa, transferindo o direito de propriedade da fração autónoma correspondente ao contrato celebrado entre AA e a primeira RÉ, que esta prometeu vender."

6. Os ora Recorrentes em 03/02/2021 requereram a insolvência de J..., Ldª.

7. Em 25/05/2021 este imóvel foi nos presentes autos de execução colocado em venda (leilão on-line) - com data limite fixada para apresentação das propostas a de 07/07/2021.

8. Com data de 09/07/2021 consta Informação do Agente de Execução (AE) "da venda da verba 2 penhorada nestes autos (fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 4318-B e descrito na Conservatória .... Predial de ..., sob o n° 2348-B, da freguesia ...), na modalidade de venda em leilão eletrónico, pelo preço de 64.388,51 €. Mais se informa que o arrematante foi EE”.

9. Em 17/08/2021 - deu entrada nos autos de execução um requerimento formulado pelos intervenientes ora apelantes, do seguinte teor:

"CC, e mulher DD, na qualidade de terceiros fiéis depositários nomeados pelo Sr. Agente de Execução (AE) da fração autónoma penhorada na execução e, em fase de arrematação, vieram aos autos requerer a suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793° do CPC e que fosse admitido nos autos o crédito dos requerentes no valor de 40.000,00 euros e reconhecido o direito de retenção sobre o prédio nos termos do artigo 755° n.° 1  al. f) do CC e, ainda, que fosse advertido o Sr. AE para não proceder à entrega do prédio ao comprador e que o produto da venda não seja entregue ao exequente sem prestar caução até satisfação do pagamento do crédito dos requerentes”.

Fundamentaram tal pedido na sentença proferida nos autos n° 2484/19.... que condenou a aqui executada, ali Ré, "J..., Lda." a pagar-lhes o montante de 40.000,00 € correspondente ao dobro do sinal entregue com a celebração do contrato promessa de compra e venda respeitante à mesma fracção, que estão a habitar e, ainda, a quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente ao valor da reparação realizada no anexo da mesma.

Alegando em concreto:

- "1. Os requerentes residem no imóvel supra identificado e dele detêm um direito de retenção de crédito incumprido.

- Os Requerentes foram notificados pelo AE da arrematação do imóvel, melhor identificado nos autos, pelo valor de 64.388,51 euros pelo Sr. EE.

- Pedindo ainda a entrega do imóvel.

- Acontece que correu termos no TJ ...- Juízo Central Cível ...- Juiz ... com o n.° 2484/19...., ação de condenação onde em suma os aqui Requerentes pediam que fosse proferia sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa - aqui executada ( J...) - em contrato promessa de compra e venda de imóvel, (sentença que se junta como doc. 1)

- Depositando os Requerentes à ordem dos autos o valor em falta acordado no contrato promessa

- Os Requerentes demandaram conjuntamente o credor hipotecário Hesfesto Stc, SA., cuja hipoteca abrange 7 prédios (incluído o prédio objeto do contrato promessa)

- A Hesfesto Stc, SA., contestou que a expurgação da hipoteca custaria o valor em dívida que a sociedade teria à data de 326.236,80 Euros,

- Mostrando em julgamento irredutível quanto à aceitação do pagamento do valor em divida referente à parte correspondente à fração em apreço (doc. 2)

- Apenas aceitando pagamento integral (326.236,80 Euros)

- Nestas condições para não assumir a hipoteca que abrange 7 prédios.

- Os Requerentes forçosamente desistiram do pedido principal,

- E a J... Lda. foi condenada no pedido alternativo da restituição do sinal em dobro ou seja no 40.000,00 euros reconhecido na douta sentença do processo identificada em 4 como crédito dos requerentes.

- Com o contrato promessa celebrado em a 5 de Outubro de 2018, entre os Requerentes e a José Alberto Antunes Lda, os Requerentes tomaram posse da fração autónoma designada pela letra B , correspondente ao rés do chão, direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ... , inscrito na matriz sob o artigo 4318 e descrito na CRP ... sob o número 2348/19950105-B, com alvará de licença de utilização para habitação n.° 87 de 27/08/ 1996.

- Passando a ser a sua habitação própria e permanente, lá tendo a sua economia familiar, pagando água e luz e outros serviços.

- Os Requerentes aí residem com a neta e a filha desta.

- Com a outorga do contrato promessa e entrega das chaves da fração autónoma foi feita a traditio do imóvel a favor dos Requerentes

- Atendendo ao estado de conservação da fração, foi acordado pelo legal representante da Sociedade que as reparações necessárias seriam custeadas pelos Requerentes, o que veio a acontecer sendo a R aqui executada condenada a pagar aos reclamantes o valor de 40.000,00 euros referidos aqui em 12 e as despesas das reparações custeadas pelos requerentes apuradas em execução de sentença.

- A ação de condenação foi registada na CRP ... em 09/08/2019 pela AP. 3295, aguardando a sua conversão por força da interposta execução de sentença que corre termos no ... com o Processo n.° 796/20.....

- Correm ainda termos no Juízo de Comércio ... - J... com o Processo n.° 97/21.... a insolvência da sociedade J... Lda, intentada pelos requerentes em 3 de Fevereiro de 2021 por forma a acautelar o pagamento do seu crédito

- Tendo falecido todos os sócios e gerente e designadamente em .../05/2020 gerente FF e não apresentando contas a sociedade há mais de três anos.

- A declaração de insolvência afigura-se inevitável, com as suas consequências nos processos pendentes

- Os Requerentes foram notificados com data de 14 de janeiro de 2021, pelo Sr. AE que foram nomeados depositários, por saber que estes lá residem (doc. 3 e 4)

- Dando a conhecer ao Sr. AE que decorria a ação de insolvência e para proceder em conformidade (doc.5) que junta e reproduz.

- O sr. AE nada atendeu embora sabendo que deveria suspender a execução nos termos do artigo 793° do CPC.

- Prosseguindo ilegalmente com a execução até à venda do prédio, que por isso é ilegal.

- Os requerentes têm o direito de retenção do prédio por força da traditio do mesmo e têm um crédito judicialmente reconhecido de promitente comprador resultante do incumprimento definitivo do contrato promessa

- É com alguma perplexidade que os Requerentes fazem a leitura da comunicação da arrematação.

10. Em 30/10/2021 foi proferida a decisão em recurso que considerou não terem os requerentes decisão donde constasse como reconhecido, o alegado direito de retenção, mas ainda que o tivessem a solução seria a mesma, porquanto esse direito teria caducado com a venda judicial efectuada na presente execução.


*

II - Fundamentação

1.    Efeitos da venda judicial em processo de execução sobre o direito de retenção

No presente processo de execução procedeu-se à venda judicial de uma fracção autónoma de um imóvel que havia sido penhorado para satisfação do crédito exequendo. Nessa fracção habitam os recorridos por força de um contrato promessa de compra e venda que celebraram com a entidade executada, sem que tenha sido celebrado o contrato prometido.

Os recorridos tomaram pessoal conhecimento da pendência da execução, foram constituídos depositários do bem penhorado e advertidos da possibilidade de venda judicial do mesmo.

A venda judicial na execução decorreu com observância do formalismo legal onde se inclui a publicidade da mesma.

Efectuada a venda, depositado o preço e adjudicado o bem ao seu comprador, aqui recorrente, foram os recorridos notificados para fazerem a sua entrega a este.

Vieram os recorridos, em requerimento avulso presente no processo de execução fiscal, requerer:

- Suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793º do CPC até prestação de caução, uma vez que requereram a insolvência da executada J..., Lda., que corre termos no Juízo do Comércio ...-J... sob o nº 97/21....;

- Admissão do crédito no valor de 40.000,00 €, reconhecido por sentença proferida nos autos n.º 2484/19...., que correu termos no Juízo Central Cível ...-Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ...;

- Reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio nos termos do artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil (CC);

- Suspensão da entrega do prédio ao adquirente;

- Declaração de nulidade da execução e sustação imediata de todos os atos praticados relativamente ao imóvel e venda.

Indeferida a pretensão pelo Tribunal de 1.ª instância, veio tal decisão a ser revogada pelo acórdão recorrido que reconheceu o invocado direito de retenção dos recorridos e determinou a execução no respeitante à entrega da fracção a terceiro adquirente, até que o seu crédito seja satisfeito.

Os recorridos não reclamaram os seus créditos no apenso de graduação e verificação de créditos apesar do pessoal conhecimento que tiveram da pendência da execução e das fases processuais que se iam sucedendo.

Por sentença proferida nos autos n° 2484/19.... a aqui executada, ali Ré, "J..., Lda." foi condenada a pagar aos recorridos o montante de 40.000,00 € correspondente ao dobro do sinal entregue com a celebração do contrato promessa de compra e venda respeitante à mesma fracção, que estão a habitar e, ainda, a quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente ao valor da reparação realizada no anexo da mesma. Nesta acção não foi requerido ou declarado o direito de retenção sobre a fracção autónoma em discussão.

A mesma questão fundamental de direito foi já decidida no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido recentemente, em 16 de Dezembro de 2020, no processo 231/15.9T8AVR.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt , a que totalmente aderimos por nele se fazer o correcto enquadramento legal dos efeitos do direito de retenção na processo executivo em que tenha sido vendido a terceiro o bem “retido” em situação em tudo similar que passamos a transcrever na parte aplicável a estes autos diremos:

“(…) Apesar da fração predial que era objeto do contrato-promessa incumprido já ter sido vendida em processo executivo judicial movido contra a promitente-vendedora, tendo sido adjudicada à Interveniente, o acórdão recorrido reconheceu que, para garantia do direito à restituição do sinal em dobro, se mantinha o direito de retenção do Autor sobre essa fração predial. Entendeu-se que, tendo-se verificado, com a celebração do contrato-promessa, a tradição da fração prometida vender para os promitentes-compradores, o Autor, a quem, entretanto aqueles cederam a sua posição contratual, tem direito de retenção sobre essa fração, enquanto não lhe for pago o crédito consistente no valor do dobro do sinal entregue que é devido pelo incumprimento do contrato-promessa, não lhe podendo ser oposto o direito de propriedade sobre esse bem, por parte de quem o adquiriu no processo executivo, ou seja o Interveniente, aqui Recorrente.

Esta solução apoiou-se no raciocínio que o direito de retenção, enquanto direito real de garantia, é oponível erga omnes, dotado de sequela, pelo que a transmissão do direito de propriedade sobre o bem retido não é causa da sua extinção.

Se é verdade que esta construção vale, genericamente, para as transmissões do direito de propriedade de bens sobre os quais incide um direito de retenção, não podemos esquecer que, neste caso, estamos perante uma forma específica de transmissão do direito de propriedade do bem sobre o qual incidia o direito de retenção do Autor.

A transmissão da fracção predial em causa ocorreu como resultado de uma venda judicial no âmbito de um processo executivo em que essa fração foi penhorada.

Dispõe o artigo 824.º do Código Civil:

1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.

3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.

Este preceito que tem a sua origem no artigo 907.º do Código de Processo Civil de 1939, relativamente aos direitos reais de garantia, procura conciliar os interesses dos credores, incluindo o exequente, e do executado, com o interesse do adquirente em processo executivo judicial. Enquanto este adquire o prédio livre de ónus que, a transmitirem-se, afetariam o seu valor, os credores podem obter o pagamento dos seus créditos através do produto da venda, operando a garantia que dispunham, e o executado vê o seu bem atingir valores que permitirão satisfazer ou amortizar relevantemente as suas dívidas, evitando-se, deste modo, uma depreciação do valor dos bens que resultaria de uma alienação com a subsistência das garantias. Esta é a solução que melhor concretiza e harmoniza os efeitos pretendidos com a execução patrimonial dos bens do devedor. 

Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, com a venda na acção executiva, caducam todos os direitos de garantia que incidiam sobre o bem vendido, não sendo aplicável a excepção da parte final do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil, a qual se dirige apenas aos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia. Assim, com a venda executiva, os bens são transmitidos livres de todos os direitos reais de garantia que oneravam o bem vendido, sejam eles de constituição anterior ou posterior à penhora e tenham ou não sido reclamados na acção executiva os direitos de crédito que os garantam [5].

Embora seja habitual a referência à caducidade dos direitos reais de garantia em consequência da venda executiva, o que também sucede no texto do n.º 3 do artigo 824.º, do Código Civil, na realidade, os seus efeitos não se extinguem, antes se transferem do bem vendido para o produto da venda, pelo que estamos antes perante um fenómeno de sub-rogação objectiva. Só na hipótese de o titular do direito de retenção não reclamar o seu crédito no processo executivo onde o bem foi penhorado é que o seu direito caduca com a consumação da venda nesse processo.

Não se ignora que António Menezes Cordeiro defende que a excepção da parte final do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil, também se aplica aos direitos reais de garantia, pelo que, segundo este autor, não caducam os direitos que, sendo anteriores à penhora, sejam oponíveis a terceiros, independentemente do registo. Argumenta que a letra do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil, não é conclusiva, deixando em aberto esta leitura, e que a história deste preceito também não a exclui.

Ora, a utilização no preceito em análise da locução conjuncional comparativa “bem como”, separa e distingue as duas situações, pelo que deve considerar-se que tudo o que está após essa locução apenas se reporta aos direitos reais que não sejam de garantia.

Se, efectivamente, na pré-história deste preceito se registaram ambiguidades quando ao âmbito dos direitos que caducavam com a venda executiva, seja na vigência do artigo 169.º da Lei Hipotecária de 1 de Julho de 1863, quer, posteriormente, na difícil conjugação do disposto no artigo 856.º do Código de Processo Civil de 1876 e os artigos 1021.º a 1023.º e 949.º, n.º 2, do Código de Seabra (antes e depois das alterações introduzidas pelo Decreto n.º 19.126, de 16 de Dezembro, de 1930), já o artigo 907.º do Código de Processo Civil de 1939 veio clarificar quais os direitos que caducavam com a venda executiva, dizendo-se na 2.ª parte do n.º 2, que caducavam quaisquer direitos reais de garantia, transferindo-se para o produto da venda os direitos dos respectivos credores, sem qualquer excepção, enquanto, relativamente aos demais direitos reais, o n.º 1 determinava que os bens são transmitidos livres de quaisquer direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou hipoteca, salvos os que, tendo sido constituídos em data anterior, produzam efeito em relação a terceiros, independentemente de registo. A previsão em números separados dos dois tipos de direitos reais não permitia aqui que existissem quaisquer dúvidas sobre o âmbito de aplicação da excepção prevista na parte final do n.º 1.

Ora, sendo o disposto no artigo 907.º do Código de Processo Civil de 1939, a fonte do artigo 864.º do Código Civil de 1966 [8], e não as normas que o antecederam, não oferece dúvidas que as razões históricas apontam no sentido contrário à aplicação da excepção prevista na parte final do n.º 2, daquele preceito, aos direitos reais de garantia.

Mas, além do já exposto, não se invocam, nem existem razões capazes de justificar a manutenção de direitos de garantia, mesmo que pré-existentes à penhora, após a venda executiva, tendo os credores oportunidade de satisfazer os seus direitos através do produto da venda do bem sobre o qual incidia a garantia. Ao contrário, tal solução resultaria numa inadmissível pressão sobre o adquirente para satisfazer uma dívida que não é sua, de modo a fazer cessar o direito de retenção que oneraria severamente o bem adquirido na venda judicial, o que depreciaria significativamente o valor dos bens executados, prejudicando seriamente as finalidades do processo executivo.

Assente que a caducidade dos direitos de garantia com a venda executiva atinge todos os direitos reais de garantia que onerem o bem vendido, incluindo o direito de retenção, sejam eles de constituição anterior ou posterior à penhora e tenham ou não sido reclamados na acção executiva os direitos de crédito que os garantam, resta agora verificar se o direito de retenção conferido especialmente pela alínea f), do n.º 1, do artigo 755.º, do Código Civil, justifica um regime de excepção.

António Menezes Cordeiro chama a atenção que a finalidade compulsória do direito de retenção é um aspecto secundário quando é atribuído ao promitente-comprador, face ao incumprimento imputável ao promitente-vendedor, sendo o objectivo primordial assegurar ao promitente-comprador, com a posse do bem, a estabilidade da habitação, legitimando o seu gozo, pelo que este específico direito de retenção revela mais afinidades com os direitos reais de gozo do que com os direitos reais de garantia. Por esta razão, relativamente a este direito de retenção em especial, faz notar que a sua sujeição ao regime da segunda parte do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil, se revela reforçada, pelo que, seja como garantia dispensada de registo, seja como direito de gozo anterior e também dispensado de registo, o direito de retenção do promitente-adquirente sobrevive à venda executiva.

O Decreto-Lei n.º 236/80, de 16 de Julho, perante uma conjuntura de forte desvalorização da moeda, procurou adoptar uma série de medidas destinadas a proteger a posição do promitente-comprador de imóvel destinado à habitação, face ao incumprimento do contrato-promessa pelo promitente vendedor, introduzindo várias alterações ao regime do contrato-promessa. Entre elas, conferiu ao promitente comprador um direito de retenção, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor (artigo 442.º, n.º 3, na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 16 de Julho).

Dado que estas alterações, pelo seu carácter geral, atingiam todos os contratos-promessa, o que suscitou diferentes interpretações restritivas, causadoras de acesas polémicas, o legislador sentiu necessidade de efectuar nova intervenção neste domínio, tendo surgido o Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, que acolheu algumas das sugestões inseridas nas críticas à reforma de 1980.

Relativamente ao direito de retenção atribuído ao promitente-comprador, reponderou-se não só a sua inserção sistemática, como também a necessidade e o âmbito da sua atribuição.

Lê-se no ponto 4. do preâmbulo daquele diploma:

O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objeto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3). Pensou-se diretamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de frações autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites.

A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objetiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa.

Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa-fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.

O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de frações autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.

Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a proteção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.

Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção [artigo 755.º, n.º 1, alínea f)].

Por estas razões passou a constar dos casos especiais de atribuição de um direito de retenção enumerados nas diferentes alíneas do n.º 1, do artigo 755.º do Código Civil, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º (alínea f).

Atentas as ponderações legislativas acima transcritas e o disposto nesta alínea do n.º 1, do artigo 755.º do Código Civil, se concordamos que o efeito compulsório do direito de retenção, nestas situações, pode não ser muito eficaz, atentas as opções indemnizatórias do promitente-comprador, facultadas pelo disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil (quanto mais elevado é o valor da indemnização a pagar, menos intensa é a pressão para não abandonar a coisa retida nas mãos do retentor), já o efeito da realização pecuniária, através de um pagamento preferencial pelo valor da coisa retida, obtido numa venda judicial, assume-se como a finalidade principal na atribuição deste direito. Através da titularidade de um direito de retenção ao promitente-comprador, a quem foi transmitido antecipadamente o gozo do bem prometido vender, este vê garantida a satisfação da indemnização a que tenha direito pelo incumprimento do contrato-promessa, mediante um acesso preferencial ao produto da venda desse bem, no caso do mesmo ser executado para satisfação dos credores do promitente vendedor.

Este último efeito do direito de retenção assume particular utilidade nas situações, muito frequentes, em que as empresas promotoras ou construtoras de imóveis recorrem a empréstimos bancários para financiar a construção de imóveis, com hipoteca dos edifícios a construir, sendo posteriormente executadas para liquidar esses empréstimos.

Não foi denunciada qualquer intenção legislativa de garantir a manutenção da posse do bem prometido vender, mesmo após a sua execução, com a atribuição do direito de retenção aos promitentes compradores a quem foi entregue antecipadamente a coisa prometida vender, e esse particular direito de retenção não se encontra circunscrito às situações em que o bem prometido vender é uma fração destinada à habitação, pelo que não parece possível desvendar, como seu fundamento, uma preocupação social de garantir o direito à habitação dos promitentes-compradores consumidores, funcionando esse direito de retenção como um direito de gozo, capaz de proporcionar a estes uma posse segura da sua morada. Se essa fosse a intenção do legislador, porque não atribuir apenas aos promitentes compradores de imóveis para habitação um direito real de gozo e não um direito real de garantia?

E, se é verdade que o promitente-comprador a quem foi transmitido antecipadamente o gozo da coisa prometida vender é tido, em muitas situações, como seu possuidor legítimo, podendo recorrer aos meios de defesa da posse para manter o gozo da coisa, essa posição não lhe advém da titularidade do direito de retenção, mas sim dos termos do acordo que permitiu a antecipação da entrega da coisa prometida vender. A posição do titular do direito de retenção é simplesmente equiparada à do credor pignoratício, se o bem é um móvel (artigo 758.º do Código Civil) ou do credor hipotecário, se o bem é um imóvel (artigo 759.º, n.º 1, do Código Civil).

 Os recorridos podiam ter obtido a declaração do seu direito de retenção e apresentado reclamação desse crédito no apenso de reclamação de créditos, lançado mão do recurso ao disposto no art.º 792.º do Código de Processo Civil desde que o fizessem até à transmissão dos bens penhorados - art.º 788.º, n.º 3 do Código de Processo Civil -, mas decidiram não o fazer apesar de conhecerem a pendência da execução a penhora e a venda da referida fracção autónoma.

Pelo exposto, não pode manter-se o acórdão recorrido.


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Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revoga-se o acórdão recorrido repondo-se a decisão de improcedência do pedido proferida na 1.ª instância e determina-se o prosseguimento do processo executivo, se a tal nada mais obstar.


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Custas do recurso pelos recorridos.


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Lisboa, 6 de Julho de 2023

Ana Paula Lobo (relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Isabel Manso Salgado