Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1030/15.3TELSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL.
Sumário :
I - O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
II - O facto de a Senhora Juiz Desembargadora ter desempenhado funções como Juiz de Instrução Criminal, acompanhando o desenrolar da investigação no âmbito do inquérito, ao longo de mais de 5 anos, praticando actos de instrução criminal relevantes e decidindo questões essenciais para a comprovação dos factos sob investigação, é susceptível de criar dúvidas sérias sobre a sua posição de inteira equidistância, uma vez que, no âmbito do recurso está em causa que possa apreciar as questões com o distanciamento desejável, em virtude de já se encontrar condicionada pelo que conheceu e ponderou anteriormente.
III - Tanto basta para que seja de conceder a escusa pedida pela Senhora Juiz Desembargadora, nos termos do art. 43.º, do CPP, por existir fundamento para tal.
Decisão Texto Integral:

PEDIDO DE ESCUSA


JUIZ DESEMBARGADOR


Processo n.º 1030/15.3TELSB.L1


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO
1. A Senhora Juiz Desembargadora AA, exercendo funções no Tribunal da Relação …, (TR…), ao abrigo do disposto no art.º 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), formulou pedido de escusa de intervir no processo n.º 1030/15.3TELSB.L1, do qual é relator e que lhe foi distribuído.


Para tanto, alegando considerar que teve “(…) intervenção em fase anterior do processo fora dos casos do art.º 40 do CPP, …, as circunstâncias factuais descritas no seu requerimento, “(…) de ter conhecimento prévio dos factos que constituem o objecto de discussão dos recursos, porque sobre os mesmos tomei já posição em sede de inquérito e na qualidade de Juíza de Instrução Criminal, pode conduzir a que, aos olhos dos intervenientes e da comunidade em geral, não estejam reunidas todas as condições para julgar com total imparcialidade.”.


Em síntese e essencialmente, invoca os seguintes fundamentos:


“(…) no exercício das funções que desempenhei enquanto Juíza de Instrução Criminal no Juízo Central de Instrução Criminal de ..., proferi diversos despachos no referido processo, quando o mesmo se encontrava em fase de inquérito e corria termos na .. secção do DIAP de ..., concretamente os seguintes:


- despacho datado de 16/12/2015, em que indeferi o requerimento das arguidas B..... ................... Lda e W..........., Lda, que pretendiam a declaração da nulidade da medida de sustação de movimentos a crédito e o levantamento da medida de sustação de tais movimentos ou, pelo menos, sobre parte do valor depositado.


- despacho datado de 13/01/2016, em que:


.autorizei a realização de buscas às residências do arguido BB, identificadas a fls. 215;


. determinei, ao abrigo do disposto nos artigos 217.º, 218.º, n.º 2, alínea a), 368.ºA e 11.º do Código Penal e 181.º do Código de Processo Penal, a apreensão dos saldos credores das contas bancárias do Millennium BCP, tituladas pelas sociedades «B..... ......... ........... ....» e «W..........., Lda.», respetivamente com os n.os .........39 e .........47, assim como de todas as contas e aplicações financeiras a elas associadas, por existirem fortes indícios de que as mesmas tenham sido utilizadas no branqueamento de capitais provenientes dos crimes de burla qualificada e fraude fiscal em investigação no presente inquérito, de modo a preservar eventuais importâncias monetárias depositadas resultantes da atividade delituosa dos suspeitos.


. mantive em vigor a suspensão de movimentos das contas bancárias judicialmente determinada, por 90 dias.


- despacho de 10/2/2016, em que:


. consignei que tomei conhecimento e abri os ficheiros apreendidos e constantes do CD apresentado art.º 179º do CPP e art.º 17º da Lei 109/2009, de 15/9, neles não tendo detectado dados pessoais ou íntimos que possam por em causa a privacidade do seu titular ou de terceiro.


- determinei a apreensão dos saldos credores de contas bancárias em nome de CC, de BB, de «D....... . ...... Lda.», de «P..... ........ .......... Lda.»; de «O. ....... .. ......., Lda.», por ter entendido que existiam fortes indícios de que as mesmas tenham sido utilizadas no branqueamento de capitais provenientes dos crimes de burla qualificada e fraude fiscal em investigação no presente inquérito, de modo a preservar eventuais importâncias monetárias depositadas resultantes da atividade delituosa dos suspeitos.


. indeferi o requerimento do arguido BB, mantendo as apreensões dos veículos efetuadas nos autos.


- despacho de 11/4/2016, em que determinei a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico nos termos do art.º 17º do DL 100/2009, de 15/9.


- despacho de 11/11/2016, em que indeferi o requerimento do BCP no sentido do 250.000,00 porquanto, diz, estas quantias têm origem lícita e o requerimento das sociedades «B..... ........ .........., Lda.» e «W..........., Lda.» no sentido do levantamento das medidas de suspensão provisória e bloqueio das operações das suas contas bancárias e o requerimento do arguido BB no sentido de lhe ser concedida autorização para proceder ao pagamento das quantias por si em dívida ao Fisco e à Segurança Social com os montantes apreendidos à ordem dos presentes autos.


- despacho de 16-01-2017, em que decidi adiar o acesso aos autos pelo período de três meses, ao abrigo do disposto no art.º 89º n.º 6 do CPP


- despacho de 1/2/2017, em que admiti a intervir nos autos, na qualidade de assistente, DD.


- despacho de 15/2/2017, em que, ao abrigo do disposto nos artigos 217.º, 218.º, n.º 2, alínea a), 368.ºA e 11.º do Código Penal e 181.º do Código de Processo Penal, determinei a apreensão dos saldos credores existentes nas contas bancárias tituladas pela sociedade «I...... AG» no banco UBS AG, com os n.os CH.. .... .... .... ..60 N.º e CH.. .... .... .... ..01 A, as quais já se encontram bloqueadas pelas autoridades suíças, no âmbito do processo PE... do Canton de Vaud, assim como de todas as contas e aplicações financeiras a elas associadas.


- despacho de 20/12/2018, proferido no Apenso A, nos termos do qual decidi aceitar o pedido das autoridades judiciárias suíças de transmissão para as autoridades judiciárias portuguesas do inquérito que ali corre com o n.º PE........44-KBE e, em conformidade, declarar a convalidação dos actos praticados no processo transmitido determinar a remessa dos autos à autoridade judiciária competente para continuação do procedimento criminal


- despacho de 04-12-2020, proferido no apenso B, após a dedução da acusação pública, em que, ao abrigo do disposto nos arts. 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11/1 e 227.º do CPP decretei o arresto de todos e quaisquer bens e valores, que sejam encontrados em poder dos arguidos, suficientes para garantir o pagamento dos valores liquidados, a declarar perdidos a favor do Estado, designadamente dinheiro e/ou valores mobiliários que tenham em contas bancárias de que sejam titulares ou tenham poderes de movimentação, contas essas identificadas no douto requerimento do M.º P.º, bem como dos bens imóveis dos quais têm o domínio e o benefício, designadamente os bens imóveis identificados no douto requerimento do M.º P.º e veículo automóveis, aeronaves ou embarcações de que o arguido seja proprietário ou que tenha em seu domínio ou benefício, identificados no douto requerimento do M.º P.º..


Termina dizendo que “A situação assim descrita não constitui, (…), causa de impedimento, mas será causa de escusa.”, pedindo, a final, a escusa de intervir no processo identificado, em sede de recurso.

2. Para o efeito, aos autos foi junta certidão relativa aos despachos proferidos pela requerente no processo em causa, praticados no exercício das suas funções de Juiz de Instrução Criminal, no Juízo Central de Instrução Criminal de... - Ref.ªs Cítius n.ºs ......10, ......49, ......02, ......32, ......84, ......76, ......58, ......45, ......10 e ......64.

3. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Os factos estão consubstanciados no requerimento que suporta o pedido de escusa.


O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


Sobre o fundamento da suspeição a que se refere o art.º 43.º do CPP, este Supremo Tribunal tem jurisprudência firme cuja aplicação se mostra actualizada, não se justificando repetir os ensinamentos que dela emanam, valendo por todos, a fundamentação efectuada no Ac. do STJ de 13-04-2005, Proc. n.º 05P1138, em www.dgsi.pt. Efectivamente, ali se disse:


A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa.


4. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.


Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.


(…)


5. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.


O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do Código de Processo Penal - artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo diploma.


(…)


O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias.”.


No mesmo sentido, entre outros os acórdãos do STJ de 23-09-2009, Proc. n.º 532/09.5YFLSB; ou o de 27-10-2021, Proc. n.º 69/18.1TREVR-B.S1 ou, mais recentemente, o de 22/09/2022, Proc. n.º 362/19.6GESLV.E1-A.S1 – todos em www.dgsi.pt.

4. O pedido de escusa apresentado pela Senhora Juiz Desembargadora AA respalda-se séria e objectivamente na necessidade de garantir e prevenir que sobre o sistema de justiça, em geral, e em particular no caso para que pede dispensa de intervir, recaia o perigo da suspeição e da desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da decisão, como a mesma salienta no seu requerimento “A circunstância de ter conhecimento prévio dos factos que constituem o objecto de discussão dos recursos, porque sobre os mesmos tomei já posição em sede de inquérito e na qualidade de Juíza de Instrução Criminal, pode conduzir a que, aos olhos dos intervenientes e da comunidade em geral, não estejam reunidas todas as condições para julgar com total imparcialidade. De facto, é naturalmente admissível que a sociedade em geral e o meio jurídico em particular considerem que não tenho a isenção necessária para decidir os recursos interpostos nos autos pelos arguidos”.


No caso presente verifica-se que a Senhora Juiz Desembargadora intervém como relator num processo em que a matéria neles contida respeita a uma realidade fáctica com a qual tomou contacto e conhecimento como Juiz de Instrução durante mais de 5 (cinco) anos, no âmbito e domínio do inquérito em que acompanhou o desenrolar da investigação levada a cabo pelo Ministério Público (MP) e decidiu matérias relevantes e sensíveis que implicaram conhecer profundamente os factos sob investigação, como, a título de exemplo, é o caso dos despachos que proferiu naqueles autos, relativamente a:

a. autorização de escutas e apreensão de saldos bancários e manutenção de apreensão de veículos automóveis – despacho de 10/02/2016;

b. apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico e indeferimento de pedido de levantamento de penhores – despacho de 11/04/2016;

c. adiamento do levantamento do segredo de justiça – despacho de 16/01/2017;

d. aceitação do pedido de transmissão de processo crime que corria termos na Suíça e respectiva convalidação dos actos nele praticados, ao abrigo da cooperação judiciária – despacho de 20/12/2018;

e. aresto de arresto de todos e quaisquer bens e valores pertencentes ao arguido, após a dedução de acusação pelo MP – despacho de 07/12/2020;


– tudo, conforme os despachos que integram a certidão Ref.ª n.º ......10.


Com efeito, objectivamente, i) o facto de a Senhora Juiz Desembargadora ter desempenhado funções como Juiz de Instrução Criminal, acompanhando o desenrolar da investigação no âmbito do inquérito, ao longo de mais de 5 anos ii) praticando actos de instrução criminal relevantes e iii) decidindo questões essenciais para a comprovação dos factos sob investigação, mostra-se suficientemente evidenciado que qualquer intervenção do juiz peticionante no mesmo processo, em sede de recurso, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a sua posição de inteira equidistância, uma vez que, no âmbito do recurso está em causa que o juiz possa apreciar as questões que se coloquem com o distanciamento desejável, em virtude de já se encontrar condicionado pelo que conheceu e ponderou anteriormente.


Na verdade, importa preservar uma situação que dissipe todas as dúvidas ou reservas, pois as aparências têm importância, devendo ser concedida a escusa pedida por um Juiz por temer fundadamente que sobre si recaia a suspeição de falta de imparcialidade, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida e, através da aceitação do seu pedido de escusa, reforçar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.


Por isso não é excessivo supor que a Senhora Juiz Desembargadora requerente possa já ter uma posição sobre os factos, sendo de conceder a escusa pedida, com fundamento na sua intervenção no processo em causa como Juiz de Instrução Criminal, conforme o disposto no art.º 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CPP.


III – DECISÃO


Termos em que, acordando, se decide:

a. Conceder a escusa pedida pela Senhora Juiz Desembargadora AA, nos termos do art.º 43.º, do CPP, por existir fundamento para tal;

b. Sem custas.


Lisboa, 11 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)


Leonor Furtado (Relator)


António João Latas (Adjunto)


Agostinho Torres (Adjunto)


Helena Moniz (Presidente)