Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1290/20.8T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
PRESSUPOSTOS
DANO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O direito a uma indemnização com base na responsabilidade civil decorrente da privação do uso de um veículo automóvel sinistrado num acidente de viação está dependente da verificação integral dos pressupostos previstos no art. 483.º do CC, nomeadamente do dano.

II - Para o reconhecimento desse direito a indemnização pela privação do uso do veículo é. no entanto, suficiente a alegação e prova pelo lesado titular do direito de propriedade ou do direito de uso, da utilização habitualmente dada ao veículo sinistrado e/ou da que lhe tencionava dar se não ocorresse o facto que causou a impossibilidade de uso, podendo presumir-se a partir desses factos a ocorrência de danos efectivamente causados pela privação.

III - Não tendo sido alegado pela autora qual a utilização dada habitualmente ao veículo sinistrado nem a que lhe pretendia dar no período coincidente com a privação do uso ou qualquer outro prejuízo decorrente da paralisação, não é possível concluir pela existência de dano nem pelo integral preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) S..., Unipessoal Lda. instaurou a presente acção declarativa de condenação contra Seguradoras Unidas, S A, pedindo a sua condenação nos termos seguintes:

- A pagar a quantia de € 36.570,00 (trinta e seis mil quinhentos e setenta euros), a título de indemnização pela perda total do veículo sinistrado;

- A pagar a quantia diária de € 80,00 (oitenta euros) a título de paralisação/privação de utilização do veículo sinistrado desde 29/10/2019 e até efectiva liquidação da indemnização;

- A pagar a quantia de diária de € 25,00 (vinte e cinco euros) pelo parqueamento do veículo sinistrado desde 29/10/2019 e até efectiva remoção do mesmo das instalações da Autora.

2) Alegou para tanto a autora, em síntese, o seguinte:

No dia 29 de outubro de 2019 ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes um veículo automóvel ligeiro de passageiros de sua propriedade e um veículo automóvel relativamente ao qual a responsabilidade civil decorrente da sua circulação se encontrava coberta por contrato de seguro celebrado entre o respectivo proprietário e a ré seguradora;

O acidente de viacção em causa ocorreu por culpa exclusiva da condutora do veículo terceiro seguro na ré;

Por causa do acidente a autora sofreu avultados danos no veículo automóvel de sua propriedade, vindo a ser considerado, dada a sua extensão, que a reparação era excessivamente dispendiosa, razão pela qual se concluiu pela perda total do veículo;

O valor venal do veículo sinistrado de sua propriedade era de € 36.570,00 (trinta e seis mil quinhentos e setenta euros), estando ele parqueado nas instalações da autora.

A autora encontra-se privada da utilização do veículo automóvel sinistrado desde 29 de outubro de 2019, não tendo a seguradora ré disponibilizado a utilização de uma viatura de substituição, apesar de a autora o ter solicitado.


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3) A ré, tendo sido citada, apresentou contestação alegando, em síntese:

Aceitar a versão da dinâmica do acidente descrita pela autora e assumir a responsabilidade pela reparação dos danos causado pelo acidente de viacção a que os autos se reportam;

O valor venal da viatura propriedade da autora era de apenas € 30.000,00 (trinta mil euros), tendo sido apresentada à autora uma proposta – que recusou – de pagamento da quantia de € 22.131,00 (vinte e dois mil cento e trinta e um euros), considerando o valor dos salvados – € 7.869.00 (sete mil oitocentos e sessenta e nove euros) – que seriam adquiridos por uma firma terceira.

A ré não tinha obrigação de disponibilizar nenhum veículo de substituição e a autora não demonstra ter sofrido danos pela paralisação do veículo nem pelo seu parqueamento, pelo que nada lhe é devido a esse título.


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4) Teve oportunamente lugar a audiência final em primeira instância, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou, em conformidade, a ré a pagar à autora a quantia de € 36.377,00 (trinta e seis mil, trezentos e setenta e sete euros) devidos pela perda total do veículo e a quantia de € 10,00 (dez euros) diários, a pagar desde 30 de Outubro de 2019, inclusive, até à data de pagamento integral da indemnização arbitrada, a titulo de privação do uso do veículo, acrescendo os juros legais contados desde a citação e até integral pagamento.

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5) Decidindo o recurso de apelação interposto pela seguradora ré o Tribunal da Relação do Porto, por seu acórdão de 7 de fevereiro de 2023, julgou o recurso parcialmente procedente e, revogando parcialmente a sentença recorrida, condenou a ré/recorrente a pagar à autora/recorrida a quantia de € 36.377,00 (trinta e seis mil trezentos e setenta e sete euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo a ré/recorrente do demais peticionado.

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Parte II – A Revista

6) Inconformada a autora interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça formulando nas respectivas alegações as seguintes conclusões:

1.ª Não se vislumbra qualquer reparo que possa ser feito à decisão tomada pelo Tribunal de primeira instância quanto à obrigação de a Recorrente ser indemnizada pela privação do uso do seu veículo automóvel;

2 Pois, a obrigação de indemnizar pela privação do uso do veículo automóvel basta-se com a demonstração da simples privação do uso, ainda que nada se prove a respeito da utilização que seria dada ao veículo em causa;

3.ª No processo encontra-se alegada e provada tal privação do uso;

4.ª Mas mesmo que assim não se entenda – ou seja, ainda que se perfilhe pelo entendimento sufragado no douto acórdão recorrido no tocante à essencialidade, para além da alegação e prova da paralisação do veículo, da demonstração da utilização que vinha sendo dada ou que se pretendia dar ao mesmo, com vista a que se possa inferir a frustração de um propósito real de utilização – resulta da factualidade provada pelo Tribunal de primeira instância, para além do mais, o seguinte:

“(…) 2 - No dia 29-10-2019, cerca das 09:45 horas, o “TJ”, na altura conduzido por AA, sócio e gerente da Autora (…).

(…) 14 - Os danos do “TJ” são impeditivos da sua utilização por parte da Autora. (…)

20 - Desde a data do acidente que o veículo de matrícula ..-TJ-.. se encontra imobilizado nas instalações da autora sitas na Estrada Nacional ..., s/n, em ..., .... (…)

23 - A Ré nunca colocou à disposição da Autora qualquer veículo de substituição, embora tal lhe fosse pedido.

24 - O aluguer de um veículo idêntico ao da Autora ronda, em média 138,04 € por dia. (…)”;

5.ª Encontra-se, assim, provado que o veículo sinistrado era conduzido à data dos factos pelo gerente da Recorrente; que os danos do veículo sinistrado são impeditivos da sua utilização por parte da Recorrente; que o veículo sinistrado, desde a data do acidente, encontra-se imobilizado nas instalações da Recorrente; que a Recorrida nunca colocou à disposição da Recorrente qualquer veículo de substituição, embora tal lhe tenha sido solicitado; que o aluguer de um veículo idêntico ao da Recorrente ronda, em média, € 138,04, por dia;

6.ª Portanto, alegado e provado, para além da referida privação do uso, a utilização que vinha sendo dada e que se pretendia dar ao veículo sinistrado;

7.ª É manifesto que, não se está in casu perante uma mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica;

8.ª Mas antes perante uma efetiva privação, sendo certo que, a Recorrente alegou e provou a frustração do propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando que a pretendia usar, dela retirando, evidentemente, as utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela atuação ilícita de outrem, alegação e prova que resulta, sem mais, do facto de a Recorrente ter solicitado à Recorrida um veículo para substituição do seu veículo sinistrado;

9.ª Mal andou, assim, o douto acórdão recorrido ao absolver a Recorrida da condenação no pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo da Recorrente;

10.ª O douto acórdão recorrido enferma de erro de interpretação/aplicação da disposição do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 566.º e 1305.º do Código Civil.”

Pede a autora a revogação do acórdão recorrido e a manutenção da condenação da ré no pagamento da indemnização devida pela privação do uso do seu veículo sinistrado.


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7) A seguradora ré, no articulado de resposta, defendeu ser o recurso de revista inadmissível por não se encontrarem reunidos os pressupostos enunciados no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, nomeadamente o valor da sucumbência da autora, e, em todo o caso, não haver lugar a indemnização pela paralisação do veículo da autora porque desse facto não resultou privação de uso gerador de qualquer dano emergente ou lucro cessante.

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8) Admitido que foi o recurso de revista interposto pela autora e colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista interposto pela autora a única questão que importa decidir é a de saber se lhe assiste direito, face aos factos por si alegados e provados, a indemnização pela privação do uso do veículo sua propriedade que foi inutilizado no acidente a que os autos se reportam.

Comecemos por analisar a matéria de facto que resultou provada.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

A) Factos Provados

São estes os factos considerados provados tal como descritos no acórdão recorrido:

“1 – A autora é proprietária do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca “Ford”, modelo “Mondeo SW Vignale 2.0 TD BI-TUR 210CV PS6”, do ano de 2017 e matrícula ..-TJ-...

2 – No dia 29 de outubro de 2019, cerca das 09,45 horas, o “TJ”, na altura conduzido por AA, sócio e gerente da autora, circulava, no sentido sul/norte, na Rua ..., na ..., em ....

3 – Aquela rua cruza-se, em determinado momento, com a Rua ....

4 – No local da intersecção das referidas ruas, atento o sentido de marcha do veículo ..-TJ-.., não existe qualquer sinalização de paragem obrigatória ou de cedência de passagem.

5 – No mesmo dia e hora referidos em 2 circulava, por sua vez, na Rua Cidade de João Pessoa, no sentido poente/nascente, o veículo automóvel com a matrícula ..-PJ-.., da marca “Peugeot”, modelo “208” na altura conduzido por BB.

6 – O ..-TJ-.. circulava e aproximava-se pela direita do 12-PJ-12.

7 – Nessa altura o 12-PJ-12 cruza, de modo inesperado e sem deter a velocidade a que circulava, a mencionada intersecção, cortando a linha de marcha do ..-TJ-.. que, dada a proximidade, não conseguiu parar antes do embate.

8 – Embate que ocorreu entre a parte dianteira esquerda do 24-TJ-06 e a parte lateral direita do 12-PJ-12 e a que se seguiu, o embate do ..-TJ-.. na guia de passeio.

9 – No local onde se deu o embate, a velocidade máxima permitida é de 50Km/hora.

10 – No dia do embate fazia sol.

11 – O piso onde se deu o embate é asfaltado e encontrava-se seco.

12 – Por força do acidente, o ..-TJ-.. sofreu diversos danos, designadamente, ao nível da parte dianteira, do capô, do tejadilho, da roda traseira (do lado esquerdo) e bem assim, danos ao nível de diversos componentes mecânicos, de segurança e acessórios do veículo.

13 – A sua reparação foi estimada, em € 29.124,33.

14 – Os danos do 24-TJ-06 são impeditivos da sua utilização por parte da autora.

15 – À data do acidente, a responsabilidade da autora por danos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo 24-TJ-06 estava transferida para a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., aqui ré, através da apólice n.º ...10, e que abrangia ainda uma cobertura complementar de danos próprios, estando o veículo avaliado, para efeito de cobertura por danos próprios, em 30.300,00 €.

16 – A responsabilidade emergente da circulação do ..-PJ-.. encontrava-se, também, transferida para a aqui ré, por sua vez, através do contrato de responsabilidade civil automóvel obrigatório outorgado com BB, com a apólice n.º ...56.

17 – Em 21-11-2019 a ré comunicou à Autora que: “No seguimento da vistoria efetuada constatámos que a viatura de V. Exa. sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente. Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação 29.124,33 € junto dos vossos serviços oficinais, a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (7.869,00€), bem como o seu valor de mercado antes do acidente (30.000,00€) colocamos à disposição de V. Exa. a quantia de 22.131,00 € ficando a aguardar que nos remeta fotocópias do bilhete de identidade, cartão de contribuinte do proprietário e documentos da viatura.”

18 – Na mesma missiva a ré refere que “Na eventualidade de pretender comercializar o veículo sinistrado no estado em que ele se encontra, pelo valor de 7.869,00 € indicamos desde já a seguinte entidade que deverá contactar: U...Lda…”

19 – A autora, não se opôs a consideração de perda total do veículo, mas não aceitou o valor do veículo proposto pela ré.

20 – Desde a data do acidente que o veículo de matrícula ..-TJ-.. se encontra imobilizado nas instalações da autora sitas na Estrada Nacional ..., s/n, em ..., ....

21 – Esse veículo tinha, à data do acidente, 62.694.000 kms percorridos e estava equipado com o seguinte nível de acabamentos/extras, a saber: a) barras no tejadilho cromadas (wagon); b) pack couro com massagem; c) vidros escurecidos; d) pack winter; e) pack driver plus da; f) pack panoramic sw; g) pack nero; h) pack business; i) roda suplente convencional; j) pintura especial.

22 – O veículo, à data do acidente valia, 36.377 €.

23 – A ré nunca colocou à disposição da autora qualquer veículo de substituição, embora tal lhe fosse pedido.

24 – O aluguer de um veículo idêntico ao da autora ronda, em média 138,04 € por dia.

25 – A autora cobra a título de parqueamento a quantia diária de 25.00 € “


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B – Factos Não Provados

Deram as instâncias como não provado o seguinte facto:

a) O veículo, ao tempo do acidente, tivesse um valor de mercado de 30.000,00 €.”


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Parte II – O Direito

1) Conforme resulta do que atrás ficou dito, a única questão que importa decidir nestes autos relaciona-se com o direito a uma indemnização pela privação de uso do veículo automóvel da autora sinistrado no acidente de viação a que os autos se reportam.

Tem a autora direito a ser indemnizada pela privação do uso do seu veículo não estando provado qualquer dano emergente ou lucro cessante decorrente da impossibilidade de uso do veículo a partir da data do evento lesivo?

2) O acórdão recorrido dá conta dos termos em que a questão tem sido colocada na doutrina e na jurisprudência e das correntes de opinião formadas a esse respeito.

Por facilidade de exposição para lá se remete quanto a este aspecto, sem embargo do que adiante se dirá.

Muito esquematicamente a questão substantiva colocada consiste em saber se a ressarcibilidade do dano de privação do uso de um veículo automóvel impossibilitado de circular por virtude de acidente de viação causado por terceiro, enquanto violação do direito de propriedade – ou de outro direito que confira a faculdade de o utilizar – depende da alegação e da prova da frustração de um propósito efectivo, real e concreto de proceder à sua utilização impossibilitada pela ocorrência do evento ilícito, não bastando ao surgimento do direito à indemnização a mera privação do uso, sem alegação e prova dos concretos danos sofridos em consequência da privação.

3) A questão tem sido largamente tratada na doutrina e na jurisprudência, sendo detetável na jurisprudência dos Tribunais superiores alguma evolução na adopção da resposta adequada, tendo, em qualquer caso, sempre presente a abrangência da tutela conferida pelo direito de propriedade ou de uso da coisa inviabilizado pelo facto ilícito praticado por terceiro.

4) Segundo uma corrente de interpretação a simples privação do uso do veículo automóvel por virtude de acidente de viacção que não implique prejuízo específico na esfera jurídica do respectivo titular não confere direito a indemnização.

Isto porque, apesar da abrangência da tutela do direito de propriedade, “os meros transtornos derivados da privação do uso do veículo automóvel não justificam indemnização por danos não patrimoniais, por não assumirem a gravidade merecedora da tutela do direito” 1 nos termos do artigo 496.º n.º 1 do Código Civil e porque inexistindo prejuízos materiais concretos não há que ponderar a finalidade de reconstituição material visada pelo instituto da responsabilidade civil nem a reposição da situação que existiria se não tivesse tido lugar o evento ilícito, com o qual o dano dogmaticamente se não confunde.

No acórdão recorrido são referenciados como defensores de tal solução os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de julho de 2007 e de 30 de outubro de 2008, ambos relatados pelo Juiz Conselheiro Salvador da Costa e de 8 de maio de 2013, de que foi relatora a Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza 2 3.

5) Segundo outra corrente jurisprudencial, porém, a simples privação do uso de um veículo automóvel sinistrado em acidente de viação causado por terceiro, constitui fundamento de indemnização, sendo suficiente para o reconhecimento do direito à indemnização a simples demonstração dessa realidade, ainda que nada se alegue nem prove a respeito da utilização que seria concretamente dada ao veículo em causa pelo respectivo proprietário ou titular do direito de uso.

Nesta linha se inserem diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, e, desde logo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido, também no dia 5 de julho de 2007, e de que foi relator o Juiz Conselheiro Santos Bernardino que sobre a matéria tece as seguintes considerações:

Entendemos que a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável. (…)

O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro.”

E, mais adiante: “E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado.”

(…) A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é, pois, um dano – e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário”

6) Idêntico entendimento perfilha o acórdão, proferido em 12 de janeiro de 2010 na revista 314/06.6TBCSC.S1, relatado pelo Juiz Conselheiro Paulo Sá, cujo sumário esclarece:

“I – O proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa.

II - A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (artigo 62.º da CRP)”.

7) Ainda no mesmo sentido parece ser o entendimento de Abrantes Geraldes 4 ao afirmar que “o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização”.

Esta última corrente de opinião tem sido maioritariamente sufragada sem variações significativas na doutrina 5 e na jurisprudência.

8) A partir da ideia central da ressarcibilidade do dano pela simples privação de uso do veículo sinistrado, independentemente da alegação e prova de prejuízos concretos e efectivos, surgiu e foi ganhando consistência na doutrina e na jurisprudência a adopção de uma solução intermédia segundo a qual, para que se possa falar de um dano indemnizável é essencial a alegação e prova dos elementos necessários ao seu apuramento, nomeadamente, a utilização que vinha sendo dada ou que se pretendia dar ao veículo, de onde se possa inferir a frustração de um propósito real de utilização do veículo.

Nessa linha se inserem os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 2011, proferido na revista 3922/07.2TBVCT.G1.S1, de que foi relator o Juiz Conselheiro Moreira Alves, e de 10 de janeiro de 2012, proferido na revista 189/04.0TBMAI.P1.S1, de que foi relator o Juiz Conselheiro Nuno Cameira.

9) É do seguinte teor o sumário elaborado no primeiro:

I - A privação injustificada do uso de uma coisa pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na normalidade dos casos, impedirá o respectivo proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, impedindo-o de usar a coisa, de fruir as utilidades que ela normalmente lhe proporcionaria e de dela dispor como melhor lhe aprouver, violando o seu direito de propriedade.

II - Porém, podem configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar ou pura e simplesmente não usa a coisa. Nessas situações, não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar.

III - Competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário que o autor alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.

IV – Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá um facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.

V - Se se provar que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no acidente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período da privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que a privação do uso constitui, por si só, um prejuízo indemnizável.”

10) No segundo dos acórdãos citados no último parágrafo do ponto 8 pode ler-se:

“Ora, a nosso ver não sofre dúvida que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo artigo 1305º do Código Civil. Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrém frustrou um propósito real - concreto e efectivo - de proceder à sua utilização. Em termos rigorosos, portanto, dir-se-á que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto.”

E acrescenta, citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 2011, que competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, “não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário, que o autor alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante. E tal exigência não se nos afigura exorbitante. Apresenta-se, tão só, na sequência lógica da realidade das coisas, como pressuposto mínimo da existência do dano e como índice seguro para que o tribunal possa arbitrar a indemnização pretendida com base na utilidade ou utilidades que o titular queria usufruir e não pôde, por estar privado da coisa por acto culposo de outrem”.

Conclui então que, em casos como o dos autos, bastará que na situação de facto sub judice resulte que o proprietário do veículo “o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem neces­sidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, automóvel alugado, etc.) com o custo correspondente. Portanto, se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no acidente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período de privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que dizemos que a privação do uso, constitui, por si, um prejuízo indemnizável”.

11) Como escreveu Maria da Graça Trigo, dando conta do surgimento de uma posição intermédia entre as duas anteriores teses, admitindo a suficiência da ocorrência de danos concretos com base numa presunção natural 6 “ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respetiva privação, derivem danos efetivos”.

Esta linha jurisprudencial tem vindo a afirmar-se, sendo hoje tendencialmente maioritária na jurisprudência dos Tribunais superiores, do que são exemplo, apenas ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão de 28 de janeiro de 2021 proferido na revista 14232/17.9T8LSB.L1.S e de que foi relatora a Juíza Conselheira Rosa Tching – cintando diversos acórdãos em linha com o que apelida de terceira tese, ou o acórdão de 17 de junho de 2021 proferido na revista 879/17.7T8EVR.E1.S1 e de que foi relator o Juiz Conselheiro João Cura Mariano.

12) Tomando posição se dirá que, de facto, como se pondera no acórdão recorrido citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de janeiro de 2022 na apelação 602/20.9T8AGD.P1 de que foi relator o Juiz Desembargador Manuel Domingos Fernandes, a questão da ressarcibilidade “da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa.”

Porque não são necessariamente coincidentes os conceitos de privação de uso e de privação da possibilidade de uso, explica-se no sumário do citado acórdão o seguinte:

“III - Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor; não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.”

13) Como claramente se explica no acórdão recorrido a primeira das teses acima sumariamente enunciada sobre a ressarcibilidade da privação do uso por facto ilícito de terceiro, restringe o conceito de dano de forma aparentemente desproporcionada ao ignorar os reflexos que o evento lesivo possa ter fora de um contexto puramente contabilístico inequivocamente comprovado nos autos;

Já a segunda das teses em confronto parece centrar-se exclusivamente na ilicitude do facto e na limitação do poder de uso e fruição dos bens conferido pelo direito de propriedade sem atender à efectiva existência de um dano.

Contudo no nosso ordenamento jurídico e no âmbito do instituto da responsabilidade civil, o direito a uma indemnização por factos ilícitos não prescinde da existência de um dano enquanto requisito essencial autónomo da ilicitude do facto.

No que ao caso da privação de uso diz respeito o dano só se concretiza, como salienta Paulo da Mota Pinto 7, ao nível das privações concretas das vantagens que a coisa proporciona e não antecipadamente ao nível da perturbação (ilícita) das possibilidades abstractas de uso que resultam para o proprietário derivadas da abrangência da tutela inerente ao direito de propriedade, pelo que releva para efeito da sua ressarcibilidade a “concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem–a qual (mesmo que resultante de uma ofensa directa ao objecto, e não apenas de uma lesão no sujeito) pode não ser concretizável numa determinada situação”.

14) Justifica-se, pelo exposto, a adopção de uma solução que não ignore – como se escreve no acórdão recorrido – os “prejuízos associados à frustração das utilidades que determinado bem propicia, ainda que essa frustração não se traduza numa perda de rendimentos ou num custo acrescido para o proprietário, mas não abdica da existência de um dano fundante da responsabilidade do lesante”, admitindo-se a possibilidade de a prova concreta dos danos sofridos se fazer de acordo com o regime legal das presunções, a partir dos factos alegados e demonstrados relativos à expectativa de utilização do veículo no período durante o qual se frustrou a sua utilização pelo titular do direito de propriedade ou de uso.

15) No caso presente os factos apurados são insuficientes para se concluir pela existência de um qualquer dano sofrido pela autora com a impossibilidade de utilização do veículo sua propriedade subsequente ao acidente dos autos.

Na realidade apenas se sabe – porque foi apenas essa a alegação feita pela autora – que ela era a proprietária do veículo de matrícula ..-TJ-.. na data do acidente, que os danos causados no acidente foram de molde a impedir a sua utilização e que a seguradora ré não disponibilizou um veículo de substituição, sendo o custo médio do aluguer de um veículo automóvel similar ronda os 138,04 € por dia.

Mais foi alegado que a autora se dedica ao comércio, manutenção e reparação de veículos automóveis e que na data do acidente o veículo era conduzido pelo seu sócio-gerente.

Não foi alegado e não vem provado que a autora tenha tido que suportar qualquer custo adicional com o aluguer de um veículo de substituição, que a privação do uso do veículo sinistrado lhe tenha causado algum prejuízo, perda de rendimento ou dificuldade na gestão da frota automóvel, nem sequer qual era a utilização que a autora projectava fazer do veículo sinistrado no período em que viu frustrada a sua utilização.

16) Assim sendo fica por demonstrar um dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos concernente ao invocado direito à peticionada indemnização pela privação do uso do veículo sua propriedade que foi sinistrado no acidente dos autos.

Porque não se sufraga o entendimento sobre o direito à indemnização assumido em primeira instância, mas sim o que serviu de fundamento ao acórdão recorrido, a revista interposta pela autora improcede, confirmando-se o acórdão recorrido e a absolvição da ré desse pedido.

A autora recorrente suportará as custas relativas ao recurso de revista.


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DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente o recurso de revista interposto pela autora, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

A autora/recorrente, porque vencida nesta instância de recurso suportará as respectivas custas.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4 de julho de 2023

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

Jorge Manuel Leitão Leal

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1. Assim o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de julho de 2007 adiante citado.↩︎

2. Todos os acórdãos citados no texto são consultáveis em www.dgsi.pt↩︎

3. No acórdão de 8 de maio de 2013 proferido no processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1ficou, no entanto, explicado, no entanto, que “a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito”, sendo, no entanto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na determinação do valor da indemnização limitada ao controle do uso dos poderes conferidos às instância para recurso ao juízo de equidade.↩︎

4. Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, páginas 57 e seguintes↩︎

5. Entre outros, por Júlio Gomes em “O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa”, 1998, págs. 274 e seguintes e em “Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?” (Cadernos de Direito Privado, nº 3, págs. 62 e seguintes), por Abrantes Geraldes, em “Temas da Responsabilidade Civil, vol. I - Indemnização do dano da privação do uso”, 3ª edição, págs. 72 e seguintes, por Menezes Leitão em “Direito das Obrigações”, vol. I, págs. 297 e seguintes e por Américo Marcelino em “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 6ª edição, págs. 359 e seguintes.↩︎

6. Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015 a página 60.↩︎

7. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, pág. 594/596. Coimbra Editora, 2008↩︎