Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
407/23.5PCCBR-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
PRISÃO PREVENTIVA
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. A providência de Habeas corpus tem natureza excecional e é independente do sistema de recursos penais.

II. Em consonância com a sua matriz histórica, destina-se a pôr cobro a situações graves de detenção ou prisão ilegais e mais carecidas de tutela urgente.

III. Ora, como podemos constatar dos autos, o arguido, ora requerente, na sequência de primeiro interrogatório de arguido detido, foi, por despacho devidamente fundamentado do Senhor Juiz de Instrução, de 04/08/2023, sujeito à medida de prisão preventiva, por se achar fortemente indiciado pela prática de dois crimes de roubo agravado e de um crime de detenção de arma proibida.

IV. Os pressupostos de tal medida, viriam a ser reexaminados, nos termos do art. 213.º, do C.P.P., sem prévia audição do arguido, por despacho, igualmente fundamentado do Senhor Juiz de Instrução, de 31/10/2023, tendo sido determinado, em consonância com o promovido pelo Ministério Público, que o arguido continuasse sujeito à mencionada medida de coação. Tal despacho foi notificado, na mesma data, ao próprio e ao seu defensor.

V. Ao contrário do alegado pelo requerente, a sua audição, nesta situação, não era obrigatória, dado, conforme foi decidido, os respetivos pressupostos não se terem alterado.

VI. Nesta conformidade, não se verifica qualquer nulidade ou ilegalidade da prisão, sendo certo que ela foi ordenada por entidade competente, motivada por factos que a lei a permite e não se mantém para além dos prazos fixados pela lei processual (art. 215.º n.º 2, do C.P.P.).

VII. Termos em que, se indefere a providência requerida, dada a sua manifesta

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. O arguido AA, detido no Estabelecimento Prisional de..., através do seu defensor, veio requerer, em 06/11/2023, ao abrigo dos arts. 31.º, da C.R.P. e 222.º e ss., do C.P.P., a presente providência de Habeas corpus por prisão ilegal, por manter-se para além dos prazos fixados pela lei, invocando, em síntese, ter sido detido, em 03/08/2023, à ordem do Inquérito n.º 407/23.5PCCBR, da 1.ª Secção, do DIAP de ..., e após primeiro interrogatório pelo Juiz de Instrução ficou sujeito, em 04/08/2023, à medida de coação de prisão preventiva, enquanto fortemente indiciado pela prática, em coautoria material, e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de roubo p. e p. pelo art. 210.º, n.ºs 1 e 2, al b), por referência ao art. 204º, nºs 2, al f) e 4, ambos do Código Penal, em que é ofendido BB (em coautoria material com o suspeito CC); 1 (um) crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), por referência ao art. 204.º, nºs 2, al f) e 4, do Cód. Penal, em que é ofendido DD (em coautoria material com o suspeito CC); e 1 (um) crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86.º, nº 1, al. d), da Lei das Armas, por referência aos arts. 2º, nº 1, al. ap) e 3º, nºs 1 e 2, al. e), do mesmo diploma.

Ora, nos termos do art. 213.º, do C.P.P., esta medida de coação que lhe foi aplicada deveria ter sido obrigatoriamente revista ao fim de 3 meses, ou seja, até ao dia 03/11/2023, o que até hoje, data da entrada desta providência, não aconteceu, não tendo efetivamente sido revista, nem o arguido ouvido, por forma a exercer o seu direito ao contraditório, encontrando-se, deste modo, ilegalmente preso.

Nestes termos, por um lado, os pressupostos para a aplicação daquela medida já não existem e, por outro, existe uma clara e evidente violação formal e legal da sua aplicação e, in casu, da sua revisão.

Invoca também uma nulidade insanável, pelo que deverá ser libertado imediatamente, verificando-se, em sua opinião, os fundamentos de facto e de direito para o recurso à providência de Habeas Corpus.

Requer, por último, que se declare a ilegalidade da sua prisão e se ordene a sua imediata apresentação judicial e correspondente libertação, nos termos do art. 261.º C.P.P.

2. O Senhor Juiz de Instrução Criminal de ... -J2, prestou, em 06/11/2023, a informação a que se refere o art. 223.º n.º 1, do C.P.P, que passamos a transcrever:

V. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça!

Cumpre-me informar em conformidade com o art.º 223º, n.º 1 do CPP:

O Requerente e arguido AA permanece em prisão preventiva desde o dia 04/08/2023 após interrogatório judicial, e tendo o mesmo interposto recurso de tal decisão para o V. Tribunal da Relação de Coimbra, recurso que ainda não baixou à 1ª instância.

No dia 31-10-2023 procedeu-se ao reexame trimestral dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva e concluindo-se pela sua manutenção e ainda no mesmo dia a secção cumpriu tal despacho com as subsequentes notificações.

O Requerente encontra-se fortemente indicado, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de: 1 (um) crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao art. 204º, nºs 2, al. f), e 4, ambos do Código Penal, em que é ofendido BB (em co-autoria material com o suspeito CC); 1 (um) crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao art. 204º, nº 2, al. f), ambos do Código Penal, em que é ofendido DD (em co-autoria material com o suspeito CC); e 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n º l, al. d), da Lei das Armas, por referência aos arts. 2º, nº 1, al. ap) e 3º, nºs 1 e 2, al. e), do mesmo diploma. O prazo máximo da prisão preventiva verificar-se-á apenas no dia 04/02/2024 (artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º, al. j), do mesmo diploma legal).

No nosso despacho de 31/10/2023, foi tomada posição quanto à desnecessidade de audição, de novo do arguido, já que foi interrogado em 1º interrogatório judicial de arguido detido pela Mmº Juiz de Turno não se vislumbrando qualquer violação de contraditório.

Pelo que, salvo melhor opinião, afigura-se que a pretensão do requerente de libertação imediata não possui fundamento legal, devendo ser mantida a prisão preventiva.

Remeta-se de imediato ao V. STJ, e seguindo o original pelo correio, instruindo-se o apenso respectivo , com o Requerimento de " habeas corpus" , com o auto de interrogatório judicial de arguido detido , promoção da Digna Magistrada do MP pela manutenção da prisão preventiva de reexame , despacho do JIC de reexame e subsequentes notificações.

3. Neste Supremo Tribunal, convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o defensor do arguido, teve lugar a audiência (art. 223.º n.º 3, do C.P.P.), com todas as formalidades legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Começamos por referir que a providência de Habeas corpus1, ao contrário do que a designação parece sugerir, não teve origem na Roma antiga, mas na Inglaterra, em 1215, quando a nobreza impôs ao Rei João Sem Terra a Magna Carta Libertatum, com o objetivo de limitar os poderes reais2.

Com o tempo foi-se aperfeiçoando e a sua versão moderna surge, em 1679, com o famoso Habeas Corpus Amendment Act, que veio regulamentar o procedimento na área criminal, constituindo um eficaz instrumento no controlo da legalidade dos atos restritivos da liberdade individual.

Entre nós, a medida tem, como é sabido, desde há muito, dignidade constitucional, tendo sido introduzida pela Constituição de 19113. Presentemente o art. 31.º, da nossa Constituição, reza assim:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória».

No que concerne ao direito ordinário, o Código de Processo Penal vigente prevê, nos seus arts. 220.º e ss., o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, em virtude prisão ilegal, os respetivos procedimentos processuais – assentes em grande informalidade e celeridade – e ainda o incumprimento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a petição, que é punido com as penas do crime de denegação de justiça e prevaricação.

Ora, do cotejo de todos estes preceitos, podemos extrair que esta providência, de cariz expedito, tem em vista salvaguardar a liberdade física, reagindo contra uma situação de abuso de poder4, por virtude de uma prisão ou detenção ilegal. Contudo, não constitui um recurso.

Como bem acentua Eduardo Maia Costa5, trata-se de uma providência, independente dos sistemas de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Naturalmente, o modo de impugnação por excelência das decisões judiciais é o recurso para um tribunal superior. O Habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, servindo como instrumento da proteção da liberdade, quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.

Deve servir, por conseguinte, para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente.

Porém, não tem uma natureza meramente residual, conforme observa Rodrigues Maximiano6, mas sim a natureza de uma providência extraordinária, abrangendo as situações de abuso, que são distintas das situações de decisão discutível.

Cingindo-nos mais concretamente ao Habeas corpus por virtude de prisão ilegal (art. 222.º), por ser o mais comum e ser também o caso da situação em apreço, podemos dizer que os seus fundamentos se reconduzem todos, ao fim e ao cabo, à ilegalidade da prisão: incompetência da entidade que a efetuou ou a determinou, ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite e excesso de prazos.

O n.º 2 do citado normativo consagra, como notam Gomes Canotilho e Vital Moreira7, uma espécie de ação popular, uma vez que a petição pode ser formulada pelo interessado ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, conquanto dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e apresentada à autoridade à ordem da qual se encontra preso o mesmo.

A limitação do gozo dos direitos políticos não diz, obviamente, respeito ao próprio, mas sim ao(s) terceiro(s) que decida(m) intervir.

Na esteira também da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça8, quando se aprecia a providência do Habeas corpus não se analisa o mérito da decisão que determinou a prisão, nem tão pouco os erros procedimentais (eventualmente, cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede própria, através dos recursos, mas tão só incumbe decidir se ocorrem qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do C.P.P.

2. Feito este breve enquadramento histórico-legal da medida em questão e regressando à situação sub judice, podemos constatar, designadamente, da certidão junta aos autos que o arguido, ora requerente, na sequência de primeiro interrogatório de arguido detido, foi, por despacho devidamente fundamentado do Senhor Juiz de Instrução de ... -J2, de 04/08/2023, sujeito à medida de prisão preventiva, por se achar fortemente indiciado pela prática de dois crimes de roubo agravado e de um crime de detenção de arma proibida.

Os pressupostos de tal medida, viriam a ser reexaminados, nos termos do art. 213.º, do C.P.P., sem prévia audição do arguido, por despacho, igualmente fundamentado do Senhor Juiz de Instrução, de 31/10/2023, tendo sido determinado, em consonância com o promovido pelo Ministério Público, que o arguido continuasse sujeito à mencionada medida de coação.

Tal despacho foi notificado, na mesma data, ao próprio e ao seu defensor.

Ao contrário do alegado pelo requerente, a sua audição, nesta situação, não era obrigatória, dado, conforme foi decidido, os respetivos pressupostos não se terem alterado9.

Nesta conformidade, não se verifica qualquer nulidade ou ilegalidade da prisão, sendo certo que ela foi ordenada por entidade competente, motivada por factos que a lei a permite e não se mantém para além dos prazos fixados pela lei processual.

Refira-se, a este propósito, que nos termos do art. 215.º n.º 2, do C.P.P., está ainda longe o prazo de duração máxima da prisão preventiva em que se encontra o arguido.

Neste contexto, e sem necessidade de outros considerandos, terá de improceder a providência requerida, dada a sua manifesta falta de fundamento.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a. indeferir, por ser manifestamente infundada, a providência de Habeas corpus requerida pelo arguido AA (art. 223.º n.º 4 a), do C.P.P.);

b. condenar o requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos da Tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais; e

c. condenar ainda o requerente em mais 6 UC, nos termos do art. 223.º n.º 6, do C.P.P.

Lisboa, 15 de novembro de 2023

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ana Barata de Brito (Adjunta)

Sénio Alves (Adjunto)

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1. Forma abreviada da expressão latina Habeas corpus ad subjiciendum – Que tenhas o teu corpo para apresentar ao tribunal.

2. Para uma visão mais desenvolvida sobre a sua origem histórica, vejam-se, com interesse, Eduardo Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., e Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss.

3. Em termos de lei ordinária, viria a ser instituída pelo DL n.º 35 043, de 20/10/1945.

4. Garantia privilegiada do direito à liberdade, na expressão feliz de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista, pg. 508.

5. Loc. cit., pgs. 236 e 237.

6. In Direito e Justiça, Vol. XI, T. 1, pg. 197.

7. Ob. cit., pg. 509.

8. Cfr., entre muitos, os acórdãos de 20/9/2023, no Proc. n.º 344/14.4GBSSB-A.S1, de 9/3/2022, no Proc. n.º 816/13.8PBCLD-A.S1, de 28/4/2021, Proc. n.º 72/18.1T9RGR-A.S1, e de 18/11/2020, Proc. n.º 300/18.3JDLSB-E.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Maria do Carmo Silva Dias, Lopes da Mota, Ana Barata Brito e Nuno Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

9. Cfr. nesse sentido Elisabete Ferreira e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pgs 937 e 938.