Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
743/20.2PAPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO DE DIREITO
MEDIDA DA PENA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O AUJ do STJ n.º 14/2013 - «Da conjugação das normas do art. 400.º als. e) e f) e art. 432.º n.º 1, al. c), ambos do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29, não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão» - continua a manter actualidade fora dos casos de absolvição em 1.ª instância e em que o acórdão da Relação reverte a absolvição em condenação, situação que integra actualmente a excepção prevista no segmento final da al. e) do art. 400.º do CPP, aditado pela Lei n.º 94/2021.

II - O recurso é agora admissível nos casos de absolvição em 1.ª instância, em que o acórdão da Relação é uma decisão de reversão de absolvição em condenação, e em que pela primeira vez, em recurso, é aplicada ao arguido uma pena; esta situação não ocorre quando o arguido foi condenado em 1.ª instância por de crime de devassa da vida privada, em pena de 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por 3 anos, e vê a sua situação agravada em recurso, ao ser substituída tal condenação por condenação por crime de violência doméstica em pena de 2 anos de prisão efectiva a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 743/20.2PAPVZ do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal ... - J..., foi proferido acórdão a absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica do art. 152.º, n.º 1, al. b), do CP; de um crime de falsidade informática do art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15/09; de um crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, da Lei n.º 5/2006, na redação da Lei n.º 50/2013, de 24/07; e a condená-lo como autor de um crime de devassa da vida privada do art. 192.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, na pena de 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por 3 (três) anos, subordinada a regime de prova.

Não se conformando com o decidido em 1.ª instância, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela revogação do acórdão na parte absolutória e a condenação do arguido pelos crimes de violência doméstica, falsidade informática, e injúria e difamação. E por acórdão da Relação, foi então decidido modificar a matéria de facto provada e não provada; condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, do art. 152.º, n.º 1, al. b) do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão efectiva a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, desde que haja consentimento do arguido e estejam reunidos os demais pressupostos para a sua execução previstos na Lei n.° 33/2010, de 02 de setembro, a verificar pelo Tribunal de 1ª Instância, autorizando o arguido a ausentar-se da sua habitação pelo tempo estrita e comprovadamente necessário ao exercício da sua actividade profissional, no decurso do cumprimento da pena de 2 (dois) anos de prisão efectiva, em termos a ser definidos, previamente, pelo Tribunal recorrido; absolver o arguido do crime de devassa da vida privada, do art. 192.°, n.° 1, als. a) e b), do CP; manter, no mais, a decisão recorrida.

Inconformado com o decidido pela Relação do Porto, interpôs agora o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1º - Não concorda o aqui recorrente com o douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, o qual concedeu provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e nessa medida, os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores decidiram modificar a matéria de facto provada e não provada nos termos sobreditos no ponto II.3.3 e na sequência condenar o aqui Recorrente pelo crime de violência doméstica na pena de prisão efectiva de 2 anos a cumprir em regime de permanência na habitação.

2º - No restante, o douto acórdão manteve o acórdão judicial proferido em sede de 1ª instância.

3º - De facto, o douto tribunal da Relação do Porto chegou à conclusão de que existia vício de erro notório na apreciação da prova e por isso, determinou-se a alteração da matéria de facto, nos termos do artigo 431º, al. a) do C.P.P., e nessa medida aditou à matéria de facto provada os pontos 58 e 59; alterou os pontos 13 e 20 dos factos não provados.

4º - Salvo melhor opinião, é nosso humilde entendimento que a alteração efectuada no acórdão colocado em crise padece de um vício erro insanável, que resulta de um erro ostensivo, resultante da leitura do próprio aresto judicial. Expressa-se no acórdão que o arguido, nos pontos 1 a 5, 7 a 23 da prova dada como provada, quis molestar a ofendida, à data sua namorada.

5º - Contudo, resulta da leitura do acórdão, que o Recorrente e a assistente terminaram a sua relação amorosa no máximo, em Setembro de 2020. – cfr. folhas 14 ( declarações do Arguido) e folhas 16 ( depoimento da irmã da Assistente, BB) do acórdão colocado em crise.

6º - Acontece que, os factos dados como provados nos pontos 3 a 23 da matéria de facto ocorreram após o término da relação, pelo que, existe um erro ostensivo e claro que demonstra à saciedade que a Assistente não era namorada do Recorrente à data dos factos que demonstram sofrimento psicológico e que este traiu a sua confiança, por inexistência de namoro.

7º - Este é o Erro vício que aqui se alega nos termos do artigo 410º, n.º 2 al. b) do C.P.P. e por isso, o acórdão colocado em crise assenta, de forma errada, em pressupostos que inquinam todo o conteúdo da decisão – que Recorrente e Assistente eram à data dos factos namorados. Por isso, têm que ser eliminados os pontos 58 e 59 dos factos provados, bem como o ponto 13 e 20 dos factos não provados manterem a sua redação original.

8º - Consequência directa e necessária deste erro é que a fundamentação jurídica utilizada pelo digníssimo tribunal “ a quo” cai por terra, porque o alegado erro notório não existe, uma vez que tem de resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.

9º - Além disso, se o douto tribunal da Relação estivesse atento à decisão proferida, constataria ainda que o ponto 57 da matéria de facto diz respeito a um facto trazido pela assistente no seu pedido de indemnização civil e por isso, não consta do objecto do processo configurado na acusação deduzida pelo M.P. contra o Recorrente.

10º - E quando as vítimas apresentam o seu pedido de indemnização civil, inserto no processo-crime por força do princípio da adesão, tendem a alegar danos morais consubstanciados em factos que versem sobre a sua saúde.

11º - Acresce ainda que, em sede de acusação, o arguido vinha acusado de diversos tipos de crimes, e por isso, as condutas descritas nos pontos 3 a 5, 7 a 23 da matéria de facto dada como provada preenchem vários tipos de crime, como crime da devassa privada, crime de injúria, crime de difamação.

12º - Estamos assim, numa relação de concurso aparente entre os diversos tipos de crimes com o crime de violência doméstica. E como não se produziu prova suficiente, quer dos maus-tratos físicos, quer dos maus-tratos psicológicos, a verdade é que a conduta do Recorrente, autonomamente compreendida, insere-se noutros tipos de ilícitos com efeitos perniciosos sobre a saúde das vítimas, mas que não é suficiente para ser enquadrado no crime de violência doméstica.

13º - Reiteramos ainda que, não houve qualquer pedido em sede do recurso de impugnação da matéria de facto, mormente de alteração do facto dado como não provado sobre o número 13 da matéria de facto e por isso, foram introduzidas novas questões jurídicas – segundo o douto parecer, de conhecimento oficioso - mas que não fizeram parte do objecto do recurso interposto em sede da 1.ª instância, dando-se guarida e protecção a um recurso que estava fadado ao insucesso.

14º - Além de que, em sede de recurso, os princípios da imediação e da oralidade estão ausentes na apreciação das questões pelos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores e por isso, não tiveram o condão de acompanhar as diversas sessões de julgamento, as incidências, o modo como as testemunhas comportaram-se durante a sua inquirição e as circunstâncias que normalmente se reconhecem à produção da matéria de prova em sede de audiência de discussão e julgamento.

15º - E no caso «sub judice», a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada está devidamente motivada e da forma pormenorizadamente descrita relativa à sua convicção, não se denotando, de acordo com o texto da decisão recorrida, quaisquer contradições seja entre os factos provados e não provados, nem entre estes e a respetiva justificação probatória.

16º - Por isso, deve ser revogada a alteração da matéria de facto, e procedendo-se a essa alteração, manter-se a decisão proferida em sede de 1.ª instância, com a absolvição do Recorrente do crime de violência doméstica.

17º - Mas mesmo que assim não se entenda, e mantenha-se a matéria de facto nos precisos termos constantes do douto acórdão em crise, mantemos a nossa humilde opinião de que o Recorrente não praticou o crime de violência doméstica.

18º - Resulta do artigo 152.º, n.º 1 do CP que as condutas típicas do tipo de ilícito criminal reconduzem-se ao conceito de maus-tratos – físicos ou psíquicos. Na verdade, a delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a acção preenche a previsão de outros tipos de crime, como a injúria, a difamação a ameaça, deve fazer-se por recurso ao conceito de maus-tratos, sejam eles físicos, ou psíquicos.

19º - Mas serão os factos dados como provados suficientes para integrar o conceito maus-tratos? Na resposta a esta questão, temos que, em primeiro lugar, ficou demonstrado que o arguido não praticou qualquer acto de violência física sobre a assistente (inexistência de maus-tratos físicos), sinal demonstrativo que a Assistente prestou falsas declarações em sede de declarações para memória futura.

20º - Quanto aos maus-tratos psicológicos, resulta da matéria de facto dada como não provada que a assistente não foi molestada no corpo, que não é uma jovem meiga e não tem grande sensibilidade moral e que não chegou a ter momentos de pânico e ainda hoje tem pesadelos com vídeos e fotos suas.

21º - Tal factualidade demonstra que a assistente viu a sua paz e tranquilidade perturbadas, mas que os seus relatos são manifestamente exagerados, sendo que hoje em dia, a sua vida prossegue, além de que, os factos constantes do ponto 57 da matéria de facto dada como provada resulta do PIC da Assistente, o qual demonstra que as mensagens circuladas teve como resultado um maior recato por parte da Assistente.

22º - Mas não provam um dos requisitos essenciais do crime de violência doméstica – a imposição do ascendente do Recorrente sobre a assistente.

23º - É que as condutas perpetradas pelo arguido foram uma resposta inapropriada e desajustada face à frustração sentida, mas apesar de terem infligido sofrimento psíquico, não são enquadráveis no conceito de maus-tratos, por não se aferir a existência de um total desrespeito e desejo de submissão da assistente à sua vontade, revelador de um comportamento ultrajante, vexatório e humilhante da dignidade pessoal da mesma.

24º - E por isso mesmo, o arguido só podia ser absolvido, pelo facto não estarem preenchidos todos os requisitos exigíveis para o crime de violência doméstica.

25º - E este nosso entendimento encontra eco na jurisprudência, que mesmo pressionada pelos meios de comunicação social, vai oferecendo pistas que nos permitem enquadrar os factos e conduzi-los à qualificação de um crime de violência doméstica ou outro tipo de ilícito criminal, como no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, que expressamente refere que:

“(…) III - O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus-tratos”.

IV - A conduta do arguido, embora penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelha uma situação de maus-tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.” ( itálico e negritos nossos)

26º - Não negamos as ameaças, as injúrias e as mensagens constantes do processo, mas estas não são consubstanciadoras de maus-tratos psíquicos, pois a sua gravidade não atinge, salvo melhor opinião, a qual respeitamos imenso, o resultado que advém de uma prática reiterada de meses ou até anos de condutas anti-juridicas como as que se verificam no decurso de um matrimónio ou relações equiparadas, sendo que, à data dos factos, a relação já não existia.

27º - Estas evidências demonstram que o núcleo e o âmago da dignidade da assistente não foi humilhada, através de comportamento cruel e degradante praticado pelo recorrente, pois a assistente nunca teve a sua vida ou integridade física perigada por causa da conduta do arguido.

28º - Por isso, nesta medida, este tipo de crime não deve ser banalizado, sob pena de violação do princípio constitucional da proporcionalidade e de total desconsideração pelo sofrimento e necessidades de protecção das vítimas de reais situações de violência doméstica e por isso, defendemos a absolvição do arguido do crime de violência doméstica.

29º - Por último, caso se entenda que o arguido praticou o crime de violência doméstica e nessa medida, a condenação aplicada se mantenha, lembramos que, de acordo com o artigo 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

30º - Nos presentes autos, não negligenciamos as condenações anteriores tidas pelo arguido e que face a esse facto, compreendemos que a pena escolhida seja a pena de prisão. Contudo, seguindo os ensinamentos do insigne professor Figueiredo Dias, devemos optar “(…) sempre que possível, por penas não institucionais” – in As consequências jurídicas do crime, pp. 52-53. Negrito, sublinhado e itálico nossos.

31º - Face ao exposto, e atendendo a todos os factos favoráveis que pendem para o arguido, a pena de prisão efectiva que foi aplicada devia ser suspensa na sua execução, pois o

Recorrente entende que houve um excesso de protecção do bem jurídico que as normas visam proteger, talvez pressionados pela exposição mediática que pulula nos órgãos de comunicação social quanto a crimes de violência doméstica, e que esse excesso foi-lhe prejudicial na determinação da pena.

32º - É preciso expressar nestas alegações que os factos dados como provados são de 2020 e por isso, já passaram quase 3 anos sobre a produção dos factos, e o recorrente encontra-se bem inserido, tem laços familiares fortes com os filhos, uma nova relação estável e duradoura, um emprego fixo e desde 2020 que não é conhecida a prática de qualquer ilícito criminal. – ver factos números 45, 48, 49 e 51 dos factos dados como provados.

33º- O que demonstra que o arguido encontra-se em processo de total reintegração na sociedade, respeitando os valores, as normas e os bens jurídicos que a lei penal visa tutelar e proteger.

34º - Nessa medida, dispõe o artigo 50º n.º 1 do Código Penal, que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e à posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

35º - O citado artigo 50º atribui, deste modo, ao tribunal o poder dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o Julgador possa fazer um juízo e prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido. – cfr. Figueiredo Dias, “ Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena” Ver. De Legislação e Jur., ano 124º, pág. 68 e Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do crime, Lisboa, § 518, páginas 342 – 343. Negrito e sublinhado nossos.

36º - Salvo melhor opinião, a decisão de não aplicação do presente instituto não teve em consideração o momento em que a decisão judicial foi proferida, nem os pressupostos favoráveis expressos na conclusão número 32º, sendo que, o arguido manifesta óbvios sinais de reintegração na sociedade, pois passados quase 3 anos após a prática dos factos, o arguido encontra-se bem inserido, familiarmente e profissionalmente.

37º - O Arguido tem o firme propósito de não voltar a praticar quaisquer factos que de algum modo o possam associar a um passado, presente e futuro de delinquência, tendo-se mostrado colaborante e arrependido nos presentes autos e por isso, aproveitou as oportunidades que lhe foram dadas, sendo hoje um cidadão estimado e respeitado na comunidade onde está inserido.

38º - E por isso, com a condenação na pena de prisão efectiva de 2 anos, mesmo em regime de permanência na habitação, verá todos os seus esforços frustrados, arruinada a sua vida pessoal, familiar e profissional, não podendo honrar os seus compromissos nem dar apoio aos seus filhos e pais.

39º - Pelo que, é nossa humilde opinião que, em face das exigências de prevenção especial de socialização e da situação pessoal do recorrente que não é necessária a imediata execução da pena de 2 anos de prisão efectiva, em regime de permanência na habitação, pois atendendo a todos os factos que jogam a favor do arguido demonstram que a simples censura e ameaça da prisão se afiguram como necessárias para afastar o arguido do crime e satisfazer as necessidades de prevenção.

40º - Pelo que, deve ser aplicada a suspensão da pena de prisão, nos termos dos artigos 50º e ss. do C.P., pois esta não porá em causa a ordem e tranquilidade públicas, porquanto não há perigo da continuação da actividade criminosa, pois o seu comportamento posterior é sinal de que deseja pautar a sua conduta pelas normas, sendo isto que o Direito pretende com os fins das penas.

41º - Foram violadas as normas jurídicas constantes nos artigos 40º, 50º e ss., 58º, 70º, 71º, 77º, 152º n.º 1,todos do C.P. e artigo 410º, n.º 2 al. b) do C.P.P., devendo ser interpretadas e aplicadas no sentido supra exposto.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1 – Face aos precisos termos em que se encontra escrito e à condenação sofrida pelo recorrente, deve considerar-se irrecorrível e insindicável o Acórdão revidendo;

2 - E, consequentemente, deve rejeitar-se o recurso interposto, por manifesta inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.º 1, alínea e) e 432.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal.

3. Caso assim se não entenda e na eventual admissão do recurso, a decisão questionada encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser integralmente confirmada por esse S.T.J. – Supremo Tribunal de Justiça e, por conseguinte, julgar-se o recurso improcedente com a manutenção do Acórdão recorrido.”

A assistente respondeu ao recurso, contrapondo:

“Não assiste razão ao Arguido.

O Arguido consubstancia a sua alegação quer na inexistência de relação de namoro entre a assistente e o arguido, quer na inexistência de atos de violência perpetrados pelo arguido relativamente à assistente.

Ora, os autos estão repletos de provas de factos demonstrativos quer do relacionamento amoroso, quer dos atos de violência, tanto que ousa até dispensar a sua concretização atento o seu cariz chocante, subscrevendo, na integra o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (…) Pelo que adere inteiramente ao teor do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que deverá ser mantido.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu extenso e bem desenvolvido parecer, pronunciando-se fundamentadamente no sentido da rejeição do recurso “por legalmente inadmissível, pela via da irrecorribilidade da decisão recorrida (cfr, os arts. 400º/1-e), 414º/2, 420º/1-b) e 432º/1b) do CPP)”, ou, assim não se entendendo, pronunciando-se, de novo fundamentadamente, pela improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido.

O arguido respondeu ao parecer contrapondo, no essencial, que  “o acórdão proferido no tribunal de base não é um acórdão condenatório na sua totalidade”, pelo que a condenação na Relação possui caracter inovatório, estando “aberta a via ao Recorrente para apresentar, como apresentou, recurso do acórdão do tribunal da Relação”; que “entendimento diverso deste constitui uma grave restrição ao (…) direito ao recurso, nos termos do artigo 18º/2 e 32º/1, ambos da CRP”; e que o recurso deve ser apreciado e julgado procedente.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte referente à matéria impugnada em recurso, tem o seguinte teor:

“II.2. Acórdão Recorrido (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes)

“1- Feito o julgamento e com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

1. O arguido e a assistente CC começaram a namorar em Fevereiro ou Março de 2020.

2. No Verão de 2020 foram passar uns dias a ... e, na sequência de uma discussão sobre o local onde iriam jantar, o arguido apelidou a ofendida de: "puta", "vaca" e "filha da puta", tendo a assistente insultado o arguido de forma não apurada.

3. Em dia não determinado de Setembro de 2020, anterior ao dia 18 de Setembro, quando a ofendida estava num velório, o arguido enviou-lhe diversas mensagens, com o seguinte teor: "és uma puta, uma badalhoca, estás online e não respondes porque estás a responder a outros gajos".

4. Por volta das 16h30m do dia 18 de Setembro de 2020, na Rua ..., na ..., no interior do veículo de matrícula ..-EU-.., propriedade do arguido, ocorreu uma discussão entre o arguido e a ofendida.

5. Nessas circunstâncias, o arguido pegou no telemóvel da ofendida para ver as mensagens.

6. No dia 21.09.2020, quando medicamente observada no Gabinete Médico legal, a ofendida sofreu as lesões melhor descritas e examinadas no relatório de perícia de avaliação de dano corporal de fls.62 a 64, nomeadamente traumatismo dos membros, e concretamente no membro superior direito equimose de 5 por 2,5 cm de maiores dimensões, arroxeada, localizada no terço médio da face anterior do braço; no membro inferior direito equimose arroxeada com 2 por 1 cm de maiores dimensões localizada ao nível da face anterior do terço médio da perna; no membro inferior esquerdo, equimose arroxeada com 1 cm de maior eixo localizada na face anterior do joelho, tendo demandado para a sua cura oito dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.

7. Alguns dias após estes factos, o arguido criou na rede social instagram vários perfis contendo nomes e fotografias que não são seus, com as seguintes denominações: "tenho_saudades_ac", "frases_merda_29", "já_foste_tmhas_tudo", "tones_mas_esperto", "r..._31", "diogo_campos_dc", "litos_rodrigues_sousa_" e "baby_porca_suja_querido", entre outros.

8. O arguido, através do seu telemóvel de marca Apple, utilizando o perfil de instagram "r..._31", identificando a ofendida através de "...", enviou, no dia 27 de setembro de 2020, pelas 14h20, para DD, três vídeos da ofendida, gravados durante o relacionamento entre ambos, nos quais é possível visualizar a ofendida nua, com as seguintes mensagens: "desde anal tudo engole tudo queres mais vídeos, sou mecânico que ela deve dinheiro nestes últimos seis meses de fevereiro até semana passada fui mecânico mas da cona do cu e de ela chupar e engolir não fui ao teu espaço porque me devia dinheiro da reparação do Smart existem coisas muito graves, muito mais, abre os olhos com essa kenga, isso é uma Kenga, até bowsinga a conhece, pina com todos e as outras é que são vacas, abre os olhos, ela foi atrás de ti pensar que tens guito ela não sabe tu estás mais teso que ela, abre os olhos essa atriz é uma personagem e pêras, mas bicos ela fez muitos e engole bem no cuzinho pelos vistos fui dos poucos tenta pode ser que deixe ir, se não acreditas pergunta a essa atriz, confronta, se precisares de vídeos mais fotos será prazer enviar, pede-lhe deixe ver telefone nem tu nem ninguém toca no telefone dela, podes crer que é verdade, aí esconde tudo, já chupei muito esses bicos, vim em cima das mamas olha tudo, mas gosta mesmo é de bicos e engolir..."

9. No dia 30 de setembro de 2020, pelas 13h41, o arguido, através do seu telemóvel apple, enviou para a conta de instagram profissional da ofendida "..., através do perfil que criou "r..._31", mensagens com o seguinte teor: "Teu carro é como o Kit fala ou melhor ouve e transmite, pensavas era otario gosavas com a minha cara." "Procura bem a bateria só dura mais três dias a gravar e o que já gravou chega tenho nojo ter envolvido contigo sabes o que é nojo em todos os sentidos és suja todos te usam todos tu um dias vais sentir na pele isso mesmo agradece tua mamã aquilo que me dirigiu a mim minha família." "Ao que chegaste quero casar contigo ter um filho amor fodase que sorte minha ter saído deste bataclã agradeço a Deus mulheres não faltam piores é impossível." "Adeus princesa de caca de caca mesmo é ao que te resumes." "Teus vizinhos tem essa oficina ao lado tua casa desmantelam carros metes toda gente problemas meu Deus." "Querias apanhar 15.000 euros não sou otario como justificas dinheiro que te dão na conta de pessoas que te usam tua conta é tu recebes uns míseros 100 euros por esses movimentos sabe se tudo tu não tens noção do que estás metida".

10. No dia 2 de outubro de 2020, pelas 22h03, o arguido, através do seu telemóvel, enviou um vídeo onde a ofendida aparecia nua, dirigido a EE, com as seguintes mensagens: "não te assustes, partilho por confio em ti."

11. No dia 6 de outubro de 2020, pelas 08h59, o arguido, utilizando o seu telemóvel, enviou a FF, patrão da ofendida, através de whatsapp", o vídeo denominado "dc4bd7af-20f5-421b-bc16- 5995c7c7cf8ce7.mp4", com a legenda "isto é amostra", contendo duas mensagens que a ofendida havia enviado ao arguido quando namoravam. Nessa mensagem de voz, a ofendida referiu-se ao patrão com as seguintes expressões: "Já me passei com o velho do meu patrão veio aqui me foder a cabeça já vai levar comigo" e "O velho ainda não me pagou estou possuída."

12. O arguido publicou, ainda, na rede social instragam uma fotografia da ofendida a sair da piscina de fato de banho, onde escreveu: "és uma boa vaca, mas as gravações que dizes que me conheces é que tu metes pissas dos velhos para pôr mamas não sou eu filha eu trabalho para chegares a onde eu sou tens de correr muito filha vão começar a apreender! Vou meter estas vacas no meu insta que tocam no meu nome e não me conhecem de lado nenhum minha grande porca és a vergonha deste país dás a cona aos gajos para por mamas!"

13. No dia 7 de novembro de 2020, utilizando a conta do instagram "já_foste_tinhas_tudo", enviou para GG, a referida fotografia da ofendida a sair da piscina e aquilo que havia escrito.

14. Em dia em concreto não apurado dos meses de Outubro e Novembro de 2020, o arguido, utilizando o seu telemóvel e o perfil de instagram "baby_porca_suja_querido" também enviou a referida fotografia e o que tinha escrito para HH, namorado de BB, irmã da ofendida, para o perfil dele na rede social instragram "...", escrevendo o seguinte comentário: "vacas chegar margem sul hoje abre os olhos II eles estão chegar aí queres áudios da tua cunhada falsa chamar-te preto filha da puta etc etc abre os olhos com putas assim não precisas de ir a casa de meninas pergunta ao JJ ele já entrou na festa também sai larga essa merda de gente brother acorda pra vida" e "que vá polícia fazer queixa é que o telefone dela está sob escuta por muitas coisas desde assaltos traficantes etc festa vai começar e o mecânico está aí para bombar".

15. Em data não concretamente apurada do fim de 2020, o arguido enviou mensagens a KK, amiga da ofendida, onde escreveu que a ofendida o andou a enganar, que era uma quenga e uma prostituta, falando também pessoalmente com a mesma, reiterando o que constava das mensagens.

16. Desde finais de Setembro de 2020 até 27 de Novembro do mesmo ano, o arguido enviou mensagens à ofendida, com os seguintes insultos: "ingrata, falsa, 50€ um brochezinho, tu és mesmo Kenga, baixa na carteira só se for mas desvias cueca tu és fantástica aviar tudo o que aparece", bem como ameaças: "boa noite princesa vais me ligar porque isto vai chegar ao Sr. FF ... na segunda feira o homem que come funcionários ele vai gostar de ver", "se calhar a tua irmã (...) vai receber umas buscas por artigos furtados e negócios da branca."

17. No dia 27 de Novembro de 2020, na sequência de uma busca, à residência do arguido, na Rua D..., n°..., em ..., ..., foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos, sendo os telemóveis propriedade do arguido: - Um telemóvel de marca Apple, Iphone 6s Plus; - Um telemóvel de marca Samsung, S7 Edge; - Um Tablet de marca Apple, A1460; - Um computador portátil de marca Apple; - Uma espingarda semiautomática (arma de fogo longa), com cano de alma lisa, marca Benelli, modelo Rinascimento, com o número ..., tudo conforme melhor consta do auto de exame de fls.181 a 183, aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; - 100 munições de arma de fogo - .32 ACP, tudo conforme melhor consta do exame de fls.184 e 185, aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais; - 309 munições calibre 12 GA, sendo 299 de marca "Melhor" e 10 de marca "Royal Club PS", tudo conforme melhor consta do exame de fls.186 e 187, aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

18. O telemóvel de marca Apple, Iphone 6s plus, propriedade do arguido e por ele utilizado, tinha, no dia 27 de Novembro de 2020, na sua memória contas/perfis de utilizadores relativos à rede social instagram e imagens, capturas de ecrã (screenshots) e os vídeos acima referidos, tudo conforme melhor consta do relatório de análise de fls.417 a 443, aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

19. A arma apreendida ao arguido encontrava-se no interior do quarto onde dormia, na parte superior do guarda fatos. As munições estavam guardadas, no sótão, no interior de um móvel.

20. Ao proceder conforme descrito, ao insultar a assistente por diversas vezes, tanto pessoalmente como através de mensagens, com as expressões acima referidas quis o arguido ofender a assistente na sua honra.

21. Ao expor na internet, sem o consentimento e contra a vontade da assistente, fotografias dela nua, identificando-a, bem como ao divulgar a terceiros conversas com ela mantidas, através de whatsapp, quando namoravam, agiu o arguido com o propósito de o maior número de pessoas conhecidas da ofendida visualizarem as imagens, vídeos e mensagens, querendo com isso expor e devassar a vida privada e intimidade sexual da ofendida, o que conseguiu.

22. Ao criar vários perfis no instagram, apondo nomes e fotografias de terceiros, agiu o arguido consciente que criava páginas disponíveis ao público cibernauta, onde ocultava a sua verdadeira identidade e, a coberto desse anonimato, a fim de prejudicar a ofendida, colocava fotografias e vídeos dela, ao mesmo tempo que fazia considerações vexatórias sobre o seu comportamento social e sexual.

23. Actuou desta forma com o fito de expondo, humilhando, vexando e inferiorizando a ofendida entre os amigos, familiares, conhecidos, colegas de trabalho, clientes, perturbar-lhe a paz, a tranquilidade e a vida privada, causando-lhe grande ansiedade e sofrimento, o que quis e conseguiu.

24. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as condutas acima referidas eram proibidas e punidas por lei.

25. O arguido tem antecedentes criminais sido, julgado e condenado: por decisão transitada em julgado em 01.02.2016 pela prática em 06/2010 de um crime de burla qualificada em pena de multa a qual foi extinta pelo pagamento; por decisão transitada em julgado em 14.11.2016 pela prática em 08.02.2013 de um crime de burla simples em pena de multa, a qual foi extinta pelo pagamento; por decisão transitada em julgado em 08.05.2017 pela prática em 06.07.2016 de um crime de violência doméstica na pena de 3 anos de prisão que foi suspensa na sua execução por igual período de tempo com regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima; por decisão transitada em julgado em 29.11.2017 pela prática em 26.02.2013 de um crime de burla qualificada, na pena de 9 meses de prisão que foi suspensa na sua execução por um ano com condição de pagamento, a qual foi extinta; por decisão transitada em julgado em 25.07.2018 pela prática em 06.09.2016 de um crime de denúncia caluniosa, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo com regime de prova; por decisão transitada em julgado em 20.12.2018 pela prática em 10/2017 de um crime de desobediência na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, com regime de prova; por decisão transitada em julgado em 08.09.2021 pela prática em 22.07.2016 de um crime de falsificação de documento na pena de 1 ano de prisão que foi suspensa na sua execução com condição de pagamento.

26. O arguido é originário de uma família funcionalmente organizada e adequado relacionamento familiar, composto pelos pais e uma irmã.

27. A economia familiar foi quase sempre suportada pela atividade laboral do progenitor por conta própria, dando continuidade, juntamente com dois irmãos, à empresa que foi fundada pelo avô paterno do arguido, destinada à reparação de viaturas e exploração de um posto de abastecimentos de combustíveis.

28. AA possui como habilitações literárias o 9° ano de escolaridade, a que se seguiu por opção própria a iniciação profissional junto do pai, que manteve até contrair casamento, após o qual passou a trabalhar no Stand de Automóveis propriedade do ... situado ao lado da empresa familiar que o seu progenitor integra.

29. Num primeiro momento e até 2006 trabalhou como funcionário (vendedor comercial), passando desde então a sócio-gerente, até criar a sua própria empresa, juntamente com o ex-cônjuge, denominada "G..., Lda.", e que funcionou nas instalações de propriedade do ... até à sua insolvência em agosto de 2015.

30. Nessa altura retomou a atividade laboral na empresa familiar M..., Lda", que tem associado um posto de abastecimento de combustíveis, inicialmente a título informal e desde maio de 2017 apresenta atividade declarada, onde exerce funções diversificadas, no apoio ao posto de abastecimento e trabalhos de reparação automóvel. Paralelamente, a titulo pontual e informal, efetuou algumas vendas de automóveis, auferindo uma comissão, atividade que, entretanto, deixou, segundo expressa.

31. Em termos familiares foi casado entre .../.../2002 e .../.../2015, e não obstante o divórcio, manteve a coabitação com o cônjuge até 06.07.2016.

32. Enquanto foi casado e por a ex-mulher ser filha única, o casal e os seus dois descendentes viverem sempre com os sogros, em habitação de propriedade daqueles, a qual reunia as condições adequadas de habitabilidade e conforto.

33. Nessa altura, as suas rotinas centravam-se em torno do trabalho e da atenção à família, privilegiando nos seus tempos livres as atividades conjuntas e o convívio familiar.

34. Na sequência rutura definitiva da relação conjugal, em julho/2016 reintegrou o agregado familiar de origem composto pelos progenitores.

35. No período a que se reportam os factos do presente processo o arguido integrava o agregado familiar dos progenitores, situação que mantém no presente. A dinâmica familiar atual caracteriza-se por um padrão de relacionamento funcional, com sentimentos de pertença e coesão entre os elementos, bem como um especial empenho por parte dos pais em prestar apoio ao arguido.

36. Não apresentava encargos com a habitação (tal como acontece atualmente) uma vez que reside em casa dos pais, os quais asseguram a sua subsistência básica. Residentes numa moradia dotada de adequadas condições de habitabilidade e conforto, localizada em ... - ..., num contexto sem problemáticas sociais relevantes.

37. Após o divórcio manteve três relacionamento afetivos, um dos quais com a ofendida, de curta duração, e que, grosso modo, terminaram com um conflito. Descreve a relação com ofendida como furtuita e sem grande significado afetivo.

38. Mantém uma relação de namoro, há alguns meses relação que descreve como gratificante, mas que gere de modo cauteloso face ao insucesso dos relacionamentos afetivos anteriores.

39. Em termos profissionais mantém o exercício da atividade na empresa familiar M..., Lda."

40. Atualmente aufere um vencimento equivalente ao salário mínimo nacional, sobre o qual recai uma penhora de vencimento nos valores de 22,62€, referente a um processo executivo e 327,80€ + 10,00 referente à pensão de alimentos devida aos filhos menores.

41. Refere ter passado por um período de constrangimentos económicos entre 2015 e 2021, por dividas ao Estado e instauração de processos executivos que o progenitor pagou.

42. AA considera os seus rendimentos insuficientes para a sua autonomia e para fazer face aos encargos que tem com os filhos (que vivem com a mãe), com os quais mantém proximidade relacional e afetiva.

43. AA foi acompanhado pelos serviços de reinserção social, entre Julho de 2017 e Dezembro/2021, no âmbito da condenação pela prática de um crime de violência doméstica, (na pessoa da ex-cônjuge) estando vinculado a algumas obrigações que cumpriu, designadamente a frequência do PAVD - Programa para Agressores de Violência Doméstica que concluiu, e consultas particulares de Psicologia, iniciadas por vontade do próprio.

44. Apesar das suas competências sociais e profissionais, evidenciou um estado psicológico/emocional algo afetado pelas contingências decorrentes da mudança de vida e do divórcio, apresentando por vezes um discurso algo dissonante, com dificuldades em adequar-se à realidade e na interiorização de uma maior responsabilidade e autonomia, preocupação que se fez sentir no seio da família de origem.

45. No presente o arguido refere rotinas centrada no exercício atividade profissional, frequência de um ginásio, e atividade física ao ar livre, convívio regular com os filhos e atual namorada.

46. AA não sinalizou repercussões significativas no seu quotidiano sociofamiliar e profissional decorrente do presente processo.

47. Analisando crimes de natureza similar aos que está acusado nos presentes autos, ainda que em termos abstratos, o arguido revelou conhecimento da ilicitude, bem como da existência de potenciais ofendidos e danos.

48. Na eventualidade de uma condenação, assume recetividade para a execução de uma sanção na comunidade.

49. Do processo de desenvolvimento de AA destaca-se a integração em agregado familiar funcional, afetivamente vinculativa e de condição económica equilibrada.

50.A trajetória profissional registou atividade laboral por conta própria que foi mal sucedida enquanto sócio-gerente de uma empresa, a qual entrou em processo de insolvência.

51. No presente dispõe de enquadramento laboral em empresa familiar, recebe um vencimento mensal regular, condicionado pelas penhoras, designadamente, para garantia da pensão de alimentos aos filhos, considerando o arguido o seu rendimento insuficiente para a sua autonomia, dependendo do agregado de origem.

52. Foi casado e é pai de dois filhos menores, com os quais mantem uma relação de grande proximidade afetiva. A relação conjugal foi-se degradando e culminou com conflitos dando origem a processo em que o arguido foi condenado por crime de violência doméstica.

53. Evidencia alguma volubilidade afetiva e relacional, estabelecendo novas relações afetivas/namoro, de curta duração e associadas à existência de conflitos.

54. O arguido regista várias condenações, sendo que no âmbito do acompanhamento nos serviços de reinserção social, foi colaborante e formalmente cumpridor, contudo, evidenciava um discurso, por vezes, dissonante da sua realidade e pouco permeável à reflexão e introspeção.

55. Confessou parcialmente os factos que resultaram provados, revelando arrependimento.

56. A demandante tem formação como ....

57. É uma jovem muito sensível, frágil e ingénua e em consequência da conduta do arguido, que fez circular nas redes sociais fotos e vídeos seus ficou perturbada, chocada e sentiu-se vexada, humilhada e envergonhada, passou a estar mais tempo em casa com receio da vida em sociedade e quando em casa se sozinha sentia-se insegura e receosa e teve perturbações de sono, perdeu o apetite e passou a tomar medicação antidepressiva e ansiolítica e iniciou acompanhamento em psiquiatria e psicologia.

(…)

II.3. Apreciação da questão suscitada no parecer do MºPº- vícios decisórios previstos no artigo 410º do CPP II.3.1. O MºPº no seu douto parecer invoca os vícios da contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação da prova os quais, apenas por versarem matéria de conhecimento oficioso, serão objecto de apreciação por este Tribunal.

(…) No caso vertente, o M.ºPº, nesta Relação, invocou a contradição insanável da fundamentação alegando que o acórdão recorrido deu como provados e não provados factos nitidamente antagónicos e que se anulam mutuamente, vício que resulta do seu texto conjugado com as regras de experiência comum, uma vez que, ao mesmo tempo, deu como assentes os factos supra transcritos e simultaneamente como não provados o facto n.º 13 (na parte sublinhada) – “Que ao proceder conforme o acima descrito agiu o arguido com o intuito de molestar a ofendida, à data sua namorada, no seu corpo e na sua saúde, atentando contra a sua sensibilidade, provocando-lhe maus tratos psicológicos” – e o n.º 20 [que corresponde ao texto reproduzido no seu parecer, tendo certamente por lapso indicado o facto não provado n.º 14] (na parte sublinhada) – “Que em consequência da conduta do arguido a ofendida sentiu-se traída chegou a ter momentos de pânico e ainda hoje tem pesadelos com vídeos e fotos suas, receando por si e pela sua família”. O MºPº afirma no seu parecer que “Dizer que o arguido difundiu vídeos e fotografias da assistente nua ou em facto de banho, que difundiu ao ex-patrão conversas ou mensagens sigilosas e ao mesmo tempo afirmar que a assistente não se sentiu traída na sua confiança e nem aqueles factos lhe provocaram mazelas psicológicas é, na minha maneira de ver as coisas, manifestamente contraditório. Qualquer pessoa que constatasse a circulação nas redes sociais de fotografias ou vídeos de si em situação de nudez ficaria em pânico e tal facto era adequado ou suscetível de provocar sérias e nefastas consequências psicológicas. Isto é uma evidência auto explicativa que não necessita de demonstração e que se impõe por si, pela lógica das coisas e dos raciocínios simples”. Tendo presente o que supra se escreveu sobre a natureza do vício da contradição insanável previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP constata-se que aquilo que o MºPº faz é afirmar a sua discordância sobre apreciação da prova, divergência essa que será conhecida por este Tribunal por consusbtanciar o vício a que se reporta o n.º 2, al. c) do artigo 410º do CPP, cuja apreciação se impõe por ser do conhecimento oficioso.

Conforme acima referimos, o erro em causa define-se como “erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele dá conta e terá necessariamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que afasta a possibilidade de, para a sua determinação, aceder a elementos processuais (para além daqueles expressos na peça processual questionada) e extraprocessuais. Antes de mais, importa referir que a parte final do ponto 13. dos factos não provados – provocando-lhe maus tratos psicológicos – é meramente conclusiva (devendo por isso tal expressão ser considerada como não escrita). Donde, a qualificação das consequências dos actos perpetrados pelo arguido descritos nos factos provados terá de ser efectuada pelo Tribunal aquando da subsunção jurídica desses mesmos factos apurados.

Lido o acórdão recorrido verificamos que consta da motivação da decisão de facto o seguinte: “A factualidade não apurada decorre para além do supra referido da insuficiência da prova produzida, salientando-se que a factualidade unicamente apurada, ainda que globalmente considerada, não permite concluir pela lesão do corpo e da saúde da ofendida e verificação de maus-tratos psicológicos, (…)”

Sucede que, os factos provados sob os pontos 1. a 5., 7. a 23. e 57. acima transcritos, conjugados com as regras da experiência comum permitem concluir inequivocamente que ao proceder conforme o acima descrito agiu o arguido com o intuito de molestar a ofendida, à data sua namorada, na sua saúde e que em consequência da conduta do arguido a ofendida sentiu-se traída na confiança nele depositada. Senão vejamos:

Por um lado, dos factos provados sob os pontos 20. a 23. - Ao proceder conforme descrito, ao insultar a assistente por diversas vezes, tanto pessoalmente como através de mensagens, com as expressões acima referidas quis o arguido ofender a assistente na sua honra; Ao expor na internet, sem o consentimento e contra a vontade da assistente, fotografias dela nua, identificando-a, bem como ao divulgar a terceiros conversas com ela mantidas, através de whatsapp, quando namoravam, agiu o arguido com o propósito de o maior número de pessoas conhecidas da ofendida visualizarem as imagens, vídeos e mensagens, querendo com isso expor e devassar a vida privada e intimidade sexual da ofendida, o que conseguiu; Ao criar vários perfis no instagram, apondo nomes e fotografias de terceiros, agiu o arguido consciente que criava páginas disponíveis ao público cibernauta, onde ocultava a sua verdadeira identidade e, a coberto desse anonimato, a fim de prejudicar a ofendida, colocava fotografias e vídeos dela, ao mesmo tempo que fazia considerações vexatórias sobre o seu comportamento social e sexual; Actuou desta forma com o fito de expondo, humilhando, vexando e inferiorizando a ofendida entre os amigos, familiares, conhecidos, colegas de trabalho, clientes, perturbar-lhe a paz, a tranquilidade e a vida privada, causando-lhe grande ansiedade e sofrimento, o que quis e conseguiu – decorre que o arguido ao proceder conforme descrito na matéria de facto provada fê-lo inevitavelmente com o intuito de molestar a ofendida na sua saúde.

Por outro lado, não podemos deixar de considerar que a assistente se sentiu efectivamente traída na confiança depositada no arguido (então seu namorado) ao se deparar com os vídeos e as fotografias (nua e em fato de banho) difundidas nas redes sociais pelo arguido e ao constatar a divulgação por parte do arguido junto do seu ex-patrão de conversas ou mensagens sigilosas que lhe havia confidenciado.

Deste modo, o acórdão recorrido padece, nesta parte, do vício de erro notório na apreciação da prova e, como tal, nos termos do artigo 431º, al. a) do CPP determina-se a modificação da matéria de facto nos termos seguintes : a) Aditamento aos factos provados dos pontos 58. e 59. com a seguinte redacção: “58. Que ao proceder conforme o acima descrito agiu o arguido com o intuito de molestar a ofendida, à data sua namorada, na sua saúde. 59. Que em consequência da conduta do arguido a ofendida sentiu-se traída na confiança nele depositada.” b) Alteração do ponto 13. dos factos não provados passando a ter a seguinte redacção: “Que ao proceder conforme o acima descrito agiu o arguido com o intuito de molestar a ofendida, à data sua namorada, no seu corpo.” c) Alteração do ponto 20. dos factos não provados passando a ter a seguinte redacção: “Que em consequência da conduta do arguido a ofendida chegou a ter momentos de pânico e ainda hoje tem pesadelos com vídeos e fotos suas, receando por si e pela sua família.” As referidas modificações serão tidas em consideração aquando da apreciação da questão do enquadramento jurídico dos factos provados suscitada no recurso interposto pelo Ministério Público para aferirmos se estamos ou não perante um crime de violência doméstica.

O M.º Pº, nesta Relação, invocou ainda erro notório da apreciação da prova por não concordar com a justificação constante do acórdão recorrido “No caso de que nos ocupamos, temos que os factos apurados são manifestamente insuficientes para imputar ao arguido a prática do crime por que vem acusado, uma vez que não permitem concluir pela existência de uma ofensa à integridade pessoal da ofendida, pela reiteração ou gravidade dos factos, consubstanciadores de maus tratos físicos ou psíquicos, pelo que deverá o arguido ser absolvido da prática do crime de violência doméstica por que vem acusado”, concluindo que os factos apurados são “muitíssímo graves e mais do que suficientes para integrar plenamente a previsão legal do crime de violência doméstica”.

Nesta sua argumentação o M.ºPº confunde o invocado erro notório na apreciação da prova com a errónea subsunção jurídica dos factos provados no acórdão recorrido. Assim, nesta parte, não se verifica o invocado vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP.

II.4.1. Erróneo enquadramento jurídico-penal dos factos provados

II.4.1.1. Do crime de violência doméstica

O recorrente sustenta que os factos provados na decisão recorrida integram a prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152°, n° 1, al. b) CP. Adiantamos, desde já, que assiste razão ao recorrente.

De acordo com o preceituado no artigo 152º do CP, na versão introduzida pela Lei, vigente à data dos factos (anterior à redacção decorrente da Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, com entrada em vigor em 17.08.2021), na parte que aqui particularmente importa, comete um crime de violência doméstica: “1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;” A propósito do bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica transcrevemos o seguinte excerto do Ac. do STJ de 30.10.2019 (disponível em www.dgsi.pt): “Igual sinal da complexidade do crime violência doméstica está na determinação do bem jurídico protegido pelo mesmo. O Ebook do CEJ, intitulado Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, contém diversos estudos elaborados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, nomeadamente a págs. 84-106, um trabalho acerca da Violência Doméstica elaborado pela Procuradora da República e Docente do CEJ, Catarina Fernandes, onde se faz uma síntese sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, que, pela sua clareza e fontes informativas, a seguir se reproduz:

«1) Saúde

A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.

(…) 2) Dignidade da pessoa humana

Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em:URLhttp://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf).

(…) 3) Integridade pessoal

José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica – Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”.

4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra

Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.

(…) 5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014]. Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: (…) » E mais à frente podemos ler: “Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana. Alinhavando e arrumando ideias fundamentais informadoras do crime em análise, podemos dizer que: --estamos perante um crime de relação, dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação; --um crime em que o bem jurídico protegido é plural e complexo; --e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).”

Revertendo ao caso dos autos, importa ter em conta o quadro fáctico dado como provado na decisão recorrida quanto à assistente CC (com sublinhado da nossa autoria): “(…).”

Tal factualidade valorada globalmente permite concluir que a conduta do arguido atingiu de forma persistente a saúde psicológica, o bem estar, o sossego, a tranquilidade, a honra, bom nome e consideração pessoal da assistente, sujeitando-a a humilhações e insultos permanentes, difundindo imagens da assistente nua ou em fato de banho com expressões insultuosas, afectando-lhe o seu equilíbrio emocional, a confiança no seu próprio juízo de valor e na sua auto estima. Os factos apurados acima transcritos traduzem, pois, uma inqualificável perturbação da existência da assistente nas suas dimensões psíquica e/ou emocional, familiar, social e laboral resultantes dos actos intrusivos, persecutórios e perturbadores levados a cabo pelo arguido quer durante o relacionamento afectivo que manteve com a ofendida, quer após a ruptura dessa relação de namoro. É assim manifesto que o arguido ao praticar tais actos ofensivos da dignidade pessoal e humana da assistente atingiu o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em causa. Por isso, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) do CP. Procede, nesta parte, o recurso.

II.4.2. Da determinação da medida da pena do crime de violência doméstica

Perante o novo enquadramento jurídico-penal dos factos, importa proceder à determinação da pena que deve corresponder ao crime de violência doméstica.

O recorrente pugna pela condenação do arguido numa pena de 2 anos de prisão.

Vejamos.

De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa -artigo 40º, nºs 1e 2, do CP) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do CP) deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.

Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os factores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente.

Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio éticoretributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.

A moldura abstracta penal prevista para o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) do CP é de 1 a 5 anos de prisão.

Atendendo aos critérios estabelecidos pelo citado artigo 71.º, n.º 2 em desfavor do arguido militam as seguintes circunstâncias: – a elevada ilicitude considerando o contexto dos factos (a maioria dos actos cometidos pelo arguido visando a ofendida foram por ele difundidos junto de terceiros) e os danos psíquicos causados à vítima; - o facto de o arguido ter actuado com dolo directo; – a circunstância de, à data dos factos, o arguido já ter sido condenado, por seis vezes, sendo uma delas pela prática de crime de idêntica natureza e cinco delas pela prática de crimes de variada natureza (burla, denúncia caluniosa e desobediência), em penas de multa (duas vezes) e de prisão suspensa na sua execução (quatro vezes).

Por seu turno, em favor do arguido há que considerar o seguinte: – a confissão parcial dos factos, revelando arrependimento; - a inserção social, profissional e familiar do arguido.

As exigências de prevenção especial mostram-se acentuadas atenta a natureza e o número de crimes que o arguido foi anteriormente condenado, tendo o período de suspensão da pena de prisão que lhe foi anteriormente aplicada por crime de idêntica natureza terminado em 08.05.2020 (ou seja, poucos meses antes da prática dos factos dos presentes autos) e o período de suspensão da pena de prisão anteriormente aplicada por crime de diversa natureza terminado em 25.05.2020 (i.e., também poucos meses antes da prática dos factos aqui em causa).

Por sua vez, são evidentes e muito elevadas as exigências de prevenção geral desde logo atenta a persistência e a disseminação deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa actual, que não dá mostras de retrocesso, mau grado todas as medidas de ordem preventiva e repressiva adoptadas, com clara perturbação comunitária e, por vezes, com graves consequências para as vítimas.

Assim, ponderando as circunstâncias supra enumeradas, afigura-se-nos adequada, proporcional e ajustada uma pena de 2 (dois) anos de prisão.

II.4.3. Da suspensão da execução da pena de prisão

A pena ora aplicada ao arguido, porque não superior a 5 anos, poderá ser suspensa na sua execução desde que verificado o pressuposto material enunciado no artigo 50.º, n.º 1, do CP. Vejamos. Nos termos do disposto no art. 50º, n.º 1 do CP “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

(…)

Revertendo para o caso que nos ocupa, sem descurar a confissão parcial dos factos e a integração social, familiar e profissional de que o arguido beneficia, a verdade é que, o arguido persiste em cometer crimes, não servindo as condenações anteriores como solene advertência para que o arguido arrepiasse caminho e adoptasse comportamentos de acordo com a Lei e o Direito, pois, aquando do cometimento destes factos, o arguido já tinha sofrido seis condenações anteriores, sendo uma delas pela prática de crime da mesma natureza (crime de violência doméstica), por factos de 06.07.2016, transitada em julgado a 08.05.2017, em que foi condenado numa pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução, cujo período de suspensão terminou em 08.05.2020 (ou seja, poucos meses antes da prática dos factos dos presentes autos).

É certo que as outras cinco condenações são-no por factos de diferente natureza (crimes de burla simples, burla qualificada, denúncia caluniosa e desobediência), mas tal insistente cometimento de crimes (2010, 2013, 2016, 2017), revela uma personalidade desconforme aos valores penais vigentes, sendo que as três penas de prisão suspensas na sua execução anteriormente aplicadas ao arguido não surtiram o efeito dissuasor de obstar a que, e novamente, o arguido voltasse a praticar crimes.

Aliás, o período de suspensão de uma dessas penas de prisão anteriormente aplicada ao arguido por crime de diversa natureza terminou em 25.05.2020 (ou seja, poucos meses antes da prática dos factos aqui em causa).

Ora, apesar da confissão parcial dos factos e da inserção social, familiar e profissional do arguido, o percurso criminal do recorrente e a sua personalidade indiferente ao ordenamento jurídico e ao sistema de justiça penal não permitem formular um juízo de prognose favorável e agravam as necessidades de prevenção especial que urge salvaguardar de forma adequada e suficientemente dissuasora, não sendo a mera ameaça da execução da pena de prisão suficiente, nem adequada para que o arguido se abstenha da prática de novos crimes. Como, aliás, não o foram as diversas condenações anteriores em penas de prisão suspensas na sua execução. Dando-se primazia à prevenção especial, entendemos que a pena de prisão fixada por este Tribunal deve ser, pois, efectiva, visto que se nos afigura que sem a privação de liberdade não se irá contribuir para os fins de prevenção especial negativa, ou seja, obstar a que o arguido volte a praticar novos crimes, por se entender que a ameaça de cumprimento de prisão não poderá cumprir os fins das penas, sobretudo forçar o arguido a adoptar comportamentos conformes com a legalidade penal vigente.

Pelo exposto, decidimos não suspender a execução da pena de 2 (dois) anos de prisão aplicada ao arguido AA.

II.4.4. Do cumprimento da pena de prisão efectiva em regime de permanência na habitação

A pena ora aplicada ao arguido, porque não superior a 2 anos, poderá ser cumprida em regime de permanência na habitação desde que verificado o pressuposto material enunciado no artigo 43º, n.º 1, do CP.

O regime de permanência na habitação tem potencialidades para realizar a tutela do bem jurídico protegido pela norma que pune o crime em causa – assim satisfazendo as exigências de prevenção geral – e facilitar a ressocialização do arguido, sem estender, de forma gravosa, as consequências da punição ao seu agregado, assim se evitando as consequências perversas da prisão continuada, não deixando de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação para o crime em causa.

O regime de permanência na habitação tem justamente por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento parcial ou continuado, nos casos em que não é possível renunciar à ideia de prevenção geral.

A filosofia do preceito assenta numa evidente reacção contra os consabidos inconvenientes das penas curtas de prisão, situando-se a meio caminho entre a suspensão da execução da pena de prisão e a reclusão efectiva do delinquente, a qual se pretende evitar, pela ruptura com o ambiente familiar, social e profissional que representaria, verificados que sejam os seus pressupostos, mas sem deixar de prevenir-se a adequação desta pena substitutiva às finalidades das penas em geral. Mas a ideia apoia-se também em considerações que transcendem o condenado. É, antes de mais, indesejável que se projectem sobre a família deste consequências económicas desastrosas, sendo ainda indesejável a ruptura prolongada com o meio profissional e social (veja-se o Ac. TRE de 18.02.2020, disponível in www.dgsi.pt).

No caso vertente, não obstante o percurso criminal do arguido, atenta a natureza dos factos cometidos nos presentes autos e as condições pessoais do arguido acima transcritas nos factos provados, consideramos que a execução em regime de permanência na habitação da pena de 2 (dois) anos prisão efectiva aplicada ao arguido ainda satisfaz as finalidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso, contribuindo simultaneamente para a ressocialização do arguido (cfr. artigos 40º e 71º, ambos do CP).

Deve, pois, a pena de 2 (dois) anos de prisão aplicada ao arguido ser cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios de controlo à distância desde que haja consentimento do arguido e estejam reunidos os demais pressupostos para a sua execução previstos na Lei n.° 33/2010, de 02 de setembro, a verificar pelo Tribunal de 1ª Instância.

Atenta a inserção laboral do arguido e por forma a permitir a que o mesmo continue a auferir o vencimento com a actividade laboral que desempenha e através do qual é paga a pensão de alimentos devida aos seus filhos menores, nos termos do disposto no artigo 43º, nº 3, do CP, o Tribunal autoriza que o arguido se ausente da habitação pelo período estritamente indispensável para o exercício da sua actividade profissional, de acordo com um horário a definir pelo Tribunal recorrido, previamente ao início da execução da pena, após recolha dos elementos necessários para o efeito.”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões apresentadas a apreciação seriam as seguintes: (a) erro notório na apreciação da prova, (b) erro de direito ou erro de subsunção, e (c) espécie de pena.

Sucede que importa conhecer da questão prévia suscitada na resposta ao recurso e no parecer do Ministério Público no Supremo, questão cuja procedência obstará ao conhecimento do objecto do recurso.

Como se começou por enunciar, em 1.ª instância foi o arguido absolvido da prática de um crime de violência doméstica, de um crime de falsidade informática  e de um crime de detenção de arma proibida. Mas ficou condenado como autor de um crime de devassa da vida privada do art. 192.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, na pena de 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por 3 (três) anos, subordinada a regime de prova.

Em 2.ª instância, foi o arguido absolvido do crime de devassa da vida privada, mas ficou condenado como autor de um crime de violência doméstica, do art. 152.º, n.º 1, al. b) do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.

Do exposto resulta que ambas as decisões – a de 1.ª instância e a proferida em recurso – são decisões finais condenatórias: a primeira, de condenação em pena de prisão suspensa, a segunda, de condenação em pena de prisão efectiva a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.

E sendo esta condenação em pena de prisão de dois anos, a decisão recorrida é um “acórdão, proferido em recurso pelas relações, que aplica pena de prisão não superior a cinco anos”, ou seja, está na situação prevista na al. e) do n.º 1, do art. 400.º do CPP.   

Surge clara a irrecorribilidade do acórdão que decidiu o recurso interposto da decisão de 1.ª instância: irrecorrível atenta a medida da pena aplicada e atenta a inexistência de uma “decisão absolutória de 1.ª instância”  - al. e) do n.º 1, do art. 400.º do CPP, segmento final que, a verificar-se, reverteria a regra da irrecorribilidade.

Com efeito, o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra previsto no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (no art. 400.º), designadamente do seu n.º 1, al. e), decorre que não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória de 1.ª instância”. Esta excepção não ocorre aqui,  pois o arguido foi condenado (e até em pena de prisão) nas duas instâncias.

É certo que inexiste uma  “dupla conforme” relativamente às duas condenações, tanto no que respeita à decisão sobre a matéria de facto, como no que respeita ao enquadramento jurídico dos factos, como contrapõe o arguido na resposta ao parecer,. Mas esta ausência de dupla conformidade não releva à luz da alínea aplicada (a al. e)), sendo-lhe indiferente.

Com efeito, a dupla conformidade é apenas elemento de ponderação na estatuição de irrecorribilidade prevista na al. f). Encontra-se ali expressamente prevista e, nesse caso (de dupla conformidade) o patamar da irrecorribilidade sobe então para os oito anos de prisão. Mas a situação presente não se enquadra na al. f).

No entanto, não ocorrendo in casu absolvição total em 1.ª instância, mas não sendo também hipótese de dupla conformidade, cumpre precisar o sentido de “decisão absolutória em 1.ª instância” para o efeito da al. e), do n. 1, do art. 400.º do CPP, tanto mais que o arguido a questiona na sua resposta ao parecer.

A este propósito enunciou, muito justamente, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer: “No cotejo lógico-material dos núcleos essenciais dos princípios do acesso à justiça e do direito ao recurso, por um lado, e dos interesses imanentes à definição legal da competência e dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, por outro lado (…) aquele ponto de “concordância prática” impõe, no caso, que na busca do parâmetro regulador da norma do art. 400.º, n.º 1, al. e) do CPP – agora na versão de 2021 – se defina, mesmo que com carácter meramente tipológico, o caso de decisão absolutória em 1.ª instância. Do ponto de vista puramente literal-formal, a decisão absolutória há-se ser entendida, em primeira linha, como o reverso judiciário da decisão condenatória (cfr, os arts. 375.º e 376.º do CPP): Será, portanto, a decisão que, contrariamente à condenatória, não especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.(…) E é, precisamente, pela ausência de pronúncia, no tribunal de 1ª Instância, quanto à a escolha e medida da pena, em caso de absolvição, que o Tribunal Constitucional concluiu pelo carácter inovatório da condenação que seja proferida em 2.ª Instância. Em bom rigor técnico-jurídico, a condenação na 2ª Instância não foi precedida, lógico-processualmente, de uma decisão absolutória, pois que, bem diversamente, assentou na condenação proferida pelo Tribunal Colectivo pelo crime de “devassa da vida privada” (com a modificação de facto operada), que o Tribunal da Relação do Porto requalificou como “violência doméstica”, operando as regras da unidade e pluralidade de infracções, reformulando a punição antes decretada. (…) Neste ponto-de-vista, não é viável concluir que, no caso, a decisão condenatória proferida em recurso pelo Tribunal da Relação do Porto se reveste de carácter inovador, pois que toda a matéria, de facto e de direito, foi sendo objecto de discussão no julgamento em 1ª Instância e no recurso e na resposta, tendo por epílogo o Acórdão recorrido, em cujos termos o arguido, ora recorrente, logrou exercer os poderes de conformação processual que o seu estatuto lhe confere.”

As considerações transcritas são inteiramente de acompanhar. A situação presente enquadra-se realmente na al. e), do n.º 1, do art. 400.º do CPP, e o acórdão da Relação do Porto é, por isso, irrecorrível.

A interpretação que se acolhe, contrariamente ao defendido na resposta ao parecer, não enferma de inconstitucionalidade. E, por isso, nunca mereceu a censura do Tribunal Constitucional, mormente nas situações em que o arguido vê a sua posição agravada ao ser-lhe determinada em recurso a efectividade de uma pena de prisão inicialmente suspensa.

Recorde-se o importante acórdão do TC n.º 595/2018.

À luz da então redacção do art. 400.º (anterior às alterações dadas pela Lei n.º 94/2021, que veio ampliar os casos de recorribilidade e de acesso ao Supremo), o Tribunal Constitucional censurou a irrecorribilidade da decisão da Relação que revertia a absolvição em condenação, mas apenas na parte relativa à determinação da sanção. Desse acórdão retira-se a destrinça clara entre a “questão da culpabilidade” e a da “determinação da sanção”, na fase do recurso e no exercício do direito ao recurso.

No regime anterior, em que na al. e) era vedado o acesso ao Supremo mesmo em caso de decisão absolutória de 1.ª instância, o Tribunal Constitucional circunscrevia o problema da (des)conformidade constitucional à parte da decisão  relativa à determinação da sanção. E fazia-o nos moldes seguintes:

 “(…) para se aferir sobre a respetiva conformidade constitucional importa determinar em que medida a norma sub judicio afecta as garantias de defesa do arguido. Neste plano, na linha do que acima se deixou consignado a respeito da relação existente entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição, é imprescindível verificar se a norma permite a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, para depois determinar se corresponde a uma tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

(…) Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.

Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

(…) Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão ecfetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo».

(…) Nestas circunstâncias, a irrecorribilidade do acórdão do tribunal de 2.ª instância tem como consequência que a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena seja apreciada uma única vez – pelo tribunal de recurso – e escape, assim, ao controlo de uma segunda instância (…)Nessa parte, não se encontra garantindo, na verdade, um duplo grau de jurisdição.

(…) Essa parte da decisão da 2.ª instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.

(…) esse sacrifício do direito ao recurso não é compensado pela possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou assistente da decisão absolutória da 1.ª instância ou através da garantia do contraditório. Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo. (itálicos nossos)

Como se vê, o Tribunal Constitucional censurou a negação da possibilidade de  “poder recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido”, ou seja, a parte relativa à determinação da sanção, distinguindo-a claramente da outra parte da decisão, que o arguido pôde já discutir e debater no contraditório do recurso.

Em suma, o Tribunal nunca considerou desconforme à Constituição a irrecorribilidade do acórdão da Relação inovatoriamente condenatório na parte em que decidiu sobre matéria de facto, desde logo porque, como o afirmou expressamente em vários acórdãos (designadamente em quatro acórdãos do Pleno) as garantias de defesa se consideram suficientemente asseguradas pelo duplo grau de jurisdição e a possibilidade de alegar e contra-alegar em recurso (no recurso para a Relação) sobre a matéria de facto. E no que respeita à garantia constitucional do direito ao recurso, sempre o Tribunal Constitucional destrinçou a parte da decisão referente à culpabilidade, da parte relativa à determinação da sanção.

Ora, na situação presente, o arguido foi condenado em 1.ª instância. Foi condenado numa pena de prisão suspensa. Pôde discutir amplamente em recurso uma decisão sobre a pena, proferida já em 1.ª instância.

Ou seja, “a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena” não foi “apreciada uma única vez – pelo tribunal de recurso”, não escapou ao controlo de uma segunda instância. Foi nessa parte garantido o duplo grau de jurisdição, mostrando-se assegurada no julgamento do recurso (para a Relação) a reapreciação das consequências jurídicas do crime.

A conformidade constitucional da interpretação que se prossegue mostra-se hoje reafirmada no recente acórdão do TC n.º 35/2023. Neste se concluiu não julgar inconstitucional “a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, interpretada no sentido de que que “é inadmissível o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão proferida, em recurso, pelo Tribunal da Relação, que agrave as penas parcelares e, por isso, também a pena única aplicadas em primeira instância, embora sem exceder cinco anos de prisão, revogando também a suspensão da execução da pena decretada em primeira instância”.

Refira-se, por último, que, exceptuados os casos de absolvição em 1.ª instância - em que o acórdão da Relação é decisão de reversão de absolvição em condenação, casos que integram agora a excepção prevista no segmento final da al. e), aditado pela Lei n.º 94/2021 - continua a manter actualidade o AUJ do STJ n.º 14/2013.

Ou seja, na situação sub judice continua a vigorar a seguinte jurisprudência fixada pelo Supremo: «Da conjugação das normas do artigo 400.º alíneas e) e f) e artigo 432.º n.º 1 alínea c), ambos do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão».

Não é admissível, entenda-se agora, exceptuados os casos de absolvição em 1.ª instância, em que o acórdão da Relação é uma decisão de reversão de absolvição em condenação, e em que, pela primeira vez, em recurso, é aplicada ao arguido uma pena. Mas essa situação, como se viu, não ocorre aqui.

O recurso deve ser, pois, rejeitado por inadmissibilidade face à irrecorribilidade da decisão, e a tal não obsta a circunstância de ter sido admitido no Tribunal da Relação, pois a “decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior” (art. 414.º, n.º 3, do CPP).


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso por inadmissibilidade, face à irrecorribilidade da decisão (arts. 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP).

Custas pelo recorrente, que se fixam em 5 UC, acrescendo a importância de 3 UC’s (art. 420.º, n.º 3, do CPP) .


Lisboa, 21.06.2023


Ana Barata Brito, relatora

 Maria do Carmo Silva Dias, adjunta

Pedro Branquinho Dias, adjunto