Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11/22.5SFPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. No artigo 25.º (tráfico de menor gravidade) do DL 15/93, de 22.01, prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, «por referência à ilicitude pressuposta no art. 21.º, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com suscetibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada.»

II. No art. 21.º (tráfico e outras atividades ilícitas) do cit. DL 15/93, tanto se pode incluir o grande, como o médio, tal como o pequeno tráfico de estupefacientes, desde que, neste último caso, não exista um quadro de acentuada diminuição da ilicitude e, portanto, não esteja abrangido no art. 25.º do mesmo diploma legal.

III. Perante a factualidade apurada (olhando para a imagem global dos factos apurados), as circunstâncias em que cometeu o crime em questão, diferente natureza dos estupefacientes destinados à venda, quantidade (339 embalagens de cocaína com o peso total liquido de 196,006 gramas e 193 doses de heroína com o peso total liquido de 119,879 gramas, o que tudo perfaz 532 doses com o peso global de 315,884 gramas) e qualidade de estupefacientes apreendidos em poder do arguido, destinados à venda, quantia total obtida (740,14 euros) com a venda de estupefacientes, modo de atuação e meios utilizados nessa atividade (2 telemóveis para efetuar contactos com consumidores e fornecedores, utilizando uma fritadeira para esconder os estupefacientes e se desfazer deles, caso fossem intercetados, fazendo a venda em casa devoluta sita na cidade ..., através de um postigo, que dispunha de uma “chapa metálica” para o encerrar em caso de necessidade), evidenciando uma certa organização, cuidado e sofisticação na venda, para não serem detetados facilmente pela policia, período de tempo da sua atividade é manifesto que não se pode concluir que exista uma acentuada diminuição da ilicitude, mostrando-se adequado o enquadramento no tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93.

IV. A medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido um ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

V. É ajustada, adequada e proporcionada a pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido/recorrente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, por si cometido, perante o circunstancialismo fáctico apurado (gravidade da ação concreta em questão nos autos, por si praticada, mostrando a sua indiferença pelos malefícios para a saúde dos consumidores, desenvolvendo a sua atividade delituosa com uma certa organização, sem trabalhar, sendo elevada a ilicitude dessa sua conduta, considerando as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, revelando uma personalidade adequada aos factos praticados, tendo antecedentes criminais, inclusivamente quatro deles por crimes da mesma natureza, por tráfico de menor gravidade, tendo sido condenado nas duas últimas vezes em prisão efetiva), mesmo considerando todo o circunstancialismo atenuativo igualmente ponderado pelo Coletivo (v.g. confissão da quase totalidade dos factos apurados, colaboração prestada, arrependimento demonstrado com o pedido de desculpas efetuado, condições pessoais de vida, comportamento no EP e evolução positiva posterior aos factos que pode contribuir, no futuro, para a sua reintegração social).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 11/22.5... do Juízo Central Criminal ..., Juiz 5, comarca do Porto, por acórdão de 12.12.2022, além do mais, o arguido AA, nascido em ... .10.1995, foi (no que aqui interessa) condenado pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (efetiva).

2. Inconformado com o acórdão da 1ª instância, recorreu o Ministério Público para a Relação do Porto, tendo este Tribunal proferido em 21.06.2023 acórdão revogando a decisão condenatória proferida pelo Tribunal recorrido, condenando, entre outro1, o arguido AA pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

3. Não se conformando com essa decisão da Relação recorreu para este STJ o arguido AA, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O arguido AA, foi condenado em 1ª instância, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (efectiva)

2 - O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância não conformou com a decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela condenação do arguido, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, numa pena 4 e 5 anos de prisão efectiva.

3 - O Tribunal da Relação julgou o recurso provido e consequentemente revogou a decisão condenatória proferida pelo Tribunal recorrido, na parte referente ao arguido AA, passando este a ser condenado pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº1, do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

4 - O recorrente não se conforma com a decisão quanto à convolação da condenação do recorrente, para o tipo legal do artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal.

5 - As razões que sustentam a sua pretensão estão vertidas nos pontos 8 a 23 do Item A, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

6 - Em súmula, a factualidade apurada, descreve uma actividade “de tráfico de rua”, como meio de obter a subsistência diária. Não estamos perante, uma actividade em que os arguidos fosse eles próprios fornecedores, de outros “traficantes”, potenciadores de proventos económicos de relevo, bem pelo contrário, o tribunal deu como provado, que eram “meros empregados “, sendo os lucros obtidos com a actividade que desenvolviam destinados a quem os contratou para executar a tarefa mais arriscada, aproveitando-se das fragilidades que ambos registavam quer pela situação económica precária que detinham, quer pelo facto de serem também eles consumidores de produtos estupefacientes.

A actividade ilícita decorreu num curto período de tempo, foi delimitada a uma área geográfica limitada, uma casa na cidade .... O arguido era o elo mais fraco, uma vez que lhe cabia a parte mais arriscada do negócio, a execução da venda directa, a troco de contrapartida económica, consubstanciada num valor pago a título de “prestação de serviços”. Subjacente à sua conduta, o consumo de drogas e as condições económicas precárias.

7 -Pelo que, deve manter-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, condenando o arguido AA, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (efectiva);

8 - A decisão recorrida violou, nessa parte, o artigo 25º, al. a), do DL nº 15/93, de 22/01.

9 - Sem prescindir, e mesmo entendendo que da conjugação dos factos provados e não provados, a conduta do arguido se subsume ao ilícito p. p. no artigo 21 nº 1 do DL15/93 de 22-01, haveria, atento ao já referido nos pontos 3 a 8 do Item B- da motivação do recurso, com maior relevância para o facto de se tratar de “venda de rua”, sem qualquer suporte organizativo, o arguido ser um mero “empregado”, aliado a facto de ser à data consumidor de drogas e apresentar uma condição económica precária.

10 - Haveria ainda que considerar, que as razões de prevenção geral, e especial se mostram atenuadas, na medida em que, o arguido admitiu a factualidade que o tribunal veio a dar como provada, regista um comportamento adequado às regras prisionais, procurando no E.P, por um lado manter-se abstinente do consumo de drogas e adquirir competências escolares para uma melhor reintegração profissional.

Manifesta ainda capacidade crítica pelos actos cometidos e dispõe de enquadramento familiar.

11 - Pelo que, e no caso em apreço, o Tribunal deveria ter aplicado ao arguido, uma pena não superior de 5 anos de prisão.

12 - A decisão recorrida violou, nessa parte, os arts. 40, 70 e 71 do C.P.

4. Na resposta ao recurso na Relação, o Ministério Público pugnou pela sua improcedência, atenta a matéria de facto dada como provada na 1ª instância, gravidade dos factos e antecedentes criminais deste arguido, considerando adequada a qualificação jurídica-penal efetuada, assim como a pena aplicada, sendo certo que já foi condenado anteriormente pela prática, entre outros, do mesmo tipo de crime, a saber, já sofreu quatro condenações pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, sendo as duas últimas em penas de prisão efetiva, pelo que a pena concreta que lhe foi aplicada, de 5 anos e 6 meses de prisão, numa moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão, mostra-se justa e adequada à gravidade dos factos pelos quais foi condenado.

5. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, no qual, em resumo, sustentou que, perante os factos dados como provados, nomeadamente, “pela actividade desenvolvida e pelo tipo de estupefacientes comercializados, heroína e cocaína (cloridrato), as denominadas drogas duras, das quais foram apreendidas 193 doses e 339 doses, respectivamente, com os pesos respectivos de 119,878 gramas e de 196,006 gramas, num total de 532 doses, com o peso total de 315,884 gramas, não se vê, com efeito, como seja possível ter por consideravelmente diminuída a ilicitude do facto, sem o que não se poderá ter por verificado o tipo privilegiado do tráfico de estupefacientes, assim se compreendendo o sentido da decisão do Tribunal a quo na subsunção dos factos ao direito” e, quanto à medida da pena, manifestou igualmente concordância com o tribunal a quo, destacando as muito elevadas necessidades de prevenção geral e de prevenção especial, considerando justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos a pena aplicada de 5 anos e 6 meses de prisão.

6. Na Resposta ao Parecer do Sr. PGA, o recorrente deu por reproduzido o teor da sua motivação de recurso.

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

8. As questões suscitadas no recurso em apreciação prendem-se, por um lado, com a qualificação jurídico-penal do crime pelo qual o arguido foi condenado (que o arguido pretende que seja alterada para tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL 15/93, mantendo-se consequentemente a pena de 4 anos de prisão aplicada pela 1ª instância) e, por outro lado, sem prescindir, com a medida da pena aplicada (que o arguido pretende que seja reduzida para pena não superior a 5 anos de prisão, caso seja mantida a qualificação pelo crime do art. 21.º do DL 15/93).

Fundamentação

Factos provados

Consta do acórdão da Relação impugnado,

9. Resultam assentes (com relevo para apreciar o objeto do recurso), os seguintes factos:

1 - Desde pelo menos 14-11-2021 que o arguido AA se dedica à venda de estupefacientes, a troco do recebimento de quantias monetárias.

2 - Nesta actividade, e a partir dessa data, o arguido AA utilizou o telemóvel de marca SAMSUNG SM-A125F GALAXY A12, com o IMEI .............73, e o telemóvel de marca SPC SMART 2, com os IMEI ............13 e .............21, para comunicar com fornecedores e consumidores de estupefacientes, por sms e através das aplicações “Messenger” e “WhatsApp”, a fim de articular e combinar a compra e venda de tais substâncias e produtos, bem como para guardar ficheiros de imagens de documentos manuscritos onde registava a contabilidade da venda de estupefacientes, por referência ao nome dos clientes e aos valores pagos ou em dívida.

3 - No dia 14-11-2021, entre as 22:46:39 e as 22:47:26, o arguido AA, por via da aplicação "Facebook Messenger”, com a designação "BB (owner)", comunicou por mensagens escritas com um indivíduo não concretamente identificado, com a designação "CC", a qual perguntou ao arguido se tinha “ganza” para vender, referindo-se a canabis, tendo este respondido que naquele momento não tinha.

4 - No dia 22-11-2021, entre as 20:56:34 e as 20:59:26, o arguido AA, através de mensagem escrita (sms), estabeleceu contacto com um indivíduo não concretamente identificado, conhecido como “tio de ...”, o qual questionou o arguido sobre o preço do estupefaciente, perguntando-lhe: "Boa tarde é o tio de ... quero saber o preço da broa".

5 - No dia 1-12-2021, entre as 15:34:12 e as 18:07:59, o arguido AA, por via da aplicação "WhatsApp", com a designação "BB (owner) .........................et", comunicou por mensagens escritas com um indivíduo não concretamente identificado, com a designação "DD .........................et" e conhecido por “DD”, para articular a compra de estupefaciente por este indivíduo, na quantidade de 1/4, pelo valor que o arguido fixou em 110,00 €.

6 - No dia 5-12-2021, entre as 21:25:23 e as 21:39:16, o arguido AA, por via da aplicação "WhatsApp", com a designação "BB (owner) .........................et", comunicou por mensagens escritas com um indivíduo não concretamente identificado, com a designação "EE .........................et", para articular a transacção de estupefaciente, a que se referem por “hierva”, negociando quantidades e preços.

7 - A partir de 16/02/2022 o arguido AA intensificou a actividade de venda directa de estupefacientes a consumidores, designadamente de cocaína e heroína.

8 - Desde as datas de 16/02/2022 e de 17/02/2022, respectivamente, que os arguidos AA e FF procediam à venda de estupefaciente num prédio sito na Rua ..., nº 481, ..., que se encontrava desabitado, devoluto e abandonado, a consumidores que ali se dirigissem.

9 - Indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, sabendo dos riscos que corriam se viessem a ser surpreendidos pela acção das autoridades policiais em plena actividade de venda de estupefacientes, gizaram previamente um plano que consistia, por um lado, em reforçar e blindar mecanicamente todos os acessos ao interior do prédio referido em 8. e, por outro lado, em equipar o local com meios que, quase instantaneamente ou em poucos segundos, assegurassem a destruição completa de quaisquer produtos ou substâncias estupefacientes que mantivessem na sua posse assim que avisados da chegada repentina de quaisquer autoridades policiais ao local.

10 – A fim de reforçar e blindar mecanicamente todos os acessos ao interior do referido prédio da Rua ..., nº481, indivíduos cuja identidade não se apurou reforçaram a pré-existente porta de entrada do imóvel, em alumínio, com a instalação de uma segunda porta sobreposta interiormente, construída em metal ferroso, a qual, por sua vez, foi reforçada através do chapeamento das suas almofadas e com respectivos aros ferrolhos no mesmo material.

11 – Com o fim de reforçar e blindar mecanicamente todos os acessos ao interior do referido prédio da Rua ..., nº481, indivíduos cuja identidade não se apurou blindaram interiormente todas as janelas do prédio com gradeamento reforçado com placas metálicas, assim dificultando ou impossibilitando qualquer acesso ao interior do espaço em questão.

12 - A fim de dificultar ou atrasar o acesso das forças policiais ao ponto de destruição de quaisquer estupefacientes, indivíduos cuja identidade não se apurou decidiram igualmente reforçar pontos estratégicos no interior do prédio, aí instalando portas metálicas blindadas com grades metálicas colocadas entre a caixilharia de alumínio pré-existente, reforçando-as ainda com painéis sandwich entre a caixilharia pré-existente e a nova estrutura metálica que criaram, assim as tornando quase indestrutíveis.

13 - Indivíduos cuja identidade não se apurou adquiriram, no dia 8-2-2022, no estabelecimento comercial “C.... ......”, uma fritadeira eléctrica, de marca Gastro, com 6l (seis litros) de capacidade de óleo, que passaram a manter no interior do referido prédio, pronta e em funcionamento, a fim de, quase instantaneamente ou em poucos segundos, por força das altas temperaturas em que o óleo de fritar era mantido, queimar e destruir quaisquer produtos ou substâncias estupefacientes ali colocados.

14 - O arguido AA, no período compreendido entre os dias 16/02/2022 e 17/02//2022, e o arguido FF no dia 17/02//2022, passaram a obter a entrega de cocaína e heroína a indivíduos e em circunstâncias não concretamente apuradas e, subsequentemente, a vender, numa base diária, doses individuais dos referidos estupefacientes a grande número de consumidores que para o efeito os abordassem naquele local.

15 - No dia 17-2-2022, pelos menos desde as 09:00h, os arguidos FF e AA assumiram as suas posições no interior do referido prédio da Rua ..., nº481, ..., prontos a proceder à venda de doses individuais de cocaína e heroína, em troca de quantia monetária não concretamente apurada, paga em numerário pelos consumidores que se dirigissem à janela da fachada lateral esquerda do prédio, onde eram atendidos a partir do interior através de uma pequena abertura em forma de postigo, de pequenas dimensões, recortada na placa metálica de reforço interior previamente instalada.

16 - Iniciado o período de venda de produtos estupefacientes, pelas 09:20h do dia 17-2-2022, formou-se uma fila de, pelo menos, duas dezenas de consumidores, não concretamente identificados, na intercepção da Rua Cidade ..., a escassos metros do referido prédio da Rua ..., nº481, ....

17 - No período compreendido entre as 09:20h e as 10:55h do dia 17-2-2022, várias dezenas de consumidores e toxicodependentes, chegados às imediações do local, encaminharam-se à mencionada janela da fachada lateral esquerda do referido prédio, onde, a troco de quantia monetária não concretamente apurada, obtiveram das mãos dos arguidos FF e AA doses individuais de cocaína e heroína em quantidades também não concretamente apuradas.

18 - Pelas 10:55h do dia 17-2-2022, avistando a aproximação de elementos da Polícia de Segurança Pública, indivíduos não concretamente identificados, em tom de voz alto e perceptível, repetidamente gritaram a expressão “água à civil”, referindo-se, de acordo com o léxico e código verbal previamente definido, a elementos policiais sem fardamento em aproximação ao local.

19 - No instante imediatamente seguinte e de forma quase automática, indivíduos não concretamente identificados, ouvindo os gritos proferidos pelos outros indivíduos, também em tom de voz alto e perceptível, repetidamente gritaram a expressão “água à civil”, igualmente referindo-se, de acordo com o léxico e código verbal previamente definido, a elementos policiais sem fardamento em aproximação ao local.

20 - Nesse momento, ouvindo a expressão “água à civil”, os arguidos FF e AA, de imediato, fizeram descer a chapa metálica que encerra o mencionado postigo destinada à venda de estupefacientes, fechando igualmente a respectiva persiana exterior.

21 - De seguida, a fim de evitar a possível apreensão do estupefaciente que ali mantinham e que ainda não haviam vendido, os arguidos FF e AA, de imediato, colocaram o grosso do estupefaciente que detinham no interior da rede metálica que compõe a fritadeira eléctrica acima descrita, constatando, só então, que se haviam esquecido de manter ligada a referida fritadeira, sendo que o óleo que ali mantinham colocado se mantinha à temperatura ambiente.

22 - Dirigindo-se então à entrada principal do referido prédio da Rua ..., nº481, apesar dos esforços desenvolvidos, os elementos da Polícia de Segurança Pública viram-se impossibilitados de vencer os descritos reforços interiores metálicos instalados, assim não logrando aceder prontamente ao interior do imóvel.

23 - Idênticas tentativas de acesso foram desenvolvidas junto das demais janelas da fachada frontal do imóvel, todas se revelando infrutíferas, já que, do mesmo modo, os elementos da Polícia de Segurança Pública viram-se impossibilitados de vencer os descritos gradeamentos interiores metálicos instalados.

24 - Os elementos da Polícia de Segurança Pública apenas lograram aceder ao interior do imóvel pela janela traseira do mesmo porque a respectiva blindagem metálica previamente instalada revelou-se menos robusta que as demais.

25 - Entretanto, tendo ligado a referida fritadeira eléctrica, mas ciente que o pouco tempo decorrido não possibilitava a fervura do respectivo óleo, ao deparar-se com a entrada das forças policiais, o arguido AA deu um passo em frente obstruindo a entrada na respectiva dependência do imóvel onde se encontrava o arguido FF a operar a mencionada fritadeira, de molde a atrasar ainda mais o acesso da polícia ao referido produto estupefaciente.

26 - Ainda assim, os elementos da Polícia de Segurança Pública venceram a descrita oposição física do arguido AA e, de imediato, lograram extrair a grelha contendo estupefaciente, do interior da mencionada fritadeira cujo óleo não tinha ainda atingido temperatura de relevo, evitando assim a destruição daquelas substâncias.

27 - Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido FF tinha em sua posse:

- 1 (um) telemóvel, com o IMEI .............54 e com o IMEI2 .............52.

28 - Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA tinha em sua posse:

- os 2 (dois) telemóveis acima descritos;

- a quantia monetária de € 66,40 (sessenta e seis euros e quarenta cêntimos).

29 - Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, no interior do referido imóvel sito na Rua ..., nº 481, ..., então na esfera do domínio dos arguidos FF e AA, os arguidos tinham em seu poder:

- a quantia monetária de € 534,60 (quinhentos e trinta e quatro euros e sessenta cêntimos);

- a quantia monetária de € 139,14 (cento e trinta e nove euros e catorze cêntimos);

- 1 (uma) máquina Electronic Coin Sorter, destinada à escolha e contagem de moedas;

- 2,202 gr de heroína em pó, divididas em 19 embalagens, com um grau de pureza de 18,6 %, correspondentes a 4 doses;

- 140,173 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 34 %, correspondentes a 238 doses;

- 79,362 gr de heroína em pó, divididas em 458 embalagens, com um grau de pureza de 17,2%, correspondentes a 136 doses;

- 30,552 gr de heroína em pó, divididas em 133 embalagens, com um grau de pureza de 12,5%, correspondentes a 38 doses;

- 3,624 gr de heroína em pó, divididas em 32 embalagens, com um grau de pureza de 22,5%, correspondentes a 8 doses;

- 4,138 gr de heroína em pó, divididas em 35 embalagens, com um grau de pureza de 17,8 %, correspondentes a 7 doses;

- 8,584 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 37,4 %, correspondente a 16 doses;

- 7,336 gr de cocaína (cloridrato) em pó, com um grau de pureza de 36,6 %, correspondentes a 13 doses;

- 39,913 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 36,4 %, correspondente a 72 doses, tudo no total de 315,884 gr destes dois tipos de estupefacientes, equivalente a 532 doses de heroína e cocaína (cloridrato).

- junto da fritadeira eléctrica, 2 (dois) manuscritos alusivos a quantidades de estupefacientes e a valores monetários; e 1 (uma) factura datada de 08/02/2022, emitida pela “C.... ......”, referente à fritadeira eléctrica.

30 - O referido imóvel sito na Rua ..., nº 481, ..., é propriedade de GG, que o obteve por herança e que o mantém desocupado.

31 - A totalidade das substâncias estupefacientes que os arguidos AA e FF tinham em seu poder destinavam-se a ser vendidas pela forma descrita.

32 - Todas as quantias monetárias encontradas em poder dos arguidos AA e FF resultaram, exclusivamente, das vendas de estupefacientes acima descritas.

33 - Os objectos e equipamentos acima descritos destinavam-se à utilização e foram utilizados na actividade de venda de estupefacientes.

34 - Bem sabiam os arguidos AA e FF da natureza, quantidade e características estupefacientes da heroína e cocaína que foram vendendo e que tinham em seu poder para essa finalidade.

35 - Bem sabiam os arguidos AA e FF que não poderiam comprar, deter, transportar, colocar à venda ou vender, ceder ou proporcionar tais substâncias estupefacientes para que fossem consumidas por terceiros.

36 - Não obstante disso bem saberem, os arguidos AA e FF quiseram agir e sabiam que procediam da forma descrita, na prossecução da actividade de venda de cocaína e heroína, que era o desígnio de ambos, agindo com o propósito, concretizado, de procederem à venda de tais substâncias.

37 - Os arguidos AA e FF actuaram por si, com intervenção directa no processo de venda dos estupefacientes, agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com o que atentaram contra a saúde pública.


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2.1.2. Extraída dos Certificados do Registo Criminal dos arguidos:

DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO AA:

38 – O arguido AA tem averbadas no seu Certificado de Registo Criminal as seguintes condenações:

- Por sentença proferida a 19/04/2016 e transitada em julgado a 19/05/2016 no âmbito do Processo Comum Singular nº2228/14.7... do Juízo Local Criminal de ... – J2, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática, a 06/11/2014, de dois crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, nº1 do Código Penal;

- Por acórdão proferido a 20/10/2016 e transitado em julgado a 21/06/2017 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº15/15.4... do Juízo Central Criminal ... – J8, foi condenado na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova, pela prática, a 2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) da Lei nº15/93, de 22/01;

- Por acórdão proferido a 24/05/2017 e transitado em julgado a 30/06/2017 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº2329/15.4... do Juízo Central Criminal ... – J13, foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, efectiva, pela prática, a 16/08/2015, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, nº1 e nº2, al. b) do Código Penal;

- Por acórdão proferido a 04/11/2016 e transitado em julgado a 19/01/2017 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº147/15.9... do Juízo Central Criminal ... – J5, foi condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática, a 04/09/2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º da Lei nº15/93, de 22/01;

- Por sentença proferida a 28/11/2017 e transitada em julgado a 30/01/2018 no âmbito do Processo Comum Singular nº970/15.4... do Juízo Local Criminal ... – J1, foi condenado na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática, a 03/09/2015, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, 204º, nº2, al. e) e 202º, al. e) do Código Penal;

- Por sentença proferida a 07/02/2018 e transitada em julgado a 10/09/2018 no âmbito do Processo Comum Singular nº757/15.4... do Juízo Local Criminal ... –J3, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 16 meses de prisão, efectiva, pela prática, a 25/08/2015, de um crime de dano simples, um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços e um crime de furto simples, p. e p., respectivamente, pelos artigos 212º, 220º e 203º do Código Penal;

- Por acórdão cumulatório proferido a 27/02/2018 e transitado em julgado a 18/04/2018 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº2329/15.4... do Juízo Central Criminal ... - J13, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, efectiva, abrangendo, para além daquele, os processos nºs 15/15.4... e 147/15.9...;

- Por sentença proferida a 30/04/2018 e transitada em julgado a 08/06/2018 no âmbito do Processo Comum Singular nº58/15.8... do Juízo Local Criminal ... – J5, foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, efectiva, pela prática, a 10/03/2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) da Lei nº15/93, de 22/01;

- Por sentença proferida a 22/11/2018 e transitada em julgado a 04/01/2019 no âmbito do Processo Comum Singular nº4353/17.3... do Juízo Local Criminal de ... – J1, foi condenado na pena de 1 ano e 7 meses de prisão, efectiva, pela prática, a 15/08/2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) da Lei nº15/93, de 22/01;

- Por acórdão cumulatório proferido a 04/12/2018 e transitado em julgado a 05/02/2019 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº19722/18.3... do Juízo Central Processo: 11/22.5... Criminal ... – J13, foi condenado na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão, efectiva, abrangendo os processos nºs 970/15.4..., 757/15.4..., 2329/15.4..., 147/15.9..., 58/15.8... e 15/15.4...;

- Por acórdão proferido a 07/03/2019 e transitado em julgado a 08/04/2019 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº996/14.5... do Juízo Central Criminal de ... - J3, foi condenado na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no total de € 750,00, pela prática, a 20/08/2015, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1, al d) do Regime Jurídico das Armas e Munições. Por decisão proferida a 16/12/2019, transitada em julgado a 03/02/2020, foi tal pena substituída por 100 dias de prisão subsidiária;

- Por acórdão cumulatório proferido a 14/05/2020 e transitado em julgado a 14/05/2020 no âmbito do Processo Comum Colectivo nº1741/20.1... do Juízo Central Criminal de ... - J3, foi condenado na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, abrangendo os processos nºs 147/15.9..., 970/15.4..., 996/14.5..., 2329/15.4..., 58/15.8..., 4353/17.3..., 15/15.4... e 757/15.4...;

- Por decisão proferida a 21/05/2020 e transitada em julgado a 01/06/2020, foi-lhe concedido perdão da pena ainda não cumprida do processo nº1741/20.1... ao abrigo da Lei nº9/2020, de 10 de Abril.

(…)

2.1.3. Extraída dos Relatórios Sociais dos arguidos:

44 – DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO ARGUIDO AA:

O processo de socialização de AA decorreu junto dos progenitores até à idade de 2 anos, altura em que a mãe abandonou o agregado familiar e ficou aos cuidados do pai, pessoa com acentuados problemas de adição e domiciliado no Bairro ..., cidade .... Contava cerca de 6 anos quando a avó materna requereu judicialmente a sua guarda, tendo sido, então, entregue aos seus cuidados e com quem estabeleceu vínculos afetivos. Teve uma irmã mais velha, que faleceu por motivo de doença antes do seu nascimento, e tem uma irmã uterina, mais nova, com quem mantém poucos contactos. O progenitor faleceu quando o arguido tinha 11 anos de idade e, relativamente à progenitora, não voltou a estabelecer relação.

O percurso escolar de AA foi marcado por dificuldades de aprendizagem, absentismo e comportamentos desajustados, bem como o início do consumo de substâncias estupefacientes (canábis), por volta dos 11/12 anos, que o conduziram a medidas de acolhimento em duas instituições, a primeira no Colégio de ..., no ..., aos 13 anos de idade, e posteriormente, na Associação ..., no ..., onde permaneceu até atingir a maioridade. Nestas instituições frequentou o ensino até à conclusão do 2º ciclo do ensino básico.

Aquando da saída da comunidade terapêutica, regressou ao agregado da avó materna, composto pela própria e seu companheiro, padrinho do arguido. Contudo, manifestou dificuldades de adaptação às regras impostas em contexto familiar, o que culminou na sua expulsão da residência. Assim, associou-se a grupo de pares conotados com comportamentos desviantes e assumiu um estilo de vida caracterizado pela adesão a rotinas de rua e que favoreceram a incursão em contextos de transgressão e delinquência, que o conduziram a vários contactos com o Sistema de Administração da Justiça Penal.

A nível profissional não apresenta experiências laborais estruturadas, mencionando que trabalhou, em regime informal e de forma ocasional, na mudança e montagem de móveis.

Beneficiou da prestação do rendimento social de inserção (RSI) durante um ano; todavia, o incumprimento das condições conduziu à cessação do mesmo.

Em abril/2016 AA deu entrada no E.P. ... tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão e 100 dias de prisão subsidiária, pela autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, roubo, furto qualificado, furto simples, burla para obtenção de serviços, dano e detenção de arma proibida. Cumpriu também outra condenação em pena não privativa de liberdade pela autoria de dois crimes de roubo.

Durante o cumprimento da pena de prisão manteve suporte familiar da avó; contudo, o falecimento desta, em maio/2018, causou acentuada instabilidade emocional, embora mantivesse o apoio do seu padrinho. Assim, demonstrou, ao longo da execução da pena, evolução ao nível pessoal e da reflexão crítica quanto ao seu percurso criminal e, a 21/05/2020, beneficiou do perdão de penas concedido ao abrigo da Lei nº 9/2020 de 10 de abril. Em meio livre, reintegrou o agregado familiar do padrinho e, não obstante o apoio deste, manteve um estilo de vida desestruturado, sem ocupação formativa e/ou profissional definida, aproximando-se de grupo de pares associados a comportamentos desviantes e criminais.

No campo afetivo, AA estabeleceu um relacionamento amoroso que cessou aquando do início do cumprimento da primeira pena de prisão e do qual resultou um descendente, que conta atualmente 6 anos de idade e que reside com a mãe, mantendo com estes uma relação cordial. Após a sua libertação, iniciou novo relacionamento afetivo com HH, embora sem coabitação.

No período a que se reportam os factos pelos quais está acusado, AA mantinha residência formal junto do padrinho, atualmente com 69 anos, pensionista, sita no Bairro de ..., no .... Trata-se de um apartamento de habitação social, de tipologia 2 e inserido em empreendimento social com incidência de problemáticas sociais e criminais. Não obstante, pernoitava com frequência na casa da namorada, domiciliada na Rua da ..., nº 350, Casa C, em ..., cidade da ....

AA conservava um quotidiano sem estruturação, mantendo-se laboralmente inativo, pese embora afirme que realizava alguns trabalhos em regime informal, em cargas e descargas de mercadorias, por intermédio de alguns amigos e pelos quais auferia rendimentos variáveis, mas insuficientes para assegurar a sua subsistência. Deste modo, dependia quer do padrinho, reformado e a auferir uma pensão no valor de 440€ mensais, quer da namorada, laboralmente ativa como ... numa cervejaria localizada na cidade ... e a auferir um vencimento mensal na ordem dos 700€.

AA mantinha consumos regulares de substâncias estupefacientes (canábis), associando-se a grupo de pares com o mesmo comportamento, em bairros sociais da cidade do .... Contudo, não identifica os coarguidos como pertencentes ao mesmo grupo, afirmando não conhecer nenhum deles. Neste período, o arguido teve novos confrontos com o Sistema de Administração da Justiça Penal por crimes de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado em penas não privativas de liberdade com acompanhamento por estes serviços.

Segundo o arguido, a relação amorosa que mantinha com HH terminou recentemente, pelo que o seu projeto de vida passa por retomar a coabitação com o padrinho, de quem continua a receber apoio limitado ao enquadramento habitacional, uma vez que se mostra crítico e agastado quanto ao percurso de vida de AA e as oportunidades dadas e não aproveitadas.

AA deu entrada no Estabelecimento Prisional ... em .../02/2022, à ordem dos presentes autos. Tem outras condenações em penas não privativas de liberdade, por crimes de condução sem habilitação legal, com acompanhamento por estes serviços e perante os quais tem vindo a demonstrar global adesão.

Relativamente à tipologia criminal em apreço, AA afirmou reconhecer a sua ilicitude e censurabilidade, bem como identificar eventuais vítimas, em discurso de aparente consonância com a desejabilidade social. Considera a atual situação jurídico-penal como uma desilusão/fracasso pessoal e que contraria os seus objetivos, que passam por enveredar por umestilo de vida normativo e pró-social.

Em meio prisional, tem mantido um comportamento ajustado ao normativo institucional vigente. Esteve inscrito para frequentar o 3º ciclo do ensino básico, no ano letivo 2021/2022, mas acabou por ser excluído por falta de assiduidade e, atualmente, está a aguardar colocação laboral.

Relativamente à problemática aditiva, refere estado abstémico e, embora não tenha requerido nenhum acompanhamento especializado, está sinalizado para consultas de psiquiatria e/ou psicologia.

AA não recebe visitas desde que terminou o relacionamento com HH.

O padrinho afirma não o visitar como forma de o punir/castigar.

Da trajetória vivencial de AA salienta-se a inserção em contextos familiares disfuncionais até ser entregue aos cuidados da avó materna, que se constituiu figura de vinculação afetiva de referência, bem como o companheiro desta, que intitula de padrinho. A adoção de comportamentos disruptivos iniciados na pré-adolescência conduziram-no à aplicação de medidas de acolhimento e institucionalização até à maioridade, incluindo em comunidade terapêutica para tratamento à problemática aditiva. Após o regresso ao agregado familiar, manteve atitude de desrespeito pelas normas e associação a grupo de pares transgressivo, condições que estiveram na origem dos diferentes confrontos com o Sistema de Administração da Justiça Penal e condenações em penas privativas e não privativas de liberdade. Não apresenta experiência profissional significativa.

Em meio livre, dispõe do apoio limitado do seu padrinho, viúvo da avó materna, elemento que, não obstante se mostre agastado pelo percurso de vida desviante do arguido, lhe faculta apenas enquadramento habitacional.

O processo de reinserção social de AA estará dependente da devida interiorização da ilicitude dos factos praticados e da reflexão sobre os danos causados a terceiros. A adesão a acompanhamento especializado no âmbito da problemática aditiva e a estruturação do seu quotidiano em torno de uma atividade laboral, serão, também, áreas a intervir com vista à orientação do seu estilo de vida de acordo com as normas sociais e jurídicas vigentes.

(…)

2.1.3. Constantes das contestações:

2.1.3.1. Do arguido AA:

50 - O arguido AA assumiu uma postura colaborante em sede de 1ª interrogatório judicial.

51 - O arguido era um "mero empregado".

52 – À data dos factos, o arguido estava desempregado, passando dificuldades económicas e mantinha hábitos de consumo de estupefacientes.

53 - Encontra-se integrado em termos familiares.

54 - É de condição sócio-económica modesta.

55 - Regista comportamento ajustado no E.P.

(…)


*


2.1.4. Resultante da audiência de discussão e julgamento:

50 – Em sede de audiência de audiência de discussão e julgamento o arguido AA confessou a quase totalidade dos factos que lhe são imputados na acusação pública e pediu desculpas aos consumidores de estupefacientes e respectivas famílias.

(…)


*


2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:

Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação e/ou das contestações e, designadamente, que:

a) O supra referido em 7. dos factos provados tivesse sucedido a partir de 8-2-2022 e de comum acordo e na concretização de um plano que, para essa finalidade, o arguido AA previamente gizou com o arguido FF e a que os arguidos II, JJ, KK e LL aderiram, actuando todos em conjunto e mediante divisão de tarefas.

b) Tivessem sido os arguidos FF e AA a decidir tomar posse do referido imóvel supra referido em 8. dos factos provados a fim de ali estabelecerem um ponto de venda do estupefaciente a consumidores que ali se dirigissem.

c) Tivessem sido os arguidos FF e AA quem gizou previamente o plano supra referido em 9. dos factos provados.

d) Os arguidos FF e AA tivessem estabelecido acordo com os arguidos II e JJ, que àquele aderiram, no sentido de estes se manterem à porta do referido imóvel sito na Rua ..., nº 481, ..., para efeitos do supra referido em 10. dos factos provados.

e) De acordo com o plano previamente traçado pelos arguidos FF e AA, e ao qual já haviam aderido os arguidos II e JJ, os mesmos estabeleceram acordo com os arguidos KK e LL, que àquele aderiram, no sentido de ocuparem pontos estratégicos do bairro, mais afastados do referido imóvel sito na Rua ..., n.º 481, para efeitos do supra referido em 11. Dos factos provados.

f) Tivessem sido os arguidos FF e AA, com a intervenção de um grupo de colaboradores não identificado, mas integrado, pelo menos, com os arguidos II e JJ, quem executou o supra descrito em 10., 11. e 12. dos factos provados.

g) Tivessem sido os arguidos FF e AA, com a intervenção de um grupo de colaboradores não identificado, mas integrado, pelo menos, pelos arguidos II e JJ, a adquirir a fritadeira eléctrica supra descrita em 13. Dos factos provados.

h) O supra referido em 14. dos factos provados tivesse sucedido, pelo menos, a partir do dia 8-2-2022 e que os arguidos AA e FF adquirissem a cocaína e heroína aí mencionada.

i) O supra referido em 15. dos factos provados tivesse sucedido de acordo com um plano previamente traçado.

j) Os arguidos II e JJ, de acordo com plano previamente traçado, assumiram as suas posições junto à porta de entrada frontal do referido prédio da Rua ..., nº 481, ..., prontos a receber e encaminhar consumidores que ali se dirigissem e sempre atentos a eventuais avisos de chegada da polícia que lhes fossem feitos pelos arguidos KK ou LL.

k) Sempre de acordo com plano previamente traçado, os arguidos KK e LL assumiram posições estratégicas previamente definidas nas imediações do local, sempre atentos à eventual chegada das autoridades policiais.

l) Os consumidores supra referidos em 16. e 17. dos factos provados tivessem sido organizados em linha e encaminhados à mencionada janela da fachada lateral esquerda do referido prédio pelos arguidos II e JJ.

m) Nas circunstâncias supra descritas em 18. dos factos provados tivessem sido os arguidos KK e LL, que então se encontravam em diferentes posições estratégicas da Rua ..., quem gritou a expressão “água à civil”, código verbal previamente definido com os demais arguidos.

n) Nas circunstâncias supra descritas em 19. dos factos provados, os arguidos II e JJ, tivessem gritado a expressão “água à civil”, código verbal previamente definido com os demais arguidos.

o) Nas circunstâncias supra descritas em 25. e 26. dos factos provados tivesse sido o arguido FF a obstruir a entrada da polícia.

p) O referido supra em 31. dos factos provados tivesse sido efectuado na concretização de acordo estabelecido pelos os arguidos AA e FF para tal finalidade.

q) Bem sabiam arguidos II, JJ, KK e LL da natureza, quantidade e características estupefacientes da heroína e cocaína que foram vendendo e que tinham em seu poder para essa finalidade.

r) Bem sabiam os arguidos II, JJ, KK e LL que não poderiam comprar, deter, transportar, colocar à venda ou vender, ceder ou proporcionar tais substâncias estupefacientes, para que fossem consumidas por terceiros.

s) Os arguidos II, JJ, KK e LL quiseram agir e sabiam que procediam de acordo com plano previamente gizado pelos arguidos AA e FF, a que aqueles aderiram de modo concertado, tendo todos actuado de comum acordo, em conjunto e mediante repartição de tarefas, todas essenciais para a prossecução da actividade de venda de cocaína e heroína, que era o desígnio de todos, agindo os arguidos II, JJ, KK e LL com o propósito, concretizado, de procederem à venda de tais substâncias e obter e repartir os respectivos lucros.

t) Os arguidos AA e FF tivessem actuado em conjunto e mediante repartição de tarefas, agindo com o propósito, concretizado, de obter e repartir entre si os lucros da venda de tais substâncias.

u) Os arguidos II, JJ, KK e LL actuaram por si, com intervenção directa no processo de venda dos estupefacientes, conjuntamente e com divisão de funções, agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com o que atentaram contra a saúde pública.

v) O arguido AA se mantenha abstinente do consumo de drogas no E.P.;

w) À data dos factos, o arguido FF mantivesse hábitos de consumo de estupefacientes.

Direito

10. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisado o recurso do arguido/recorrente, verifica-se que as questões que coloca relacionam-se, por um lado, com uma alegada errada interpretação na subsunção dos factos ao direito (na perspetiva do recorrente os factos respetivos dados como provados integram a prática de um crime de tráfico de menor gravidade previsto no art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22.01 pelo qual foi condenado na 1ª instância, e não o previsto no artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, pelo qual foi condenado na Relação) e, por outro lado, sem prescindir, com a medida da pena aplicada (pretendendo que seja reduzida para pena não superior a 5 anos de prisão, mantendo-se a qualificação pelo crime do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93).

Vamos então analisar as questões suscitadas pelo recorrente, tendo presente que, tal como resulta do texto da decisão recorrida, não ocorrendo quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do art. 410º, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual nessa parte se mostra devidamente sustentada e fundamentada.

Pois bem.

1ª questão (enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados)

Consta do acórdão impugnado o seguinte quanto a esta questão colocada pelo recorrente:

Conforme acima se referiu, a única questão colocada pelo recorrente e que importa apreciar e decidir neste Tribunal de Recurso, é o saber se a subsunção jurídica efetuada pelo Tribunal recorrido se revela apropriada.

Ao contrário do entendimento do recorrente, entendeu o Tribunal recorrido que os arguidos AA e FF cometerem um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelos artigos 21º e 25º do DL 15/93 de 22 de janeiro, pugnando o recorrente pela tipificação da conduta de ambos os arguidos como o cometimento de um crime de trafico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do diploma acima referido.

Importa assim, e antes de ser apreciada a questão, atentar na fundamentação que consta do acórdão recorrido relativamente à sua decisão de direito, mais precisamente quanto ao enquadramento jurídico do comportamento dos arguidos.

Vejamos então:

“Dispõe o citado artigo 21º, nº1 do DL nº15/93, de 22/01: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”.

Este artigo contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes. Tal descrição da factualidade típica é levada a cabo de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro, solução ditada pela necessidade de dar alguma eficácia ao combate a um problema social de contornos complexos, multifacetados e de difícil mapeamento em todos as suas manifestações. De facto, resulta tipificado como crime, praticamente, qualquer contacto ou actividade relacionada com as substâncias nele mencionadas – por remissão para as tabelas anexas ao referido decreto-lei –, que não estejam expressamente salvaguardados como legais, de entre as quais se destacam, por mais frequentes, a detenção, o transporte, a venda e a cedência a outrem das ditas substâncias.

De notar que, para que o tipo objectivo se preencha, basta a mera detenção ilícita daquelas substâncias estupefacientes, desde que não seja para exclusivo consumo pessoal, não sendo, pois, necessário que a detenção se destine a posterior venda.

O crime de tráfico de estupefacientes (em qualquer das suas modalidades) é um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, mas reconduzidos à saúde pública. E é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo para um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a esses bens.

O tipo subjectivo exige o dolo, numa das formas previstas no artigo 14º do Código Penal.

A par do tipo essencial atrás descrito, o legislador criou um tipo qualificado do mesmo crime (artigo 24º do decreto-lei em referência) e um tipo privilegiado (artigo 25º do decreto- lei em referência). Quer dizer, só depois de se verificar o preenchimento dos elementos típicos descritos na norma incriminadora do artigo 21º é que se deverá apurar a possibilidade de aplicação ou não dos artigos 24º ou 25º. Por outro lado, há que ter presente que o artigo 21º estabelece uma ilicitude padrão, contraposta a ilicitudes mais marcadamente intensas ou consideravelmente diminuídas que são as das previsões dos artigos 24º e 25º, respectivamente.

Para o crime de “tráfico de menor gravidade”, dispõe o artigo 25º do DL nº15/93, de 22/01, que: “Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”.

O único elemento distintivo do tipo privilegiado, por comparação com o tipo essencial, é a existência de uma ilicitude consideravelmente diminuída.

O tipo privilegiado, previsto no artigo 25º, constitui uma “válvula de segurança do sistema”, destinado a evitar que se parifiquem os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo, evitando-se que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial. Note-se, no entanto, que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”.

A lei, ainda no artigo 25º, indica, de forma não taxativa, determinadas circunstâncias para serem instrumentalmente consideradas pelo aplicador – individualmente ou em conjugação – na aferição das condutas em análise à luz dos elementos em causa: os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações; mas, ainda aqui, sem outras referências de concretização, notando-se que os conceitos em presença podem ser “densificados”, segundo critérios variáveis, no seu inter-relacionamento.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a ensaiar um esforço metodológico disciplinador da determinação em concreto dos casos de ilicitude do facto consideravelmente atenuada. É paradigma dessa intervenção o acórdão do STJ de 23/11/2011, retomado, nos princípios que enunciou, pelo acórdão do STJ de 05/01/2012, sendo que o primeiro dos referidos acórdãos declara que “o agente do crime de tráfico de menor gravidade deve estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:

a) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);

b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;

c) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;

d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas;

e) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;

f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;

g) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;

h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”.

Sem embargo deste esforço de identificação de critérios mais ou menos gerais e abstractos, sempre o aplicador do direito deve ter presente o caso concreto e, perante o caso concreto, deverá procurar apreender a imagem global dos factos. Esta ideia de imagem global do facto tem sido sistematicamente utilizada na jurisprudência para estabelecer o quadro compreensivo do resultado da aplicação atomizada dos itens de ponderação aqui em causa, evitando que o somatório acrítico de tais operações parcelares resulte numa distorção da realidade global e corrigindo-a quando seja o caso.

No caso dos autos, vista a factualidade acima descrita, é manifesto não poder atribuir-se aos arguidos II, JJ, KK e LL a prática do ilícito criminal de que vêm acusados posto não se ter demonstrado que os mesmos tenham intervindo, por qualquer forma, na actividade de venda de produtos estupefacientes em causa nos autos; impondo-se, consequentemente, a respectiva absolvição.

Já a actuação dos arguidos AA e FF integra a prática de um crime de tráfico de estupefacientes posto resultar demonstrado que o arguido AA se dedica à venda de estupefacientes, a troco do recebimento de quantias monetárias, desde pelo menos 14-11-2021, comunicando com fornecedores e consumidores de estupefacientes, por sms e através das aplicações “Messenger” e “WhatsApp”, a fim de articular e combinar a compra e venda de tais substâncias e produtos.

Mais se apurou que, desde as datas de 16/02/2022 e de 17/02/2022, respectivamente, que os arguidos AA e FF procediam à venda de produtos estupefacientes, heroína e cocaína, num prédio sito na Rua ..., nº481, ..., a consumidores que ali se dirigissem. O arguido AA, no período compreendido entre os dias 16/02/2022 e 17/02//2022, e o arguido FF no dia 17/02//2022, passaram a obter a entrega de cocaína e heroína a indivíduos e em circunstâncias não concretamente apuradas e, subsequentemente, a vender, numa base diária, doses individuais dos referidos estupefacientes a grande número de consumidores que para o efeito os abordassem naquele local.

No dia 17-2-2022, pelos menos desde as 09:00h, os arguidos FF e AA assumiram as suas posições no interior do referido prédio da Rua ..., nº481, ..., prontos a proceder à venda de doses individuais de cocaína e heroína, em troca de quantia monetária não concretamente apurada, paga em numerário pelos consumidores que se dirigissem à janela da fachada lateral esquerda do prédio, onde eram atendidos a partir do interior através de uma pequena abertura em forma de postigo, de pequenas dimensões, recortada na placa metálica de reforço interior previamente instalada.

No período compreendido entre as 09:20h e as 10:55h do dia 17-2-2022, várias dezenas de consumidores e toxicodependentes, chegados às imediações do local, encaminharam-se à mencionada janela da fachada lateral esquerda do referido prédio, onde, a troco de quantia monetária não concretamente apurada, obtiveram das mãos dos arguidos FF e AA doses individuais de cocaína e heroína em quantidades também não concretamente apuradas.

Naquele dia, apercebendo-se da chegada da Polícia ao local, os arguidos FF e AA, de imediato, fizeram descer a chapa metálica que encerra o mencionado postigo destinada à venda de estupefacientes, fechando igualmente a respectiva persiana exterior. De seguida, a fim de evitar a possível apreensão do estupefaciente que ali mantinham e que ainda não haviam vendido, os arguidos FF e AA, de imediato, colocaram o grosso do estupefaciente que detinham no interior da rede metálica duma fritadeira eléctrica ali previamente colocada, constatando, só então, que se haviam esquecido de a manter ligada, sendo que o óleo ali colocado se mantinha à temperatura ambiente.

Entretanto, tendo ligado a referida fritadeira eléctrica, mas ciente que o pouco tempo decorrido não possibilitava a fervura do respectivo óleo, ao deparar-se com a entrada das forças policiais, o arguido AA deu um passo em frente obstruindo a entrada na respectiva dependência do imóvel onde se encontrava o arguido FF a operar a mencionada fritadeira, de molde a atrasar ainda mais o acesso da polícia ao referido produto estupefaciente. Ainda assim, os elementos da Polícia de Segurança Pública venceram a descrita oposição física do arguido AA e, de imediato, lograram extrair a grelha contendo estupefaciente, do interior da mencionada fritadeira cujo óleo não tinha ainda atingido temperatura de relevo, evitando assim a destruição daquelas substâncias.

Nas descritas circunstâncias, o arguido FF tinha em sua posse: um telemóvel e o arguido AA tinha em sua posse dois telemóveis e a quantia monetária de € 66,40.

Nas apontadas circunstâncias, no interior do referido imóvel, então na esfera do domínio dos arguidos FF e AA, os mesmos tinham em seu poder a quantia monetária de € 534,60; a quantia monetária de € 139,14; uma máquina “Electronic Coin Sorter”, destinada à escolha e contagem de moedas; 2,202 gr de heroína em pó, divididas em 19 embalagens, com um grau de pureza de 18,6 %, correspondentes a 4 doses; 140,173 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 34 %, correspondentes a 238 doses; 79,362 gr de heroína em pó, divididas em 458 embalagens, com um grau de pureza de 17,2 %, correspondentes a 136 doses; 30,552 gr de heroína em pó, divididas em 133 embalagens, com um grau de pureza de 12,5 %, correspondentes a 38 doses; 3,624 gr de heroína em pó, divididas em 32 embalagens, com um grau de pureza de 22,5%, correspondentes a 8 doses; 4,138 gr de heroína em pó, divididas em 35 embalagens, com um grau de pureza de 17,8 %, correspondentes a 7 doses; 8,584 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 37,4 %, correspondente a 16 doses; 7,336 gr de cocaína (cloridrato) em pó, com um grau de pureza de 36,6 %, correspondentes a 13 doses; 39,913 gr de cocaína (cloridrato), constituídas por diversos pedaços, com um grau de pureza de 36,4 %, correspondente a 72 doses, tudo no total de 315,884 gr destes dois tipos de estupefacientes, equivalente a 532 doses de heroína e cocaína (cloridrato). Junto da fritadeira eléctrica estavam dois manuscritos alusivos a quantidades de estupefacientes e a valores monetários e uma factura datada de 08/02/2022, emitida pela “C.... ......”, referente à fritadeira eléctrica.

A totalidade das substâncias estupefacientes que os arguidos AA e FF tinham em seu poder destinavam-se a ser vendidas pela forma descrita e todas as quantias monetárias encontradas em poder dos mesmos resultaram exclusivamente das vendas de estupefacientes, sendo que os objectos e equipamentos acima descritos destinavam-se à utilização e foram utilizados na actividade de venda de estupefacientes.

Mais ficou demonstrado que os arguidos AA e FF sabiam da natureza, quantidade e características estupefacientes da heroína e cocaína que foram vendendo e que tinham em seu poder para essa finalidade; bem sabendo, igualmente, que não poderiam comprar, deter, transportar, colocar à venda ou vender, ceder ou proporcionar tais substâncias estupefacientes para que fossem consumidas por terceiros e não obstante, os mesmos quiseram agir e sabiam que procediam da forma descrita, na prossecução da actividade de venda de cocaína e heroína, que era o desígnio de ambos, agindo com o propósito, concretizado, de procederem à venda de tais substâncias.

Os arguidos AA e FF actuaram por si, com intervenção directa no processo de venda dos estupefacientes, agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com o que atentaram contra a saúde pública.

Mostram-se, pois, perfectibilizados os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de ilícito de tráfico de estupefacientes imputado aos arguidos AA e FF.

Resta averiguar se está em causa o tipo essencial ou o tipo privilegiado.

Ora, os factos apurados referem-se a uma actuação do arguido AA limitada ao período de tempo de Novembro de 2021 a Fevereiro de 2022 (com maior intensidade a partir de 16 de Fevereiro). Já a actuação do arguido FF se limitou a um único dia (o dia 17 de Fevereiro de 2022), não vindo apurados (nem imputados na acusação pública) quaisquer outros episódios do género relacionados com aqueles arguidos.

Por outro lado, se é certo que os aludidos arguidos vendiam a terceiros produtos estupefacientes no interior do sobredito imóvel da Rua ..., não é menos certo que nada vem apurado no sentido de serem os arguidos AA e FF os “donos do negócio” que se desenvolvia naquele local; ao invés, aquilo que se apurou foi que os mesmos foram “recrutados” e “contratados” para venderam aquelas substâncias estupefacientes por conta doutrem, como meros “empregados”.

Acresce não se ter provado qualquer plano eventualmente estabelecido entre os arguidos AA e FF e/ou entre estes e terceiros para procederem à venda da droga nas circunstâncias descritas e repartirem entre si os respectivos lucros. Veja-se, ademais, que à data dos factos o arguido AA era consumidor de drogas e ambos os arguidos, AA e FF, são de condição económica modesta, não sendo assim irrazoável supor que os mesmos tivessem aceitado realizar aquele “trabalho” em troca de algum dinheiro e um pouco de produto estupefaciente (este, para o arguido AA)

Também não se provou que tivessem sido os arguidos AA e FF a reforçarem e blindarem mecanicamente os acessos ao sobredito imóvel de venda de droga com vista a dificultar ou atrasar o acesso das forças policiais aos produtos estupefacientes que ali se vendiam, nem que tivessem sido eles a adquirir e ali instalar a fritadeira eléctrica para a destruição dos produtos estupefacientes, nem a máquina de escolher e contar moedas.

E não se provou, igualmente, que as substâncias estupefacientes apreendidas (heroína e cocaína) tivessem sido adquiridas pelos arguidos AA e FF, antes resultando que os mesmos se limitavam a vender tais substâncias, fornecidas por terceiros, como meros “empregados”.

Atente-se, ademais, na falta de “experiência” e “desenvoltura” evidenciadas pelos arguidos AA e FF ao terem-se esquecido de ligar a fritadeira eléctrica para destruição da droga.

A actividade de venda de produtos estupefacientes levada a cabo pelos arguidos AA e FF nas descritas circunstâncias não assumiu, pois, uma dimensão indiciadora duma actividade de tráfico organizada, sofisticada, duradoura e levada a cabo numa área geográfica abrangente.

Donde, a avaliação global da situação de facto permite concluir que tal actividade integra o tráfico de menor gravidade, podendo ser afirmada a existência de um caso de ilicitude consideravelmente diminuída.

Tudo ponderado, considera-se que os arguidos AA e FF cometeram um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25º do DL nº 15/93, de 22/01.”

Conforme resulta da fundamentação acabada de transcrever, entendeu o Tribunal estar perante um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo para tanto enquadrado todo o comportamento dos arguidos de molde a que ficasse demonstrada a sua ilicitude consideravelmente diminuída.

A noção de ilicitude consideravelmente diminuída haverá de ser concretizada mediante a ponderação dos meios utilizados, as circunstâncias da ação, e a qualidade ou a quantidade das plantas substâncias ou preparações dos produtos estupefacientes – cfr. artigo 25º do DL 15/93 de 22 de janeiro.

No caso dos autos, entendeu o Tribunal, entre outras circunstâncias, que os arguidos e transcreve-se, não eram “os “donos do negócio” que se desenvolvia naquele local; ao invés, aquilo que se apurou foi que os mesmos foram “recrutados” e “contratados” para venderam aquelas substâncias estupefacientes por conta doutrem, como meros “empregados”.

Com o devido respeito, dos factos assentes pelo Tribunal não resulta com evidência tais circunstâncias, e, se é certo que foi dado como assente que o arguido AA era um “mero empregado” em resultado da sua contestação, nada é referido quanto ao arguido FF, pelo que não se entende a abrangência agora feita.

O ter sido dado como provado que o arguido AA era “um mero empregado”, não tem o alcance de esvaziar a factualidade que foi assente sob os pontos 1 (“desde pelo menos 14-11-2021 que o arguido AA se dedica à venda de estupefacientes, a troco do recebimento de quantias monetárias), ponto 2 ( “a partir dessa data, o arguido AA utilizou o telemóvel (…) para comunicar com fornecedores e consumidores de estupefacientes, por sms e através das aplicações “Messenger” e “WhatsApp”, a fim de articular e combinar a compra e venda de tais substâncias e produtos”), ponto 7 ( “a partir de 16/02/2022 o arguido AA intensificou a actividade de venda directa de estupefacientes a consumidores, designadamente de cocaína e heroína”), ponto 8 (desde as datas de 16/02/2022 e de 17/02/2022, respectivamente, que os arguidos AA e FF procediam à venda de estupefaciente num prédio sito na Rua ..., nº481, ..., que se encontrava desabitado, devoluto e abandonado, a consumidores que ali se dirigissem”), ponto 14 ( “o arguido AA, no período compreendido entre os dias 16/02/2022 e 17/02//2022, e o arguido FF no dia 17/02//2022, passaram a obter a entrega de cocaína e heroína a indivíduos e em circunstâncias não concretamente apuradas e, subsequentemente, a vender, numa base diária, doses individuais dos referidos estupefacientes a grande número de consumidores que para o efeito os abordassem naquele local”), ponto 15 (“no dia 17-2-2022, pelos menos desde as 09:00h, os arguidos FF e AA assumiram as suas posições no interior do referido prédio da Rua ..., nº481, ..., prontos a proceder à venda de doses individuais de cocaína e heroína, em troca de quantia monetária não concretamente apurada, paga em numerário pelos consumidores que se dirigissem à janela da fachada lateral esquerda do prédio, onde eram atendidos a partir do interior através de uma pequena abertura em forma de postigo, de pequenas dimensões, recortada na placa metálica de reforço interior previamente instalada”), Ponto 16 ( “iniciado o período de venda de produtos estupefacientes, pelas 09:20h do dia 17-2-2022, formou-se uma fila de, pelo menos, duas dezenas de consumidores, não concretamente identificados, na intercepção da Rua Cidade ..., a escassos metros do referido prédio da Rua ..., nº481, ...”), ponto 17 (“no período compreendido entre as 09:20h e as 10:55h do dia 17-2-2022, várias dezenas de consumidores e toxicodependentes, chegados às imediações do local, encaminharam-se à mencionada janela da fachada lateral esquerda do referido prédio, onde, a troco de quantia monetária não concretamente apurada, obtiveram das mãos dos arguidos FF e AA doses individuais de cocaína e heroína em quantidades também não concretamente apuradas”), ponto 20 (“nesse momento, ouvindo a expressão “água à civil”, os arguidos FF e AA, de imediato, fizeram descer a chapa metálica que encerra o mencionado postigo destinada à venda de estupefacientes, fechando igualmente a respectiva persiana exterior”) ponto 21 (“de seguida, a fim de evitar a possível apreensão do estupefaciente que ali mantinham e que ainda não haviam vendido, os arguidos FF e AA, de imediato, colocaram o grosso do estupefaciente que detinham no interior da rede metálica que compõe a fritadeira eléctrica acima descrita, constatando, só então, que se haviam esquecido de manter ligada a referida fritadeira, sendo que o óleo que ali mantinham colocado se mantinha à temperatura ambiente”), ponto 25 (“Entretanto, tendo ligado a referida fritadeira eléctrica, mas ciente que o pouco tempo decorrido não possibilitava a fervura do respectivo óleo, ao deparar-se com a entrada das forças policiais, o arguido AA deu um passo em frente obstruindo a entrada na respectiva dependência do imóvel onde se encontrava o arguido FF a operar a mencionada fritadeira, de molde a atrasar ainda mais o acesso da polícia ao referido produto estupefaciente”), ponto 36 ( “ Não obstante disso bem saberem, os arguidos AA e FF quiseram agir e sabiam que procediam da forma descrita, na prossecução da actividade de venda de cocaína e heroína, que era o desígnio de ambos, agindo com o propósito, concretizado, de procederem à venda de tais substâncias”), ponto 37 (“os arguidos AA e FF actuaram por si, com intervenção directa no processo de venda dos estupefacientes, agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com o que atentaram contra a saúde pública”).

Ora, a relevância do arguido AA ser um “mero empregado”, não ressalta da restante factualidade assente como constituindo uma circunstância que nos permita considerar ter agido com ilicitude diminuída, pois, se assim fosse, todo quele que se dedicasse ao tráfico de estupefacientes e que não ocupasse o topo da hierarquia, agiria sempre com ilicitude diminuída, o que, convenhamos, seria uma conclusão sem assento legal.

Nada nos autos, para além da desgarrada e singular afirmação que o arguido AA era um “mero empregado”, nos permite concluir que desse facto nasceria uma ilicitude diminuída, sem mais circunstâncias provadas que nos permitissem ajuizar a sua determinação e vontade.

Repare-se que toda a factualidade assente e acima referida, nos colocam ambos os arguidos AA e FF a agir concertados num objetivo comum, desejado e pretendido por ambos, e que era tão somente o venderam a consumidores os produtos estupefacientes que adquiriram a indivíduos não identificados.

Também o local em que foram surpreendidos, fortemente blindado, digamos assim, não nos permite considerar que fosse um local “banal” e “usual” nesta atividade, sendo certo que é indiferente, para ajuizar da ilicitude dos arguidos, o saber se foram eles ou outros indivíduos não identificados que precederam às obras de “fortificação”, tão irrelevante como o saber se o soldado que dispara o canhão do veículo blindado que conduz, foi ele que o construiu ou não.

De igual forma, não deixa de surpreender, e assim afastar um juízo de ilicitude diminuída, o facto assente de mal se ter iniciado abertura do postigo da casa onde os arguidos se encontravam, terem-se formado longas filas de consumidores no local com vista a serem “atendidos” pelos arguidos, o que nos leva a concluir que essa atividade, naquele concreto postigo, era conhecida daqueles que procuravam substancias estupefacientes diariamente para o seu próprio consumo.

De igual forma, dificulta o juízo de uma ilicitude diminuída o facto de terem os arguidos sido surpreendidos com substâncias estupefacientes, identificadas como sendo heroína e cocaína, em quantidades que permitiriam 532 doses individuais.

A diminuição da ilicitude, haverá de ser encontrada e justificada, num quadro factual em que claramente se percebe o comportamento arcaico, impreparado, básico mesmo, do agente que age perante os produtos estupefacientes, que sabe serem proibidos, sem grandes elaborações intelectuais de ocultação e sem que o seu procedimento ou a qualidade dos mesmos, cause repercussão significativa no meio em que desenvolve essa sua atividade, no fundo e grosso modo, o chamado vendedor de rua, ocasional e quase despreocupado, quadro fáctico que não é possível recortar nestes autos.

Assim e com o devido respeito, entendemos, tal como o recorrente, que os factos assentes não permitem a sua subsunção à estatuição do artigo 25º do DL 15/93, mas sim à previsão e estatuição do artigo 21º desse mesmo diploma, pelo que importa agora determinar as penas concretas a que ficarão sujeitos os arguidos.

O crime cometido pelos arguidos é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos – cfr. artigo 21º nº 1 do DL 15/93 de 22 de janeiro.

Pois bem.

Argumenta o recorrente, em resumo, que, perante a factualidade provada, considerando o número reduzido de vendas que efetuou, o curto período de tempo em que desenvolveu a atividade de venda, sendo que, tal como o co-arguido (ao contrário do alegado na acusação), eram “meros empregados” dos verdadeiros donos do negócio, sendo o estupefaciente transacionado, entre Novembro e Fevereiro, haxixe (conforme pontos 1 a 6 dados como provados), ocorrendo a venda das chamadas “drogas duras”, por conta de terceiros, em 16 e 17.02.2022, devendo atender-se a que não foram identificados presumíveis compradores, bem como às quantias monetárias apreendidas, sendo que também ele próprio (recorrente) era dependente de drogas, estando a sua atividade delituosa ligada à necessidade de manter esse mesmo consumo, tudo revelando que a atividade desenvolvida por ambos os arguidos foi por conta de terceiros, em curto período de tempo, numa zona geográfica limitada, revertendo os lucros para os verdadeiros donos do negócio, tendo o recorrente, que é de condição sócio-económica modesta, confessado a quase totalidade dos factos em audiência de julgamento e pedido desculpa aos consumidores de estupefacientes e suas famílias, tudo evidencia que se tratou de “tráfico de rua” como meio de obter a subsistência diária, justificando, na sua imagem global, uma considerável diminuição da ilicitude, merecendo antes o enquadramento no tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL 15/93 e a pena de 4 anos de prisão, aplicada pela 1ª instância.

Vejamos.

Dispõe o nº 1 do art. 21º (tráfico e outras atividades ilícitas) do DL nº 15/93, de 22.1:

1. Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. (…)

Por seu turno, estabelece a alínea a) do art. 25º (tráfico de menor gravidade) do cit. DL 15/93:

Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; (…).

A heroína e a cocaína estão incluídas respetivamente nas tabelas I-A e I-B anexas ao referido diploma legal e a cannabis na tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.

Como sabido, o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime exaurido ou crime executido (também chamado delito de empreendimento no direito alemão) visto que fica perfeito com a comissão de um só ato gerador do resultado típico, admitindo uma aplicação unitária e unificadora da sua previsão aos diferentes atos múltiplos da mesma natureza praticados pelo agente, em virtude de tal previsão respeitar a um conceito genérico e abstrato.

Relativamente a estes crimes, os diversos atos constitutivos de infrações independentes e potencialmente autónomas podem, em diversas circunstâncias, ser tratadas como se constituíssem um só crime, por forma a que aqueles atos individuais fiquem consumidos e absorvidos por uma só realidade criminal.

Cada atuação do agente traduz-se na comissão do tipo criminal, mas o conjunto das múltiplas atuações do mesmo agente reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é tratada unificadamente pela lei e pela jurisprudência como correspondente a um só crime.

O STJ tem entendido que no crime de tráfico de estupefacientes deve ter-se em atenção a quantidade global traficada no período considerado como o dessa atividade2.

Para além disso tem defendido que, no crime de tráfico de estupefacientes, para se concluir no sentido de que a ilicitude do facto, para efeito de integração da conduta no tráfico de menor gravidade, está consideravelmente diminuída, é necessário avaliar globalmente a conduta do agente e olhar a «imagem» do arguido que resulta da ponderação do conjunto de factos que são dados como provados.

Assim, tipo legal fundamental (ou tipo matricial) previsto no citado DL nº 15/93, é, entre outros, no que agora importa analisar, o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º.

E é a partir desse tipo fundamental que a lei, por um lado, edifica as circunstâncias agravantes (qualificando o tipo, nos casos indicados no artigo 24.º) e, por outro lado, «privilegia» o tipo fundamental, quando concebe «o preceito do art. 25.º como um mecanismo que funciona como “válvula de segurança” do sistema», com o fim de acautelar que «situações efetivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial».

No que respeita ao artigo 25.º do cit. DL 15/93, prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, «por referência à ilicitude pressuposta no art. 21.º, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com suscetibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada.»

Esse artigo 25.º, tem na sua base “o reconhecimento de que a intensidade das circunstâncias pertinentes à ilicitude do facto não encontra na moldura penal normal do art. 21.º, nº 1, pela sua gravidade diminuta, acolhimento justo, equitativo, proporcional»3.

Também o STJ tem sustentado que, «a conduta prevista no artigo 26.º [do mesmo diploma legal], embora envolvendo tráfico, refere-se, antes de tudo, à personalidade do agente e às suas motivações, o que justifica a epígrafe dirigida exatamente ao agente (traficante-consumidor) e não ao tráfico».

De todo o modo, convém ter presente, que no art. 21.º do DL 15/93, tanto se pode incluir o grande, como o médio, tal como o pequeno tráfico de estupefacientes, desde que, neste último caso, não exista um quadro de acentuada diminuição da ilicitude e, portanto, não esteja abrangido no art. 25.º do mesmo diploma legal4.

Daí que seja errada a dedução (implícita no recurso) de que não sendo o arguido um “grande traficante” não estaria incluído no art. 21.º, pressupondo, assim, que no referido tipo legal apenas caberiam os grandes traficantes ou os agentes que vendessem com uma certa organização, fazendo uso de meios sofisticados ou que só nele caberiam quem fosse “dono do negócio” de tráfico de estupefacientes (e, portanto, não podendo ser incluídos nesse preceito - art. 21.º - os “meros empregados”, ou aqueles que levassem a cabo a atividade delituosa, mesmo que igualmente dependessem do consumo de estupefacientes ou que desenvolvessem o chamado “tráfico de rua”, sem recurso a técnicas especiais ou estruturas ou organizações particulares).

Terá de ser caso a caso, perante a análise global da matéria de facto apurada, tendo em atenção os critérios legais, que poderá fazer-se a respetiva subsunção dos factos ao direito.

Ora, compulsando a matéria de facto dada como provada temos de concordar com a Relação quando concluiu estarem preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 23.01, pelo qual o recorrente foi condenado (ao contrário do que havia decidido a 1ª instância, quando enquadrara os factos apurados no crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no art. 25.º, al. a), do DL 15/93, de 23.01).

Com efeito, o arguido/recorrente, utilizou 2 telemóveis (referidos nos factos provados) para a atividade de venda de estupefacientes a que se dedicava a troco do recebimento de quantias monetárias desde pelo menos 14.11.2021, sendo que entre 16 e 17.02.2022 intensificou essa sua atividade de venda direta aos consumidores, designadamente, de heroína e cocaína, atuando em coautoria com o arguido FF, procedendo à venda de estupefacientes no prédio sito na Rua ..., n.º 481, ... (que se encontrava desabitado, devoluto e abandonado), aos consumidores que ali se deslocassem.

Precisamente no período entre 16 e 17.02.2022 passaram a obter a entrega de cocaína e heroína a indivíduos e em circunstâncias não concretamente apuradas e, subsequentemente, a vender, numa base diária, doses individuais dos referidos estupefacientes a grande número de consumidores que para o efeito os abordassem naquele local.

E, conforme se apurou, em 17-2-2022, pelos menos desde as 09:00h, os arguidos FF e AA assumiram as suas posições no interior do referido prédio da Rua ..., nº481, ..., prontos a proceder à venda de doses individuais de cocaína e heroína, em troca de quantia monetária não concretamente apurada, paga em numerário pelos consumidores que se dirigissem à janela da fachada lateral esquerda do prédio, onde eram atendidos a partir do interior através de uma pequena abertura em forma de postigo, de pequenas dimensões, recortada na placa metálica de reforço interior previamente instalada.

Assim, iniciado o período de venda de produtos estupefacientes, pelas 09:20h do dia 17-2-2022, formou-se uma fila de, pelo menos, duas dezenas de consumidores, não concretamente identificados, na interceção da Rua Cidade ..., a escassos metros do referido prédio da Rua ..., nº481, no Porto e, no período compreendido entre as 09:20h e as 10:55h desse dia 17-2-2022, várias dezenas de consumidores e toxicodependentes, chegados às imediações do local, encaminharam-se à mencionada janela da fachada lateral esquerda do referido prédio, onde, a troco de quantia monetária não concretamente apurada, obtiveram das mãos dos arguidos FF e AA doses individuais de cocaína e heroína em quantidades também não concretamente apuradas.

Essa atividade delituosa foi interrompida porque pelas 10:55h desse mesmo dia 17-2-2022, foi avistada a aproximação de elementos da Polícia de Segurança Pública, tendo indivíduos não concretamente identificados, em tom de voz alto e percetível, repetidamente gritado a expressão “água à civil”, referindo-se, de acordo com o léxico e código verbal previamente definido, a elementos policiais sem fardamento em aproximação ao local.

Foi devido à referida intervenção policial que vieram a ser apreendidos os estupefacientes, quantias monetárias e demais bens referidos nos factos provados, o que tudo sucedeu nos moldes aí referidos, acima descritos.

O montante total das quantias em dinheiro apreendidas (€66,40+€534,60+€139,14=), corresponde a € 740,14, era proveniente da venda de estupefacientes, demonstra bem o volume de vendas já realizado.

Os produtos estupefacientes apreendidos (heroína e cocaína) tinham no total um peso elevado (que ascendia a 315,884 gramas), correspondendo a 532 doses - sendo 339 doses de cocaína e 193 doses de heroína - o que mostra bem a elevada dimensão e volume do negócio que iriam desenvolver naquela casa, se não fosse a intervenção policial.

Por outro lado, a forma como o recorrente contactava os consumidores e os fornecedores dos estupefacientes, tal como ficou demonstrada (através de dois telemóveis), mostra também o cuidado com que atuava, para não ser detetado.

Também a utilização da fritadeira para esconder os estupefacientes e se desfazer deles, caso fossem intercetados (sendo irrelevante que, no caso, se tivessem esquecido de a ligar previamente), revela uma certa organização, assim como a própria utilização da casa sita na cidade do ... (portanto circunscrita àquela localização na Rua ...), com a venda feita pelo postigo, que dispunha de uma “chapa metálica” para o encerrar em caso de necessidade (a qual estava devoluta), evidencia o cuidado e sofisticação na venda, para não serem detetados facilmente pela policia.

Ora, sendo conhecida a elevada perigosidade e grande danosidade, desde logo, da cocaína e da heroína apreendidas e que as vendas foram significativas, quer considerando as quantias monetárias apreendidas, quer os estupefacientes destinados à venda, apreendidos, olhando para os factos apurados (tendo em atenção todas as possíveis perspetivas) é manifesto que é insustentável defender (como o faz o recorrente) que a respetiva conduta se poderia enquadrar no crime de tráfico de menor gravidade.

Perante a factualidade apurada (olhando para a imagem global dos factos apurados, as circunstâncias em que cometeu o crime em questão, diferente natureza dos estupefacientes destinados à venda, quantidade e qualidade de estupefacientes apreendidos em poder do arguido, destinados à venda, lucros obtidos com a venda de estupefacientes, modo de atuação e meios utilizados nessa atividade, que já revelam uma certa organização, período de tempo da sua atividade) é manifesto que não se pode concluir que exista uma acentuada diminuição da ilicitude.

Efetivamente, considerada na globalidade a sua atuação dolosa que ocorreu nos moldes apurados e, também olhando a «imagem» do arguido/recorrente (que resulta igualmente da ponderação do conjunto dos factos provados e do seu posicionamento perante a sua prática), podemos concluir que nada justifica a alteração da qualificação jurídico-penal feita pela Relação.

Considerando a forma (acima apontada) como cometeu o crime aqui em apreço é igualmente evidente que dos factos apurados relativos à situação pessoal, condição económica e sócio-cultural do recorrente - mesmo tendo ainda em atenção que mantinha hábitos de consumo de estupefacientes e que foi dado como provado que “era empregado” e que assumiu uma postura colaborante, em sede de 1º interrogatório, tendo confessado a quase totalidade dos factos que lhe eram imputados na acusação pública e pedido desculpas aos consumidores de estupefacientes e respetivas famílias - não se consegue concluir que fosse menor a ilicitude da sua conduta.

Por isso, não temos quaisquer dúvidas em enquadrar os factos apurados no tipo legal previsto no art. 21.º, n.º 1, do cit. DL n.º 15/93.

Ao contrário do que o recorrente afirma, nem sequer se extrai dos factos provados as deduções que retirou e fez constar da motivação de recurso no sentido da diminuição da gravidade da sua conduta (v.g. que a sua atividade delituosa estava ligada à necessidade de manter o seu consumo; que desenvolvia um tráfico de rua como meio de obter a subsistência diária; que por não ter ligado atempadamente a fritadeira se pudesse deduzir que o recorrente era inexperiente na atividade de tráfico de estupefacientes ou que não tivesse contactos com quem se dedicava a essa atividade; que as quantias em dinheiro apreendidas, acima aludidas, fossem para ser entregues a terceiros).

Igualmente a circunstância de não se ter apurado o nome dos consumidores a quem vendeu estupefacientes e, consequentemente, não ter sido feita qualquer apreensão do estupefaciente vendido, não diminuiu a gravidade da conduta do recorrente, acima assinalada.

Concordamos, pois, com a análise feita pela Relação.

Assim, quanto esta questão, improcede a argumentação do recorrente, sendo que certo não foram violadas as normas por ele citadas.

2ª questão (redução da pena concreta imposta)

Depois de, no acórdão impugnado se ter qualificada a conduta do arguido/recorrente como constituindo a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, escreveu-se na mesma decisão, sobre as consequências do crime, o seguinte:

O crime cometido pelos arguidos é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos – cfr. artigo 21º nº 1 do DL 15/93 de 22 de janeiro.

A fixação da medida concreta da pena envolve para o juiz, escreve Iesheck , in Derecho Penal , pág. 1192 , Vol. II , uma certa margem de liberdade individual , não podendo , no entanto , esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser , estruturalmente aplicação do direito , devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente , por força do que dispõe o art.º 40.º n.º 1 , do CP.

Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal deverá ter em atenção as funções de prevenção geral e especial das penas sem, contudo, perder de vista a culpa do agente (artigo 71º, nº 1 do Código Penal).

A medida da pena deverá constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente (artigo 71º, nº 2 do Código Penal).

Com efeito, hoje em dia, predominam as teorias relativas, as quais perspetivam as penas não como um fim em si mesmo (de retribuição ao agente do mal do crime – teorias absolutas), mas como um meio de prevenção criminal – prevenção geral positiva (de tutela da confiança na validade das normas, ligada à proteção de bens jurídicos, visando a restauração da paz jurídica) e de prevenção especial positiva (de inserção ou reinserção social do agente) (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 49 a 57). São as considerações de prevenção geral que justificam que se fale de uma moldura da pena, cujo limite máximo corresponderá ao ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, a pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas.

O limite mínimo da moldura corresponderá ao mínimo da pena que, em concreto, ainda protege com eficácia os bens jurídicos tutelados, o mínimo imprescindível a assegurar as expectativas de proteção da comunidade. A culpa funcionará como pressuposto e limite máximo inultrapassável da medida da pena, nos termos do disposto no artigo 40º, nº 2 do Código Penal – é o Princípio da Culpa, fundado nas exigências irrenunciáveis de respeito pela dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 25º da Constituição).

Para além disso, a pena, na sua execução, deverá sempre ter um carácter socializador e pedagógico (artigo 40º, 1, in fine do Código Penal).

A pena deverá, assim, constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente (artigo 71º, 2 do Código Penal).

Tal como referido no acórdão recorrido: “No caso em apreço e como é salientado por numerosa jurisprudência, o tráfico de estupefacientes, como tipo legal de crime, viola uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a saúde física e mental e a liberdade; acelera desmedidamente o aumento da criminalidade e põe em causa, perigosamente, a segurança e estabilidade social. Não podem, assim, os tribunais usar de excessiva brandura na punição dos crimes de tráfico de estupefacientes.”

No que respeita à culpabilidade dos arguidos, há que relevar a intensidade do dolo (direto) com que atuaram, sendo a ilicitude elevada, bem sabendo os arguidos que a sua atividade permitia levar produtos estupefacientes a um elevado número de consumidores.

O arguido AA, de 27 anos de idade, conta com vários antecedentes criminais, tendo já sofrido quatro condenações pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, sendo as duas últimas em penas de prisão efetiva.

No que concerne à personalidade do arguido AA, os factos expressam uma tendência para a prática de comportamentos desajustados, social e juridicamente, atentos os seus (já consideráveis) antecedentes criminais.

A integração familiar, social e laboral do arguido AA é a que resulta do respetivo Relatório Social: o seu percurso escolar foi marcado por dificuldades de aprendizagem, absentismo e comportamentos desajustados, bem como o início do consumo de substâncias estupefacientes (canábis), por volta dos 11/12 anos, que o conduziram a medidas de acolhimento em duas instituições, incluindo em comunidade terapêutica para tratamento à problemática aditiva.

Em contexto familiar manifestou dificuldades de adaptação às regras impostas, o que culminou na sua expulsão da residência, tendo-se associado a grupo de pares conotados com comportamentos desviantes e assumido um estilo de vida caracterizado pela adesão a rotinas de rua e que favoreceram a incursão em contextos de transgressão e delinquência, que o conduziram a vários contactos com o Sistema de Administração da Justiça Penal.

A nível profissional não apresenta experiências laborais estruturadas.

Em meio livre, reintegrou o agregado familiar do padrinho e, não obstante o apoio deste, manteve um estilo de vida desestruturado, sem ocupação formativa e/ou profissional definida, mantendo consumos regulares de substâncias estupefacientes (canábis), associando-se a grupo de pares com o mesmo comportamento.

Em meio prisional tem mantido um comportamento ajustado. Esteve inscrito para frequentar o 3º ciclo do ensino básico, no ano letivo 2021/2022, mas acabou por ser excluído por falta de assiduidade e, atualmente, está a aguardar colocação laboral.

O arguido AA, não recebe visitas no EP, sendo que o seu padrinho se mostra crítico e agastado quanto ao percurso de vida daquele e às oportunidades dadas e não aproveitadas, apesar de continuar disponível par o acolher na habitação.

A favor do arguido AA milita a circunstância de ter vindo a manter comportamento ajustado em meio prisional; ter confessado a quase totalidade dos factos que lhe são imputados e ter pedido desculpas aos consumidores de drogas e suas famílias.

(…)5

Destarte, sopesando todas estas circunstâncias, considera-se ajustada:

- a condenação do arguido AA na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão

(…)6

Vejamos então.

Subsidiariamente, argumenta o recorrente, em resumo, que o tribunal recorrido valorizou excessivamente os seus antecedentes criminais da mesma natureza, o último dos quais em prisão efetiva, que apontam para elevadas razões de prevenção especial, mas devem as mesmas ser mitigadas pelo seu comportamento posterior, designadamente após a detenção, que tem evoluído positivamente, procurando no EP manter-se abstinente e adquirir competências escolares para uma melhor reintegração profissional, manifestando, ainda, capacidade critica pelos atos cometidos e dispondo de enquadramento familiar, o que justifica que lhe seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão, assim devendo ser reduzida a pena aplicada, por ter sido violado o disposto nos arts. 40.º, 70.º e 71.º do CP.

Pois bem.

Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade7.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida8.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias9, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente10, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor11 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Uma vez determinada a pena concreta, pode ainda impor-se, consoante os casos, que o tribunal pondere se a deve substituir por outra pena, dentro do leque das respetivas penas de substituição previstas na lei.

Feitas estas resumidas considerações teóricas, importa apreciar a questão colocada pelo recorrente.

Como sabido a medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

Perante os factos apurados e o que deles se pode deduzir, como veremos, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pela Relação, quanto à determinação da medida da pena individual que foi imposta ao recorrente, acima já transcritas, considerando a moldura abstrata (pena de prisão de 4 anos a 12 anos) do crime de tráfico de estupefacientes por si cometido.

Assim, havia que considerar que o arguido/recorrente agiu com dolo (direto) e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada, que se prolongou no período e moldes referidos nos factos provados.

Como bem diz a Relação, quer considerando o seu modo de atuação, visto o circunstancialismo apurado e tendo em atenção, a diferente natureza (heroína e cocaína) e quantidade dos estupefacientes (339 embalagens de cocaína com o peso total liquido de 196,006 gramas e 193 doses de heroína com o peso total liquido de 119,879 gramas, que são dos piores por causarem maior danosidade, o que tudo perfaz 532 doses com o peso global de 315,884 gramas), que detinha e destinava à venda, bem como quantitativos obtidos com a venda de estupefacientes (total de € 740,14), é manifesto que é muito elevada a ilicitude da sua conduta, mostrando bem a sua indiferença pelos malefícios para a vida e para a saúde dos consumidores (independentemente de também ser consumidor de estupefacientes).

São também elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (genérica e primacialmente a saúde pública) no crime de tráfico de estupefacientes, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

Ou seja, ao contrário do alegado pelo recorrente, o grau de ilicitude dos factos foi muito elevado como acima se referiu, assim como são elevadas as razões de prevenção geral positiva.

A idade do arguido (nasceu em ... .10.1995) à data dos factos (tinha 26 anos de idade), revela dificuldades em levar uma vida conforme ao direito, como se extrai das várias condenações anteriores sofridas (que resultam do seu CRC), entre as quais 4 por crimes de tráfico de menor gravidade, sendo as duas últimas em prisão efetiva.

Ora, não obstante o que se apurou quanto às condições de vida, situação pessoal, familiar, social e económica do arguido, a verdade é que o recorrente mostra também uma personalidade adequada aos factos que cometeu.

Ao contrário do que alega o recorrente, não se vê que haja qualquer exagero na ponderação feita pelo Coletivo, nomeadamente, quanto ao seu comportamento anterior e, em particular relativamente aos seus antecedentes criminais.

O valor dado à confissão quase total dos factos e colaboração prestada anteriormente (inclusive na parte em que não podia negar, até perante as provas produzidas), não merece censura, assim como foi valorada, como devia ser, o seu pedido de desculpas aos consumidores de drogas e suas famílias.

De ponderar também, como foi feito na Relação, o seu comportamento no EP desde que está preso, de acordo com as regras da instituição, sendo certo que esteve inscrito no 3.º ciclo do ensino básico, ainda que tivesse sido excluído por faltas de assiduidade, mas atualmente está a aguardar colocação laboral, o que mostra preocupação de, no futuro, se inserir profissionalmente.

Também o manter-se abstinente do consumo de drogas é importante, sendo positivo estar sinalizado e ser depois acompanhado pelas consultas de psiquiatria e/ou psicologia, como referido nos factos provados, por poder promover a sua reintegração social e o ajudar a refletir sobre o desvalor da sua conduta e, bem assim, a adquirir capacidade crítica (podendo, assim, igualmente revelar alguma sensibilidade positiva à pena a aplicar, com reflexo favorável no juízo de prognose sobre a necessidade e a probabilidade da sua reinserção social).

O alegado pelo recorrente que extravasa o que se extrai dos factos dados como provados não pode ser atendido.

Assim, tudo ponderado, considerando o efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 5 anos e 6 meses de prisão que lhe foi imposta pela Relação, a qual favorece a sua reinserção social.

Na perspetiva do direito penal preventivo, a pena de prisão que lhe foi aplicada pela Relação mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à gravidade dos factos cometidos e carência de socialização do recorrente (evidenciada pela personalidade adequada aos factos que cometeu), satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade da norma incriminadora violada, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta pela Relação.

Improcede, pois, totalmente a argumentação do recorrente, não tendo sido violados os princípios e normas por ele citados.


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Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 22.11.2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Sénio Alves (Adjunto)


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1. Também foi condenado o arguido FF, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-A e I-B anexas àquele diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo período de 4 anos e 6 meses, sujeita a regime de prova.

2. Ver, entre outros, Ac. de 23/1/91, BMJ 403/161 e Ac. de 13/2/91, BMJ 404/188.

3. Assim, entre outros, Ac. STJ de 12.07.2000, BMJ n.º 499/117 ss. e Ac. STJ de 23.0302006, CJ Ac. do STJ 2006, I, 219 e 220.

4. Neste sentido, entre outros, acórdãos do STJ de 23.02.2005 e de 17.04.2008, relatados por Henriques Gaspar.

5. Já o arguido FF vive com a mãe e a avó, em contexto familiar coeso e solidário, que lhe prestam apoio.

  A nível laboral, desenvolve, desde maio deste ano, a atividade de assistente operacional, auferindo a remuneração líquida mensal de cerca de 800€.

  A nível social, integra-se em contextos informais de socialização associados à prática desportiva.

  O arguido FF tem 23 anos de idade (tinha 22 aquando da prática dos factos); não conta com antecedentes criminais; confessou a quase totalidade dos factos que lhe são imputados e demonstrou arrependimento.

6. Considera-se ajustada a condenação do arguido FF na pena de 4 (quatro) ano e 6 (seis) meses de prisão.

  Relativamente ao arguido FF, e tal como se referiu no acórdão recorrido, trata-se de um jovem de 23 anos, sem quaisquer antecedentes criminais, bem inserido a nível familiar, laboral e social.

  Assim, considerando que o arguido FF não tem averbado no seu registo criminal qualquer condenação e valorando o facto de o mesmo se encontrar bem inserido social e profissionalmente e beneficiar do apoio familiar, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro, justificando-se a suspensão da execução da pena 4 anos e 6 meses de prisão que agora lhe foi cominada.

  A fim de promover a reintegração do arguido FF na sociedade, entende-se conveniente e adequado acompanhar a suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova, nos termos do preceituado nos artigos 50º, nº2 e 53º, ambos do Código Penal.

  Quanto ao período da suspensão, a Lei nº 94/2017, de 23/08 revogou a regra da coincidência entre a duração da pena e o período de suspensão (com o mínimo de um ano), passando a vigorar o regime anterior, i.e., o tribunal fixa o período de suspensão entre um e cinco anos (cfr. artigo 50º, nº5 do CP). No caso dos autos não se vislumbra razão válida para não fazer coincidir o período de suspensão com a duração da pena.

  Assim, ao abrigo do disposto no artigo 50º, nºs 2 e 5 do CP, suspende-se a pena de prisão aplicada ao arguido FF pelo período de 4 anos e 6 meses, sujeita a regime de prova.

7. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

8. Neste sentido, v.g. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.

9. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

10. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

11. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.