Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
524/17.0PBCLD-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
INJUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
PRISÃO ILEGAL
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Os motivos de ilegalidade da prisão, como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

II. Tendo sido a prisão preventiva da arguida ordenada e mantida pela autoridade judiciária competente, por factos pelos quais a lei permite - indiciadores da prática de crime de violência doméstica, e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação, na fase atual do processo, não se encontra a requerente em situação de prisão ilegal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório


1. AA, de 44 anos de idade, arguida identificada nos autos do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., veio, nos termos do art. 222.º do CPP, requerer a providência de Habeas Corpus, alegando encontrar-se em situação de prisão ilegal, por se mostrar o despacho judicial que aplicou a prisão preventiva em violação da Lei.

A peticionante encontra-se em prisão preventiva, condenada, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão efetiva. pela prática de prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º1, alínea a), e n.º2, alíneas a) e b) do Código Penal, um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348º n.º2 do Código Penal, um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3º n.º1 da Lei do Cibercrime.

2. Apresentou os seguintes fundamentos: (transcrição)

“1 – A requerente no dia da leitura de sentença, nos autos em referência, no momento imediatamente a seguir à mesma, logo após a Digna Magistrada e a Digna Procuradora terem abandonado a sala de audiências,

2 – Mas, quando ainda se encontravam no seu interior, a Ilustre Colega da Parte contraria, uma Colega Estagiária, a Senhora Funcionária Judicial, e o seu ex-marido, esta, que tinha acabado de ser condenada pelo crime de violência doméstica, pelo crime de desobediência qualificada e pelo crime de falsidade informática, numa pena de 5 anos de prisão efetiva, (ainda não transitada em julgado), por factos circunstanciados em mensagens enviadas para o seu ex-marido, com publicações em várias redes sociais e frequência de programas de televisão onde soube expressar a sua vivência de violência doméstica,

3 - Naquele momento, diga-se, logo após a leitura da sentença, no momento em que ia a sair a porta da sala de audiências, em total desespero, descompensação emocional, a acrescer o facto de padecer de doença do foro psiquiátrico, em total stress, quando, por uma última vez olha para o seu ex-marido, teve a nítida sensação de que aquele se vangloriava com o resultado da sentença,

4 - O que fez com que não conseguisse controlar os seus impulsos, aproximou-se do seu ex-marido na tentativa de lhe desferir um estalo na cara, tendo-o atingido no ombro, que segundo esta, (de referir que a leitura de sentença ocorreu na Biblioteca do Tribunal de ...), onde todas as partes se encontram em grande proximidade, nomeadamente a arguida e o seu ex-marido.

5 – Por este facto, veio o seu ex-marido a apresentar queixa crime, bem como, a deu a conhecer aos presentes autos, motivando a Digna Magistrada a quo, no conhecimento dos mesmos, a proceder a despacho com vista à audição da arguida, para alteração da medida de coação a que a arguida tem estado sujeita TIR, o que veio a suceder.

6 – No dia 19 de Junho pelas 12:00horas, a requerente veio a ser ouvida e da audição da arguida resultou uma confissão sem reservas, a qual veio a expressar o que supra se mencionou, porém, a Digna Magistrada a quo entendeu que a medida de coação a aplicar deveria ser a mais gravosa, vindo a aplicar-lhe a medida de coação de prisão preventiva.

7 – A Digna Magistrada a quo entendeu verificar-se a existência de indícios suficientes da continuidade da prática de crime de violência doméstica e não considerou a possibilidade de estarmos perante um crime isolado de ofensas à integridade física simples, sustentando-se nas alíneas b) do n.º 1 do artigo 202.º do C.P.P.

8 – Salvo douto entendimento, a natureza do crime que ora faz subsumir a aplicação da medida de coação mais gravosa, com a privação da liberdade da arguida, é o de ofensas à integridade física simples, não podendo este concorrer com aquele outro de violência doméstica, já julgado e sentenciado, mas ainda em fase de recurso, o qual está a ser elaborado e dará entrada, quanto antes, com efeito suspensivo da decisão que lhe aplicou prisão efetiva por 5 anos.

9 - O princípio da presunção de inocência, que vem consagrado no art.º 32 nº 2 da Constituição da República Portuguesa, é elevado à garantia de direito fundamental, e constitui um verdadeiro princípio de prova, directamente vinculante para todas as autoridades e com projecção no processo penal em geral.

10 - A doutrina e jurisprudência apontam claramente no sentido de que, em processo penal, o princípio da presunção de inocência se aplica a todas as fases processuais, pelo que, a entender-se o contrário, seriam postergados todos os princípios fundamentais que constituem a consagração das garantias de defesa do arguido enunciados na Lei Fundamental, violando-se desta forma o disposto no nº 2 do artº 32° da Constituição.

11 – Inclusive no que respeita ao cariz de violência física, falamos de, segundo a arguida uma tentativa de atingir o assistente com um estalo, mas que o arguido refere ter sido um estalo, como resulta do auto da PSP no preciso momento, ainda que se vá pela pior das hipoteses, um estalo, factos ocorridos em momento de grande constrangimento, perplexidade, descontrolo, nunca em momento algum no processo de violência doméstica decorrido, se vislumbrou uma qualquer violência física gravosa, ou que a arguida tivesse procurado o assistente para o atingir na sua integridade física, as suas actuações revelavam-se ao nível das mensagens e do uso das várias redes sociais.

12 - Quanto às circunstâncias do crime – a arguida, uma mulher com pouco mais do que 1,50metros de altura, o ex-marido com cerca de 1,85 metros, a possibilidade de esta o atingir e ofender a sua integridade física era diminuta e esta soube esclarecer, ao confessar e pedir desculpa.

13 – Por outro lado, a arguida e o queixoso, seu ex-marido, há muito que não mantêm uma qualquer próximidade nas suas vivências diárias, residem distânciados, cerca de 300 Km, ele tem morada em ... e ela tem morada no ....

14 - A arguida nunca utilizou um qualquer meio de violência contra o arguido que não fossem as palavras, num momento de total descompensação emocional, acabada de ouvir uma sentença condenatória de 5 anos de prisão efetiva, com que não contava.

15 - Segundo a arguida, apenas o tentou agredir na face, ainda assim resulta da ocorrência descrita e narrada no momento, pelo queixoso e que consta do auto da PSP, que diverge da narração apresentada na queixa feita posteriormente, mas que a essa, a arguida terá a oportunidade de exercer o contraditório a seu tempo, pelo que, não se verifica uma qualquer possibilidade susceptível de provocar quaisquer consequências físicas ou emocionais devastadoras.

16 - De qualquer modo, sempre seria de se poder/dever aplicar a possíbilidade de imposição à arguida de outras medidas de coação, nomeadamente - medidas de não aproximação ao concelho de ..., lugar da residência do queixoso e até no concelho ..., lugar onde o seu ex-marido tem família, ou outras cumulativas a estas, nomeadamente com possibilidade de controlo à distância por meios eletrónicos, tantas outras que o nosso ordenamento jurídico permite.

17 - Mormente as circunstâncias, tenham sido as descritas, certo é que a Digna Magistrada a quo, optou por aplicar a medida de coação mais gravosa - a prisão preventiva, quando o tipo de crime em questão, segundo o assistente, foi uma ofensa à integridade física simples pp pelo artigo 143.º do C.P.P., a pena máxima a aplicar é a de prisão até três anos.

18 - Entende a arguida ter-lhe sido ordenada a prisão preventiva de forma ilegal pela Digna Magistrada do Tribunal Judicial da Comarca ....

19 - A arguida é primária, nunca antes teve uma qualquer condenação, nunca antes cometeu um qualquer ilícito, veio agora a ser condenada pelos crimes que infra se enunciam, decisão de que irá recorrer,

20 – A privação da sua liberdade – preventivamente trará imediatamente prejuízos irreparáveis na sua inserção social, nomeadamente porque a sua situação laboral ainda é precária, iniciaria na data da sua prisão um novo trabalho.

21 – Inexiste qualquer intenção de fuga, tanto para mais que notificada para comparecer no Tribunal ..., o fez pronta e atempadamente,

22 – O facto de ser primária e ausência de gravidade dos factos imputados e da possível natureza do crime não justificam a excessividade da medida de coação aplicada.

23 - O acto por si praticado e que segundo a Digna Magistrada a quo fundamenta a alteração da medida de coação, foi cometido em momento de grande perturbação, ansiedade, ao conhecer uma decisão de 5 anos de prisão efetiva, cometido por um impulso emocional terrível, de que muito se arrepende e o demonstrou na sua audição.

24 – Como se disse a arguida foi condenada nos presentes autos a:

a) Condenar a Arguida AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152° n.°1 alínea a) e n.°2 alíneas a) e b) do Código Penal na pena de quatro anos e oito meses de prisão;

b) Condenar a Arguida AA pela prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348° n.°2 do Código Penal, na pena de dezoito meses de prisão;

c) Condenar a Arguida AA pela prática de u crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3° n.°1 da Lei do Cibercrime na pena de nove meses de prisão;

Em cúmulo jurídico:

d) Condenar a Arguida AA, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão efetiva;

e) Condenar a Arguida na pena acessória de proibição de contactos com a vítima pelo período de cinco anos, nos termos do disposto no artigo 152° n.°4 do Código Penal;

f) Condenar a Arguida no pagamento ao Assistente BB de uma indemnização no valor de 12.500,00 €, acrescida de juros vincendos à taxa legal, desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.

g) Condenar a Arguida no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC's e no pagamento dos demais encargos a que a sua atividade houver dado lugar (artigo 514.°, n.° 1 C.P.P.);

25 - Veio agora a ser concretizada a medida de coação mais gravosa, prisão preventiva, com base em um novo circunstancialismo de facto, como se disse, um estalo, em que a medida da pena máxima é de três anos de prisão e até concorre com esta a possibilidade de ser aplicada uma pena de multa, e sabemos, que não admite a possibilidade de aplicação de medida de coação de prisão preventiva, por a sua moldura penal não ser superior a três anos, bem como o facto de a medida de coação de prisão preventiva ter natureza excecional.

26 - No que respeita aos novos factos, a arguida não teve ainda a oportunidade de se poder defender, será um processo que correrá a sua tramitação necessária e à arguida será permitido exercer o contraditório, para além de que, os presentes autos ainda aguardam recurso, sobre o qual a arguida tem a elevada esperança de que, pelo menos a pena de prisão lhe venha a ser suspensa.

Do Direito

27 - Sobressai da Constituição da República, no n.º 3 do artigo 27.º que a “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.

28 - Como se disse, o tipo de crime em causa é a integridade física, pp pelo artigo 143 do C.P.P. sobre o qual incorre uma pena de prisão até três anos, portanto, o seu limite máximo não é superior a três anos de prisão, nesse pressuposto não se verifica a possibilidade de privação da liberdade, ao caso a aplicação de prisão preventiva, ainda assim e caso não se entenda.

29 – A digna Magistrada a quo fez subsumir este ato isolado ao tipo de cri-me de violência doméstica, fundamentando a aplicação da medida de prisão preventivas pelo princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, plasmados no artigo 193.º do C.P.P., com a seguinte fundamentação:

“(…) a única medida de coação necessária adequada e proporcional às exigências cautelares é sem dúvida a prisão preventiva,

– é necessária na medida em que a arguida tem continuado a praticar crimes na pessoa do assistente, como resulta da sentença e da queixa e participação apresentada;

– é adequada na medida em que a proibição de contactos vigente não tem impedido a arguida de continuar a contactar o arguido como resulta dos factos supra citados na sentença condenatória não a impedindo certamente, atenta a sua personalidade, de procurar fisicamente para atentar contra a sua integridade física e,

– é proporcional por ter sido condenada em 5 anos de prisão efetiva, a violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta pp art.º 1.º alínea j) do C.P.P. E 202.º n.º 1 alínea b) e 204.º CPP, podendo aplicar-se esta medida de coação ao crime de violência doméstica.”

30 – Os fundamentação vertidos para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva não se verificam e por isso é ilegal, verifica-se mesmo um erro grosseiro de aplicação do direito, prisão por facto pela qual a lei a não admite.

31 – É absolutamente necessário contextualizar o acto que leva à aplicação desta medida de prisão preventiva, um estalo, naquele momento, como se disse, de verdadeira consternação, ter acabado de ser condenada em 5 anos de prisão efetiva, que não contava, foi totalmente surpreendida.

32 – Foi o próprio Tribunal, quem colocou a arguida e o Assistente numa proximidade de cerca de 2 metros de distância um do outro, ao proferir a leitura de sentença na Biblioteca do Tribunal Judicial ...,

33 – A arguida quando ia a sair da Biblioteca, após ter sido condenada a 5 anos de prisão efetiva, ao olhar uma ultima vez para o assistente, sentiu na cara daquele um ar de satisfação e gozo, que atenta a proximidade a que se encontrava, não foi capaz de controlar aquele impulso.

34 – Não se verifica uma qualquer necessidade de aplicação da medida de prisão preventiva ao caso vertente e por isso ferida tal fundamentação.

36 – Quanto à sua adequação, não é verdade que a arguida tenha dado continuidade à proibição de contactos vigentes, o que, pelo menos desde o ano de 2021 não mais sucedeu, e o ato em referência, como decorre do auto da PSP, foi como já se contextualizou, atenta a grande proximidade em que o próprio Tribunal colocou a arguida junto do assistente, não mais do que 2 metros de distância, a notícia da drástica condenação e o sorriso de soslaio daquele, que motivou a atitude, foi um ato totalmente isolado, que não poderá merecer uma contextualização de crime de violência doméstica.

37 – A contextualização em causa não integra uma criminalidade de tal ordem violenta para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, como tal, o princípio da proporcionalidade está violado.

38 - Das providências cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a medida coativa mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência em cada caso dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6),

39 - E dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do C.P.P.).

40 - Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou a obstar a que o arguido se exima à execução da fortemente previsível condenação, o que não é o caso, em nenhuma das circunstâncias.

41 – Pelos motivos expostos verifica-se existir erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

42 – No exercício dos procedimentos de cognição, sobre a falta de legitimidade na presente situação de privação de liberdade à arguida, é possível pôr fim à mesma ou modifica-la em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu e se está a realizar.

43 – Atentos os factos e motivos invocados, é certa a condição para que arguida possa vir a ser aplicada outra medida menos gravosa, mas que seja de imediato cessada a presente.

44 – Pelo que, dos presentes autos e em concreto da decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, verifica-se a necessidade de intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade da arguida, pelo abuso na aplicação de medida privativa da sua liberdade.

Também,

45 - A Constituição da República no artigo 28.º n.º 2 consagra a excecionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva, estabelecendo que “ tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei”.

46 - A presente providência visa, pois, reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação da liberdade da arguida, por considerar uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.

47 - A peticionante parte do pressuposto de que se encontra em prisão preventiva e que houve erro notório na aplicação da lei ao seu caso, por se verificarem os pressupostos de aplicação de mediada de coação menos gravosas e não a de prisão preventiva e a motivação dos factos da sua aplicação a lei não permite.

48 – Sempre poderiam e deveria ter sido aplicadas as medidas previstas no n.º 2 do artigo 198.º do C.P.P. As de obrigação de apresentações periódicas em cumulação com a proibição e imposição de condutas previstas na alínea a), c), d) e, ao caso desta alínea d) em conjugação com o n.º 5 do mesmo artigo, aplicação de meios técnicos de controlo à distância, ou até a medida de coação prevista no artigo 201.º, de Obrigação de permanência na habitação, caso se considera-se inadequadas ou insuficientes todas as outras, acumulada com a obrigação de não contactar, por qualquer meio com o seu ex-marido, com o uso de meios técnicos de controlo à distância, qualquer uma das referidas medidas de coação são suficientes e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime.

Atento o exposto, estamos em crer que existiu violação notória na aplicação do direito, pela violação de um princípio fundamental, constitucionalmente consagrado, pelo artigo 27.º, 28.º n.º 2 e 32.º n.º 2 da CRP, 193.º, 202.º e 204.º todos do C.P.P.

Nestes termos, requer que V.ªs Excelências, defiram o presente pedido, por o mesmo ter fundamento bastante, e declarem a prisão preventiva imputada à arguida, ilegal, sendo ordenado imediatamente a libertação da arguida AA, por concedida imediata providência de Habeas Corpus em razão da arguida se encontrar presa preventivamente de forma ilegal.”

Vossas Excelências, com douto suprimento, farão, contudo, JUSTIÇA!”


3. Foi prestada a informação a que alude o art° 223.°, n.º 1, in fine, do C.P.P.: (transcrição)

“A Arguida AA foi condenada, nos autos principais, no passado dia 29 de maio de 2023, entre outros, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º n.º1 alínea a) e n.º2 alíneas a) e b) do Código Penal na pena de quatro anos e oito meses de prisão; de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348º n.º2 do Código Penal, na pena de dezoito meses de prisão; de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3º n.º1 da Lei do Cibercrime na pena de nove meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão efetiva.

Foi junta aos autos participação criminal e queixa crime, imputando à arguida agressões físicas praticadas contra o ofendido BB, na sala de audiências do Tribunal, momentos após a leitura da sentença proferida nos presentes autos.

Nessa sequência, por despacho de 9 de junho de 2023 foi designado o dia 19 de junho de 2023, pelas 12h00, para audição da arguida com vista à revisão das medidas de coação.

No referido dia, a arguida compareceu, tendo sido confrontada com os novos factos que lhe foram imputados, tendo prestado declarações e, em consequência, tendo sido proferido despacho de revisão do estatuto coativo da Arguida, tendo-se aplicado a medida de coação de prisão preventiva, conforme resulta dos fundamentos explanados no referido despacho.

Assim, a prisão preventiva foi aplicada pela signatária – Juíza de Direito – do Juiz ... do Juízo Local Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., e substituta legal da Mma. Titular do Juiz ..., a quem foi concedida escusa para julgar os presentes autos, encontrando-se, assim, afastado o fundamento da alínea a) do n.º1 do artigo 222º do Código de Processo Penal; foi motivada pela forte indiciação de continuação da atividade criminosa da arguida, condenada já em primeira instância por sentença não transitada em julgado, pela prática, entre outros, de um crime de violência doméstica que, nos termos, do artigo 1º alínea j) e 202º n.º1 alínea b) do CPP, admite a aplicação da medida de coação mais gravosa – pelo que também não se verifica o fundamento previsto na alínea b) do n.º2 do artigo 222º do CPP; e, por fim, tendo sido aplicada a prisão preventiva no passado dia 19 de junho, não se encontram, ainda, ultrapassados os respetivos prazos legais, caindo, assim, igualmente, o fundamento do pedido de habeas corpus contido na alínea c) do preceito supra citado.

Em face do exposto, mantenho integralmente a prisão determinada.

Instrua os presentes autos com os elementos solicitados pela I. Advogada apresentante do pedido de habeas corpus e envie de imediato ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.”


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Defensora da Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):


II. Fundamentação

1. Factos:

Dos elementos que instruem o processo, com interesse para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:

- A requerente foi condenada, por Sentença de 29.05.2023. pela prática, além de outros, de um crime de violência doméstica;

- A medida de prisão preventiva foi aplicada à peticionante, por despacho judicial proferido no dia 19 de junho de 2023.


2. O direito

A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31° da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220° e 222° do CPP que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.

No caso, importa o artigo 222° do CPP que se refere aos casos de prisão ilegal, em cujos termos, a ilegalidade da prisão suscetível de fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a mesma

- ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

- ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

- ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222° do CPP.

A providência em causa, com previsão constitucional no art. 31.º, assume, assim, uma natureza excecional, expedita, de garantia de defesa do direito de liberdade, consagrado este nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, para pôr termo a situações de detenção ou de prisão ilegais.

Em jurisprudência constante, tem vindo este Tribunal a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência, perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP [acórdão de 19.01.22, no proc. n.º 57/18.8JELSB-D.S1; e também, entre outros, os acórdãos de 02.02.22, no proc. 13/18.6S1LSB-G, de 04.05.22, no proc. 323/19.5PBSNT-A.S1, 02.11.2018, de 04.01.2017, no proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, no proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

a. No caso

Pretende a requerente que a prisão é ilegal, por não ser proporcional e adequada, não se verificando “os pressupostos de aplicação da prisão preventiva”.

Ou seja, a peticionante fundamenta o seu pedido, alegando a ilegalidade da prisão em razão de eventuais vícios do despacho que determinou a sua sujeição a prisão preventiva.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, não se mostra numa relação de continuidade com os recursos admissíveis que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Não constituindo, pela sua natureza de providência extraordinária e pela definição fechada de fundamentos operada pelo n.º 2, do artigo 222.º do CPP, o meio de impugnação do referido despacho.

Como se pronunciou, já e por diversas vezes, este Tribunal, em entendimento reafirmado no Acórdão de 21.09.2011[1]:

“A providência de habeas corpus não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente. Como se decidiu no Ac. do STJ de 10-10-1990, in CJ, 1990, tomo 4, pág. 28, e BMJ n.º 400, pág. 546, no âmbito da providência de habeas corpus, «o STJ não pode substituir-se ao tribunal ou ao juiz que detém a jurisdição sobre o processo e não pode intrometer-se numa função reservada aos mesmos, consistindo as suas funções em controlar se a prisão se situa e se está a ser cumprida dentro dos limites da decisão judicial que a aplicou. Existindo uma decisão judicial, ela permanece válida até ser revogada em recurso. Por isso, a providência de habeas corpus apenas pode ser utilizada em situações diferentes. De contrário, estava a criar-se um novo grau de jurisdição, não contemplada. Daí que, quando o despacho de um juiz decreta a prisão baseado em fundamentos que a lei permite, o único meio de impugnação, por se pretender entender que tal fundamento se não encontra preenchido face aos elementos constantes do processo, é o recurso. Pode ao mesmo tempo requerer-se a providência, mas com base em outras razões que não as que foram objecto do recurso.”

Os motivos de ilegalidade da prisão, como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se afirmou, entre outros, no acórdão de 22.1.2020 (proc. 4678/18.0T8LSB-B.S1), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar:

- se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível,

- se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e

- se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr. também, os acórdãos de 26.07.2019 e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1).

A arguida encontra-se sujeita a prisão preventiva desde 19.06.2023.

A condenação respeita a, além de outros, crime de violência doméstica.

O crime de violência doméstica indiciado nos autos, p. e p. nos termos nos termos do artigo 152.º artigo 152º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal, punível com pena de 2 a 5 anos de prisão, inserido no Capítulo relativo aos “crimes contra a integridade física”, compreende-se no conceito de “criminalidade violenta”, nos termos da alínea j) do artigo 1.º do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual, para efeitos deste Código, considera-se “criminalidade violenta” as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

Dispõe o artigo 202.º, n.º 1, al. b), do CPP que, se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta.

Ou seja, a arguida encontra-se sujeita a prisão preventiva por crime que a admite.

Encontrando-se o processo a aguardar trânsito em julgado da sentença condenatória proferida, o prazo máximo de prisão aplicável, no momento atual, é de 1 ano e 6 meses, nos termos da al. d), do n.º 1 e do n.º 2, do artigo 215.º do CPP.

O prazo em causa está, pois, longe de ser, sequer, atingido.

Tendo sido a prisão preventiva da arguida ordenada e mantida pela autoridade judiciária competente, por factos pelos quais a lei permite - indiciadores da prática de crime de violência doméstica, e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação, na fase atual do processo, não se encontra a requerente em situação de prisão ilegal.

Não se verificam, pois, os pressupostos de concessão da providência de habeas corpus, inexistindo ilegalidade, abuso de poder ou inconstitucionalidade que imponha o respetivo deferimento, mostrando-se o requerimento manifestamente infundado.


III. Decisão:

Nestes termos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide:

- Indeferir, por manifesta falta de fundamento, a petição de habeas corpus, apresentada por AA;

- Condenar a Requerente nas custas da providência, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs (art.º. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais);

- Condenar, ainda, a peticionante na sanção processual cominada no art.º 223º, n.º 6, do CPP, que se fixa em 6 UCs. 


Supremo Tribunal de Justiça, 28 junho de 2023


Teresa de Almeida (Relatora)

Ana Maria Barata Brito (1.º Adjunto)

Sénio Alves (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] No processo n.º 96/11.0YFLSB.S13.ª Secção, Rel. Raúl Borges.