Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOÃO CURA MARIANO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA UNIÃO DE FACTO AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE JUÍZO CÍVEL TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES | ||
Data do Acordão: | 06/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Sumário : | Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa. | ||
Decisão Texto Integral: | * I – Relatório
Os Autores vieram intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, nos Juízos Locais Cíveis do Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira, pedindo o reconhecimento judicial da sua situação de união de facto, de acordo com a Lei 7/2001, de 11 de maio, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, da Lei 37/81, e do artigo 14.º, n.º 2 e 4, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006 do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa. Alegam, em síntese, para fundamentar o seu pedido que vivem em união de facto em condições análogas às dos cônjuges desde 02.09.2012, pretendendo ver reconhecida judicialmente a sua situação de união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa pela Autora.
Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, julgando verificada a exceção dilatória da incompetência do Juízo Local Cível da comarca de Vila Franca de Xira, em razão da matéria, para apreciar e julgar a presente ação, considerando serem competentes para o efeito os Juízos de Família e Menores.
Foi interposto recurso desta decisão pelos Autores para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 02.03.2023, com um voto de vencido, julgou procedente o recurso, considerando o Juízo Cível competente em razão da matéria para apreciar e decidir a presente ação, determinando o prosseguimento dos autos em conformidade.
Desta decisão recorreu a Magistrada do Ministério Púbico para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas suas alegações apresentado as seguintes conclusões: 1 - O presente recurso é interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, julgando procedente a apelação, decidiu que o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer da ação de reconhecimento judicial de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade é o tribunal cível e não o de família e menores 2 - Diversamente, entende-se que a competência em causa cabe ao tribunal de família e menores. 3 - A questão suscitada é apenas uma: qual o tribunal competente para preparar e decidir a ação de reconhecimento judicial de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade, o tribunal cível ou o de família e menores? 4 - Cabe à LOSJ determinar a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada (cfr. art. 40.º da LOSJ, e arts. 64.º e 65.º do CPC). 5 - Desde a entrada em vigor Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciária), a qual revogou a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) - no que diz respeito ao estado civil das pessoas, o artigo 122.º dispõe nos seguintes termos: Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto de economia comum; […] 6 - O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (redigido em data anterior) atribuiu a competência ao tribunal cível (por contraposição aos tribunais administrativos e fiscais, porquanto a mesma Lei Orgânica aditou o artigo 26.º, sobre a legislação aplicável ao contencioso da nacionalidade). 7 - Pese embora o artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil, imponha uma presunção no sentido da subsistência da lei especial, tal presunção poderá ser ilidida se existir uma intenção revogatória inequívoca do legislador, a qual não pressupõe, necessariamente, uma revogação expressa, podendo ser intuída com recurso aos elementos interpretativos, seguindo-se a metodologia hermenêutica, nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil 8 -As alterações e evolução legislativas, plasmadas não só na redação da LOSJ, mormente do seu artigo 122.º, als. b) e g), bem como nos diplomas legais que têm vindo a equiparar a união de facto ao casamento (designadamente, a Lei n.º 7/2001, de 11-05, com a última redação dada pela Lei n.º 71/2018, de 31/12) demonstram a intenção inequívoca do legislador de revogar aquele preceito normativo da lei especial. 9 - A apreciação e decisão da questão jurídica colocada em causa envolve a aplicação de normas de Direito da Família, nomeadamente, as previstas nos artigos 1793º (este ex vi do art. 4º, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio) e 2020º, ambos do C. Civil], «embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sociofamiliares» 10 - Como bem se menciona no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30-06-2020 (Relator José Capacete), também citado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-04-2021 (Relator Mendes Coelho): No caso da união de facto, a mesma atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídicas familiares taxativamente previstas na lei, que continuam a ser o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção. 11 - A leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família» reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (cf. art. 1576º do C.Civil, Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto e as alterações legislativas daí decorrentes, com destaque para a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio), de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa que atualmente tem a família. 12 - Conclui-se, assim, que a união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas e família, pelo que, materialmente, a acção de reconhecimento judicial da união de facto se insere na competência do Juízo de Família e Menores. 13 – O Acórdão recorrido violou o disposto no art. 122º, nº 1 alínea b) da Lei nº 62/213, de 26 de Agosto. 14 – pelo que deverá ser substituído por outro que, declarando competente, em razão da matéria, para conhecer da acção de reconhecimento da união de facto para efeito de aquisição da nacionalidade o Tribunal de Família e Menores, julgue verificada a excepção dilatória da incompetência material e mantenha a decisão de indeferimento liminar da petição inicial, nos termos do disposto nos artigos 96º, al. a), 97º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. a) e 578º do C.P. Civil.
* II – O objeto do recurso Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apreciar se os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.
* III - O direito aplicável Sobre esta questão o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou no acórdão proferido em 17 de junho de 2021, no processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1, decidindo pertencer a competência aos tribunais cíveis para julgar este tipo de ações, com a seguinte fundamentação: O artigo 60.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estatui que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código. As normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português constam atualmente da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. Dispõe o artigo 37.º, n.º 1, da LOSJ, em consonância com o n.º 2, do artigo 60.º, do Código de Processo Civil, que, na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território. No que respeita à competência em razão da matéria, o regime regra está consagrado no artigo 40.º da LOSJ: 1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. Trata-se de um regime que se mostra reiterado nos artigos 64.º e 65.º do Código de Processo Civil. Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca (artigo 79.º da LOSJ), os quais se desdobram em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (artigo 81.º, n.º 1, do da LOSJ). Os juízos de competência especializada que podem ser criados encontram-se enumerados no n.º 3, do mesmo artigo 81.º, neles se encontrando quer os juízos centrais e locais cíveis (alíneas a) e b) quer os juízos de família e menores (alínea g). Podem também ser criados juízos de competência especializada mista (artigo 81.º, n.º 4, da LOSJ). Nos termos do artigo 117.º, n.º 1, da LOSJ, compete aos juízos centrais cíveis, além de outras competências, a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 (alínea a) e as demais competências conferidas por lei (alínea d), enquanto os juízos locais cíveis tem uma competência residual (artigo 130.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Já aos juízos de família e menores compete julgar as causas elencadas nas diversas alíneas dos artigos 122.º, 123.º e 124.º, da LOSJ, constando da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º, as ações relativas ao estado civil das pessoas e família (alínea g). Está em causa neste recurso qual o tribunal competente, em razão da matéria, para julgar as ações de simples apreciação positiva de reconhecimento de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos no artigo 3.º da Lei da Nacionalidade. A Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade, aditando um n.º 3 ao artigo 3.º, passou a permitir, que o estrangeiro que viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, possa adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração, desde que essa situação esteja reconhecida em ação própria. Este mesmo preceito dispõe que tal ação de reconhecimento da situação de união de facto com uma duração superior a três anos deve ser interposta no tribunal cível. Por sua vez, o artigo 14.º, nos respetivos nos 2 e 4, do Decreto-Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro que veio regulamentar a Lei da Nacionalidade, após as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, dispõe que o estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto, sendo que nesse caso a declaração deve ser instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto. Alguns acórdãos dos Tribunais das Relações de Coimbra e de Lisboa [1], têm vindo a decidir que a competência para julgar estas ações pertence aos tribunais de competência especializada de família e menores, considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, aos tribunais de família e menores, por se tratarem de ação relativas ao estado civil das pessoas, uma vez que esta designação se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto. Estes arestos não têm, porém, valorizado a menção de atribuição de competência específica aos tribunais cíveis para decidir estas ações que consta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, sendo certo que nada impede o legislador de atribuir competência específica para o julgamento de determinadas ações, contrariando as regras gerais de competência dos diferentes tribunais judiciais especializados constantes da LOSJ. Como já acima se referiu, a previsão destas ações e a atribuição de competência aos tribunais cíveis para as julgar foi da responsabilidade da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, conhecida pela Lei da Nacionalidade. A redação daquela Lei Orgânica teve na sua origem um texto de substituição elaborado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para onde, após a sua aprovação em Plenário, haviam baixado a Proposta de Lei n.º 32/X e os Projetos de Lei n.º 18/X, 31/X, 40/X, 170X, 173/X e 32/X, que propunham alterações à Lei da Nacionalidade, o qual foi aprovado, primeiro nessa Comissão, e posteriormente em Plenário. Relativamente à parte final da redação do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, onde se determinou o tribunal competente para o julgamento destas ações, a mesma reproduziu o texto do Projeto de Lei n.º40/X, da autoria do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, o qual atribuía essa competência ao tribunal cível [2]. Na época em que foi aprovada a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro. Na altura, o artigo 64.º, n.º 1, da LOFTJ, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, determinava que podiam existir tribunais de 1.ª instância de competência especializada e de competência específica, esclarecendo o n.º 2, do mesmo artigo, que os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, enquanto os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas pela espécie de ação ou pela forma de processo aplicável. Por sua vez o artigo 65.º do mesmo diploma dispunha: 1 – Os tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos: 2 – Nos tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica, especializada ou específica. 3 – Os tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas, com competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justifiquem. Aos juízos de competência genérica era atribuída competência para preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal (artigo 77.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), e entre os tribunais de competência especializada contavam-se os tribunais de família (artigo 78.º, b), da LOFTJ), que tinham a competência atribuída nos artigos 81.º e 82.º da LOFTJ, a qual não incluía as ações do tipo das referidas pelo artigo 3.º, n.º 3, da Lei na Nacionalidade. Podiam ser criados juízos de competência especializada cível (artigo 93.º da LOFTJ), aos quais competia a preparação e julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (artigo 94.º da LOFTJ, na redação da Lei n.º 38/2003, de 8 de março). Podiam ainda ser criados varas cíveis, juízos cíveis e juízos de pequena instância cível de competência específica (artigo 96.º, a) e c), da LOFTJ), competindo às primeiras preparar e julgar as ações declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal coletivo (artigo 97.º, n.º 1, a), da LOFTJ, na redação da Lei n.º 42/2005, de 29 de agosto), aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível (artigo 99.º da LOFTJ), e aos juízos de pequena instância cível preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo e as causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil a que corresponda processo especial e cuja decisão não seja suscetível de recurso ordinário (artigo 101.º da LOFTJ). Era esta a estrutura e o regime dos tribunais judiciais, quando o legislador, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, previu a necessidade do reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa por pessoa estrangeira e atribuiu a competência para esse reconhecimento ao tribunal cível. A mesma Lei alterou o artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, passando a constar que ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, onde dantes se dizia que a apreciação dos recursos a que se refere o artigo anterior (recursos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa) era da competência do Tribunal da Relação de Lisboa. O legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser fator de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis. Com essa definição não se pretendeu efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, uma vez que, não existindo a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, a competência para o julgamento daquelas ações sempre competiria a um tribunal cível (podia ser uma vara cível, um juízo cível e, onde não existissem estes tribunais de competência específica, os juízos de competência genérica). O legislador com a indicação específica de qual o tribunal competente para decidir este tipo de ações, sem que essa atribuição de competência constituísse uma exceção à atribuição que resultava da aplicação das regras gerais de distribuição de competência, em razão da matéria, pelos diferentes tribunais judiciais, terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração da solução do artigo 26.º da Lei na Nacionalidade, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril. Poderia tê-lo feito, dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, deixando que a aplicação das regras gerais de distribuição de competências nesta ordem jurisdicional definissem o tribunal competente em razão da matéria. No entanto, optou por ser mais específico e, de entre os diferentes tribunais judiciais, definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes, o que, como já vimos, se encontrava de acordo com a aplicação das regras gerais da LOFTJ, não constituindo esta definição uma exceção a essas regras. No entanto, com a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a qual passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar este tipo de ações passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família. Contudo, mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário. Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas. Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral [3]. O argumento exposto nas alegações de recurso, na defesa da competência dos Tribunais de Família e Menores para o julgamento deste tipo de ações é o de que as alterações e evolução legislativas, plasmadas não só na redação da LOSJ, mormente do seu artigo 122.º, als. b) e g), bem como nos diplomas legais que têm vindo a equiparar a união de facto ao casamento (designadamente, a Lei n.º 7/2001, de 11-05, com a última redação dada pela Lei n.º 71/2018, de 31/12) demonstram a intenção inequívoca do legislador de revogar aquele preceito normativo da lei especial, pelo que ter-se-ia verificado uma revogação implícita da norma que na Lei da Nacionalidade (artigo 3.º, n.º 3) atribuiu a competência aos tribunais cíveis para reconhecerem a existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa. Conforme resulta do disposto no artigo 7.º do Código Civil, a revogação de um preceito legal não tem que ser expressa em ato legislativo posterior, podendo essa revogação resultar quer de uma antinomia normativa face ao conteúdo desse ato, considerando-se extinta a norma mais antiga, quer de uma manifestação concludente dessa vontade revogatória por parte do legislador, percecionada através de uma atividade interpretativa. Contudo, do alargamento da competência dos tribunais de família, designadamente através do aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família – nunca poderia resultar a revogação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, aditado pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, uma vez que esta norma assumiu-se como uma norma especial, não relativamente à distribuição das competências entre os tribunais judiciais, mas sim relativamente ao disposto no artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, cuja redação também foi introduzida pela mesma Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, de modo a subtrair essas ações à atribuição da competência aos tribunais administrativos do contencioso da nacionalidade, pelo que a sua eliminação, nunca teria como efeito a atribuição da competência aos tribunais de família e menores, como sustenta a Recorrente, mas sim a aplicação do disposto no referido artigo 26.º da Lei da Nacionalidade a essas ações, os seja o seu julgamento pelos tribunais administrativos. Poderia, eventualmente, justificar-se uma adaptação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, em consonância com o alargamento da competência dos Tribunais de Família e Menores, substituindo-se a intervenção dos tribunais cíveis por aqueles tribunais, mantendo-se a competência nos tribunais judiciais. No entanto, essa adaptação terá que ser feita pelo legislador, não podendo o intérprete substituir-se à vontade deste, sendo, aliás, significativo que após a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, o legislador já efetuou, por quatro vezes, alterações na Lei da Nacionalidade [4] sem nunca ter procedido à alteração na escolha do tribunal competente para decidir estas ações. Note-se, no entanto, que o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, nestas ações, funciona apenas como a averiguação judicial de um pressuposto da atribuição da nacionalidade portuguesa e não como meio de resolução de qualquer litígio familiar, pelo que a opção do legislador ter mantido a atribuição da competência aos tribunais cíveis, enquanto tribunais de competência residual, apesar do alargamento das competências dos tribunais de família às ações que tenham por objeto a família, não é destituída de sentido. Existe, aliás, um largo número de ações em que a existência de um casamento ou de uma união de facto é apenas um pressuposto a verificar para o reconhecimento de um direito extrafamiliar (v.g. um direito de crédito de terceiro), competindo o seu julgamento aos tribunais cíveis. Chama-se ainda a atenção para a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações. Ponderados os argumentos da Recorrente, não há, pois, razões para concluir que o disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, se encontre implicitamente revogado, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
* Decisão Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Magistrada do Ministério Público, confirmando-se o acórdão recorrido,
* Sem custas.
* Notifique.
* Lisboa, 22 de junho de 2023
João Cura Mariano (relator)
Catarina Serra
Vieira e Cunha ____ [1] Acórdãos da Relação de Coimbra de 08.09.2019, Proc. n.º 2998/19 (Rel. Luís Cravo), de 31.03.2020, Proc. n.º 136/20 (Rel. Luís Cravo), de 15.07.2020, Proc. n.º 160/20 (Rel. Vítor Amaral), e Acórdãos da Relação de Lisboa de 11.12.2018, Proc. n.º 590/18 (Rel. António Santos), e de 30.06.2020, Proc. n.º 23445/19 (Rel. José Capacete). |